Revista Época - 07/01/2008 - Edição nº 503

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Revista Época - 07/01/2008 - Edição nº 503
1968 - O ano das transformações
Como a geração de 68 mudou nossa maneira de ver o mundo
Amauri Segalla
Pense em 1789 e você logo imaginará o
início da revolução francesa. No século
XX, 1945 entrou para a História como o
marco do fim da Segunda Guerra Mundial e
1989 carrega a lembrança da queda do
Muro de Berlim. Todos esses anos têm
eventos tão únicos e extraordinários
associados a eles que é fácil saber de
imediato o que representam. No entanto,
nenhum deles possui a aura de magia que
acompanha 1968. Quarenta anos depois, 68
continua enigmático, estranho e ambíguo
como um adolescente em crise existencial.
Ele foi o ano da livre experimentação de
drogas. Das garotas de minissaia. Do sexo
sem culpa. Da pílula anticoncepcional. Do
psicodelismo. Do movimento feminista. Da
defesa dos direitos dos homossexuais. Do
assassinato de Martin Luther King. Dos
protestos contra a Guerra do Vietnã. Da
revolta dos estudantes em Paris. Da
Primavera de Praga. Da radicalização da
luta estudantil e do recrudescimento da ditadura no Brasil. Da tropicália e do cinema
marginal brasileiro. Foi, em suma, o ano do “êxtase da História”, para citar uma frase do
sociólogo francês Edgar Morin, um dos pensadores mais importantes do século XX. Foi
um ano que, por seus excessos, marcou a humanidade. As utopias criadas em 68 podem
não ter se realizado. Mas mudaram para sempre a forma como encaramos a vida.
O cantor americano Bob Dylan disse recentemente que 1968 foi o último ano em que
todas as utopias eram permitidas e que hoje em dia “ninguém mais quer sonhar”. Numa
simplificação, pode-se afirmar que o período simboliza a utopia de milhões de jovens
rebeldes e cabeludos de acabar com a moral repressora da velha sociedade. Por si só,
isso já seria grande o suficiente. Mas foi só isso? Para o escritor e jornalista Zuenir
Ventura, autor de 1968 – O Ano Que Não Terminou, serão necessários muitos anos para
que se entenda seu legado. “Ainda ninguém explicou por que tudo aconteceu naquele
ano e de que forma o mundo absorveu os impulsos revolucionários daquela geração”,
diz Zuenir, que vai lançar em abril 1968 Terminou?, continuação de seu primeiro livro
sobre a época, publicado há 20 anos (leia a entrevista e um artigo dele ).
Nos próximos meses, estão previstos vários eventos em comemoração aos 40 anos de
1968. A Universidade Federal do Rio de Janeiro promove em abril um ciclo de debates
com especialistas brasileiros e estrangeiros. Na França, estudantes universitários
planejam uma caminhada pacífica pelas ruas de Paris para lembrar as manifestações de
maio, que colocaram frente a frente milhares de jovens e a polícia do presidente Charles
de Gaulle. Nos Estados Unidos, vários livros estão sendo lançados desde o ano passado.
Um deles, intitulado Boom, do jornalista americano Tom Brokaw, recebeu uma
enxurrada de críticas. O motivo? Não ter chegado a um veredicto sobre o real
significado do período...
As discussões, tanto no Brasil quanto no exterior, são quase tão apaixonantes quanto a
energia revolucionária que desabrochou há quatro décadas. Uma forte corrente acredita
que o mundo seria hoje muito pior se 68 não tivesse acontecido. Nesse time jogam as
pessoas que mantêm as idéias de esquerda frescas na memória. “Se a juventude, e não a
repressão, tivesse vencido, o Brasil teria avançado mais rapidamente nas reformas
democráticas”, diz José Dirceu de Oliveira, um dos protagonistas do 68 brasileiro. Para
ele, os principais protestos civis da história recente do país só ocorreram porque o
caminho foi traçado pelos rebeldes de sua geração. Seriam exemplos dessa herança
contestatória a campanha das Diretas Já e os caras-pintadas que foram às ruas pedir o
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Em seus tempos de líder
estudantil, José Dirceu pregava a liberdade e a justiça social. Mas ele foi alvejado pelos
anos. Ex-homem forte do PT, ministro e deputado federal, acabou cassado pelo
Congresso em 2005, no escândalo do
mensalão.
Há uma vertente que relativiza a herança
deixada pela geração do desbunde. Seus
adeptos acreditam que as lembranças
afetivas turvam a análise independente.
O deputado Fernando Gabeira, hoje uma
das vozes mais lúcidas de Brasília,
enxerga com certo incômodo a
veneração do período. Ex-guerrilheiro
de esquerda durante a ditadura militar,
Gabeira arrepende-se de muita coisa da
época. “A busca pela implantação do
socialismo, a luta armada e o seqüestro PROTESTO
do embaixador americano foram grandes A Passeata dos 100 Mil, em 26 de junho,
equívocos”, diz. “Eu gostaria de sepultar nasceu como um ato de estudantes.
Transformou-se em uma grande manifestação
esse período” (leia o depoimento de
Gabeira ). Em sua visão, a luta armada popular contra a ditadura
não só fortaleceu a ditadura militar, como deu de bandeja um pretexto para que o
presidente Arthur da Costa e Silva promulgasse o Ato Institucional no 5 no dia 13 de
dezembro de 1968, recrudescendo os Anos de Chumbo no Brasil. Mas não foi só de luta
armada que se construiu a oposição ao regime militar. Em 1968, o operário Luiz Inácio
Lula da Silva se filiou ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Com
o passar dos anos, sua atuação de sindicalista o tornaria uma figura conhecida
nacionalmente.
O 68 brasileiro foi diferente por uma razão simples. Aqui ele tinha um viés mais
político que na França e nos Estados Unidos, países que também viviam em erupção.
No Brasil, os contestadores do regime sofreram torturas e exílio. “Nos Estados Unidos,
havia o sentimento generalizado de que era preciso mudar a estrutura da sociedade, mas
não necessariamente o governo”, diz o historiador americano James Green,
especializado nos movimentos civis dos anos 60. Os manifestantes gritavam nas ruas de
Washington, Nova York e São Francisco pelos direitos das mulheres, dos negros e dos
homossexuais. Exigiam o retorno dos soldados americanos da Guerra do Vietnã.
Pregavam o respeito à natureza. Mas não queriam tomar o poder. “Na França, os
movimentos de revolta começaram com a exigência do dormitório misto nas
universidades”, diz Zuenir. “No Brasil, o 68 começou com a morte do estudante Édson
Luís, assassinado pela Polícia Militar do Rio.” A Passeata dos 100 Mil, no Rio, era uma
afronta à ditadura militar. Na França, o sentimento era de revolta contra o
conservadorismo de De Gaulle, mas não havia uma atmosfera de repressão como no
Brasil.
CORTINA DE FERRO
MAIO DE 68
A Primavera de Praga, breve experiência de O movimento dos estudantes franceses,
democracia
duramente reprimido pela polícia nas ruas de
na Tchecoslováquia, foi esmagada pelos
Paris, resumiu o espírito inconformista
tanques soviéticos
daquela geração. Daniel Cohn-Bendit (foto
em agosto. Apesar de derrotado, o movimento menor), líder dos universitários, hoje é
mostrou
deputado pelo Partido Verde
rachaduras no bloco comunista
04/01/2008 - Edição nº 503
Lições do passado
1968 deixou marcas profundas naqueles que protagonizaram um dos períodos mais
conturbados da história do país. Eles contam o que aprenderam
Amauri Segalla e Matheus Leitão
Os protagonistas de 1968 costumam ter visões antagônicas a respeito das experiências
que tiveram naquele período. Há os que se orgulham e os que rejeitam o que fizeram no
passado. Seja qual for o grupo a que pertencem, todos reconhecem que aquela época
deixou marcas que os influenciam ainda hoje. Nas páginas a seguir, Fernando Gabeira,
José Dirceu, Marília Pêra e José Celso Martinez Corrêa, ícones daquela era, explicam
por que 68 foi o pior e o melhor ano de suas vidas.
Fernando Gabeira
“Queria sepultar esse período”
“A minha imagem foi muito associada ao seqüestro do
embaixador americano (Charles Burke Elbrick). Eu jamais
faria isso de novo. O seqüestro representa uma violência muito
grande, é algo abominável. Sou um pouco prisioneiro daquele
período. Os Estados Unidos até hoje impedem a minha entrada
no país. Reconheço que os anos 60 produziram muita rebelião,
uma contracultura, mas foi tudo muito estéril. Como, aliás, é
estéril o choque entre esquerda e direita. É preciso
compreender que não há uma divisão rígida entre o bem e o
mal. A esquerda não tinha o monopólio do bem, embora ela
achasse que sim. A minha geração cometeu muitos equívocos. HOJE
Um deles foi a opção pela luta armada. Ela não só fortaleceu a Com 66 anos, Fernando
ditadura militar como reduziu o espaço da luta democrática. As Gabeira é deputado
angústias de 1968 eram muito voltadas para a justiça social e a federal pelo Partido
liberdade. O problema é que nosso propósito de liberdade era Verde. Faz oposição ao
definido na concepção comunista. Tratava-se, portanto, de uma governo Lula e defende
liberdade limitadíssima. Hoje tenho consciência que a internet teses mais
fez mais pelo mundo que o Lênin. Ela tem uma estrutura muito conservadoras que no
passado
mais democrática que qualquer partido comunista. Sob esse
aspecto, acho que os movimentos de 1968 mantiveram uma
tênue relação com o século XXI. Eu gostaria de sepultar esse
período, dizer adeus a tudo isso. O importante é superar a
discussão ideológica e partir para soluções mais construtivas.
Na verdade, eu gostaria que essa fosse a última vez que eu falo
a respeito de 1968.”
Em 1968
Participava da luta armada contra o regime militar
instaurado em 1964. Em 1969, envolveu-se no seqüestro do
embaixador americano Charles Burke Elbrick
José Dirceu
“Continuo socialista”
"Toda a minha vida e minha atuação política estão marcadas
por 1968. Naqueles anos de rebeldia, nós sabíamos que as
coisas podiam ser mudadas. Não se tratava de megalomania.
Os vietnamitas acabaram derrotando os americanos. Cuba fez
uma revolução e sobreviveu. Os africanos conquistaram a
independência. Se eles conseguiram, por que nós, brasileiros,
não conseguiríamos? Eu fui totalmente favorável à resistência
armada contra a ditadura. Quando entrei no Partido Comunista
Brasileiro e no movimento estudantil, já tinha uma visão muito
HOJE
crítica do que tinha sido a atuação do partido, que era o
Ex-homem forte do PT,
caminho pacífico. Eu estava envolvido pelo ambiente que
ministro do governo
existia na época, de descrença em qualquer luta políticoLula e deputado federal
institucional. Por isso, a resistência armada parecia ser um
caminho viável. No entanto, sempre fui um dissidente das teses cassado no escândalo do
mensalão, aos 61 anos
mais militaristas. Eu não concordava com as propostas de
presta serviços de
voluntarismo, com um certo desprezo que alguns militantes
consultoria para
tinham pelo movimento social. Embora socialista, eu não
apoiei a invasão da Tchecoslováquia por tanques soviéticos. empresas e tem um blog
sobre política
Por mais que ouvisse argumentos convincentes do ponto de
vista de minha visão marxista, eu achava impossível aceitar
aquilo. Continuo socialista até hoje, mas os tempos são outros.
Mudei muito. Não acredito no socialismo totalitário,
burocrático e antidemocrático, que, infelizmente, continua a
seduzir muitos militantes brasileiros. A luta da minha geração
foi fundamental para a redemocratização do Brasil. Ela deixou
uma contribuição extraordinária ao transformar as relações
políticas e ao pregar o direito à liberdade. Isso sem falar nas
mudanças de padrões de comportamento. Eu me considero um
privilegiado por ter sido um dos estudantes da geração de
1968.”
Em 1968
José Dirceu de Oliveira era um dos principais
rostos da geração 60. Como líder estudantil,
defendia a resistência armada contra a ditadura.
Em 1968, foi preso no Congresso da UNE, em
Ibiúna
Marília Pêra
“A liberdade sexual veio como um fogo”
“Quando nós, atores da peça Roda Viva, fomos atacados pelo
Comando de Caça aos Comunistas, no Teatro Ruth Escobar, a
minha mãe tomou um susto. Ela quis saber se eu era
comunista. Eu disse que não sabia. E não sabia mesmo.
Naquela época, você tinha a necessidade de ser uma pessoa de
esquerda. Mas eu não era de esquerda nem de direita. Era do
morro. Mesmo assim, fui presa duas vezes. Entraram 50
homens dentro de casa, onde meu filho de 7 anos dormia. Eu
não temia pela minha vida, mas pela dele. O interessante é que,
ao mesmo tempo que eu fazia passeatas para protestar contra a HOJE
ditadura, também freqüentava festas loucas. Nessas festas, a Com uma experiência de
quatro décadas no teatro
gente gritava, chorava, ria, se abraçava. A liberdade sexual
e na televisão, é hoje
veio como um fogo. Para os rebeldes da minha geração, era
muito fácil o amor ao próximo, a relação sexual era sem culpa. uma das atrizes de maior
status do Brasil. Aos 64
Tirar a roupa em cena não incomodava. Na verdade, eu
encarava a nudez como um ato de coragem. Mas a maior lição anos, interpreta uma
dondoca na novela Duas
que aprendi com 1968 é que tanto faz o lado em que os
políticos estão. O que eles querem apenas é poder e dinheiro. OCaras
resto não passa de utopia.”
Em 1968
Marília Pêra era uma das estrelas da peça Roda Viva, de Chico Buarque. Tornou-se
militante contra a ditadura por causa do cerceamento à criação artística. Foi presa
duas vezes.
José Celso
“Nós tiramos a máscara”
“A grande revolução de 1968 foi tirar a máscara das pessoas. O
sujeito passa o tempo todo representando o papel de juiz, de
delegado, de presidente, de diretor de teatro. Aquela geração
libertou-se da hipocrisia. As pessoas se deram conta de que
precisavam viver o aqui e o agora, que não dava para esperar
os outros fazerem algo por você. Desistiram de fazer o papel
de otário. Elas descobriram que tinham poder. E não o poder
HOJE
do dinheiro e do sucesso. Mas o poder de transformar o
mundo, o que é algo muito maior. Nós tiramos a esperança de Aos 70 anos, continua
todo mundo. E isso é bom. Quem tem esperança passa a vida comandando o histórico
esperando o messias, que pode ser um emprego melhor, mais Teatro Oficina, em São
Paulo. Seu último
dinheiro. Isso é loucura. As experiências malucas na arte, a
experimentação das drogas, o contato com o outro, tudo isso envolvimento em uma
despertou o conhecimento do corpo. Esse espírito está vivo até polêmica foi o apoio ao
hoje. Vejo ainda muita gente querendo tirar a máscara. Muita frei dom Luiz Cappio,
que fez greve de fome
gente não suporta mais o catecismo. Não suporta mais se
fechar para a vida. Essa vontade de se libertar é reflexo do que contra a transposição do
Rio São Francisco. Diz
fizemos em 68.”
que ainda odeia a
caretice
Em 1968
José Celso Martinez Corrêa era uma das figuras mais ousadas do cenário artístico
brasileiro. Chocou o público com as cenas de nudez e violência nas peças O Rei da
Vela e Roda Viva
Fotos: Daryan Dornelles/ÉPOCA e arq. AE, Juan Esteves/ÉPOCA, arq. AE e André
Valentin/ÉPOCA, Juan Esteves e Daryan Dornelles/ÉPOCA
“1968 foi a primeira manifestação da globalização”
Para o jornalista Zuenir Ventura, 1968 foi um momento de sintonia mundial que gerou
nosso comportamento atual.
Nelito Fernandes
O apartamento na quadra da praia em
Ipanema está em obras. O
escritório/bibioteca é um dos poucos
cômodos da casa que escapa do trabalho
dos pedreiros. Ali Zuenir Ventura vai
erguendo também sua obra, reconstruindo
os acontecimentos que fizeram de 1968 um
ano único na história. Sobre a mesa do
autor, os livros que servem de referência
para o novo trabalho vão desde 1968: o ano
que abalou o mundo, do pesquisador
americano Mark Kurlansky, até a antologia
do Planeta Diário. A caixa 1968 terminou?
deve chegar às livrarias entre março e abril
pela Editora Planeta e trará, além do livro
original 1968: o ano que não terminou, o
segundo livro, com a interrogação que dá
nome ao box e entrevistas de Fernando
Henrique Cardoso, Fernando Gabeira e José
Dirceu, entre outros.
ÉPOCA - A pergunta a que o senhor vai
responder milhares de vezes quando o
livro sair: afinal, 1968 terminou?
Zuenir Ventura - É isso que vou responder no livro, não posso responder agora senão
o livro perde a graça (risos). Na verdade, ainda estou em processo de apuração, ouvindo
gente, há 20 anos estou fazendo esse livro (o original, 1968: o ano que não terminou foi
publicado em 1987), ainda não tenho resposta. E se tivesse não ia dar (risos).
ÉPOCA - Já que não sabemos se terminou, dá para saber por que começou em
1968?
Ventura - Foi um ano muito especial. À medida que passa o tempo, você tem certeza
de que foi um momento especial. Um momento de uma sintonia mágica, misteriosa, que
fez as coisas acontecerem ao mesmo tempo em países de regimes diferentes. Aconteceu
na Tchecoslováquia, na Polônia, no Japão, na Alemanha, na França e no Brasil, com
algumas características únicas. Foi um movimento planetário. Eu diria hoje um
movimento globalizante. Acho que foi a primeira manifestação da globalização antes
mesmo de a globalização existir. É um mistério na história, ninguém conseguiu
responder até hoje como começou, por que começou naquele ano. Estou aqui com um
livro sobre o período (1968: o ano que abalou o mundo) que começa dizendo: nunca
houve um ano como 1968 e é improvável que volte a haver. A resposta a essa questão,
por que aconteceu naquele momento, ninguém dá. Os sociólogos dizem vai precisar de
vários anos, muitos anos, para que se entenda exatamente o que aconteceu.
ÉPOCA - Os protestos contra a ditadura, o vanguardismo estético e a irreverência
comportamental transformaram mesmo o mundo?
Ventura - Do ponto de vista político, essa geração, essa garotada, queria mudar o
mundo, achava que se podia mudar tudo através da ruptura, da revolução. Acreditavam
que podiam fazer a revolução política. A ironia da história é que eles não fizeram a
revolução política, mas acabaram fazendo uma revolução cultural. Realmente eles
mudaram os costumes, mudaram os hábitos, mudaram a maneira de pensar, a maneira
de ser, os valores. Quando você olha para hoje, muitas das conquistas da modernidade
foram gestadas ou nasceram em 68. Movimentos como o ecológico, o feminista, o gay,
o negro, nasceram em 68 ou adquiriram uma importância muito grande nesse momento.
Do ponto de vista do comportamento, o legado de 1968 é inegável. Claro que isso está
associado, por exemplo, ao avanço da ciência. Uma dessas conquistas mais
significativas é a da pílula anticoncepcional, que não nasceu em 1968, mas que se
expandiu pelos campi das universidades neste ano. E ela foi muito responsável pela
revolução sexual, que durou até pelo menos a chegada da Aids, que foi uma espécie de
contra-revolução.
ÉPOCA - Que balanço pode ser feito de positivo e negativo?
Ventura - Há hoje duas maneiras de ver 1968, a apologética, de dizer que foi tudo
maravilhoso, que evidentemente a gente sabe que não; e outra maneira, de rejeitar 1968
com a mesma radicalidade com que o movimento surgiu. Na França, o Sarkozy disse
que ia acabar com o projeto de 1968, mas tem no governo o que eles chamam de
herdeiros de 68. Então não dá para você ver de uma maneira maniqueísta, como se via o
mundo naquela época. O mundo estava dividido entre o bem e o mal, "nós estamos do
lado do bem e quem não estiver do nosso lado está do lado do mal". Essa herança de 68
é vista de um jeito apologético e você encontra argumentos para mostrar que muita
coisa boa aconteceu, como por exemplo a valorização das minorias, a preocupação com
o outro, os movimentos coletivos, a generosidade, a entrega a uma causa a ponto de
você arriscar a vida por ela, a ética na política, a paixão pela causa pública. Os valores
de 68 são inestimáveis até hoje. Mas por outro lado houve o que chamo de degeneração
de 68, um desvirtuamento de algumas coisas que naquele momento eram positivas. As
drogas, por exemplo, naquele momento acreditava-se que eram um instrumento de
ampliação dos horizontes, de conhecimento, de avanço da mente. Hoje as drogas são um
instrumento de morte, servem para matar. Acreditava-se numa violência edificante,
revolucionária, uma violência do bem. Hoje se sabe que a violência não é um valor em
si. Você tinha o voluntarismo, o "quem sabe faz a hora", essa coisa onipotente, uma
certa arrogância e um certo autoritarismo. Isso hoje não tem mais sentido. Esse balanço
tem que ser feito não à maneira de 68, que é do mal e do bem, do maniqueísmo. A
ambigüidade hoje é uma categoria que deve ser levada em consideração, coisa que
naquela época era considerada um defeito.
ÉPOCA - Quais foram as diferenças e semelhanças entre o movimento brasileiro e
o que aconteceu no exterior?
Ventura - No Brasil, há características parecidas com a da França, tanto que os
militares achavam que o movimento era comandado de fora, que era comunista. Mal
sabiam eles que o movimento era anti-comunista, anti-capitalista, era uma rebeldia
anárquica. Tinha uma característica própria porque aqui se lutava contra uma ditadura,
coisa que não acontecia na França. Aqui você tinha um inimigo de carne e osso,
concreto, que era muito violento, que enfrentava com tanques, gás lacrimogênio.
ÉPOCA - Mas isso, paradoxalmente, fortaleceu o movimento, porque na medida
em que você tem um inimigo comum, você se junta mais facilmente.
Ventura - Sim, claro. A garotada de hoje não tem uma causa, vão lutar contra o quê? A
garotada da época tinha um inimigo, um componente que não existia no exterior. O
componente político era muito maior, mais visível, do que na França e nos Estados
Unidos. Alguns estudiosos reclamam que a herança de 68 nos Estados Unidos, que foi
muito forte, a partir do segundo e do terceiro aniversários, 78, 88, 98, por exemplo,
acabou dando lugar a uma questão mais sexual. Os movimentos na França e nos Estados
Unidos começam com uma questão sexual. Na França, era a luta pelo dormitório misto
e nos Estados Unidos também começa assim. No Brasil, começa com a morte do
estudante Édson Luis no Rio de Janeiro. O movimento aqui sempre se caracterizou por
um componente político muito forte, a luta contra a ditadura, a luta pela liberdade,
contra a censura. Isso diferencia muito a geração de 68 daqui da dos EUA e da França.
Nenhuma dessas gerações sofreu o que a nossa sofreu. Exílio, tortura, porrada, ficar fora
de seu país durante os melhores anos de sua vida. O contorno foi político, embora tenha
se refletido também no comportamento.
ÉPOCA - O movimento não passou de uma utopia que acabou?
Ventura - Você vivia aquele momento uma utopia de que era possível transformar o
mundo. Isso era alimentado pelo sonho. Uma das afirmações hoje é que a utopia
acabou, pelo menos a utopia ideológica, política. Tinha coisas que contribuíam para a
utopia, como a revolução cubana. Em Cuba, meia dúzia de gatos pingados tomaram o
poder. A guerra do Vietnã, um país mínimo com guerrilheiros lutando quase com
bambus contra um império. E esse país ganhou a guerra. O que parecia impossível, se
fazia. Então os muros de Paris diziam "queiram o impossível".
ÉPOCA - Você concorda que a única herança é de caráter social?
Ventura - Não só social como cultural também. Desde você poder usar o corte de
cabelo que quiser - e estou falando de cabelo porque o cabelo era muito importante: o
musical mais famoso se chamava "Hair" - desde você poder mostrar as pernas, usar
mini-saia. De poder ter liberdade de escolher seu parceiro, se é uma mulher ou se é um
homem. Não acho que seja só social, é sobretudo comportamental. Todas as conquistas
de hoje, no vestir, no se comportar sexualmente, foram conquistas de 68.
ÉPOCA - Do ponto de vista político, o que mudou?
Ventura - Houve mudanças, por exemplo, na esquerda. Depois de 68, a esquerda que
era atrelada a Moscou, ao Partido Comunista, mudou. Não vamos esquecer que Moscou
foi contra 68, que era uma espécie de desobediência aos dogmas do comunismo porque
tinha uma dose de anarquismo. A esquerda se atualizou depois de 68. Eles rejeitavam
Moscou, rejeitavam tanto o capitalismo quanto o comunismo. Essa relação autoritária
na política e nos partidos teve um vento anárquico.
ÉPOCA - Era uma reação contra qualquer poder estabelecido...
Ventura - Exatamente, contra qualquer poder. Era tudo contra o poder, não só político,
mas contra o poder do marido sobre a mulher; o poder do professor sobre o aluno; do
médico sobre o paciente. E o comunismo naquele momento era, para eles, um poder tão
nocivo quanto o poder capitalista. A rejeição ao poder era uma das marcas. Isso acabou
tendo reflexo tanto na esquerda quanto na direita.
ÉPOCA - As pessoas perderam a esperança depois dos anos 60. Será que não
houve um recuo para preocupações puramente pessoais?
Ventura - Os jovens hoje não querem saber de política mesmo. Como você vai
convencer um menino desses que a política é importante se a política para ele é Brasília,
Renan Calheiros, mensalão, essa coisa apodrecida que está aí? Eles estão interessados
no bem-estar pessoal, neles mesmos. Contribui muito para isso a internet. Ali ele
conversa com o mundo, tem a sensação de que pode fazer tudo sem sair por aí. Em
qualquer conversa com o jovem, você percebe que ele está muito mais interessado nele
mesmo, em seu prazer, do que no outro. Aquela característica de 68, de entrega, com
assembléias e discussões coletivas, acabou. Você tem hoje um individualismo. Você
tem hoje o mais poderoso instrumento de comunicação que o mundo já teve, que é a
internet, e isso não serve para agregar. Serve muito para manifestar seus gostos,
preferências, até para protestar, mas aquilo ali não é nunca transformado em ação, não
tem conseqüência.
ÉPOCA - Por que nenhum movimento hoje consegue mobilizar os jovens?
Ventura - Isso passa pelo desinteresse, pelo individualismo e temos também a ausência
do inimigo comum, da ditadura. Enfrentar a polícia, ir para a rua, tinha uma coisa
heróica. Hoje não tem mais isso. Política virou uma coisa chata, uma pasmaceira. Por
outro lado, temos um esquema de comunicação com o outro via celular, internet, que
contribui para o isolamento. O contato físico hoje é uma coisa rara. A coisa mais difícil
é a garotada se encontrar cara a cara: usa-se o MSN. As relações ficam cada vez mais
superficiais. Uma das marcas desse tempo é a velocidade e a natureza efêmera das
relações. A única coisa que mobiliza hoje o jovem é o meio ambiente.
ÉPOCA - Como seria o mundo hoje se a juventude tivesse vencido?
Ventura - No Brasil, o medo de que eles tomassem o poder era infundado. Hoje se vê
que, como era fraco, não tinha estrutura sequer para tomar o poder, quanto mais para
manter. A guerrilha, o arcabouço, foi dizimada. É difícil fazer uma previsão, nós
jornalistas somos muito bons para prever o passado. Mas a única certeza que tenho é
que não seria o que a repressão achava. A coisa mais fácil foi acabar com o comunismo,
muito mais fácil do que acabar com o anti-comunismo, que continua até hoje.
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