NIETZSCHE Do julgamento da civilização à questão da existência humana Friedrich Nietzsche (1844-1900) nasceu em Rocken, uma localidade da Alemanha atual. Filho de um culto pastor protestante, possuía um génio brilhante, tendo estudado grego, latim, teologia e filosofia. Em 1869, tornou-se professor titular de Filosofia na Basileia. A partir da leitura de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, sentiu-se profundamente atraído pelas reflexões filosóficas. Em sua obra, Nietzsche critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a intuição criadora da filosofia anterior, présocrática. Nessa análise, estabelece a distinção entre dois princípios: o apolíneo e o dionisíaco — a partir, respectivamente, de Apoio (deus da razão, da clareza, da ordem) e Dionísio (deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem). Para Nietzsche, esses dois princípios ou dimensões complementares da realidade, o apolíneo e o dionisíaco, foram separados na Grécia socrática, que, optando pelo culto à razão, secou a seiva criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca. Posteriormente, Nietzsche desenvolveu uma crítica intensa dos valores morais, propondo uma nova abordagem: a genealogia da moral, isto é, o estudo da origem e da história dos valores morais. A conclusão de Nietzsche foi de que não existem as noções absolutas de bem e de mal. Para ele as concepções morais surgem com os homens, a partir das necessidades dos homens. Ou seja, são produtos da história humana. Os homens são os verdadeiros criadores dos valores morais, sobretudo as religiões, como o judaísmo e o cristianismo para a civilização ocidental, que impõem muitos desses valores humanos como se fossem produto da "vontade de Deus". Para o filósofo, grande parte das pessoas adota uma "moral de rebanho", baseada na submissão irrefletida aos valores dominantes da civilização cristã e burguesa. O que é tacitamente1 aceito por nós; o que recebemos e praticamos sem atritos internos e externos, sem ter sido por nós conquistado, mas recebido de fora para dentro, é como algo que nos foi dado; são dados que incorporamos à rotina, reverenciamos passivamente e se tornam peias ao desenvolvimento pessoal e coletivo. Ora, para que certos princípios, como a justiça e a bondade, possam atuar e enriquecer, é preciso que surjam como algo que obtivemos ativamente a partir da superação dos dados. (...) Para essa conquista das mais lídimas virtualidades do ser é que Nietzsche ensina a combater a complacência, a mornidão das posições adquiridas, que o comodismo intitula moral, ou outra coisa bem soante. MELLO E SOUZA, António Cândido de. O portador. In: Nietzsche, p. 411 Assim, se compreendermos que os valores presentes em nossa vida são construções humanas, estamos no dever de refletir sobre nossas concepções morais e enfrentar o desafio de viver por nossa própria conta e risco. Nietzsche escreveu sob a forma de aforismos (máximas ou sentenças curtas que exprimem um conceito) a maior parte de suas obras. Esses aforismos tratam de diversos temas, como religião, moral, artes, ciências etc. Seu conjunto revela, no entanto, como preocupação básica uma crítica profunda e impiedosa à civilização ocidental. Crítica à massificação, à visão de mundo burguesa, ao conservadorismo cristão ("moral de rebanho") etc. Dessa crítica surgiu também a questão do valor da existência humana. Segundo a análise de Nietzsche, no momento em que o cristianismo deixou de ser a "única verdade" para se tornar uma das interpretações possíveis do mundo, toda a civilização ocidental e seus valores absolutos também foram postos em xeque. O próprio Nietzsche disse: "Quem vos fala é o primeiro niilista perfeito da Europa". Ser niilista significa não crer em nenhuma verdade moral ou hierarquia de valores pré-estabelecidos. O niilismo de Nietzsche baseava-se na afirmação da "morte de Deus", isto é, na rejeição à crença de um ser absoluto, transcendental, capaz de traçar "o caminho, a verdade e a vida" para o ser humano. Apesar desse niilismo em relação aos valores consagrados da civilização, Nietzsche defendia outros valores, afirmativos da vida, capazes de expandir as energias latentes em nós. "Ouse conquistar a si mesmo" talvez seja o grande conselho nietzschiano àqueles que buscam viver a "liberdade da razão", sem conformismo, resignação ou submissão. Fonte: Gilberto Cotrim, Fundamentos da Filosofia, Pág. 213 e 214