Um parasita do afeto humano

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Quarta-feira, 27 setembro de 2006
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Um parasita do afeto humano
Fernando Reinach*
Quando o meio ambiente se modifica, os seres vivos incapazes de se
adaptar são extintos. Por esse motivo um dos aspectos mais
interessantes da biologia são as estratégias utilizadas pelos animais
para sobreviver em novos ambientes. Meu exemplo favorito é uma
espécie que desenvolveu a capacidade de explorar nossa habilidade de
dar e receber afeto. Utilizando sua capacidade de parasitar diretamente
nossa mente, esse animal conseguiu garantir a sobrevivência de sua
espécie. Como todo parasita, teve de abrir mão de sua liberdade, mas
valeu a pena: da maneira como o homem vem alterando o planeta,
provavelmente essa espécie será a última do seu grupo a se extinguir,
pois associou definitivamente seu destino ao nosso. É o cão.
Desde que o homem se espalhou pela Terra, os grandes carnívoros
têm sofrido com nossa presença. No passado essas espécies
competiam com o homem por alimentos, mas também se alimentavam
de nossos ancestrais. São os leões, tigres e lobos. Na medida em que o
homem avançou sobre os diversos ecossistemas e aos poucos foi
invadindo seu hábitat, eles foram caçados impiedosamente e hoje
muitos já se extinguiram ou estão na lista das espécies em extinção.
A exceção é o cachorro, que foi capaz de adotar uma estratégia de
sobrevivência exemplar, entregando seu destino ao pior inimigo.
Provavelmente o homem primitivo domesticou o cachorro para
aproveitar sua capacidade de vigilância, do mesmo modo que
domesticou as vacas para obter leite e os cavalos para o transporte.
Mas ao contrário desses animais, o cachorro teve a 'astúcia' de
desenvolver uma relação direta com nossa capacidade de criar laços
afetivos. Talvez isso tenha ocorrido por causa do olhar meigo ou da
capacidade de balançar o rabo. Não importa, o fato é que esse foi
provavelmente o animal que melhor explorou essa característica
humana.
ADAPTAÇÃO OPORTUNA
Com o passar dos anos a função dos cães como guardas perdeu
importância e eles corriam o risco de ter sua população reduzida,
como ocorreu com os cavalos com o surgimento do automóvel. Mas
sua conexão direta com o afeto humano tem garantido o contínuo
crescimento da espécie. Nos países desenvolvidos, o homem criou e
sustenta uma indústria de bilhões de dólares para suprir esses animais
com comidas especiais, roupas, tratamento veterinário, hotelaria e até
tratamento psicológico. Tamanha é a relação de parasitismo dessa
espécie com nossa capacidade de dar afeto que nos países pobres,
onde humanos passam fome, os cães competem com as crianças por
comida. São poucas as sociedades em que esses animais são
sacrificados para servirem de alimento.
Mas para conquistar o privilégio de serem sustentados e protegidos
pela espécie mais poderosa do planeta, eles tiveram de abrir mão de
muitos privilégios, inclusive sua liberdade reprodutiva: muitas raças
entregaram aos seus protetores a liberdade de escolher seus parceiros
sexuais. O domínio que esses parasitas exercem sobre o sistema
amoroso de seus hospedeiros é de tal ordem que a maioria dos
humanos realmente acredita que ama seus cães. É impressionante o
sucesso da estratégia evolutiva dessa espécie, talvez o único caso em
que um parasita controla a mente de seu hospedeiro. Reconhecer esse
fato só faz aumentar minha admiração pelos cães.
*[email protected]
Biólogo
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