Conceito de Direito (Material de autoria de Sílvio de Salvo Venosa

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Conceito de Direito
(Material de autoria de Sílvio de Salvo Venosa)
A nossa realidade que nos cerca pode ser considerada de três modos
diferentes: o mundo da natureza, o mundo dos valores e o mundo da cultura. Esses
três aspectos dão ordem ao caos que nos rodeia.
O
mundo
da
natureza
compreende
tudo
quanto
existe
independentemente da atividade humana. Vigora aí o princípio da causalidade, das
leis naturais que não comportam exceção, nem podem ser violadas.
As leis naturais são as leis do ser. Uma vez ocorridas determinadas
circunstâncias, ocorrerão inexoravelmente determinados efeitos. No mundo dos
valores, atribuímos certos significados, qualidades aos fatos e coisas que
pertencem a nosso meio, a nossa vida. A tudo que nos afeta, direta ou
indiretamente, atribui-se um valor. A atribuição de valor às coisas da realidade
constitui uma necessidade vital. O homem em sociedade sente necessidade de
segurança, trabalho, cooperação, atividade de recreio, política, estética, moral,
religiosidade. Todas essas necessidades são valoradas pela conduta humana.
Trata-se, portanto, do aspecto axiológico.
Quando dizemos que determinada pessoa é boa ou má, é simpática ou
antipática, nada mais fazemos do que lhe atribuir um valor; esse valor é pessoal,
podendo não ser o mesmo atribuído por outrem ou por uma coletividade.
A conduta humana não pode prescindir de uma escala de valores a
reger os atos, as ações socialmente aceitáveis ou inaceitáveis, de acordo com a
opinião dessa mesma sociedade. O fato de o homem atribuir valor a sua realidade
é vital para satisfazer a suas próprias necessidades. Se não tivéssemos
continuamente carências, não haveria necessidade de uma escala de valores. Já o
mundo da cultura é o mundo das realizações humanas.
À medida que a natureza se mostra insuficiente para satisfazer às
necessidades do homem, quando sente a falta de abrigo, de instrumentos, de viver
com outros seres semelhantes, passa o homem a agir sobre os dados da natureza,
por meio dos valores, isto é, necessidades para sua existência, criando uma
realidade que é produto seu, resultado de sua criatividade.
Esta breve introdução serve para posicionar o Direito como pertencente
ao mundo da cultura. Nesse mundo cultural, o homem criou vários processos de
adaptação, esforçando-se para a realização dos seus valores. Não pretendemos
aqui explicar a ciência do Direito ou o Direito em si, nem é objeto dessa disciplina.
É necessário, no entanto, fixar os primeiros passos, para posicionar esse estudo.
A cultura referida abrange tanto a cultura material como a cultura
espiritual. Uma pintura, uma obra literária ou arquitetônica, uma poesia são bens
culturais. A intenção com que foram criadas é que as fazem produtos da cultura
humana.
A atividade valorativa ou axiológica orientada para realizar a ordem, a
segurança e a paz social faz surgir o Direito, posicionado no mundo da cultura.
O Direito é uma realidade histórica, é um dado contínuo, provém da
experiência. Só há uma história e só pode haver uma acumulação de experiência
valorativa na sociedade. Não existe Direito fora da sociedade (ubi societas, ibi ius,
onde
existe
a
sociedade,
existe
o
direito).
Daí dizer-se que no Direito existe o fenômeno da alteridade, isto é, da relação
jurídica.
Só pode haver direito onde o homem, além de viver, convive. Um
homem que vive só, em uma ilha deserta, não é alcançado, em princípio, pelo
Direito, embora esse aspecto modernamente também possa ser colocado em
dúvida. Há, portanto, particularidades que distinguem a ciência do Direito das
demais.
O Direito disciplina condutas, impondo-se como princípio da vida social.
Leva as pessoas a relacionarem-se por meio de liames de várias naturezas,
comprometendo-se entre si. Já acenamos aí, portanto, com a existência da
obrigação jurídica.
Para que haja essa disciplina social, para que as condutas não tornem a
convivência inviável, surge o conceito de norma jurídica.
A norma é a expressão formal do Direito, disciplinadora das condutas e
enquadrada no Direito. Pelo que até aqui se expôs, há de se perceber a diferença
marcante entre o "ser" do mundo da natureza e o "deve ser" do mundo jurídico: um
metal aquecido a determinada temperatura muda do estado sólido para o líquido.
Essa disposição da natureza é imutável. O homem que comete delito de homicídio
"deve ser" punido. Pode ocorrer que essa punição não se concretize pelos mais
variados motivos: o criminoso não foi identificado, ou agiu em legítima defesa, ou o
fato ocorreu sem que houvesse a menor culpa do indivíduo.
Esta aí a diferença do "ser" e do "dever ser". Este último se caracteriza
pela liberdade na escolha da conduta. O mundo do "ser" é do conhecimento,
enquanto o mundo do "dever ser" é objeto da ação.
Entre os vários objetivos das normas, o primordial é conciliar o interesse
individual, egoísta por excelência, com o interesse coletivo. Direito é ordem
normativa, é um sistema de normas harmônicas entre si.
No entanto, o mundo cultural do direito não prescinde dos valores. Vive
o Direito da valoração dos fatos sociais, do qual nascem as normas, ou, como
queiram, é por meio das normas que são valorados os fatos sociais.
Há uma trilogia da qual não se afasta nenhuma expressão da vida
jurídica: fato social-valor-norma, na chamada Teoria Tridimensional do Direito,
magistralmente descrita por Miguel Reale (1973).
A medida de valor que se atribui ao fato transporta-se inteiramente para
a norma. Exemplo: suponha que exista número grande de indivíduos em uma
sociedade que necessitem alugar prédios para suas moradas. Os edifícios são
poucos e, havendo muita demanda, é certo que pela lei da oferta e da procura os
preços dos imóveis a serem locados elevem-se. O legislador, apercebendo-se
desse fato social, atribui valor preponderante à necessidade dos inquilinos,
protegendo-os com uma Lei do Inquilinato, que lhes dá maior proteção em
detrimento do proprietário. Há aqui um fato social devidamente valorado que se
transmutou em norma.
Não cabe aqui um aprofundamento sobre a matéria, que pertence
propriamente à Filosofia do Direito. O que por ora pretendemos é situar o Direito,
para chegar à posição do chamado Direito Civil. Essas noções introdutórias,
porém, são importantes, a fim de preparar o espírito para o que advirá brevemente
nessa exposição.
Complementando, importa também afirmar que o Direito é realidade
histórico-cultural e, como já acentuamos, de natureza bilateral ou alternativa. Não
existe Direito fora do mundo da cultura, que se insere em um contexto histórico,
sempre na sociedade.
Por isso se diz que o direito é atributivo, ou seja, consiste em um
realizar constante de valores de convivência.
O Direito refere-se sempre ao todo social como garantia de
coexistência. Realizar o Direito é realizar a sociedade como comunidade concreta,
que não se reduz a um conglomerado amorfo de indivíduos, mas forma uma ordem
de cooperação, uma comunhão de fins que precisa ser ordenada. Daí por que só
existir Direito em sociedade.
Direito é ciência do "deve ser" que se projeta necessariamente no plano
da experiência. Para cada um receber o que é seu, o Direito é coercível, isto é,
imposto à sociedade por meio de normas da conduta.
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