MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS PRE/D/2012 - RE - P - _________ RECURSO ELEITORAL Nº 119 -33.2012.6.13.0304 RECORRENTE: Partido Progressista - PP RECORRIDO (A): Adriana Aparecida Alves RELATOR (A): Juiz Maurício Soares DESEMBARGADOR IMPEDIDO: Wander Marotta O MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL , por intermédio da PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL , devidamente instado a se manifestar, o faz nos seguintes termos. Trata-se de recurso interposto contra decisão que deferiu o requerimento d e transferência de domicílio eleitoral da recorrida para o município de Iguatama/MG. O partido recorrente aponta indícios de fraude na transferência requerida, alegando que a ora recorrida, juntamente com mais quatro membros de sua família, firmaram compr omisso com a pré -candidata ao cargo de vereadora no referido município, Rita de Cássia da Silva Campos Nascimento. 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS A recorrida, por sua vez, apresentou contrarrazões ao recurso sustentando a flexibilidade do conceito de domicílio eleitoral, que se comprova por vínculos sócias e afetivos e, por fim, que a documentação constante dos autos comprova sua residência no município. É o relatório. Para o deslinde da demanda instalada nos autos, necessário verificar a existência de vínculo juridicamente relevant e da recorrida para com o município de Iguatama/MG, a que corresponde a ZE para a qual pretende a transferência de seu cadastro eleitoral. Para tanto, impende salientar que o conceito de domicílio eleitoral, para fins de inscrição e transferência, extrai -se dos artigos 4º, parágrafo único e 8º da Lei nº 6.996/82, que assim dispõem: Art. 4º - O alistamento se faz mediante a inscrição do eleitor. Parágrafo único - Para efeito de inscrição, domicílio eleitoral é o lugar de residência ou moradia do requerent e, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar -se-á domicílio qualquer del as. (...) Art. 8º - A transferência do eleitor só será admitida se satisfeitas as seguintes exigências: (...) III - residência mí ni ma de 3 (três) meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da lei, pelo próprio eleitor. Por sua vez, o Provimento nº 017/CRE/2011 da CRE/MG, que “Expede instruções para revisão do eleitorado com identificação biométrica em Municípios do Estado de Minas Gerais” estabelece: Art. 4º A compro vação de domicílio poderá ser feita mediante um ou mais documentos dos quais se infira ser o 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS eleitor residente no município ou nele possuir vínculo familiar, profissional, patrimonial ou comunitário a abonar a residência exigida. (Arts. 64 e 65 da Resoluçã o nº 21.538/2003/TSE c/c Ac. TSE nº 371.C, de 19.9.96). (...) § 4º Ocorrendo a impossibilidade de apresentação de qualquer documento que identifique o domi cílio do eleitor ou subsistindo dúvida quanto à idoneidade do comprovante de domicílio apresentado, d eclarando o eleitor, sob penas da lei, ter domicílio no município, o Juiz El eitoral decidirá de plano ou deter mi nará as providências necessárias à obtenção da prova, inclusive por meio de verificação no local. A extensão do conceito de domicílio eleitoral , realizada pelo referido Provimento 017/CRE/2011, encontra apoio em diversos precedentes do Tribunal Superior Eleitoral, que em geral definem como sendo o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos, sociais e afetivos. 1 Esta Procuradoria Regional E leitoral vinha seguindo essa orientação. Ou seja, entendia -se que se provados vínculos políticos, afetivos ou sociais do eleitor com o município, restaria atendido o requisito domiciliar para fins de inscrição ou transferência eleitoral. Contudo, conheci das e não raras fraudes praticadas em ano eleitoral, com a finalidade de arregimentação de eleitores comprometidos com determinado candidato, e que resulta, muitas vezes, em um fenômeno demográfico no município que acaba por ter mais eleitores que habitant es, como parece ser o caso dos autos, levaram a uma melhor reflexão e mudança de posição sobre o assunto. 1 RESPE nº 23.721/2004, RESPE nº 16.397, RESPE nº 21.829. 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Oportuno o resgate da definição de domicílio da pessoa natural, segundo o Código Civil que, no artigo 70, estabelece que domicílio é o lugar onde el a estabelece residência com ânimo definitivo. Vê-se que o legislador, para definir o domicílio civil, reuniu dois elementos: um material, ou externo – a residência, e outro psíquico, ou interno – a intenção de permanecer. Domicílio civil, pressupõe, portan to, a relação física (residência ou moradia) da pessoa com o local, além de um outro elemento anímico ou subjetivo, a intenção de ali permanecer. Não se desconhece que legislador civil admitiu a pluralidade de domicílios, considerando a possibilidade de o indivíduo possuir mais de uma residência de maneira não eventual (art. 71). Para além disso, pode ser considerado o domicílio da pessoa natural o lugar onde ela exerça suas atividades (art. 72), e, por fim, pode -se ainda considerar domiciliada a pessoa onde for encontrada, desde que não tenha residência permanente (art. 73). No entanto, para fins eleitorais, especificamente para a inscrição eleitoral, o legislador não edificou a definição de domicílio sobre os mesmos elementos (residência e ânimo de p ermanência), tendo se contentado apenas com o primeiro. Assim é que, para fins eleitorais, considera-se domicílio o lugar de residência ou moradia do eleitor (Lei nº 9.096/82, art. 4º). Mas isso não autoriza a inferência de que vínculos de natureza econômica, profissional, política, social ou afetiva possam instar a qualificação jurídica do lugar como domicílio. Isso porque, como parece óbvio, o elemento descritivo ( residência ou moradia ), que é o ponto 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS nuclear da definição formulada pela lei eleitoral, traz ínsita a ideia de relação física entre o lugar e a pessoa. Em outros termos, é necessário, para a configuração de um domicílio eleitoral, que no lugar considerado a pessoa disponha de casa, apartamento, barracão ou outro tipo de imóvel, próprio, alugado ou cedido em comodato, para onde se recolha, que lhe sirva de abrigo. E, diga -se mais, essa relação física somente haverá de se caracterizar como residência ou moradia se for não eventual . Não obstante a clareza e perfeita delimitação da definição de domicílio conferida pela lei eleitoral, diversos precedentes do TSE, como já apontado, têm emprestado à expressão domicílio eleitoral uma exagerada e desarrazoada amplitude conceitual, ao ponto de abarcar no espectro conceitual de residência ou moradia si tuações como a de vínculos políticos, afetivos ou de parentesco, econômicos, e outros mais. Com isso se quer dizer que a amplitude conferida ao significado de domicílio eleitoral nos apontados precedentes refoge, evidentemente, às possibilidades semântica s que o texto do artigo 4º da Lei nº 9.096/82 oferece. Não se pretende aqui afirmar que seja a interpretação resultante do método de análise puramente literal ou gramatical do texto a única possível. É certo, como há muito já se afirma, que o sentido ou os sentidos possíveis de um enunciado normativo devem ser revelados a partir de um processo de interpretação que, conforme o caso, haverá de ser mais ou menos complexo, mais ou menos elaborado, podendo chegar -se à consideração de elementos históricos, de a nálise sistemática, de integração da norma à realidade (social, política e econômica) e de interdisciplinariedade. 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS É possível que a interpretação, exercitada com apoio em tais elementos, venha a revelar vários sentidos possíveis da norma, caso em que o intérprete deverá manifestar preferência por aquele que melhor se ajuste à pauta axiológica do sistema ou subsistema normativo em que inserida a disposição normativa objeto da interpretação. De ver-se que a demasiada extensão do espectro conceitual de domicílio eleitoral, apontada nos precedentes do TSE, é uma posição que se apresenta em desconformidade evidente com o sentido gramatical do enunciado normativo em exame. Para ser sustentável juridicamente, essa posição jurisprudencial dependeria de muito b em articulada fundamentação, digna de um vigoroso esforço hermenêutico. Entretanto, ao exame das peças do inteiro teor dos julgados referidos não se encontra mais do que lacônicos argumentos, reportados nas notas remissas abaixo. 2 Em suas ponderações, Luiz Lênio Streck, considerou a assertiva de que o sentido gramatical de um enunciado normativo não traduz exatamente o conteúdo da norma, porquanto esse conteúdo só é possível de ver -se revelado a partir de um processo de interpretação. Mas é fora de dúvid a que não se pode buscar o sentido da norma absolutamente “Para o Código Eleitoral, domicílio é o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos, sociais e econômicos. A residência é a materialização desses atributos.” Voto do Min. Humberto Gomes de Barros no RESPE 23721. “ (…) o TSE, ao interpretar os arts. 42 e 55 do Código Eleitoral, tem liberalizado a caracterização do domicílio eleitoral e admitido o seu deferimento em lugar distinto daquele em que o eleitor mantém o domicílio civil, desde que demonstrado o vínculo.” Voto do Min. Francisco Peçanha Martins no RESPE 21.829. “O conceito de domicílio eleitoral não se confunde com o de domicílio do direito comum, regido pelo Código Civil. Mais flexível e elástico, identifica-se com a residência e o lugar onde o interessado tem vínculos políticos e sociais.” Voto do Min. Sávio de Figueiredo no RESPE 16.397. 2 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS desconectado do sentido gramatical do texto. Os textos que integram o direito positivo contêm a norma. São textos jurídicos, não textos contábeis ou religiosos. Os enunciados normativos podem não di zer exatamente o que é a norma; podem não esgotar ou mesmo transbordar o seu conteúdo. Porém, a compreensão do sentido da norma há que partir de um enunciado normativo e não pode se produzir sem a compreensão de que entre texto e norma, respectivamente, se estabelece uma relação tal qual aquela que há entre o ente e o ser. Por essa razões, e pedindo venia àqueles que comungam da interpretação conferida pelo c. TSE à norma em questão, está a merecer revisão o entendimento esposado por aquela Corte Superior . Não se pode aceitar como domicílio eleitoral, para fins de inscrição ou transferência eleitoral, qualquer outro vínculo do eleitor com o município que não seja a residência ou a moradia, conforme estabelece o artigo 4º da Lei nº 9.096/82. Qualquer outra interpretação da norma que admita diferente espécie de vínculo transborda os limites hermenêuticos, indo além da leitura construtiva do direito para contrariar o objeto da interpretação, não podendo ser aceita sob pena de completa desconexão entre a norma e sua aplicação. Ainda assim, levando -se em conta que a simples moradia 3 foi considerada pelo legislador como critério de definição do domicílio eleitoral, é possível que o eleitor possua dois domicílios, podendo legitimamente inscrever -se ou transferir sua inscrição para qualquer um deles. Seria, por exemplo, o caso daqueles que durante a semana trabalham nos grandes centros e lá estabelecem moradia para esse fim, no entanto 3 Segundo Caio Mário da Silva Pereira, moradia e residência se distinguem numa escala de gradação, onde moradia estaria colocada antes de residência e o que definiria essa posição seria a estabilidade na habitação. (Instituições de Direito Civil, v. I, 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 371) 7 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS residem em município independentemente de do interior, eventuais onde alterações pretendem em permanecer suas atividades profissionais. Nesses casos estaria estabelecido o vínculo exigido pela lei eleitoral para inscrição ou transferência em qualquer dos municípios. Porém não em meras relações familiares, econômicas ou sociais. Nessa linha de ideias, e tendo em vista que no caso em apreço o recorrente aduz que a recorrida não reside no município de Iguatama, impende a análise da prova dos autos. In casu, a própria recorrida declara, quando de sua defesa, que não reside no referido m unicípio, mas em Divinópolis, invocando a existência de vínculo específico, e consequentemente a flexibilidade do conceito de domicílio eleitoral, para comprovar sua residência no município. Outrossim, fora certificado pelo chefe do Cartório Eleitoral de Iguatama às fls. 22, cf. informações prestadas pela cunhada da genitora da ora recorrida, que esta reside, efetivamente, em Divinópolis/MG. Desta forma, não há nos autos nenhuma prova, sequer uma informação, acerca de uma razão plausível para que a ora rec orrida venha a ser cadastrada como eleitora no município de Iguatama/MG. Diante disso, duas alternativas se apresentam a essa Corte de Justiça: seguir e aplicar aquela noção conceitual de domicílio eleitoral cristalizada na jurisprudência ou, ao contrário , problematizá-la, como aqui se propõe, submetendo -a ao crivo de uma reflexão em que não podem ser havidos como irrelevantes os dados dessa lamentável realidade política, do ambiente em que o direito deve operar. Se parecer evidente a essa Corte, como parece ao Ministério Público Eleitoral, que ao direito objetivo se propõe, para além de uma função conformadora, também uma função 8 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS transformadora das estruturas de dominação social e política, é natural que a inclinação se estabeleça em prol da segunda alterna tiva aventada. De acordo, portanto, com o conceito de domicílio eleitoral aqui adotado, a recorrida não possui vínculo domiciliar com o município de Iguatama/MG. Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL , por intermédio da PROCURADORIA REGIONAL ELEI TORAL, manifesta-se pelo provimento do recurso. Não obstante, ante o apontamento no recurso de indícios de fraude, e consequente prática de crime de natureza eleitoral, entre eles os capitulados no arts. 289 e 299 do Código Eleitoral 4 - o partido recorre nte sustenta que a ora recorrida e alguns familiares firmaram o compromisso de votar na pré-candidata ao cargo de vereadora do município de Iguatama, Rita de Cássia da Silva Campos Nascimento, tendo como contraprestação a imediata aposentadoria de Daluz Ma dalena Alves -, e tendo -se em vista a necessidade de apuração de suposto ilícito criminal, o MPE comunica a esse TRE-MG que determinou a extração de cópias dos presentes autos, assim como a autuação com peças de informação, com vistas a encaminhamento à Pol ícia Judiciária, para abertura de inquérito policial. Belo Horizonte, 20 de julho de 2012. 4 Art. 289. Inscrever-se fraudulentamente eleitor: Pena - Reclusão até cinco anos e pagamento de cinco a 15 dias-multa. Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita: Pena - reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa. 9 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Eduardo Morato Fonseca Procurador Regional Eleitoral 10