FILOSOFIA ROTEIRO SUBSIDIÁRIO ÀS AULAS DE FILOSOFIA DA TERCEIRA SÉRIE DO ENSINO MÉDIO ORGANIZAÇÃO: PROF. J. ANDRÉ DE AZEVEDO UMUARAMA, 2012 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo APRESENTAÇÃO Acostumados a uma visão simplista e parcial do mundo, de modo geral sem crítica e/ou questionamentos, a Filosofia, então, nos parece um castigo e, acima de tudo, algo profundamente enfadonho e inútil. Já disse o sábio: “A Filosofia é o conhecimento com o qual e sem o qual o mundo continua tal e qual”. Entretanto, ao nosso curso se apresenta um desafio: o de deixar-se tocar pela experiência filosófica e, nas palavras de Merleau-Ponty, reaprender a ver o mundo. Este roteiro subsidiário para as aulas de Filosofia da Terceira Série do Ensino Médio do Colégio Global trata-se do fruto de compilação e organização dos apontamentos de sala de aula de meu querido mestre, Soter Schiller. A este seu discípulo apenas coube a ousada tarefa de reorganizar o seu árduo trabalho. Esperamos, caro (a) educando (a), que a Filosofia se apresente a ti como algo extremamente agradável, prazeroso e, acima de tudo, transformador. A quem se aproxima do trabalho filosófico, minha estimada saudação e alegria em caminharmos juntos. Bons estudos! Professor José André de Azevedo 2 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo PARTE I FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA 3 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 1. FILOSOFIA: CONSTRUINDO SUA NOÇÃO 1.1 FILOSOFIA: O QUE É? PARA QUE É? 1.1.1 Filosofia: “amor à sabedoria” e a busca do saber Podemos, numa primeira vista, definir Filosofia como: pensar, questionar a realidade que está ao nosso redor. Filosofia é um esforço radical por recriar, na idade da razão, as mesmas interrogantes primeiras, primigênias, que a criança formula perante os enigmas da existência. (TRIAS: 1984, 17) Viver sem filosofar é como ter os olhos fechados sem jamais fazer um esforço por abri-los; e o prazer de ver todas as coisas que nossa vista descobre não é comparável à satisfação que dá o conhecimento daquelas que se encontram pela filosofia. (DESCARTES, R. Carta prefácio aos “Princípios”) Essa atitude de espanto, de impulso para compreender melhor, de perguntar, de questionar fundamentalmente, nos conduz ao exercício de filosofar. Isto é filosofar: perguntar, questionar, não parar diante do evidente e do simplesmente óbvio. Ir além, ir além da aparência fenomênica dos fatos. Ir além com a certeza de encontrar a verdade, a essência das coisas, o ser... A filosofia não teria espaço num mundo onde todas as coisas nos parecessem evidentes, onde nada nos causasse espanto, onde tudo fosse “muito natural”. Provavelmente não sofreríamos a angústia do desconhecido, mas também não sentiríamos o prazer de desbravar. Se o mistério nos assusta, nos amedronta, nos intimida muitas vezes, nos deixa ansiosos justamente pelo desconhecido de que está carregado, é ele também quem nos atrai, nos convida a ir além, nos estimula a descobrir, a desvendar, a conhecer. (RHEIN SHIRATO: 1987, 24) 1.1.2 Filosofia: consciência crítica A Filosofia nos proporciona os seguintes hábitos: Desconfiar do óbvio. Ter mais consciência das nossas palavras e ações. Colocar razões para o que pensamos, dizemos e fazemos. Discernir, julgar e avaliar os acontecimentos, as coisas e as idéias. Ter pensamento próprio, posições seguras sobre assuntos e acontecimentos. Buscar impreterivelmente a verdade. O homem é, por natureza, curioso. Sente a necessidade de saber. Conhecer, simplesmente, causa-lhe uma satisfação, um prazer natural. Passeia, viaja, para ver; observa, interroga, para saber; informa-se dos homens e das coisas, ouve contar de bom grado História e histórias. Mas não se contenta em consignar os fatos, pede explicações deles. Tem o dom de admirar-se perante o imprevisto e em face do que não se coaduna com suas concepções. Nenhuma palavra lhe é mais familiar que a palavra “por quê?”. O menor acontecimento pode-se-lhe transformar-se num problema. Deve existir, na sua opinião, uma razão para todo ser, todo ato, toda situação, como também para o conjunto do universo. O homem se preocupa com a verdade. “Errar é humano”, bem o sabe. Mas pensa ser possível escapar ao erro. Cumpre proceder com prudência e discrição; não é racional, por exemplo, afirmar temerariamente; não devemos ser crédulos e confiar nas aparências; devemos desconfiar da primeira impressão e evitar deixarmo-nos cegar pelo interesse ou pela paixão. Somos capazes de um exame consciencioso e de uma apreciação imparcial. O “homo sapiens” sabe dar prova de espírito crítico. (RAEYMAEKER; 1973, 16) 4 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Uma primeira resposta à pergunta “O que é a Filosofia?” poderia ser: a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceita-los sem antes havê-los investigado e compreendido. Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às cosias, sem maiores considerações”. A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica. A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico. (CHAUÍ: 1995, 12) 1.1.3 Filosofia: preocupação pelas questões humanas mais fundamentais Todos nós temos filosofado alguma vez. Fazíamos já desde pequenos. A filosofia não é, no fundo, nada de novo. Começa com algumas perguntas que se apresenta quando o mundo, que nos é familiar e cotidiano, de repente perde seu caráter de evidência e se nos converte em um problema. Normalmente nós vivemos em nosso mundo como em uma casa bem disposta e ordenada que conhecemos sem nenhuma dificuldade. Porém, quando essa familiaridade se nos apresenta problemática, encontramo-nos de improviso com a intempérie... Tudo, então, nos resulta problemático. Mencionemos algumas das perguntas desta índole; perguntas como as que se podem fazer as crianças, porém, que são familiares a cada um, porque cada um já as têm formulado: Por que existem as coisas? Que sentido tem o universo? Por que eu sou eu e não qualquer outro? Que há depois da morte? Sou eu livre e responsável do que faço e tenho que fazer assim? O que é a justiça? Em perguntas desse tipo tem lugar a origem de uma filosofia. (ANZENBACHER: 1984, 15-16) Nasce aí o saber filosófico, dessa “admiração”, desse “assombro”, dessa experiência metafísica que engloba as demais. A “surpresa do ser” é que põe para toda e qualquer pessoa, um dia ou outro, perguntas como: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Que é tudo isso que nos cerca no mundo? Qual o meu lugar no universo? O que me distingue de tudo o mais, se há tanta coisa que me identifica com os outros seres? A existência humana é absurda ou tem sentido? Por que vivo? Por que morro? Por que estou aqui e não em outro planeta? Por que viver esta vida que não pedi para viver? Qual o fim desta minha viagem? Essa necessidade de vasculhar justificativa racional para as coisas e acontecimentos leva o ser humano ao ato de ponderar e pensar ou “pesar” idéias, todas as que lhe brotam na mente, bem aquilo que o verbo “pensar” significava originariamente: “pendurar” algo para lhe tomar o peso real. Passa-se, dessa maneira, da consciência ingênua para a consciência refletida, sobre o problema fundamental do Ser. É o saber filosófico repontando. É a vontade de ir ao fundo, de perscrutar tudo. Porque filosofar é interrogar sempre. Penosamente. Gratuitamente. Na procura de tudo e do tudo. (VANUCCHI: 2004, 27-28) A Filosofia, assim, ocupa-se das perguntas “de fundo” da humanidade (vida e morte, homem e universo, bem e mal, liberdade, justiça, etc.). Essas questões são essenciais e fundantes e perpassam toda a história do pensamento e da vida humana; na realidade, as questões vitais do ser humano são sempre as mesmas, mas elas se renovam e reaparecem 5 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo em novas situações. Dessa maneira, podemos afirmar que a Filosofia é sempre a mesma e, ao mesmo tempo, sempre nova. Não espere da filosofia que resolva sua situação de “incômodo”. O que ela pode fazer é deixar você ainda mais inconformado. Mas ajudará você a perceber que o incômodo não é ruim, ao contrário, é o inconformismo que move o mundo, permite que cada um construa sua vida buscando seus próprios caminhos. (GALLO: 1997, 12) Uma grande filosofia não é aquela que pronuncia juízos definitivos, que coloca uma verdade definitiva, mas aquela que produz uma inquietação, que dá lugar a um “abalo” na consciência. (Charles Péguy) Em seu pequeno e brilhante livro “Introdução à Filosofia”, Jaspers insiste na idéia de que a essência da filosofia é a procura do saber e não sua posse. Todavia, ela “se trai a si mesma quando degenera em dogmatismo”, isto é, num saber posto em fórmula, definitivo, completo. Fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas e cada resposta transforma-se numa nova pergunta (por exemplo: o que distingue o homem dos animais? Resposta: a alma espiritual. Nova pergunta: e o que é a alma?). Há, então, na pesquisa filosófica uma humildade autêntica que se opõe ao orgulhoso dogmatismo do fanático: o fanático está certo de possuir a verdade. Assim sendo,ele não tem mais necessidade de pesquisar e sucumbe à tentação de impor sua verdade a outrem. Acreditando estar com a verdade, ele não tem mais o cuidado de se tornar verdadeiro; a verdade é seu bem, sua propriedade, enquanto para o filósofo é uma exigência. No caso do fanático, a busca da verdade degradou-se na ilusão da posse de uma certeza. Ele se acredita o proprietário da certeza, ao passo que o filósofo esforça-se por ser peregrino da verdade. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está diante de nós. A consciência filosófica (...) é uma consciência inquieta, insatisfeita com o que possui, mas à procura de uma verdade para a qual se sente talhada. (HUISMAN: 1983, 24) A Filosofia, assim, é antes esclarecimento e tomada de consciência das questões fundamentais da humanidade do que um depósito de respostas e soluções definidas. É ela, a Filosofia, a busca incessante da verdade, que sempre se renova. 1.1.4 Filosofia: busca dos sentidos e valores Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia. (Albert Camus) Todo esforço da consciência filosófica na busca do sentido das coisas tem, na verdade, a finalidade de compreender de maneira integrada o próprio sentido da existência do homem. Temos, então, de fato, uma nova pragmaticidade: o homem não consegue viver e existir apenas como um fato bruto; ele sente a necessidade inevitável de compreender sua própria existência. Portanto, o esforço despendido pela consciência no seu refletir filosófica não é só mero diletantismo intelectual, nem puro desvario ideológico... É antes a busca insistente do significado mais profundo da sua existência, sem dúvida alguma para torná-la mais adequada a si mesmo. (SEVERINO: 1992, 24-25) A filosofia tem por objeto de reflexão os sentidos, os significados e os valores que dimensionam a norteiam a vida e a prática histórica humana. Nenhum indivíduo, nenhum povo, nenhum momento histórico vive e sobrevive sem um conjunto de valores que significam a sua forma de existência e sua ação. Não há como viver sem se perguntar pelo seu sentido; assim como não há como praticar qualquer ação sem que se tenha que perguntar pelo seu sentido próprio, pela sua finalidade. É claro que alguém poderá viver pelo senso comum, entranhado em seu inconsciente, sem se perguntar conscientemente pelo seu efetivo significado. Já falamos nisso, 6 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo porém essa não é uma conduta filosófica, como já temos reiterado anteriormente. A filosofia e o exercício de filosofar implicam uma pergunta explícita e consciente pelo sentido e significado das coisas, da vida e da prática humana. (LUCKESI & SILVA: 1995, 87) Em sua vida, o homem é aquele que é capaz de interpretar as coisas e acontecimentos e dar-lhes sentido; e todo sentido dado torna-se, necessariamente, um valor para o homem, os quais servem de orientação e direcionamento para a existência. Dessa maneira, constata-se que a filosofia possui uma importância não somente teórica, mas também prática, visto ser ela geradora de sentido e valores, tanto para as pessoas como para as sociedades. A partir disso, constatamos que a filosofia nasce da vida real e sempre a ela se refere. O estudo da filosofia é mais necessário para regular nossos costumes e nos conduzir na vida que o uso de nossos olhos para guiar nossos passos. (René Descartes) O objetivo imediato e urgente da filosofia é precisamente traduzir os resultados da ciência em vida espiritual, em verdade para mim, que realize a idéia que tenho de mim e da minha existência no mundo e assim justifique minha vida agora e em toda hora. (Sören Kierkegaard) 1.1.5 Filosofia: o mundo precisa dela? Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades. Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força de tradição, a filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas – existirá realmente? Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar. A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através do trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentarse com elas. A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente. Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem, menos estarão os homens arriscados a se deixar pela luz da filosofia. Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A auto-complacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bemestar material como razão suficiente para a vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a binomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário – tudo isso proclama a anti-filosofia. E os homens não percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a anti-filosofia é uma filosofia, embora pervertida, que se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação. (JASPERS: 1965, 138) 7 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Redija um texto tendo como parâmetro o texto de Jaspers e as questões abaixo: A filosofia é sempre amada? Quais são as razões que se colocam contra a filosofia? Por que o autor considera a filosofia “perigosa” para os indivíduos? Quem são os principais inimigos da filosofia? Por que motivo? Em que consiste a anti-filosofia? A sociedade consumista, pragmática e tecnocrata atual criou escola tecnicista e autoritária. A Filosofia foi banida dos currículos, expurgada da escola. A ordem era produzir uma massa passiva, homens sem consciência, mão-de-obra dócil à implantação do concomitante capitalismo monopolista internacional. (NUNES: 1993, 17) Aos menos avisados, aos alheios ao mundo e a si mesmo, à pergunta inicial “para que serve a filosofia?”, a resposta é simples: PARA NADA. Se para nós servir significa ter utilidade prática e imediata, propiciar meios lucrativos de desempenho social, facilitar a submissão e o poder, inibir a multiplicidade de respostas, investir no modelo de “homem bem sucedido”... então a filosofia felizmente não serve para nada. Lamentavelmente, num mundo pragmatista como o nosso, onde sucesso – dinheiro – destaque social, teimosamente são considerados como fatores de felicidade, como meios indispensáveis para a própria realização pessoal, servir significa cooperar o mais possível para a manutenção do sistema, para a reprodução dos velhos e “eficientes” esquemas. Entretanto, se tomarmos a palavra “servir” em seu sentido original, veremos que servir é estar a serviço. É preciso estar a serviço da felicidade do homem, do conhecimento de seus mais profundos anseios, dos elementos indispensáveis para a sua sobrevivência com dignidade e auto-estima. É preciso estar a serviço da harmonia do homem com o seu meio, harmonia que se consegue como produto de luta, de adaptação, de esforço, de transformação, de investimento no próprio homem. É preciso estar a serviço da cultura, do conhecimento, da liberdade de pensamento – expressão – ação. É preciso estar a serviço da verdade., Então a filosofia serve: está a serviço, tem espaço garantido não pela escolha deliberada de quem a conhece, mas por ser indispensável, imprescindível, necessária para a humanização do homem. (RHEIM SHIRATO: 1987, 77) 1.1.6 Filosofia da experiência vital (senso comum) e Filosofia como ciência Consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, quem vive possui uma filosofia, uma concepção de mundo. Esta concepção pode não ser manifesta. Geralmente, ela se aninha nas estruturas inconscientes da mente. De lá, ela comanda a vida, dirige-lhe os passos, norteia a vida. A vida concreta de todo homem é, assim, filosofia. O campônio, o operário, o técnico, o artista, o jovem, o velho, vivem todos de uma concepção de mundo. Agem e se comportam de acordo com uma significação inconsciente que emprestam à vida. Neste sentido, pois, pode-se dizer que todo homem é filósofo. Não podemos, porém, dizer que todo homem é filósofo no sentido usual da expressão. (LUCKESI & SILVA: 1995, 84) Conforme o filósofo Chaim Perelman (1912-1984), podemos dizer: o senso comum consiste em uma série de crenças admitidas por um determinado grupo social e que seus membros acreditam serem compartilhadas por todos os homens. Muitas das concepções do senso comum de um povo ou de uma classe social transformaramse em frases feitas ou em ditados populares, como, por exemplo: “Homem que é homem não chora”; “Lugar de mulher é na cozinha”; “Deus ajuda quem cedo madruga”; “Querer é poder”; “Filho de peixe, peixinho é”. Repetidas irrefletidamente no cotidiano, algumas dessas noções escondem idéias falsas, parciais ou preconceituosas. Outras, por outro lado, podem revelar uma profunda visão da vida, ao que chamamos “sabedoria popular”. Mas o que caracteriza basicamente as noções pertencentes ao senso comum não é a sua verdade ou falsidade. É uma falta de “fundamentação”. Isto é, as pessoas não sabem explicala. Trata-se, portanto, de um conhecimento adquirido sem uma base crítica, precisa, coerente e sistemática (COTRIM: 1993, 48) 8 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A intenção desse subcapítulo é apontar as diferenças entre “filosofia de vida” (senso comum) e Filosofia (Filosofia vista como ciência). Antecipamos, assim, que filosofia da “experiência vital” é a “filosofia de vida”, a filosofia comum de todo homem, pelo fato de ele ser racional e, por isso, possui uma determinada visão da vida e do mundo. A fonte dessa filosofia é o ambiente social, a tradição, a religião e outros fatores. No fundo, essa “filosofia” é pouco consciente, desorganizada e irrreflexa, o que não quer dizer que seja irracional. O homem, diz-se, é naturalmente filósofo, “amigo da sabedoria”. E é verdade. Ávido de saber, não se contenta em viver o momento presente e aceitar passivamente as informações fornecidas pela experiência imediata, como fazem os animais. Seu olhar inquisidor quer conhecer o porquê das coisas, principalmente o porquê da própria vida. Mas, enquanto o homem comum, o homem da rua, levanta essas perguntas e enfrenta esses problemas de quando em quando, sem método e sem ordem, há pessoas que dedicam a essas investigações todo o seu tempo e todas suas energias e se propõem a obter uma solução conclusiva para todos os graves problemas que acicatam a mente humana, por meio de uma análise profunda e sistemática. A estas pessoas é que costumamos chamar de “filósofos”. Então, o que é propriamente a filosofia? É um conhecimento, uma forma de saber. Possui, como tal, uma esfera particular de competência sobre a qual busca adquirir informações válidas, rigorosas e ordenadas. (MONDIN: 1980, 5) 9 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 2. FILOSOFIA: DELIMITANDO SUA NOÇÃO 2.1 FILOSOFIA: ESCLARECENDO A ETIMOLOGIA 2.1.1 Filosofia: “amor pela sabedoria” O nome de sábio, Fedro, me parece demasiado grande e só aplicável à divindade. Mais adequado seria a de “amigo da sabedoria”. (Sócrates) A palavra “filosofia” procede do grego: o verbo “philein” significa “amar”; “sophia” designa antes de tudo qualquer tipo de capacidade ou habilidade, porém passa logo a especificar o saber, o conhecimento e de modo muito particular aquele saber superior que compreende a virtude e a arte de viver. Um “sophos” é, antes de tudo, aquele que é hábil em sua profissão e em sua vida, porém muito especificamente o “sábio”. Por tudo isto, é sólido traduzir-se como “amor à sabedoria” (ANZENBACHER: 1984, 16) 2.1.2 Sabedoria nas antigas culturas orientais Nas culturas orientais e, portanto, anteriores à grega, sabedoria podia designar: Arte de viver: conjunto de regras morais e sociais, com função didático-pedagógica. Sábio: mestre educador das cortes. Gênero sapiencial: sentenças, provérbios, máximas, comparações. Sabedoria: uma “filosofia” popular, de conotação religiosa. 2.1.3 Sabedoria na cultura grega Para os gregos, a ciência é a explicação de todas as coisas pelas suas causas. O mundo real é um “cosmos”, um todo ordenado; esta ordem é racional e pode ser compreendida pela inteligência humana; é uma ordem de causalidade, tão ajustada que a explicação de todo o acontecimento se encontra nas suas causas. Estes três princípios regem a ciência grega (RAEYMAEKER: 1973, 20) Do outro lado do Mediterrâneo, na Grécia, surgia de um pequeno agrupamento humano uma outra importante cultura e que também elaborara todo um sistema teórico de interpretação do real e da existência do homem... O universo se explicava por um princípio puramente racional, por um “logos”; os homens, naquilo que lhes é específico, são assim por “participarem desse logos”. Cada homem responde individualmente por seu destino e por seu agir nesta terra, devendo, pois, adequar-se o mais possível às exigências do “logos”; agindo assim sempre racionalmente. (SEVERINO: 1992, 48) A ânsia de entender racionalmente as coisas criou a um só tempo a Filosofia e a Ciência. “É necessário”, dizia Platão, “ir até onde nos leva a razão e o espírito” (A República, Livro III, 394). A razão levou os gregos a ver uma ordem, uma unidade, uma harmonia por detrás da multiplicidade caótica das coisas e dos acontecimentos. A realidade não era o que estava à nossa frente, mas, sim, o que a razão iria encontrar a dizer. Daí a busca das causas e dos princípios. Há uma citação de Eurípides, repetida por Vergílio, que reflete esta motivação intelectual dos helênicos: “feliz aquele que aprendeu a pesquisar as coisas”. (XAVIER TELES: 1985, 22) Aqui, então, diferenciamos, segundo os gregos, os seguintes termos: 10 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Ciência: racionalidade; é compreender o mundo pela razão, pela inteligência (e isso em oposição à explicação mitológica da realidade) Logos do mundo: o mundo possui uma “razão” dentro de si; as causas das coisas estão nas próprias coisas e não no determinismo que os mitos e a religião grega apresentavam. Logos do homem: é o instrumento para captar e compreender o “logos do mundo”. Dessa maneira, ressaltamos que os gregos desenvolveram uma ciência (no sentido mais etimológico da palavra: conhecimento) dos fatos (medicina, astronomia, matemática, etc.), mas, sobretudo, uma ciência da profundidade e da análise da realidade (filosofia). 2.2 FILOSOFIA: UMA TENTATIVA DE DEFINIÇÃO Após pesquisa prévia, redija um texto que contemple uma definição de Filosofia. 2.3 FILOSOFIA: FIXANDO SUA NOÇÃO 2.3.1 Filosofia é ciência Afirma-se que Filosofia é ciência (mais uma vez devemos entender o conceito no seu sentido etimológico e não no sentido positivista) porque apresenta três características: racionalidade e criticidade, procedimentos metódicos, sistematicidade. Podemos afirmar que a Filosofia é uma ciência especial, com características muito próprias, cujo caráter eminentemente especulativo, dá a ela um sentido de ver diferente das demais ciências, mas profundamente ligada a todas elas. (RHEIN SHIRATO: 1987, 31-32) A Filosofia, então, não é poesia nem uma simples meditação e muito menos um livre discurso. Trata-se de um saber rigoroso, fundamentado, organizado, ou seja, é ciência. 2.3.1.1 Filosofia é ciência pela sua racionalidade e criticidade A filosofia tem a pretensão de que todas as suas afirmações são racionais e que, por isso mesmo, podem entendê-las qualquer ser racional (qualquer homem) e ver o como e o porquê da lógica contundente que pretendem tais afirmações. (ANZENBACHER: 1984, 39) O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente. (CHAUÍ: 1995, 15) Assim, a Filosofia utiliza-se da razão (como instrumento de compreensão da realidade) e de procedimentos racionais (raciocínio lógico, argumentação, demonstração, etc.). Ela 11 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo prescinde da emoção e da fé para a leitura do real e, por isso, distingue-se da Arte e da Religião. 2.3.1.2 Filosofia é ciência pelos seus procedimentos metódicos A Filosofia possui método próprio (pesquisar os métodos filosóficos) e os conhecimentos são adquiridos segundo um plano consciente, seguem um “caminho previsto” (método). 2.3.1.3 A Filosofia é ciência pela sua sistematicidade As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. (CHAUÍ: 1995, 15) Ciência é, então, simplesmente um conjunto de conhecimentos que estão em relação mútua. Esse conjunto se apresenta como um todo, como um sistema. Assim, pois, na filosofia se trata de uma união sistemática de conhecimentos ou afirmações. (ANZENBACHER: 1984, 38) Disso, concluímos que a Filosofia tende ao sistema (por sistema devemos entender a ramificação interrelacionada e interdependente de conhecimentos e verdades), pois os conhecimentos são organizados num conjunto unitário. 2.3.2 Filosofia é uma ciência da fundamentação Como já foi afirmado, a Filosofia não é ciência no sentido positivista do termo, não é uma ciência dos fatos (o que pertence às ciências experimentais), mas ciência dos fundamentos e da fundamentação. Ela é ciência dos fundamentos porque busca a razão última, os primeiros princípios das coisas; porque tem por temática as questões fundamentais da humanidade, e porque se situa além das ciências experimentais. 2.3.2.1 Filosofia é ciência da fundamentação porque busca a razão última, os primeiros princípios das coisas O objetivo da filosofia consiste em alcançar uma explicação fundamental da realidade, explicação que, então, será realmente fundamental, quando logra pôr em descoberto as motivações, razões ou causas últimas do real. Vista assim, a filosofia se manifesta como a “ciência dos fundamentos” (MANDRIONI: 1964, 225) A filosofia é uma ciência fundamental porque investiga os fundamentos últimos, os fundamentos não empíricos...a ocupação filosófica do Ocidente começou com a questão da “arché” (palavra grega que significa “fundamento, princípio”). De modo definitivo, a filosofia sempre girou em torno desta questão. A filosofia é a ciência dos últimos fundamentos, condições e supostos. (ANZENBACHER: 1984, 38-39) 12 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A Filosofia, com efeito, procura sempre resposta a perguntas sucessivas; objetivando atingir, por vias diversas, certas verdades que põem a necessidade de outras: daí o impulso inelutável e nunca plenamente satisfeito de penetrar, de camada em camada, na órbita da realidade, numa busca incessante de totalidade de sentido, na qual se situam o homem e o cosmos. Ora, quando atingimos uma verdade que os dá a razão de ser de todo um sistema particular de conhecimento e verificamos a impossibilidade de reduzir tal verdade a outras verdades mais simples e subordinantes, segundo certa perspectiva, dizemos que atingimos um princípio ou um pressuposto. (REALE: 1989, 4) Assim, a Filosofia não para enquanto é possível ainda colocar questões e ela somente se contenta com a evidência, isto é, com a última clareza racional. 2.3.2.2 Filosofia é ciência da fundamentação porque tem por temática as questões fundamentais da humanidade Os assuntos da Filosofia são as questões “de fundo” do homem e da humanidade; problemas “existenciais” que tocam o sentido da vida e de toda a realidade. 2.3.2.3 Filosofia é ciência da fundamentação porque se situa além das ciências experimentais-positivas A Filosofia é aquele conhecimento especulativo ou analítico sobre a realidade como um todo ou a respeito de certos problemas que não caem sob a alçada das ciências, principalmente os do conhecimento e da ação. (XAVIER TELES: 1985, 53) Se todos os problemas científicos estivessem resolvidos, as questões realmente humanas não seriam sequer tocadas. (Ludwig Wittgenstein) O objeto das ciências experimentais são os fatos e os fenômenos; elas buscam descobrir as relações constantes entre os fenômenos (leis) e têm por objetivo a aplicação (ciência = técnica). Já a Filosofia trata de questões que não são tratadas pelas ciências, porque ultrapassam os fatos e a experimentabilidade; ela busca o sentido total e último das coisas. 2.3.3 A Filosofia é uma ciência da universalidade A Filosofia é a ciência da universalidade porque é um conhecimento totalizante, globalizante; busca a totalidade e a unidade do saber; busca uma síntese intelectual. Ela é totalizante porque seu campo é universal e porque busca a integração e a unidade dos conhecimentos. 2.3.3.1 Filosofia é ciência da universalidade porque seu campo é universal A Filosofia pode se voltar para qualquer objeto. Pode pensar a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos; pode pensar a religião; pode pensar a arte; pode pensar o próprio homem 13 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo em sua vida cotidiana. Uma história em quadrinhos ou uma canção popular podem ser objeto da reflexão filosófica... A Filosofia incomoda porque questiona o modo de ser das pessoas, do mundo. Questiona as práticas política, científica, técnica, ética, econômica, cultural, artística. Nada há onde ela não se meta, não indague, não perturbe. (ARRUDA ARANHA & PIRES MARTINS: 1985, 69) A filosofia é uma crítica universal que submete todas as opiniões, todas as imagens do mundo e qualquer exigência de sentido ao seu juízo como ciência racional. É uma crítica das ideologias, da religião, da ciência, da tecnologia e da sociedade. Combate todo dogmatismo acrítico, com o que adota uma função clarificadora na sociedade. (ANZENBACHER: 1984, 40) As ciências experimentais têm uma limitação de campo e de objeto; já a Filosofia, possui um campo ilimitado e pode tratar de qualquer assunto que envolva um questionamento racional. 2.3.3.2 Filosofia é ciência da universalidade porque busca a integração e a unidade dos conhecimentos A Filosofia busca formar uma visão total, coerente e ordenada do homem, do mundo e de toda realidade. Já as ciências experimentais são uma visão dos fatos num campo limitado. A Filosofia busca uma “cosmovisão” e uma “globalização” das ciências. Quando se afirma que a Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, o que se quer dizer é que a Filosofia pretende elaborar uma redução conceitual progressiva, até atingir juízos com os quais se possa legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total. Assim, o sentido de universalidade revela-se inseparável da Filosofia. (REALE: 1989, 4) 14 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3. FILOSOFIA: SUA ORIGEM HISTÓRICA 3.1 GRÉCIA: O BERÇO DA FILOSOFIA A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego. (CHAUÍ: 1995, 20) No tocante à origem “geográfica” da Filosofia, podemos assinalar os seguintes aspectos: A cultura grega gerou a Filosofia propriamente dita, isto é, a ciência filosófica. Os filósofos chamados “pré-socráticos” (século VI a.C.) sãos os primeiros a pensar de maneira sistemática a Filosofia. Nas culturas anteriores à civilização grega (chinesa, hindu, egípcia, etc.) houve elementos filosóficos, mas estavam esses elementos em outros contextos (geralmente o contexto religioso) A sabedoria cultivada em Israel (livros sapienciais), no Egito e em outras culturas antigas constituem uma sabedoria popular: experiência humana acumulada e transmitida através das gerações. 3.2 FILOSOFIA GREGA: CONTEXTO HISTÓRICO DE SEU NASCIMENTO A civilização grega foi propícia para o surgimento da reflexão filosófica pelos seguintes motivos: 3.2.1 A ausência de escritos religiosos Os povos das antigas civilizações orientais possuíam codificações de normas religiosas. A religião fornecia-lhes as explicações sobre os acontecimentos (nascimento, morte, família, sofrimentos, etc.) e princípios e normas de vida. Os gregos não possuíam livros religiosos e a própria religião ocupava um lugar secundário na cultura grega. Consequentemente, os gregos tinham de buscar explicações racionais para os acontecimentos e usar da razão na procura de solução dos problemas humanas. 3.2.2 A sociedade democrática As antigas culturas orientais eram, de modo geral, teocráticas: a vida social e individual era pré-determinada pela religião e pelas leis religiosas. Ainda havia a questão da classe sacerdotal, a qual representava o poder divino e revelado, portanto, sem questionamento. A sociedade grega foi, no geral, democrática: o poder provinha do povo (não possuíam classe sacerdotal organizada). Consequentemente, a própria sociedade devia buscar soluções para seus problemas, criar normas e leis; tais soluções se travavam nas praças públicas (agorás), o que fez os gregos desenvolverem o discurso racional para as problemáticas da existência. 15 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3.3 O MITO E A FILOSOFIA A Filosofia originou-se do mito. (Aristóteles) Do que as pesquisas antropológicas nos revelam, podemos saber que a forma mais ancestral de os homens buscarem com alguma sistematicidade a explicação, o sentido das coisas, foi o mito. O mito não é algo absurdo, irracional, pré-lógico, como se diz muitas vezes. Ao contrário, ele é a expressão de uma primeira tentativa da consciência humana – querendo se libertar cada vez mais das incumbências quase que instintivas de manutenção de vida – para “colocar ordem no mundo”. Afinal, o mundo lhe parecia um tanto quanto caótico, sufocando o homem com sua magnitude, com sua bruta objetividade. Era preciso que tanta heterogeneidade, tanta multiplicidade, tanta “desordem” tivessem alguma ordenação. O mito é a primeira construção teórico-subjetiva do homem para pôr ordem nessa situação de aparente desordem. O mito assume a forma de uma narrativa imaginária pela qual as várias culturas procuraram explicar a origem do universo, seu funcionamento, a origem dos homens, o fundamento de seus costumes, apelando para entidades sobrenaturais, superiores aos homens, a forças e poderes misteriosos que definiram o seu destino. Hoje, para nós, os mitos dos povos arcaicos nos parecem à primeira vista estórias lendárias e fantasiosas, sem muito nexo. Mas, na verdade, para aqueles povos, eles representavam uma explicação valiosa e satisfatória; satisfaziam a exigência que começavam a ter de compreender o sentido de sua própria existência. (SEVERINO: 1992, 68) Assim, podemos afirmar que o mito é uma narrativa fantasiosa que contém um núcleo com pretensão “explicativa” de uma realidade. E eles são divididos em: Mitos teogônicos: aqueles que tratam dos princípios e das origens dos deuses e/ou forças misteriosas. Mitos cosmogônicos: tratam da origem do mundo e das coisas. Mitos antropológicos: explicação da condição humana. 3.3.1 Passagem do mito à Filosofia O mito possui um “embrião filosófico”: a sua busca por explicações da realidade; a essa busca pelas explicações chamamos de “núcleo explicativo”. Entretanto, com os gregos, essa explicação busca outras causas e haverá uma substituição dos “agentes fantasiosos” (deuses, heróis, teogonias, cosmogonias, etc.) por causas racionais. Em outras palavras: há a mudança do instrumento de questionamento: a imaginação cede lugar à razão. Na tentativa de explicar o natural, o terreno, a própria tragédia da vida humana com seus conflitos, surge a mitologia como aquela que entre ídolos, heróis, deuses e semi-deuses, reflete em mitos e alegorias o próprio trágico da vida humana. Seus personagens desempenham papéis que no pano de fundo nada mais são do que as intrincadas emoções humanas, o conflito entre a autodeterminação, a possibilidade de escolha e a idéia de um destino que previamente tudo marcou, tudo decidiu. A fatalidade, o trágico da mitologia nada mais são do que o código encontrado pelo grego para expressar a nossa própria condição de ser humano. O sobrenatural é apenas o reflexo do natural. Os deuses, semi-deuses e heróis do Olimpo representam a força e ao mesmo tempo a impotência do homem na terra, quando, apesar de livres para decidir, são enredados pelo destino, se transformam em objetos da fatalidade. Do pensamento mítico (mitológico) para o filosófico foi, para o grego, um passo relativamente pequeno. A mola propulsora é a mesma: perguntar, tentar entender, explicar o grande mistério que é o universo, o cosmos (macro e micro). Apenas a resposta que mudou de plano: saiu do Olimpo e veio para a terra. A mitologia também foi tentativa de explicação do universo, também 16 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo demonstra “atitude de espanto do homem”, só que ainda carece de espírito filosófico, pois desloca o homem de seu próprio eixo no momento em que busca respostas fora do espaço humano. Mas foi um início que, tendo continuidade, deflagrou-se no aparecimento da filosofia enquanto tal. (RHEIN SHIRATO: 1987, 54-55) 3.4 OS ALVORES DA FILOSOFIA A partir do século VI a.C., os principais centros da cultura helênica eram, além da própria Grécia, as ilhas do mar Egeu, a Ásia Menor, a Sicília e a Itália Meridional. É nesta época que se inicia o pensamento filosófico propriamente dito, é quando surgem os primeiros filósofos que procurarão apresentar sistemas coerentes e completos para a explicação do universo. É quando o mito deixa de ser importante. (NIELSEN NETO: 1985, 102) A história da filosofia grega é geralmente dividida, tomando-se a figura de Sócrates como ponto de referência, em três períodos ou épocas. O primeiro, pré-socrático, também chamado cosmológico, é o período de formação. O segundo, socrático ou antropológico, que coincide com o apogeu do poderio econômico e militar de Atenas, é o período da maturidade e do esplendor. O terceiro, finalmente, que corresponde à decadência da polis e à desintegração do império macedônico, é o de declínio, ao longo do qual o pensamento grego é incorporado à cultura romana e à apologética cristã. (COUBISIER: 1983, 43) Abaixo temos um brevíssimo resumo, em forma de tópicos, da estruturação da Filosofia: A primeira filosofia grega (pré-socráticos) é cosmológica, ou seja, busca os fundamentos do mundo, do qual todas as coisas são compostas. Em seguida (com Heráclito e Parmênides) a filosofia se torna metafísica: discussão sobre o uno e o múltiplo, sobre o ser e o devir. Com Sócrates, a filosofia se volta para o reto viver (Conhece-te a ti mesmo). Com Platão e Aristóteles a filosofia atinge o seu apogeu e se torna universalista. Já no século IV a.C. a filosofia grega, com Platão e Aristóteles, elabora as formas superiores da racionalidade, matrizes de todo o pensamento posterior. A partir dos gregos, a filosofia ocidental é um processo progressivo, que se prolonga, através de Roma e do Cristianismo, até o mundo moderno e contemporâneo. Heráclito, por exemplo, não é um pensador perdido no passado remoto, cujos aforismos teriam um interesse puramente histórico ou arqueológico. Na condição de precursor da dialética, está presente na filosofia moderna e Hegel nos diz que não há um só de seus aforismas que ele não tenha recuperado na “Ciência da Lógica”. E, assim como está presente na obra de Hegel, assim também está presente na obra de Marx, que nos diz não ter feito outra coisa senão prosseguir numa tarefa começada por Heráclito e Aristóteles. (CORBESIER: 1983, 34) Resumimos, então, essa problemática com as seguintes ponderações: A filosofia é a contribuição mais importante da cultura grega para a história da humanidade. Seus elementos exerceram influência muito grande nos séculos afora. A filosofia grega exerceu influência direta no pensamento filosófico e teológico cristão da Idade Média; visão cristã do mundo “encarnada” na filosofia grega; primeiro o platonismo, depois (a partir do século XII) o aristotelismo. Os temas e elementos da filosofia grega continuam presentes na Idade Moderna e Contemporânea. 17 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 4. EXERCÍCIOS QUESTÃO 01 (UFMG 2005) Leia este trecho: ... a filosofia não é a revelação feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o diálogo entre iguais que se fazem cúmplices em sua mútua submissão à força da razão e não à razão da força. (SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Tradução de Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.2) A partir da leitura desse trecho e de outros conhecimentos sobre o assunto, REDIJA um texto destacando duas características da atitude filosófica. QUESTÃO 02: Leia o texto abaixo e responda: Eu etiqueta (Carlos Drummond de Andrade) Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório. Um nome...estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nessa vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produtos que nunca experimentei, mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo. Desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É duro andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demitome de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim mesmo, ser pensante sentinte e solitário com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio. Ora vulgar ora bizarro. Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer principalmente). E nisto me comparo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares, festas, praias, pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais. Tão minhas que no rosto se espelhavam. E cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante, mas objeto, que se oferece como signo dos outros. Objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente. a) Qual a crítica feita pelo autor? 18 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo b) Que aspectos filosóficos o texto levanta? Explicar cada um dos aspectos levantados. (07) QUESTÃO 03 (UEM 2009) Dizer que as indagações filosóficas são sistemáticas significa dizer que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. (CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13ª ed., São Paulo: Ática, 2008, p. 21). Assinale o que for correto. 01) A concepção de mundo de um povo, de uma cultura, de uma civilização com seu conjunto de ideias, de valores e de práticas pelas quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma deve ser considerada como filosofia. 02) Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade de coisa alguma. Pelo contrário, o pensamento filosófico procura explicar e compreender mesmo o que parece ser irracional e inquestionável. 04) Como fundamento teórico e crítico, a filosofia ocupa-se com os princípios, as causas e as condições do conhecimento que pretende ser racional e verdadeiro, com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, religiosos, artísticos e culturais. 08) A filosofia é útil, pois permite superar, pela análise e pela reflexão crítica, a ingenuidade e os preconceitos do senso comum e oferece a possibilidade de libertar o homem das ideias despóticas que o subjugam a um poder dominante e ilegítimo. 16) A filosofia é exclusivamente teórica, isto é, contemplativa, por ser incapaz de incorporar, nos seus procedimentos metodológicos, a observação e a experimentação. Total: _________ QUESTÃO 04 (UEM 2009) O valor e a utilidade da filosofia têm sido, não raras vezes, postos sob suspeita. Uma visão acerca do filósofo é que ele divaga e perde-se em reflexões sobre questões abstratas que nada têm a ver com o cotidiano das pessoas. Em relação à natureza e à finalidade da filosofia, assinale o que for correto. 01) A filosofia é, em termos gerais, um esforço intelectual para se interpretar o mundo e os eventos que nele se passam, compreender o próprio homem e iluminar o agir que do homem se espera. 02) O termo filosofia foi utilizado durante vários séculos como nome geral para diferentes ramos do saber, como matemática, geometria, astronomia; isso muda a partir do século XVII com a revolução metodológica iniciada por Galileu e com o estabelecimento das ciências particulares pela delimitação de campos específicos de pesquisa. 04) Refletir sobre os valores, sobre os conceitos como liberdade e virtude faz parte da atividade do filósofo. Nessa medida, a filosofia apresenta-se como uma sabedoria prática que auxilia na orientação da vida moral e política, proporcionando o bem viver. 08) É consenso entre os cientistas que, porque na investigação filosófica o filósofo não verifica suas hipóteses, baseando-se na observação empírica, a filosofia não contribui para o progresso do conhecimento. 16) A história da filosofia constitui-se de teorias que se contradizem. Os filósofos discordam de tudo e uns dos outros, de modo que o pensamento crítico próprio da filosofia consiste em pôr em dúvida toda afirmação, jamais chegando a conclusões. Total: _________ 19 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo QUESTÃO 05 (UEM 2009) Na Grécia arcaica, a geração da ordem do mundo é apresentada por mitos que narram a genealogia e a ação de seres sobrenaturais. A filosofia, com a escola jônica, caracteriza-se por explicar a origem do cosmos, recorrendo a elementos ou a processos encontrados na natureza. Assinale o que for correto. 01) O mito é incapaz de instituir uma realidade social, pois seu caráter fantasioso não possui credibilidade alguma para seus ouvintes. 02) A transformação de uma representação dominantemente mítica do mundo para uma concepção filosófica expressa, entre os séculos VIII e VI a. C., na antiga Grécia, uma mudança estrutural da sociedade. 04) Os filósofos da escola jônica realizaram uma ruptura definitiva entre a mitologia e a filosofia; depois deles, não é possível encontrar, no pensamento filosófico, presença alguma de mitos. 08) O mito de Édipo, encontrado na tragédia de Sófocles, será aproveitado por Sigmund Freud para explicar o complexo de Édipo como causa de determinadas neuroses. 16) Homero foi o primeiro historiador grego. Na Ilíada e na Odisseia, descreve o comportamento de homens heroicos cujas ações não possuem mais componente mitológico algum. Total: ______ 20 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo PARTE II FILOSOFIA E CULTURA 21 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O ser humano, agindo sobre o seu meio, transformando a natureza, cria um mundo próprio e exclusivo: o mundo da cultura, pois o homem é, essencialmente, um ser cultural. Por cultura entendemos, de modo geral, a produção do espírito humano em qualquer dimensão (intelectual, emocional, prático, etc.). Os ramos da cultura humana são: Ciência, Arte, Religião e Filosofia. Nessa parte II, então, queremos estabelecer as relações existentes entre Filosofia e Ciência, Filosofia e Religião e Filosofia e Arte. 22 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 01. FILOSOFIA E CIÊNCIA 1.1 ERA MODERNA: A ERA DAS CIÊNCIAS Para compreendermos a ciência em si, devemos entendê-la a partir de uma perspectiva histórica: a era Moderna. Vejamos algumas considerações: A ciência teve origem no início da Era Moderna (século XVI). Os fundadores da ciência moderna são: Bacon, Copérnico, Galileu e Newton. Eles fazem parte do movimento “Revolução Científica”. Na Antiguidade houve pesquisas científicas ou elementos de ciências, mas eles surgiam esporadicamente, mais como resultado da ação prática do homem sobre a natureza. No tocante ao desenvolvimento científico na Antiguidade, merecem destaques as culturas egípcia e grega. Os gregos desenvolveram estudos científicos em várias áreas: Matemática (Pitágoras, Euclides, etc.), Astronomia (Ptolomeu), Física (Arquimedes), Medicina (Hipócrates). Mas os gregos privilegiaram a Filosofia. A Idade Média representa uma interrupção no desenvolvimento científico; praticamente nada foi criado no que se refere à pesquisa da natureza. Para os medievais, as duas grandes ciências eram a Teologia e a Filosofia (Philosophia ancilla Theologiae). A isso se somavam as artes, a música e a poesia. No início da Idade Moderna (Renascimento – século XVI) ocorre uma série de transformações, que favorecem a retomada do desenvolvimento científico. O principal fator foi a redescoberta da cultura grega. A mudança cultural ocorre no sentido do retorno à razão e no retorno à natureza: a razão aplicada à natureza. O progresso cada vez mais acelerado das ciências deveu-se, sobretudo, ao desenvolvimento do método cientifico ou método experimental (Bacon, Galileu, Newton). A metodologia moderna apóia-se, sobretudo, em dois pilares: Matemática e experimentação. A matemática é a linguagem da ciência moderna, a linguagem de suas representações e seus conceitos; a ciência moderna perfez a “redução quantitativa da realidade”. A matemática é a linguagem de precisão, instrumento principal da ciência. A ciência está escrita neste imenso livro que continuamente está aberto diante de nossos olhos (estou falando do universo), mas que não se pode entender os caracteres em que está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática e seus caracteres são círculos, triângulos e outras figuras geométricas, meios sem os quais é impossível entender humanamente suas palavras: sem tais meios, vagamos inutilmente por um escuro labirinto. (Galileu Galilei) O real da ciência é o que se pode medir. (Max Planck) O outro pilar da ciência moderna é a experimentação. Experimentação é a reprodução de um fenômeno para constatar a sua regularidade. A experimentação torna-se para a ciência moderna o único critério de verdade e certeza objetiva. Foi preciso fazer uma seleção entre as representações possíveis do mundo para considerar apenas as representações matematizáveis. Surge, então, a Matemática como linguagem das representações científicas, como a forma de linguagem poética, onde cada expressão possui ao mesmo tempo múltiplos sentidos. A linguagem matemática, como sabemos, é a linguagem 23 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo das relações quantificáveis entre grandezas, e cada uma das suas expressões possui um, e apenas um sentido. Para traduzir o mundo em linguagem matemática, o meio mais adequado é através de medidas. E só se pode medir aqueles aspectos da realidade que são quantificáveis, como, por exemplo, comprimento, largura, peso, etc. Aqueles outros aspectos, chamados qualitativos, como cores, cheiros, gosto, sensações em geral, por pertencerem à esfera privada de cada indivíduo, muito dificilmente podem ser atribuídos univocamente à realidade do mundo exterior. Os aspectos quantitativos, ao contrário, podem ser medidos, isto é, comparados com um padrão publicamente convencionado, por exemplo, um metro, um quilograma, etc. Nesse caso, torna-se necessária uma experiência corpórea com os objetos, para poder medi-los, descrevendo-os matematicamente. (CUNHA: 1992, 90) Os pioneiros da Física Moderna (séculos XVI e XVII) foram: Copérnico, Galileu, Kepler (na área de Astronomia) e Galileu e Newton (na área da Física Mecânica). No século XVII desenvolveu-se a Química (Boyle e Lavoisier foram seus principais propulsores). Na passagem do século XVII ao século XIX afirmaram as ciências biológicas (Bichat, Gall, Lineu, Bernard, Darwin). No século XIX aparecem as chamadas “ciências humanas” (Psicologia, Sociologia, Pedagogia). São ciências que têm por objeto algum aspecto determinado da realidade humana. 1.2 O CONHECIMENTO CIENTÍFICO 1.2.1 Conhecimento pré-científico (senso comum) O modo de conhecer e agir sobre o meio de forma espontânea e irreflexa chamamos de “senso comum” ou conhecimento pré-científico. O senso comum é o conjunto de conhecimentos espontâneos, surgidos pela interação com o meio, adquiridos pela experiência de vida. Conhecimento vulgar é o conhecimento que nos fornece a maior parte das noções de que nos valemos em nossa existência cotidiana. O conhecimento científico ocupa campo muito menos de nosso viver comum. Grande parte de nossa vida se realiza somente graças ao conhecimento comum. Conhecimento vulgar não significa conhecimento errado ou errôneo, pois pode ser conhecimento autêntico; significa apenas conhecimento não verificado, não dotado de certeza. Que caracteriza o conhecimento vulgar? É um conhecimento que vamos adquirindo à medida que as circunstâncias o vão ditando, nos limites dos casos isolados... É um conhecimento fortuito de fatos, sem procura deliberada dos nexos essenciais que ligam a experiência...; é um conhecimento que se processa sem estabelecer nexos de semelhança ou de constância entre os fatos, para abrangê-los em uma explicação unitária, em suas relações necessárias. (REALE: 1989, 42) 1.2.2 Conhecimento científico Quando um conhecimento se torna mais cuidadoso, mais reflexo, ele se torna científico. A ciência seria, então, o aperfeiçoamento do conhecimento comum. Acrescentar uma dose maior de inteligência no lugar da fantasia. Maior cuidado na observação, ceticismo diante das aparências, maior criatividade na procura das explicações: eis alguns procedimentos que transformaram o conhecimento comum em conhecimento científico. 24 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Como é que se processa o trabalho científico? O trabalho científico é sempre de cunho ordenatório, realizando uma ordem ou uma classificação e, necessária e concomitantemente, uma síntese, buscando os nexos ou laços que unem os fatos. O conhecimento científico, portanto, não conhecimento do particular em si, destacado, como algo que se não situe numa ordem de realidades ou de atos, mas conhecimento do geral, ou do particular em seu sentido de generalidade, ou em sua essencialidade categorial. Não é conhecimento fortuito, casual, mas, ao contrário, é um conhecimento metódico. É o método que faz a ciência. Conhecimento científico é aquele que obedece a um processo ordenatório da razão, garantindo-nos certa margem de segurança quanto aos resultados, a coerência unitária de seus juízos e a sua adequação ao real. O conhecimento vulgar pode ser certo – e muitas vezes o é – mas não possui a certeza da certeza, por não subordinar a verificação racional, ordenada, metódica. O conhecimento científico, ao contrário, é aquele que verifica os próprios resultados, pela ordenação crítica de seu processo. Não vamos, por hora, discorrer sobre os métodos, nem tratar dos diferentes processos do conhecimento científico, limitando-nos a notar que este não pode prescindir da exigência metódica. O conhecimento vulgar é conhecimento casual, de casos; o conhecimento científico é conhecimento metódico e, em outro sentido, conhecimento casual. (REALE: 1989, 43) 1.2.3 Ciência do ponto de vista formal A ciência é um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos e sistematicamente organizados. Ao analisarmos a ciência a partir de sua perspectiva formal, devemos elencar os seguintes pontos: Método: palavra de origem grega (metá = com; hodós = caminho), designa um conjuntos de procedimentos em sucessão (etapas), previamente planejados, em vista de um fim previsto. Sistema: é a ordenação dos conhecimentos num todo integrado e unitário. Fazemos a ciência com fatos, assim como fazemos uma casa com pedras; mas a acumulação de fatos não é ciência, assim como um monte de pedras não é uma casa. (H. Poincaré) 1.2.4 Método experimental O método científico é uma técnica ou modo de proceder pelo qual o cientista adquire, de maneira segura, certos tipos de conhecimento. É uma sucessão de passos ou operações que vão desde a formulação de um problema (hipótese) até a incorporação, no patrimônio científico, do novo conhecimento. Estes passos ou operações podem ser escalonados da seguinte maneira: 1. Observação rigorosa. 2. Hipótese ou formulação do problema. 3. Tentativa de obtenção de um modelo. 4. Planejamento da verificação. 5. Submissão do modelo ou da hipótese a testes críticos – experimentação. 6. Comprovação dos resultados obtidos. 7. Comunicação dos resultados obtidos (dá-se a passagem da atividade para uma linguagem). (XAVIER TELES: 1985, 63) 25 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo É importante ressaltar que a comunicação de resultados geralmente se dá sob a forma de leis, teorias ou hipóteses. 1.2.5 Classificação das ciências As ciências são classificadas hoje da seguinte forma: Ciências formais: ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.). Ciências naturais: física, biologia, geologia, astronomia, geografia, física, paleontologia, etc. Ciências humanas ou sociais: psicologia, sociologia, geografia humana, economia, lingüística, arqueologia, história, etc. Ciências aplicadas: todas as ciências que conduzem à invenção da tecnologias para intervir na natureza, na vida humana e nas sociedades, como, por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, informática, etc. Cada uma das ciências subdivide-se em ramos específicos, com nova delimitação do objeto e do método de investigação. Assim, por exemplo, a física subdivide-se em mecânica, acústica, óptica, etc.; a biologia em botânica, zoologia, fisiologia, genética, etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, do desenvolvimento, psicologia clínica, psicologia social, etc. E assim sucessivamente, para cada uma das ciências. Por sua vez, os próprios ramos de cada ciência subdividem-se em disciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas. (CHAUÍ: 1995, 260-261) 1.3 FILOSOFIA E CIÊNCIA: DISTINÇÃO Campo Objeto Método Critério de Verdade Apoio Termo Abrangência Caráter Ciência realidade empírica fenômenos, fatos experimental experimentação matemática leis, teorias particularidade utilitário Filosofia____________ realidade meta-empírica sentidos e valores____ crítico-reflexivo______ evidência da razão___ lógica______________ cosmovisão, sistema__ universalidade______ vivencial 1.4 RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA De modo geral, há três modos de se fazer Filosofia e, ao mesmo tempo, três modos de entender a relação entre Filosofia e Ciências: a Filosofia desconsidera as ciências, a Filosofia se identifica com as ciências e Filosofia e ciências devem estar em mútua referência. Vejamos uma a uma: 26 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 1.4.1 A Filosofia desconsidera as ciências É uma atitude de isolamento; a Filosofia se isola das ciências, não levando em conta a problemática científica. A Filosofia seria, aqui, a “ciência do espírito”, enquanto as ciências seriam “ciências da natureza”. 1.4.2 A Filosofia se identifica com as ciências É uma posição que considera que a Filosofia não tem conteúdo próprio e que todo o seu verdadeiro conteúdo está nas ciências. Tal posição é típica de alguns círculos ligados ao Positivismo (século XIX) e Neopositivismo (século XX). Essa posição, na realidade, propõe uma identificação total da Filosofia com as ciências (Filosofia = Ciência). O fundamento dessa posição positivista está na afirmação de que o conhecimento científico é o único válido e legítimo e que todo assunto ou pesquisa fora dessa alçada, é falso e vazio. Segundo Comte, a tarefa da filosofia é classificar as ciências, determinar os seus limites, julgar os progressos. A função da filosofia não é conhecer este ou aquele objeto particular (não é uma função cognitiva), mas dirigir as ciências em suas pesquisas. A sua função é normativa. (MONDIN: 1987c, 116) Para o neopositivismo contemporâneo, para o chamado Círculo de Viena, assim como para a Escola Analítica de Cambridge e todas as suas derivações, a Filosofia não é senão uma teoria metodológico-linguística das ciências, uma análise rigorosa da significação dos enunciados das ciências e de sua verificabilidade, visando, segundo alguns, purifica-las de “pseudo-problemas” (REALE: 1989, 12) 1.4.3 Filosofia e Ciências devem estar em mútua referência A Filosofia não se identifica com ciências: ela tem assuntos próprios que não são da competência das ciências. No entanto, a Filosofia deve estar em estreita interrelação (ou diálogo) com as ciências (oposição ao primeiro posicionamento). Existem na época contemporânea – época de extraordinário desenvolvimento científico – entrecruzamentos, interferências e implicações recíprocas entre a ciência e a Filosofia. Tanto as ciências não podem substituir a Filosofia, como a Filosofia não pode dispensar as ciências. As ciências geram questões filosóficas e a Filosofia deve estar em referência contínua às ciências. 27 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Assim, uma cosmovisão – exigência dos momentos hodiernos – deve ser, ao mesmo tempo, científica e filosófica. A ciência gera questionamentos que não são científicos e que ela mesma não pode resolver. Dessa maneira, o saber científico é um saber operativo e utilitário. As ciências e a tecnologia são um meio para fins da humanidade. Mas estes fins a ciência não está capacitada a propor (e aqui entra em cena a Filosofia). Mesmo se todos os problemas científicos estivessem solucionados, verdadeiramente humanas não seriam sequer tocadas. (L. Wittgenstein) as questões A Filosofia, então, tem uma função fundamentadora e crítica com relação às ciências, como bem salienta o texto A função da Filosofia: Uma das funções da filosofia é analisar os fundamentos da ciência. O próprio cientista já está, na verdade, colocando questões propriamente filosóficas quando se pergunta em que consiste o conhecimento científico, qual o seu alcance, qual a validade do método que utiliza e qual é sua responsabilidade no que se refere às consequências das descobertas. Por isso, é importante que o cientista se disponha a filosofar, a fim de investigar os pressupostos e as implicações do seu saber. Além disso, a filosofia busca recuperar a visão da totalidade, perdida diante da multiplicação das ciências particulares e da valorização do mundo dos “especialistas”. É a filosofia que, diante do saber e do poder, avalia se estes estão a serviço do homem ou contra ele, isto é, se servem para seu crescimento espiritual ou se o degradam, se contribuem para a liberdade ou para a dominação. Assim, é preciso questionar a ideologia do progresso que justifica as ilusões e preconceitos do homem “civilizado” por este se julgar superior a qualquer outro. Não é em nome do progresso que as tribos indígenas têm sido sistematicamente expulsas dos seus territórios? E não seria o caso de perguntar quais são os valores do homem “urbano e civilizado” que é individualista, sofre de solidão e tem sido vítima dos descontroles do progresso, como a poluição ambiental? Diante de tais questões, não há como sustentar a neutralidade da ciência. A bomba atômica não pode ser considerada apenas como resultado do sabe sobre a energia atômica, nem como simples técnica de produzir explosão. Trata-se de um saber e de uma técnica que dizem respeito à vida e à morte de seres humanos. Como tal, cabe ao cientista a responsabilidade social de indagar a respeito dos fins a que se destinam suas descobertas. E não é possível alegar isenção, uma vez que a produção científica não se realiza fora de um determinado contexto social e político, cujos objetivos a serem alcançados estão claramente definidos. As altas cifras necessárias ao encaminhamento das pesquisas supõem o apoio financeiro das instituições públicas e privadas, que evidentemente subvencionam os trabalhos que mais lhes interessam. Pode-se falar que, por muito tempo, houve uma “indústria da guerra”, alimentando a “corrida armamentista” e exigindo o constante desenvolvimento da ciência e tecnologia no campo militar. O papel da filosofia consiste, portanto, em analisar as condições em que se realizam as pesquisas científicas, investigar os fins e as prioridades a que a ciência se propõe, bem como avaliar as consequências das técnicas utilizadas. Resta lembrar que, no desempenho desse papel, o filósofo não tem respostas prontas, nem um saber acabado. Não caberia ao filósofo nortear, de forma onipotente, os rumos da ciência. A filosofia deve caminhar ao lado dos cientistas e técnicos a fim de que a abordagem específica que ela é capaz de fazer os auxilie a não perder de vista que a ciência e a técnica são apenas meios e devem estar a serviço da humanidade. (ARRUDA ARANHA, & PIRES MARTINS: 1992, 101-102) 28 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 2. FILOSOFIA E RELIGIÃO 2.1 O QUE É RELIGIÃO? O FENÔMENO RELIGIOSO Religião é a vinculação existencial do homem a um supremo sentido-fundamento (Deus, Absoluto, Santo). (Karl Rahner) Religião é a relação pessoal com o Mistério (Transcendente, Sobrenatural, Absoluto, Deus) que se revela. A religião é o ópio do povo. (Karl Marx) De modo geral, a religião inclui três elementos: 2.1.1 Revelação Toda religião fundamenta-se numa Revelação, a qual significa a “abertura de si mesmo” do Transcendente. 2.1.2 Fé A fé é a atitude religiosa propriamente dita: o reconhecimento e a aceitação da Revelação ou do Sagrado que se revela e se entrega. 2.1.3 Doutrina Religiosa Também poderíamos chamar de “estrutura religiosa”. Trata-se do conteúdo objetivo da fé; é o elemento conceitual ligado à fé; é aquilo que se diz naquilo que se crê. A doutrina religiosa envolve elementos teóricos (concepções de Deus, do mundo, do homem, da história; é o “dogma” no qual um indivíduo é iniciado na fé) e elementos práticos (culto e moral). Subjetivamente, a religião é a atitude pela qual a criatura humana se orienta para o Outro divino; objetivamente, o conjunto de noções, normas e ritos pelos quais nos ligamos a esse Outro. (VANUCCHI: 2004, 32) 2.2 A FUNÇÃO DA RELIGIÃO A passagem do sagrado à religião determina as finalidades principais da experiência religiosa e da instituição social religiosa. Dentre essas finalidades, destacamos: 29 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Proteger os seres humanos contra o medo da Natureza, nela encontrando forças benéficas, contrapostas às maléficas e destruidoras. Dar aos humanos um acesso à verdade do mundo, encontrando explicações para a origem, a forma, a vida e a morte de todos os seres e dos próprios humanos. Oferecer aos humanos a esperança de vida após a morte, seja sob a forma de reencarnação perene, seja sob a forma de reencarnação purificadora, seja sob a forma de imortalidade individual, que permite o retorno do homem ao convívio direto com a divindade, seja sob a forma de fusão do espírito do morto no seio da divindade. As religiões da salvação, tanto as de tipo judaico-cristão quanto as de tipo oriental, prometem aos seres humanos liberta-los da pena e da dor da existência terrena. Oferecer consolo aos aflitos, dando-lhes uma explicação para a dor, seja ela física ou psíquica. Garantir o respeito às normas, às regras e aos valores da moralidade estabelecida pela sociedade. Em geral, os valores morais são estabelecidos pela própria religião, sob a forma de mandamentos divinos, isto é, a religião reelabora as relações sociais existentes como regras e normas, expressões da vontade dos deuses ou de Deus, garantindo a obrigatoriedade do obedecer a elas sob a pena de sanções sobrenaturais. (CHAUÍ: 1995, 308) 2.3 FILOSOFIA E RELIGIÃO: DISTINÇÃO Apontamos as seguintes distinções: O fundamento da Filosofia é só e unicamente a razão. O fundamento da Religião é a fé na Revelação. A verdade religiosa é verdade porque revelada por Deus. A verdade filosófica é uma conclusão da inteligência humana. Na religião tem fundamental importância a autoridade (no caso, a divina). A Filosofia prescinde de toda a autoridade: a única autoridade na filosofia é evidência da razão. 2.4 FILOSOFIA E RELIGIÃO: RELAÇÃO Existe uma proximidade entre Filosofia e Religião: ambas se referem às questões do absoluto; ambas se referem ao fundamento da realidade, à causa última do ser, ao significado da vida do homem, seu fim e destino e ambas pretendem estabelecer normas ao agir humano. Nessa semelhança, os princípios são, no entanto, diferentes: a razão e a fé, respectivamente. O relacionamento entre Filosofia e Religião, no decorrer da história, foi muito complexo. Dessa complexidade de relacionamento resultaram diversas posições quanto ao assunto, entre elas: a Filosofia nega a Religião (ateísmo); a Filosofia reduz a Religião (deísmo); a Religião nega a Filosofia (fideísmo); a Filosofia se harmoniza com a Religião (teísmo). 30 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 2.4.1 A Filosofia nega a Religião (ateísmo) Esta posição nega por completo o valor da Religião e até a vê negativamente. Aqui citamos: positivismo, Feuerbach, marxismo, Freud, etc. 2.4.2 A Filosofia reduz a Religião (deísmo) Esta posição admite um valor à religião, mas apenas a uma “religião racional” ou “natural”. Ela nega o valor do dogma, do culto, do revelado e adere somente o que “cabe na razão”, como, por exemplo, as idéias da existência de Deus, a imortalidade da alma, uma vida moral correta, etc. São representantes do deísmo: Giordano Bruno, Voltaire, Kant e outros. 2.4.3 A Religião nega a Filosofia (fideísmo) Trata-se de uma atitude oposta às anteriores e atribui valor exclusivo à fé, negando, consequentemente, a razão. A razão humana é incapaz da verdade e do bem e a Filosofia é inútil. São representantes dessa corrente: tradicionalismo, Kierkegaard, etc. 2.4.4 A Filosofia se harmoniza com a Religião (teísmo) Essa posição concilia fé e razão. A razão é a mais alta capacidade humana, porém, pela Revelação ao homem é expresso o mais pleno significado da vida e do mundo. A fé não rebaixa a razão, mas, ao contrário, a ilumina e lhe confere novas dimensões. Destacamos: Tomás de Aquino e Maurice Blondel. 2.5 CONCLUSÃO Na realidade, não existe conflito real entre razão e fé; Filosofia e Religião podem e devem coexistir pacificamente. De um lado, a razão e a Filosofia têm consciência de seus limites. A Filosofia busca respostas últimas, mas não as tem. O ser, a realidade, é, no fundo, um mistério. Abre-se, então, o espaço para a nossa fé e a Revelação. A fé e a experiência religiosa, para a autêntica Filosofia, se tornam justamente o mistério que se revela para além das capacidades e possibilidades humanas. 31 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A Filosofia, por definição, é um sistema totalitário: busca as razões últimas das coisas. A filosofia é totalitária, mas na ordem natural. Ela engloba, pois, o estudo da regra suprema da atividade humana natural. As razões que ela busca são, nesse domínio, últimas e absolutas. As conclusões certas da filosofia conservam sempre o seu valor, mesmo na hipótese da elevação do homem à vida da graça, precisamente por não destruir a graça e a natureza. Essas conclusões não são de maneira nenhuma provisórias: são verdadeiras e de uma verdade absoluta. Mas a atividade humana tem os seus limites. A filosofia não resolve todos os problemas; nem mesmo chega a formulá-los todos. Pode tomar consciência das suas fronteiras: embora atingindo de certo modo as razões supremas, pode procurar delimitar regiões misteriosas que escapam ao nosso conhecimento; e mesmo mais, que devem escapar-lhes por ser a natureza radicalmente incapaz de alcançá-las... A filosofia, traçando os seus próprios limites, deixa lugar aberto a uma revelação superior. (RAEYMAEKER: 1973, 34-35) Por outro lado, a verdadeira fé não exige a negação da razão. A Religião entende a razão como a capacidade superior conferida por Deus ao ser humano e que nesta capacidade consiste primariamente a sua dignidade. Longe de nós pensar que Deus tenha ódio à faculdade da razão, em virtude pela qual nos criou superiores a todos os outros seres animados. Longe de nós crer que a fé nos impede de encontrar ou procurar a explicação racional daquilo que cremos, visto que não poderíamos nem ao menos crer se não tivéssemos uma alma racional. (Santo Agostinho, carta 120.1) A Filosofia pode coexistir e cooperar com a fé porque esta última, na sua diversidade radical, não se apresenta como irracional, mas supra-racional. (SAVAGNONE, G. Theoria. p. 263) A fé supõe, então, a pessoa humana com o pleno exercício de suas capacidades e potencialidades. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser. À luz disso, creio justificado o meu apelo veemente e incisivo para que a fé e a filosofia recuperem aquela unidade profunda que as torna capazes de serem coerentes com a sua natureza, no respeito da recíproca autonomia. Ao desassombro (parresia) da fé deve corresponder a audácia da razão. (JOÃO PAULO II. Encíclica Fides et Ratio. p. 68) 32 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3. FILOSOFIA E ARTE Na sua situação vital no mundo, o homem não somente conhece as coisas, as realidades, mas as contempla. As coisas, os seres não são apenas objetos de seu conhecimento e de sua manipulação, mas também atingem a sua emoção, despertam sentimentos de admiração, encanto, amor, beleza, harmonia, etc. O homem expressa as suas emoções e sentimentos através de diversos meios. Esses meios podem ser palavras (poesia, literatura), sons (música), gestos (dança), cores e objeto (pintura, escultura). É a criação artística, a Arte, que é uma das dimensões culturais da humanidade desde sempre. A função primordial da arte é objetivar o sentimento de modo que possamos contemplá-lo e entende-lo. É a formulação da chamada “experiência interior” da “vida interior” que é impossível atingir pelo pensamento discursivo. (LANGER: 1971, 82) 3.1 FILOSOFIA E ARTE: DIFERENCIAÇÃO Façamos uma comparação entre Filosofia e Arte: A Filosofia é obra da inteligência humana. A arte é obra da emoção humana. Na Filosofia se trata de raciocinar, pensar e conhecer. Na Arte se trata de perceber, sentir e criar. O objeto próprio da Filosofia é a verdade; da arte é o belo. A filosofia e a arte se diferem essencialmente pelo tipo de leitura que ambas fazem do universo. É evidente que ambas têm o mesmo objeto, se assim se pode dizer, em cima do qual produzem: a relação homem-mundo. O universo é, portanto, o mesmo. Entretanto, a forma de abordar este universo é diferente. Esta diferença se dá, portanto, no nível do sujeito e não do objeto. Vejamos: tanto o filósofo quanto o artista são os sujeitos agentes na forma de abordar o objeto, na leitura que dele fazem. É na expressão da palavra, o ato de invasão do sujeito na esfera do objeto que determina tanto a arte como a filosofia. Apenas a forma como esta invasão é feita (e daí a decorrente interpretação do objeto) que é diferente. O filósofo se atém ao objeto naquilo que ele tem de essencial, àquilo que ele tem de propriamente objetivo, que é a sua própria natureza. Utiliza para tanto a sua razão como meio de conhecimento e, da própria determinação do objeto mais a leitura que sua razão faz deste objeto, o filósofo procura entender e interpretar a realidade. Seu objetivo é, pois, a realidade objetiva. Seu trabalho é captar essa realidade, percebe-la como problemática e tentar explica-la. Ao tentar explicar esta realidade, o filósofo busca possíveis caminhos de solução e resposta para as questões que daí surgem. É o próprio trabalho de desvelamento, na linguagem de Heidegger. Seu esforço vai, portanto, na direção de decodificar o mais possível este complexo de objetos e símbolos que é a realidade. Para realizar este trabalho, o filósofo utiliza sua razão. Na medida em que o filósofo se percebe diante da determinação da natureza do objeto e de seu próprio objetivo de explicar esse objeto, de percebê-lo como problema,o percurso que ele fará é essencialmente racional, objetivo (no sentido de estar abordando a objetividade do real e pensando sobre ela). O instrumento de 33 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo trabalho do filósofo é a razão, a vida pela qual ele chega à objetividade do universo. Seu plano de abordagem é a realidade tal como ela é por sua própria natureza. Com o artista as coisas não são bem assim. O percurso que ele traça é o inverso ao do filósofo, embora o ponto de partida e o objetivo sejam quase os mesmos. O ponto de partida tal como para o filósofo é abordar a realidade, invadi-la. O objetivo é o mesmo: explica-lo. Como podem, então, ser diferentes? A diferença está exatamente na forma com que isto acontece. O artista vai utilizar nesta abordagem do real a sua sensibilidade. Ou seja, o que ele sente diante do objeto. É a sua emoção que fala, é a percepção não como via para a razão, mas para a sensibilidade. O seu percurso é o inverso no momento em que sua sensibilidade ao se deparar diante do objeto real, ao invés de decodificá-lo como faz o filósofo, na tentativa de explicá-lo, ele o codifica segundo a intensidade de sua sensibilidade. Ou seja, o artista codifica a realidade através de sua própria sensibilidade, passando a ter, a partir daí, uma visão só sua, apenas sua, subjetiva do objeto. Cria, então, sobre a realidade a supra-realidade, que é a realidade subjetivada pela sua sensibilidade. De forma que, explicar a realidade para o artista, significa percebe-la e senti-la (não mais pensa-la) segundo seus (do artista) próprios códigos e símbolos. A problematicidade do real aparece para o artista como a via pela qual ele desperta a própria sensibilidade e cria em cima do real uma realidade maior, sua, apenas sua. (RHEIN SCHIRATO: 1987, 37-39) 3.2 FILOSOFIA E ARTE: RELAÇÃO Filosofia e Arte, às vezes, se aproximam extraordinariamente. Isto porque ambas são expressões do espírito humano no sentido mais profundo e também porque a razão e as emoções muitas vezes estão bem próximas e se entrelaçam. Em alguns momentos muito especiais, a filosofia e a arte se confundem, ou melhor, se fundem numa só obra (artística e filosófica). Esta fusão não se dá no nível do objeto, mas no nível da leitura que ambas fazem do objeto. São produções riquíssimas em reflexão e sensibilidade, que comprovam uma comunhão profunda de arte e de filosofia. São momentos em que o filósofo se expressa pela arte, exterioriza sua filosofia, sua leitura da realidade e a reflexão que sobre ela, através dos canais que a arte lhe proporciona: música, poesia, romances, etc. E momentos em que o artista, na expressão de sua sensibilidade, na abrangência de sua leitura do real, não simplesmente codifica a realidade segundo seu próprio caráter artístico, mas faz desta produção de arte também uma produção filosófica, ou seja, expressa pela sua sensibilidade questões objetivas, que podem ser avaliadas sob o ponto de vista filosófico, que servem de reflexão, de crítica ao social. Quando esta comunhão é profunda, fica difícil de se saber se é uma obra de arte filosófica ou uma filosofia artística. (RHEIN SHIRATO: 1987, 41) 34 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo PARTE III FILOSOFIA: SUA PROBLEMÁTICA 35 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O objetivo dessa terceira parte é familiarizar-se com os principais temas ou problemas da Filosofia e também com as principais disciplinas que têm por objeto esses temas, ou seja, essa parte deseja ser uma introdução às disciplinas ou áreas filosóficas. IDENTIFICAÇÃO DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS A Filosofia se refere à necessidade de o homem compreender-se a si mesmo (homem), sua existência no mundo (mundo) e à causa de sua existência no mundo (Deus). Esses três assuntos básicos podem ser desdobrados em muitas outras questões correlativas: Homem: a natureza humana, a alma, a razão, a liberdade, as emoções, o conhecimento humano, a sociedade humana, as normas e condutas, a educação, a cultura, etc. Mundo: matéria, vida, universo, ecologia, sociedade, cultura, etc. Deus: existência do Absoluto, natureza de Deus, relação Deus-mundo, mal, etc. ORGANIZAÇÃO DOS TEMAS FILOSÓFICOS A grande referência para compreender a organização dos temas filosóficos, ou seja, suas áreas e objetos de análise, são as obras de Aristóteles. Podemos dividir a problemática filosófica nos seguintes grandes temas: A natureza humana (Antropologia Filosófica) O pensamento humano (Lógica) O conhecimento humano (Teoria do Conhecimento) A ação humana (Ética) A emoção humana (Estética) A sociedade humana (Filosofia Social) O ser material (Cosmologia) O ser absoluto (Teodiceia) O ser em si (Metafísica) A educação humana (Filosofia da Educação) 36 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 1. A NATUREZA HUMANA: ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA 1.1 A QUESTÃO DO HOMEM NA FILOSOFIA Que é o homem e para que serve? Que mal ou que bem pode ele fazer? (Eclo 18,7) A questão “O que é o homem?” é uma interrogação profundamente natura e existencial, da qual se ocupa a religião, a sabedoria popular, a literatura, a arte e, particularmente, a Filosofia. A interrogação de todas as interrogações para a humanidade – o problema que subjaz a todos os outros e que mais que qualquer outro suscita o nosso interesse – é a determinação do lugar que o homem ocupa na natureza e das suas relações com o universo das coisas. De onde provém a nossa espécie? Quais são os limites do nosso poder sobre a natureza e do poder da natureza sobre nós? Qual o fim para o qual caminhamos? Esses são os problemas que se deparam novamente e com imutável interesse a cada homem que vem ao mundo. (HUXLEY, T. Man’s Place in Nature and Other Essays. Londres. 1963) O progresso científico e técnico não resolveu esta interrogação. Pelo contrário, a tornou mais aguda. Na história de mais de dez mil anos nós somos a primeira época na qual o homem tornou-se para si mesmo radicalmente e universalmente problemático: o homem não sabe mais quem ele é e se dá conta de não poder sabê-lo. (SCHELER, M. Cosmovisões Filosóficas) Esta interrogação se fundamenta na profunda ambigüidade do ser humano: Por um lado, o homem tem consciência de sua superioridade, grandeza e dignidade. Por outro lado, ele tem consciência de sua profunda fraqueza e fragilidade. De um lado, o homem é um ser racional, capaz de amar e de atos nobres. Por outro, ele é inclinado a atitudes irracionais, capaz de violência e destruição. 1.2 A NATUREZA ESPECÍFICA DO HOMEM A questão principal aqui é: O que constitui o “proprium” do homem? O que é específico do ser humano? O que distingue propriamente o homem de todo outro ser? Algumas propriedades características do homem são comuns aos animais (características orgânicas, reprodução, etc.); outras características são semelhantes, porém, mais complexas e aperfeiçoadas (comunicação simbólica, inteligência, sociabilidade, códigos de comportamento, etc.); outras características ainda parecem ser exclusivas do homem (religião, arte, ciência, cultura, etc.). 37 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Afinal, o homem difere dos animais apenas em grau de perfeição ou difere essencialmente de todo outro ser? O que fundamenta a diferença essencial do homem? O que é que fundamenta as propriedades e as características exclusivas do homem? 1.2.1 Conceitos históricos da natureza humana 1.2.1.1 Filosofia grega Para a Filosofia grega, o homem possui uma diferença específica, pelo fato de possuir uma entidade que lhe é própria: a alma espiritual. Esta concepção grega foi plenamente aceita pela cultura cristã, porque se prestou melhor para explicar a dignidade própria da pessoa humana, sua imortalidade, etc. a) Platão: Para o pensador, a verdadeira essência do homem está na alma espiritual; ele apresenta, então, um dualismo antropológico fortíssimo. O dualismo corpo-alma é concebido por Platão como uma oposição entre positividade e negatividade entre bem e mal. O corpo é, por conseguinte, entendido de alguma forma como a sede do mal. A partir disso, conclui-se que o ideal ético platônica seja o cultivo da alma (razão), o que se trata da “libertação do corpo”. A alma é algo totalmente diferente do corpo e o que importa na vida de cada um de nós é a alma e só a alma e que o corpo não é senão uma sombra ou imagem que nos acompanha... enquanto que o próprio e verdadeiro ser de cada um de nós, a chamada alma, se encaminha aos deuses para prestar contas de si... (Platão, Leis) b) Aristóteles: Pretende corrigir o dualismo platônico e afirmar a unidade do homem. O corpo e a alma não são duas substâncias, dois seres, mas dois princípios do homem. A alma é a “forma” (princípio da vida, da animação) do corpo material; a vida se manifesta em três graus: vida vegetativa, sensitiva e intelectiva (esta é exclusiva do homem, um princípio totalmente espiritual). A verdadeira essência da alma é a razão (homem = animal racional) e o ideal humano é o exercício da razão, ou seja, o intelectualismo. 1.2.1.2 Filosofia cristã medieval A cultura cristã assumiu desde cedo o conceito grego do homem, especialmente o conceito de “alma”; e isso porque seria mais de acordo com a Revelação, servindo para fundamentar a dignidade da pessoa humana, suas atividades espirituais, sua imortalidade, etc. 38 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo a) Santo Tomás de Aquino: no início a cultura cristã assumiu, em termos filosóficos, o platonismo. Tomás de Aquino prefere Aristóteles: assume a doutrina aristotélica e a completa em alguns pontos (principalmente nos pontos em que a doutrina do Estagira era vacilante, como, por exemplo, a imortalidade da alma). A alma se origina por criação especial de Deus (os pais não participam da geração da alma), pois ela é imortal. Ela – a alma – age em estreita unidade com o corpo (união substancial), embora tenha uma atividade própria, independente do corpo: o pensamento. Essa idéia é o fundamento para a sua argumentação sobre a imortalidade da alma, ou seja, tudo o que tem atividade própria tem subsistência própria. A doutrina tomista do homem se tornou clássica, foi aceita pela Igreja Católica (e consequentemente para o cristianismo como um todo) e teve uma longa tradição na história do cristianismo até os dias de hoje. 1.2.1.3 Filosofia Moderna A partir da Idade Moderna surgiram, dentro da cultura filosófica, diversas outras idéias sobre a natureza humana, algumas delas em continuidade com a tradição cristã, outras independentes e até em oposição à tradição cristã (materialismos). a) Descartes: propõe um dualismo radical, ou seja, o homem é composto de duas substâncias totalmente heterogêneas: “res extensa” (matéria) e “res cogitans” (mente). Essas substâncias são incomunicáveis; a vida é mecânica (não provém de um princípio superior) e ele instaura, na tradição filosófica, um grande problema da relação entre mente e corpo. b) La Mettrie: defende uma visão totalmente materialista-mecanicista do homem: o homem é apenas uma “máquina” física muito sofisticada. A alma nada mais é que uma palavra vazia... o homem é uma máquina e em todo o universo só existe uma única substância, diversamente modificada, a substância material. Os corpos animados têm tudo o que lhes é preciso para se mover, sentir, pensar, se arrepender, em suma, se comportar tanto na vida física como na vida moral, que dela depende. (J. La Mettrie, O homem máquina) Da mesma forma, um outro filósofo, contemporâneo seu, Holbach, escrevia: O homem é puramente físico: o ser espiritual nada mais é do que esse mesmo ser físico considerado do ponto de vista particular, isto é, relativamente a algum de seus modos de agir, devidos à sua particular organização. Mas essa mesma organização não será talvez obra da natureza? E os movimento ou a capacidade de agir de que é suscetível não serão talvez físicos? As suas ações visíveis, bem como os movimentos invisíveis excitados em seu interior, provenientes das vontades ou do pensamento, são igualmente efeitos naturais, consequências 39 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo necessárias do seu mecanismo específico e dos impulsos que recebe dos seres pelos quais é circundado? (REALE & ANTISERI: 2006d, 725) c) Marxismo: possui uma concepção inteiramente materialista do homem, o qual é visto como um produto superior da natureza, um resultado do processo interno da matéria, em perpétuo movimento. Segundo a corrente marxista, a “hominização” se dá pelo trabalho; é no trabalho que o homem transforma a natureza física e, simultaneamente, transformar a própria natureza. Pelo trabalho o homem modifica a sua natureza e desenvolve as suas faculdades latentes: o trabalho criou o homem. (Karl Marx em O Capital) d) Evolucionismo de Darwin: Em 1871 Charles Darwin publicou o livro “A Ascendência do Homem” e nele defende as seguintes idéias: o homem descende de uma linhagem préhumana, por evolução biológica; o homem é inserido na linhagem animal, se torna um produto da dinâmica da vida no universo; todas as suas características surgem pelo jogo interno da evolução. 1.2.1.4 Filosofia Contemporânea A Filosofia Contemporânea compreende os séculos XIX até os dias de hoje. Nela temos diversas reações ao materialismo antropológico (Fenomenologia, Existencialismo, Personalismo, etc.). a) Max Scheler: Max Scheler é autor do livro “O lugar do homem no Cosmos” (1928), uma obra que recupera a análise da natureza específica do homem, uma obra que instaura, de maneira sistemática, a reflexão antropológica na Filosofia. Nesta obra, Scheler propõe as seguintes teses: rejeita a ideia da “alma”, pois o próprio homem é o “espírito”; apresenta as notas características do “espírito”: autonomia e liberdade frente aos impulsos internos e frente ao meio, poder de objetivação (sobretudo a ideação), atualidade pura (contra a substancialidade da alma), idéia do supremo (religião/Deus). 1.3 AS CAPACIDADES FUNDAMENTAIS DO HOMEM São muitas e muito diversificadas as capacidades do homem, estão em permanente dinâmica de transformação e evolução: capacidade de conhecimento em grau superior, formar 40 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo idéias, criar ciência, técnicas, arte, cultura, capacidade de interrogar-se sobre sentidos, fins e sobre o absoluto (filosofia, religião, etc.); capacidade de linguagem simbólica, capacidade de criar relações sociais complexas, criar organizações e instituições sociais; capacidades de pensar a própria conduta, criar códigos de comportamento (Ética, Direito, etc.). A partir dessa grande lista de capacidades, a tradição filosófica (de modo muito diversificado) destaca duas capacidades fundamentais do homem (as quais são designadas com o termo “faculdades”): a inteligência e a vontade, que são chamadas “duas faculdades fundamentais do homem”. 1.3.1 A inteligência (intelecto, razão) É a faculdade do conhecimento e seu objeto formal é a verdade e seu termo é a ciência (no sentido lato). Na tradição filosófica são muito diversificados os conceitos de “intelecto” e “razão”, seu modo de operar, seu alcance; o tema coincide, na realidade, com a Teoria do Conhecimento, a qual veremos mais adiante. 1.3.2 A vontade É a faculdade “apetitiva” ou “tendencial”, que se traduz no “sentir” e no “querer” e seu objeto formal é o bem. A vontade é geralmente definida pelo atributo “livre”; vontade livre é o poder de escolha e decisão (livre arbítrio). Assim como a questão do intelecto, o conceito de vontade e sua delimitação foram uma das questões mais debatidas na Filosofia. 1.3.3 A liberdade A liberdade é um dos assuntos mais importantes da filosofia antropológica. Não podemos negar que a “liberdade” é uma das paixões humanas; é destacada na política, na literatura, na imprensa, na música, etc. Trata-se de liberdade política, liberdade de expressão, liberdade de mercado (economia), liberdade sexual, libertação, liberalismo, neoliberalismo, filosofia da libertação, teologia da libertação, etc. Mas o que é, exatamente, a liberdade num sentido mais fundamental? A liberdade se define pelo quê? É o ser humano realmente livre? 41 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A Antropologia Filosófica trata do conceito fundamental de liberdade: o homem é um ser livre, autônomo em seus atos? Ou, pelo contrário, é ele um “autômato”, um ser inteiramente “programado”, que age por necessidade interna? Em que consiste a liberdade fundamental? Liberdade, no sentido mais fundamental do termo, inclui três aspectos: Ausência de coação externa (liberdade como ausência de coação por parte de fatores externos). Ausência de coação interna ou de necessidade interior (liberdade como ausência de coação por parte de fatores internos, situados na consciência ou na mente do indivíduo). Autonomia da vontade em relação aos próprios atos e domínio sobre eles (os atos procedem unicamente da vontade, que pode, em igual possibilidade, pô-los ou não). Liberdade é a capacidade de decidir-se a si mesmo para um determinado agir ou sua omissão, respectivamente para este ou aquele agir. (RABUSKE: 1973, 89) Às vezes os atos da vontade são autônomos em relação ao intelecto, ou seja, o intelecto delibera e a vontade decide. Se a deliberação pertence ao intelecto, a decisão pertence à vontade. Esta, interrompendo porventura o percurso deliberativo, inaugura algo de novo, corta com a continuidade deliberativa, sem, todavia, intrometer-se na esfera própria do entendimento, uma vez que o campo específico da vontade é a atuação. No querer concreto, o homem pode mesmo não seguir sempre o juízo que o entendimento lhe apresenta como o melhor – por muitos motivos. Permanece, portanto, no ato da escolha um fundo radicalmente inacessível à penetração racional. (SOUZA TEIXEIRA, M. Liberdade in Logos: 1992, 365) E como se estabelece a problemática do determinismo? O determinismo é a negação da liberdade fundamental da vontade. Existem, de modo geral, os seguintes tipos de determinismos: Determinismo biológico: o homem é determinado pela sua estrutura física e orgânica, principalmente pela estrutura genética. Determinismo psicológico: o homem é condicionado e determinado pelas estruturas psíquicas (inconsciente, superego, etc.) Determinismo sociológico: o homem é pré-determinado pela estrutura social, é um produto da sociedade. Determinismo metafísico: a própria vontade em si é pré-determinada pela necessidade do ser: todos os atos humanos são necessários. 42 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 1.4 OUTROS ASSUNTOS DA FILOSOFIA DO HOMEM Podemos citar ainda as seguintes problemáticas: A dimensão humana da linguagem. A dimensão social humana. A dimensão transcendental humana. A questão da morte e da imortalidade. 1.5 A DISCIPLINA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA A Antropologia Filosófica é a disciplina da Filosofia que trata das questões fundamentais referentes ao ser humano. 1.5.1 As diversas antropologias Antropologia Física: é uma ciência biológica, cujo objeto é a estrutura orgânica do homem, as classificações étnicas, etc. O tema específico de estudo é a evolução humana. Antropologia Cultural: ciência que estuda o desenvolvimento cultural humano. O campo dessa disciplina especial é vastíssimo, pois ela se propõe estudar a obra humana. Ora, essa obra que se denomina cultura é este conjunto complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade. (MELO, L.G. Antropologia Cultural. Petrópolis. 1982. p. 37) Antropologia Teológica: ciência teológica que considera o homem a partir dos dados da revelação e da fé. Antropologia Filosófica: disciplina filosófica que trata das questões fundamentais referentes ao ser humano. 1.5.2 A antropologia clássica: a “Psicologia Racional” “Psicologia Racional” é um termo criado por Wolff, no século XVII e analisa tradicionalmente o homem, baseado na filosofia aristotélico-tomista, ou seja, com ênfase na “alma”. A estrutura básica da Psicologia Racional assim se estabelece: Faculdades da alma: intelecto e vontade. 43 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Natureza da alma: simplicidade, espiritualidade, unidade. Imortalidade da alma. União substancial: união da alma com o corpo. 1.5.3 Antropologia Filosófica: origem O termo “Antropologia Filosófica” surgiu com a obra de mesmo nome do filósofo Erns Cassirer (1944). Aos poucos, os cursos que possuíam a disciplina “Psicologia Racional” foram substituindo o nome por “Antropologia Filosófica”, sendo este um tratado mais amplo e mais abrangente sobre o homem do que a outra. A Antropologia Filosófica, como disciplina filosófica autônoma e sistemática, surgiu no nosso século. Trata-se de um movimento filosófico surgido na década de 20, que a si mesmo deu o nome de “Antropologia Filosófica”. Os seus principais representantes são: Max Scheler (A posição do homem no Cosmos – 1928), Helmuth Plessner (O estofo do orgânico e o homem – 1928) e Arnold Gehlen (O homem: sua natureza e seu lugar no mundo – 1928) (RABUSQUE: 1973, 14) 1.5.4 Antropologia Filosófica: determinação O fundamental da tarefa da Antropologia Filosófica é a apreensão da estrutura essencial do homem. (JOLIF, A. Compreender o Homem. São Paulo. 1975. p. 136) Entende-se por antropologia Filosófica a reflexão acerca do homem e de sua natureza. Assim, a tarefa da Antropologia Filosófica é o questionamento acerca do homem, do lugar que ele ocupa no Universo e de sua função como fazedor da história e criador de culturas. A Antropologia Filosófica levanta, dessa forma, as seguintes questões: O que é o homem? O que sou eu? Por que é o ser humano diferente do resto da natureza? O que significa dizer que todos os homens são irmãos e são iguais? Existe, na verdade, o que comumente se chama de “natureza humana”? (OLIVEIRA: 1990, 119) 1.5.5 Antropologia Filosófica: conteúdo básico Resumindo, a Antropologia Filosófica trata de: A natureza humana: corpo e alma, razão, vontade, liberdade, etc. A origem humana: questões científico-filosóficas sobre a evolução. As dimensões humanas fundamentais: linguagem, sociabilidade, historicidade, transcendência, etc. Morte e imortalidade. 44 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 2. O PENSAMENTO HUMANO: LÓGICA 2.1 A PROBLEMÁTICA DO PENSAR O homem é um ser que pensa e seu atributo mais próprio é o pensamento. Entretanto, algumas questões podem surgir dessa afirmação: Como pensamos? Existem regras para o pensamento? O pensamento é uma atividade totalmente espontânea, sem nenhuma regra? Cada um pensa do jeito que quer ou há formas de pensamento que devem ser seguidas? Existe o “bom” e o “mau” pensamento? Existe o pensamento certo e o pensamento errado? Evidentemente o pensamento é muito subjetivo e pessoal: cada ser apresenta o seu modo de pensar, o qual depende da cultura, das condições psicológicas, condições sociais, do temperamento e até mesmo da sexualidade. No entanto, podemos observar que existem certas formas de pensar que consideramos “certas” e outras que consideramos “erradas”. Frequentemente percebemos contradições, falta de ordem, de continuidade no pensamento... Enfim, percebemos naturalmente que o pensar segue certas formas, ou possui certas formas, existe uma estrutura no pensamento humano como tal, independentemente do grau de cultura (um homem simples pode pensar muito bem...), de sexo, de condições econômicas, etc. A Filosofia desde cedo (na realidade desde os gregos) ocupou-se com o pensamento humano, com a estrutura do pensamento; a parte ou área da Filosofia que se ocupou disso, do pensamento humano, denominou-se LÓGICA . 2.1.1 Os elementos do pensar De que é composto o nosso pensamento? De que ele é feito? O primeiro elemento do nosso pensar são as palavras. Porém, “palavra” é “idéia”, “noção” ou “conceito”. O primeiro elemento do pensamento é o “conceito” e dele é estruturado todo o restante, todas as formas de pensamento (idéias, argumentos, criações, etc.). Vejamos algumas definições importantes em Lógica: 2.1.1.1 Conceito É também chamado de “idéia” ou “noção”. Trata-se de uma entidade mental simples que representa uma realidade. O conceito é sempre universal, isto é, aplicável a muitos objetos ou a um grupo de objetos. Para representar objetos individuais usamos “nomes”. 45 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Quanto mais conceitos somamos, menos objetos eles representam (“quanto maior a extensão, menor a compreensão”). 2.1.1.2 Juízo Também chamado de “proposição”, é a união de conceitos, através de um elemento de ligação (verbo “ser” ou “estar”), constituindo uma afirmação ou negação. Os juízos podem ser: afirmativos, negativos, contrários ou contraditórios. Entende-se por juízo qualquer tipo de afirmação ou negação entre duas idéias ou dois conceitos. Ao afirmarmos, por exemplo, que “este livro é de filosofia”, acabamos de formular um juízo. O enunciado verbal de um juízo é denominado proposição. (COTRIM: 1993, 306) 2.1.1.3 Raciocínio É a união de juízos, estabelecendo relação entre eles, para tirar uma inferência ou conclusão. É pensamento na forma mais completa. Raciocínio é processo mental que consiste em coordenar dois ou mais juízos antecedentes em busca de um juízo novo, denominado conclusão ou inferência. (COTRIM: 1993, 306) Os raciocínios podem ser de diversos tipos. Citamos os seguintes, a título de exemplo: Dedução: o raciocínio dedutivo é tirar uma conclusão do universal para o particular (o que ocorre frequentemente na matemática). A dedução pode ser expressa ou implícita; expressa quanto a conclusão está contida na proposição universal (premissa) e a inferência é absolutamente clara; implícita quando ela conduz a um conhecimento relativamente novo, que não está contido na premissa. Indução: o raciocínio indutivo é o contrário da dedução: extrair uma conclusão do particular para o universal. As conclusões da indução não são tão necessárias e rigorosas como na dedução, pode haver erro, elas envolvem uma “probabilidade”. No entanto, são amplamente usadas pelo pensamento humano, especialmente na ciência (as leis científicas são todas indutivas); foi por causa da indução que a ciência se tornou muito fecunda. Analogia: o raciocínio analógico é tirar uma conclusão do particular para o particular por meio de uma relação de semelhança. A conclusão da analogia tem grau ainda menor que a indução, mas também é amplamente usada (tiramos frequentemente conclusão do semelhante para o semelhante) e é também empregada na ciência. Classificação: agrupamento de conceitos segundo determinados critérios. Definição: é descrever ou caracterizar um objeto, identificando seu atributo essencial (ou atributos essenciais). Atributo é o que faz uma coisa ser o que é e cuja ausência impediria a coisa ser tal. As definições podem ser: 46 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 1. Definição essencial: é a definição no sentido próprio; apresenta os principais constituintes de algo, aquilo que faz com que seja aquilo que é. 2. Definição causal: define um objeto pela sua causa. 3. Definição descritiva: define descrevendo as qualidades de um objeto. 4. Definição exemplar: define citando um exemplo. 1. A definição deve ser mais clara que o termo a ser definido. Deve-se evitar a metáfora, a ilustração, o equívoco ou expressões ambíguas. Outrossim, o termo a ser definido não deve incluir-se na definição. 2. Deve ser breve. Deve-se evitar qualquer redundância (dizer o máximo com menos palavras possíveis). 3. Não deve ser negativa. Trata-se de afirmar aquilo que é. 4. A definição e o termo a ser definido devem ser conversíveis. Por exemplo, de “o ser humano é um animal racional”, deve seguir-se que “um animal racional é ser humano”. 5. Consiste em gênero próximo e diferença específica. Trata-se da definição essencial, ideal. 6. Deve ser universal, pois aponta a essência, ou seja, aquilo que se predica de todos os indivíduos ou particulares. O singular não se define, descreve-se. (GILES: 1995c, 16-17) 2.2 LÓGICA A palavra “lógica” provém do termo grego “logos”, o que significa tanto “palavra” como “razão”. Assim, lógica tem a ver com palavras e com razão. Ao usarmos as palavras lógica e lógico, estamos participando de uma tradição de pensamento que se origina na Filosofia grega, quando a palavra “logos” – significando linguagem-discurso e pensamento-conhecimento – conduziu os filósofos a indagar se o “logos” obedecia ou não a regras, possuía ou não normas, princípios e critérios para seu uso e funcionamento. A disciplina filosófica que se ocupa com essas questões chama-se Lógica. (CHAUÍ: 1995, 180) 2.2.1 Lógica: objeto A Lógica é uma ciência racional, não só porque procede da razão, característica comum de todas as artes e de todas as ciências, mas também porque tem o próprio ato da razão como matéria de seu estudo. (São Tomás de Aquino, Anal. Post. 1) A Lógica, portanto, tem por objeto a razão, a estrutura interna da razão; mais precisamente dizendo, a Lógica em por objeto o “ato da razão”, isto é, o pensamento. Assim, ela trata da formulação correta do pensamento, pois a mente ou a inteligência humana é, naturalmente, lógica. Lógica é a ciência ou propedêutica científica que tem por objetivo o estudo da razão, entendida como pensamento e como palavra e a determinação de suas formas e de suas leis. 47 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 2.2.2 O fundador da Lógica Formal Segundo Sextus Empiricus, a palavra “Lógica” teria sido empregada, pela primeira vez, não por Aristóteles, mas pelo acadêmico Xenócrates. De acordo com W.D. Ross, Alexandre foi o primeiro escritor a empregar o termo “logiké”, no sentido de lógica. O termo utilizado por Aristóteles, para designar o estudo do raciocínio, é “analítico”. O Estagirita, no entanto, embora possa não ter sido o primeiro a empregar o vocábulo, é unanimemente reconhecido como o fundador da Lógica, seu maior título de glória. No século II d.C., Alexandre de Afrodísia reuniu as obras lógicas de Aristóteles sob a designação geral de “Organon”, com a qual passaram a ser conhecidas. O Organon aristotélico inclui os seguintes tratados: Categorias, Da Interpretação, Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Tópicos e Argumentos Sofísticos. A seqüência desses tratados corresponde à divisão do objeto da Lógica, que estuda as três operações da inteligência, o conceito, o juízo e o raciocínio. (CORBISIER: 1987: 166) A Lógica de Aristóteles, aquela de suas obras que tem por título “Organon”, não só é a primeira sistematização na filosofia ocidental, como foi, durante muitos séculos, padrão, modelo e texto permanente. (VIEIRA, A. Introdução à Filosofia. Coimbra. 1981. p. 107) 2.2.3 Lógica: uma ciência formal A lógica formal distingue os raciocínios verdadeiros dos raciocínios falsos, independentemente do seu conteúdo. Não se preocupa com a matéria sobre a qual se apóia o raciocínio, ma apenas com a forma. (CHARBONEAU, E. Curso de Filosofia: Lógica e Metodologia. p. 19) A Lógica é também definida como “a ciência do pensamento formal”. “Formal” significa aqui o pensamento em si, independentemente de sua referência à realidade. Trata-se das formas de pensar e não do conteúdo do pensar. A lógica trata da correção do pensamento e não de sua verdade; ela não analisa se um pensamento é verdadeiro ou não, mas apenas se se apresenta de forma correta ou errada. A Lógica Formal examina as características das idéias com a finalidade de estabelecer as normas de argumentação correta. Diz-se “formal” justamente porque o que lhe interessa são as características das ideias e não os seus conteúdos. Daí decorre que as normas por ela fixadas asseguram a correção do discurso, mas não a sua verdade. (MONDIN: 1980, 12) Existe uma série de regras para a formulação do raciocínio, como também uma série de formas ou tipos de silogismos. 2.2.4 Lógica: uma ciência propedêutica 48 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A Lógica não é considerada como propriamente uma parte da Filosofia, um ramo filosófico, mas uma condição para a Filosofia e para todas as ciências, ou seja, ela é um instrumento do reto pensar. Para Aristóteles, a Lógica não é propriamente uma ciência, mas um instrumento, um organon, do qual todas as ciências se utilizam, uma propedêutica de qualquer ramo do conhecimento epistemológico. De fato, o conhecimento só é científico, ou epistemológico, quando, além de universal, é também metódico e sistemático, quer dizer, lógico. Distinguindo-se das demais ciências, a Lógica se apresenta não só como método, ou “caminho”, que as ciências trilham para encontrar e conhecer seu objeto, mas também como característica geral ou “forma” do “conhecimento científico”. (CORBISIER: 1987, 167) A Lógica, de certo modo, mais que ciência filosófica, é um instrumento introdutório e necessário para a filosofia e as ciências (non est tam scientia quam scientiae instrumentum). (São Tomás de Aquino. Metaphisica I, 1 (32); I,3 (57)) 2.2.5 Lógica: sua caracterização Para Aristóteles, a lógica não era uma ciência teorética, nem prática ou produtiva, mas um instrumento para as ciências. Eis por que o conjunto das obras lógicas aristotélicas recebeu o nome de “Organon”, palavra grega que significa instrumento. A Lógica pode se caracterizar como: Instrumental: é o instrumento do pensamento para pensar corretamente e verificar a correção do que está sendo pensado. Formal: não se ocupa com os conteúdos pensados ou com os objetos referidos pelo pensamento, mas apenas com a forma pura e geral dos pensamentos, expressas através da linguagem. Propedêutica: é o que devemos conhecer antes de iniciar uma investigação científica ou filosófica, pois somente ela pode indicar os procedimentos (métodos, raciocínios, demonstrações) que devemos empregar para cada modalidade de conhecimento. Normativa: fornece princípios, leis, regras e normas que todo pensamento deve seguir se quiser ser verdadeiro. Doutrina da prova: estabelece a condições e os fundamentos necessários de todas as demonstrações. Dada uma hipótese, permite verificar as consequências necessárias que dela decorrem; dada uma conclusão, permite verificar se é verdadeira ou falsa. Geral e temporal: as formas do pensamento, seus princípios e suas leis não dependem do tempo e do lugar, nem das pessoas e circunstâncias, mas são universais, necessárias e imutáveis como a própria razão. (CHAUÍ: 1995, 183) 49 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3. O PROBLEMA DO CONHECIMENTO: TEORIA DO CONHECIMENTO 3.1 O CONHECIMENTO COMO QUESTÃO FILOSÓFICA A filosofia, no correr dos séculos, se preocupou com o conhecimento, formulando a esse respeito várias questões: Qual a origem do conhecimento? Qual a sua essência? Quais os tipos de conhecimento? Qual o critério da verdade? É possível o conhecimento? (ARANHA& MARTINS: 1985, 96) São, portanto, várias as questões que se pode colocar sobre o conhecimento e que são assunto da Filosofia. Citamos como exemplos: Espécies de conhecimento: o conhecimento é um só ou pode ser diferenciado em tipos? Existe só uma espécie de conhecimento ou mais de uma? Natureza do conhecimento: o que é conhecer? Conhecer é reproduzir ou criar a realidade? Alcance do conhecimento: até onde alcançam os nossos conhecimentos? Conhecemos só o que podemos perceber pelos sentidos ou podemos conhecer algo além da percepção dos sentidos? Validade e verdade do conhecimento: quais são os critérios da verdade? Como distinguir a verdade da falsidade? São essas e outras questões filosóficas sobre o conhecimento que são tratadas numa disciplina chamada “Teoria do Conhecimento” ou “Gnosiologia”. 3.1.1 Conhecimento: um pequeno panorama histórico Embora o problema do conhecimento tenha preocupado os filósofos desde a Antiguidade, somente a partir da Idade Moderna a teoria do conhecimento adquiriu grande importância, passando a ser tratada como uma das disciplinas centrais da filosofia. Para esse processo de valorização da teoria do conhecimento contribuíram, de forma decisiva, as obras do filósofo francês René Descartes (1596-1650), do filósofo inglês John Locke (1632-1704) e do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). (COTRIM: 1993, 70) 3.1.1.1 Platão Para Platão, o conhecimento é uma recordação, pois conhecer é recordar. O verdadeiro conhecimento é inato em nós, não precisamos confiar em nossos sentidos para obter conhecimento sobre o mundo. O verdadeiro conhecimento é formado por conceitos (idéias que já estão em nossa mente), e não por informações (idéias que chegam até nós por meio dos sentidos). (RAEPER, W. & SMITH, L. Introdução ao estudo das Idéias. p. 19) 50 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3.1.1.2 Aristóteles Aristóteles contesta Platão, afirmando que nossa alma (mente) não possui nenhum conhecimento ou idéias inatas (somos uma “tabula rasa”). Todo conhecimento é adquirido pela experiência sensorial (nihil est in intellectus quod prius in sensibus non erat). Temos, além dos sentidos, uma faculdade superior: a inteligência, que elabora o material dos sentidos e forma um outro tipo de conhecimento: o conhecimento intelectual (ou intelectivo). O trabalho básico da inteligência é a abstração: da imagem individual a inteligência tem o poder de captar uma idéia universal (o conceito). Em seguida, a inteligência liga conceitos em juízos, raciocínios, etc.; isso se chama ciência, obra do intelecto. 3.1.1.3 Racionalismo Aqui estamos no século XVII. O racionalismo é uma volta ao platonismo. A inteligência possui idéias próprias, inatas e independentes da experiência sensorial (ideias matemáticas, da alma, de Deus, etc.). Essas idéias são o fundamento da verdadeira ciência e não a experiência sensorial, que não é confiável. 3.1.1.4 Empirismo Corrente filosófica dos séculos XVII e XVIII que propõe uma volta ao aristotelismo. Não há idéias inatas, todo o conhecimento provém da experiência sensorial. A única fonte de conhecimento é a experiência dos sentidos. 3.1.15 Kant Pensador alemão do século XVIII, pretende ser uma síntese entre o Racionalismo e o Empirismo. Para ele, não há idéias inatas, mas categorias da mente, pelas quais elaboramos o material da experiência sensorial. Por exemplo: as categorias de “espaço” e “tempo” são próprias da mente. Essas categorias elaboram o material indeterminado (“fenômeno”), que vem da experiência dos sentidos: em si, sem o material dos sentidos, as categorias são “vazias”, não têm conteúdo nenhum, são apenas “formas” para elaborar o material dos sentidos; por outro lado, o fenômeno (material dos sentidos) se não for elaborado pelas “categorias”, não é compreendido. O conhecimento, portanto, é, ao mesmo tempo, objetivo (porque seu conteúdo vem de fora: o “fenômeno”) e subjetivo (porque a mente acrescenta algo de si, “enquadra” o material dos sentidos). O nosso conhecimento só provém dos sentidos (“fenômenos”), mas estes “fenômenos” são elaborados pela inteligência. 51 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A inovação de Kant consiste em afirmar que a realidade não é um dado exterior ao qual o intelecto deve se conformar, mas, ao contrário, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que “aparece” para nós e, portanto, de certa forma participamos da sua construção. (ARANHA & PIRES: 1985, 178) Tal como Copérnico dissera que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele, também Kant afirma que o conhecimento não é o reflexo do objeto exterior: é o próprio espírito que constrói o objeto do seu saber. Nesse sentido, dizemos que Kant realizou uma “revolução copernicana”. (ARANHA & PIRES: 1985, 179) Outra afirmação de Kant: o nosso conhecimento se limita aos “fenômenos”: conhecemos as coisas tal como elas se apresentam aos sentidos. Não podemos conhecer as coisas como são em si, independentemente de nós (o “noumenon”). Muito menos há conhecimento de objetos que não são fenomênicos (negação da Metafísica como ciência). 3.2 TEORIA DO CONHECIMENTO 3.2.1 Teoria do Conhecimento: objeto A Teoria do Conhecimento é uma reflexão filosófica com o objetivo de investigar as origens, as possibilidades, os fundamentos, a extensão e o valor do conhecimento. (COTRIM: 1993, 70) A Gnosiologia (grego: “gnosis” = conhecimento + “logia” = ciência) estuda a essência do conhecimento, a possibilidade de conhecer a realidade, as origens ou fontes de conhecimento, as formas ou espécies em que se reveste o conhecimento, bem como a validade do conhecimento em geral, isto é, o que é a verdade e qual o seu critério. (BAZARIN: 1985, 41) A Teoria do Conhecimento visa analisar a estrutura mental humana enquanto estrutura cognitiva, a qual tem duas funções básicas: a percepção e o entendimento. Os elementos da estrutura mental são: a sensibilidade (sentidos), a memória, a imaginação e o intelecto. O objeto da Teoria do Conhecimento é, portanto, o ato de conhecer humano. Envolve diversos aspectos: Possibilidade do conhecimento. Natureza (essência) do conhecimento. Origem (fontes) do conhecimento. Espécies de conhecimento. Validade do conhecimento (questão da verdade). Embora o problema do conhecimento tenha preocupado os filósofos desde a Antiguidade, somente a partir da Idade Moderna a teoria do conhecimento adquiriu grande importância, passando a ser tratada como uma das disciplinas centrais da filosofia. Para esse processo de valorização da teoria do conhecimento contribuíram, de forma decisiva, as obras do filósofo francês René Descartes (1596-1650), do filósofo inglês John Locke (1632-1704) e do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). (COTRIM: 1993, 70) 52 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3.2.2 Teoria do Conhecimento: diferenciação da Lógica Entretanto, se perguntássemos a diferenciação entre Lógica e Teoria do Conhecimento, o que poderíamos ressaltar? Vejamos: A Lógica trata do conhecimento em si, internamente (melhor dizendo: do pensamento), sua estrutura, sua correção, sem considerar a sua referência a um objeto; a Teoria do Conhecimento trata do conhecimento enquanto referido a um objeto. A lógica trata do conhecimento (pensamento) no aspecto formal (forma, estrutura), sem ater-se propriamente ao seu conteúdo; a Teoria do Conhecimento trata do conhecimento no aspecto material, isto é, seu conteúdo. A Lógica trata, enfim, do pensamento (pensamento é sempre uma operação mental); a Teoria do Conhecimento trata do conhecimento (conhecimento é sempre objetivo, sempre o conhecimento de alguma coisa). 3.2.3 Teoria do Conhecimento: conteúdo 3.2.3.1 Possibilidades do conhecimento É possível conhecer um objeto? É possível chegar à certeza no nosso conhecimento? Qual o alcance do nosso conhecimento? Até que ponto podemos, realmente, conhecer algo? A essas questões, temos as seguintes posições: Não: é a posição do ceticismo (não é possível um conhecimento certo); mas o próprio ceticismo absoluto é contraditório, pois ao afirmar que nada podemos conhecer, nos dá, automaticamente, um conhecimento (o nada conhecer)! Sim: temos a capacidade real de conhecer objetos (posição de Aristóteles, São Tomás, Fenomenologia, etc.). Em termos: é a posição do empirismo (limita o alcance do conhecimento, afirmando que somente podemos conhecer objetos dos quais temos experiência sensorial) e de Kant (somente podemos conhecer fenômenos, mas não as essências, a “coisa em si” dos objetos). 3.2.3.2 Natureza (essência) do conhecimento Aqui nos questionamos: O que significa “conhecer”? O que é determinante no conhecimento: o sujeito (consciência) ou o objeto? O conhecimento é “representação” ou “criação” do objeto? O objeto que está na nossa consciência é reflexo real ou é inteiramente construído pela mente? A essas questões, temos as seguintes posições: Filosofia clássica (realismo): o conhecimento é objetivo, a mente representa o objeto. Kant: o conhecimento é objetivo e subjetivo. 53 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Idealismo: o conhecimento é subjetivo, a mente cria o objeto. 3.2.3.3 Origem (fontes) do conhecimento Qual a origem ou fonte dos conhecimentos humanos: a experiência ou a razão? De onde tiramos os nossos conhecimentos: da experiência, da razão ou de ambas as fontes? A essas questões temos as posições abaixo: Empirismo: da experiência sensorial exclusivamente. Idealismo: da razão exclusivamente. Filosofia Clássica: de ambas as fontes. O universo do conhecimento não é uma cópia do universo objetivo, mas uma construção efetuada pela inteligência, a partir dos dados sensíveis e correspondentes, sob sua forma imaterial, às realidades da experiência... O universo do conhecimento é, pois, o universo real, mas apreendido pelo espírito, segundo o modo imaterial que lhe é próprio... Nosso saber tem sua origem nos dados sensíveis, e de outra parte, que a razão compõe, a partir desses dados, um universo inteligível. (COTRIM: 1993, 75) 3.2.3.4 Espécies (formas) de conhecimento O conhecimento humano é único ou existem diferentes tipos de conhecimento? De modo geral, distinguem-se as seguintes espécies: Conhecimento sensorial (sensível): percepção direta dos objetos pelos sentidos, mediado pela imagem sensível, sempre concreto e do individual. Conhecimento intelectual (intelectivo): conhecimento próprio da inteligência; pelo processo de abstração, mediado pelo “conceito” ou “idéia”; sempre universal, elemento da ciência. Conhecimento intuitivo: compreensão, captação direta, imediata e unitária do objeto, sem a mediação do conceito (a linguagem, porém, explicita-se pelo conceito). As posições com referência às formas de conhecimento assim se estabelecem: Empirismo: admite só o conhecimento sensorial, exclusivamente. Maioria dos filósofos: admite dois gêneros de conhecimento: o sensorial e o intelectivo. Intuitivo: alguns filósofos propõem um terceiro gênero de conhecimento: o intuitivo (Bergson, Scheler, etc.). 54 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 3.2.3.5 Validade (verdade) do conhecimento Quem julga que conhecemos tudo e que o conhecemos perfeitamente e que somos capazes de comunicar tudo o que conhecemos, comete um exagero não menor e não menos falso que o dos céticos. A verdade é que nas questões filosóficas nada é simples. Toda solução simples é uma solução falsa. E em geral é uma solução preguiçosa – como o é o ceticismo que nos livra de todo o dever de investigação longa e árdua, porque para ele nada há para investigar. A realidade é terrivelmente complexa e a verdade sobre ela também deve ser terrivelmente complexa. Só por um trabalho longo e árduo pode o homem apropriar-se de uma parte dela, não muito, mas sempre alguma coisa. (BOCHENSKI, J.M. Questões Filosóficas) 55 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 4. A AÇÃO HUMANA: ÉTICA 4.1 O AGIR HUMANO COMO PROBLEMA FILOSÓFICO Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral. Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade, covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral. Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imita-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral . Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacinas de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens às custas da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral . Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta? Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como se responsabilizar plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxílio de suas famílias (se as tiverem). Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo? Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo? Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela decisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar? 56 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la, julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer? Situações como essas – mais dramáticas ou menos dramáticas – surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral, mas também põem à prova nossa consciência moral , pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções. Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros. O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva. (CHAUÍ: 1995, 334-335) A preocupação pelo sentido da ação humana é talvez a mais evidente das questões humanas e, quiçá, a mais fundamental. É fato de experiência que a ação e o comportamento humano tenham a ver com certas regras e normas. Os pais ensinam aos filhos determinadas normas de comportamento; assim faz a escola; nós julgamos certas ações dos outros como corretas ou erradas. O questionamento em relação às ações humanas é muito amplo: Como eu devo agir? O que é licito e o que não é lícito fazer? O que constitui o bem e o que constitui o mal? O bem é apenas uma questão de opinião ou existem regras morais objetivas obrigatórias para todas as pessoas? A partir de que avaliar a ação humana? De que princípio ou modelo? Como se caracteriza uma vida “boa” e uma vida “imoral”? Esses questionamentos afetam praticamente a vida humana. Ninguém pode dizer a si mesmo e ao outro: “Faça o que quiser!, pois, assim, não haverá vida realmente humana, acaba-se com qualquer possibilidade de convivência e a própria existência humana perde todo o sentido. As normas de vida não são mecânicas nem são por si evidentes – elas envolvem a liberdade humana. Cabe ao homem descobrir, evidenciar e formular essas normas. Não são normas “genéticas”, como num animal: o homem é um ser livre e é na sua liberdade que ele descobre essas normas de vida. 57 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Numa colméia ou num formigueiro, cada regra é imposta pela natureza, é necessária; ao passo que na sociedade humana só uma coisa é natural: a necessidade de uma regra. (J. Maritain) Que regras e que normas? De onde elas procedem? Como elas se fundamentam e se justificam? Essa é a tarefa da Ética: ela é uma investigação sobre o fundamento das normas de vida e de convivência. 4.2 ÉTICA 4.2.1 Ética: conceituação Ética: do grego “ethos” (=costumes): filosofia dos costumes. Costume: práticas de vida habituais do homem. Moral: do latim “mos,moris” (=costume): filosofia dos costumes Moral Religiosa: moral fundamentada nos dados da Revelação ou nos princípios religiosos. Direito: ciência da legitimidade das ações e práticas humanas a partir de uma legislação estabelecida. De maneira geral, o Direito se refere sempre a um código escrito e a Mora/Ética se refere a um código não escrito. 4.2.2 Ética: os sistemas éticos na sua perspectiva histórica 4.2.2.1 Ética clássica O pioneiro da sistematização e fundamentação da Ética foi Aristóteles (Ética a Nicômaco). A essa parte da Filosofia que trata da ação humana, Aristóteles chamou de “Filosofia prática”. A obra aristotélica influencia a filosofia medieval cristã, principalmente São Tomás de Aquino, sua autoridade maior, que delineia o que chamamos de “Ética Clássica Ocidental”. A Ética clássica possui as seguintes características: ela se liga à Metafísica, mais propriamente à causalidade final. Todo ser é bom na medida em que realiza a sua essência e sua finalidade. Assim também o homem. Qual é a essência do homem? Ela está na sua alma intelectual: guiar-se pela razão nos seus atos é fundamentalmente agir moralmente. Mas como isso se dá concretamente? A vontade livre descobre na consciência uma lei natural que orienta os seus atos. Para Aristóteles, a atividade correta de cada ente é a que lhe é própria por natureza e à qual está ordenado por sua própria essência. E isso porque toda a ação e atuação seguem o ser do operante. Pergunta-se o filósofo: “Assim como ao olho, à mão, ao pé em geral a cada membro corresponde uma atividade determinada, não seria necessário admitir também que ao homem 58 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo corresponde uma atividade especial? E qual poderia ser ela? Evidentemente que não é a vida, porque a vida é própria também às plantas. Para nós, sem dúvida, o que conta é o específico humano”. Pensa, pois, que toda a determinação do bem ético está em uma relação teórica com a essência do homem. Por conseguinte, o bem ético corresponde à essência do homem e nele o ser humano encontra a sua perfeição. (ANZENBACHER: 1984, 290) Poderíamos resumir a ética dos antigos em três aspectos principais: 1. O racionalismo (intelectualismo): a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão, que conhece o bem, o deseja e guia a nossa vontade até ele. 2. O naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza (o cosmos) e com nossa natureza (nosso “ethos”), que é parte de todo o natural. 3. A inseparabilidade entre ética e política: isto é, entre a conduta do indivíduo e os valores da sociedade, pois somente na existência compartilhada com outros encontramos liberdade, justiça e felicidade. A ética, portanto, era concebida como educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente os impulsos, apetites e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade, e para formá-lo como membro da coletividade sócio-política. Sua finalidade era a harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também deveriam ser virtuosos. (CHAUÍ: 1995, 342) Dentro da ética clássica temos a importante figura de São Tomás de Aquino. O Aquinate fundamenta-se muito nos princípios da ética de Aristóteles, embora a completa em diversos aspectos. A ética tomista apóia-se, sobretudo, no conceito de “fim último” do homem, que é Deus. Desse fim último, o homem deduz o sentido de sua vida e os valores que orientam a sua existência. Toda a Ética de São Tomás é deduzida do princípio “Deus é o fim último do homem”, princípio de que se deduz a doutrina da felicidade e da virtude. (ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: 1982. p. 361) Disso se deduz que a Ética, embora tenha um fundamento racional, é fruto da graça de Deus. 4.2.2.2 Ética kantiana O filósofo alemão Immanuel Kant (século XVIII) pretendia mudar inteiramente a perspectiva ética. Ele afirmava que não se podia fundamentar a ética em algum fato da experiência nem em algum bem objetivo (mesmo porque, negando a Metafísica, Kant nega a possibilidade de se conhecer algum bem ou valor em si). A fundamentação da ética é transferida, então, para dentro da própria razão. A razão contém em si um princípio ou um senso, que ele chama de “imperativo categórico a priori do dever”. Existe a percepção ou o “senso do dever” na razão prática. Então, é moral o que é feito pela consciência e senso do dever. 59 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O dever, afirma Kant, não se apresenta através de um conjunto de conteúdos fixos, que definiriam a essência de cada virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada circunstâncias de nossas vidas. O dever não é um catálogo de virtudes nem uma lista de “faça isto” e “não faça aquilo”. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral. Essa forma não é indicativa, mas imperativa. O imperativo não admite hipóteses (“se...então...”) e nem condições que o fariam valer em certas situações e não valer em outras, mas vale incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as ações morais. Por isso, o dever é um “imperativo categórico”. Ordena incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, ma a lei moral interior. (CHAUÍ: 1995, 346) Uma das normas práticas de Kant assim se expressa: “Age de modo que a máxima de tua ação possa sempre valer também como princípio universal de conduta”. A partir disso, nos questionamos: a ética de Kant seria um mero formalismo, sem conteúdo objetivo? Independentemente, Kant operou no campo da ética uma “revolução copernicana”, pois transferiu o olhar da objetividade ética para a subjetividade ética, isto é, abarcou o aspecto “intra” em detrimento do aspecto “extra”. 4.2.2.3 Moral sensista A moral sensista é a moral derivada do Empirismo e também do Positivismo; a ética não pode fundamentar-se em princípios racionais, que não podem ser conhecidos, mas deve fundamentar-se na experiência. E a experiência nos ensina que a natureza humana procura o prazer e evita o desprazer, a dor. O prazer, então, é o fundamento da Ética. Toda a ética (como também a Filosofia) consiste em avaliar o prazer. Aqui temos a ética do utilitarismo (Bentham, Stuart-Mill, James, etc.). A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos: a dor e o prazer. Compete somente a eles apontar o que devemos fazer, assim como também determinar o que não devemos fazer. (J. Bentham) 4.2.2.4 Ética como “ciência dos costumes” O positivismo e a Escola Sociológica (Durkheim, Lévy-Bruhl) reduzem a ética a um fato sociológico: é a sociedade que cria seus valores e seus costumes, para se conservar e se 60 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo defender. Os valores são sempre produtos de um tempo e de um espaço. Não há valores, bens ou princípios universalmente válidos. Esta filosofia tem uma visão totalmente relativista da ética: os bens e os valores são mutáveis, pois dependem da sociedade que os elabora e constrói. A ética é, então, “ciência dos costumes”: deve considerar o fato moral à maneira de outros fatos sociais, descrever os costumes, os juízos e os sentimentos morais próprios às diferentes sociedades e determinar as leis de seu surgimento, desenvolvimento e evolução. É, portanto, um estudo científico do fato moral como um fato sociológico. 4.2.2.5 Ética dos valores: Max Scheler Max Scheler (1916), escrevendo contra Kant, quer recolocar a ética na objetividade, mas se opõe também à ética clássica. Existem, para ele, valores objetivos, independentes de nossa consciência. Os valores, porém, não são racionais e sim de caráter emocional. Os valores são percebidos pela “intuição emotiva” e se impõem à nossa consciência. Existe um modo de experiência cujos objetos são absolutamente inacessíveis ao entendimento, em face do qual o entendimento é tão cego quanto a orelha e ou ouvido em face das cores, mas que é um modo de experiência que nos coloca autenticamente na presença de objetos objetivos e a ordem eterna que os liga uns aos outros, sendo que esses objetos são os valores e essa ordem é a hierarquia axiológica. (Max Scheler) 4.3 ÉTICA: PROBLEMÁTICA A problemática da ética é vastíssima, intrincada e complexa, envolvendo diversos aspectos e diversas questões. Envolve também questões metafísicas e antropológicas, das quais dependem essencialmente as colocações sobre a moral dos atos humanos. 4.3.1 As condições transcendentais do agir moral As condições transcendentais do agir moral são aqueles elementos que tornam um ato humano um ato moral ou ético. São basicamente três: liberdade, consciência e norma. Vejamos cada qual: 4.3.1.1 Liberdade 61 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Quanto às condições transcendentais, todos os filósofos estão de acordo em reconhecer que a primeira de todas é a liberdade. Poderão debater sobre a possibilidade ou não de provar teoricamente que o homem possui essa qualidade, mas não sobre o princípio de que se o homem não é livre não se pode absolutamente falar de moralidade. Esta verdade, lucidamente ilustrada por Aristóteles na “Ética a Nicômaco”, posteriormente foi aprofundada pelos escolásticos, em particular São Tomás, Descartes e Kant. Este considera a liberdade a condutio essendi da moral e faz dela o primeiro postulado da razão prática, isto é, da filosofia moral. (MONDIN: 1980, 93-94) A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feias pela situação, as consequências para si e para os outros, a conformidade entre os meios e os fins (empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for moral ou injusto) A vontade é esse poder deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas. (CHAUÍ: 1995, 337) Enfim, somente são atos morais os atos livres do homem (não entram, portanto, os atos necessários: respirar, comer, etc.). Se o homem não é livre, não se pode absolutamente falar de moralidade. O que é a liberdade? O que são “atos livres” (= ausência de necessidade interior)? Em que medida? Entram aqui a problemática da liberdade e do determinismo. 4.3.1.2 Consciência Outra condição transcendental da moral é o reconhecimento ou consciência. Por si só, esta já está implícita na condição anterior: para ser verdadeiramente livre, uma ação implica em que se conheça aquilo que se faz... A ausência dessa condição pode ser determinada por dois motivos: a) erro relativo àquilo que se faz (opta-se por uma coisa em vez de outra); b) falta de faculdade de raciocínio ou impedimento de seu uso em quem age (a criança, o louco, o ébrio, etc.). MONDIN: 1980, 95) Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e as consequências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética. (CHAUÍ: 1995, 337) 4.3.1.3 Norma 62 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A terceira condição transcendental da moral é que a liberdade seja guiada por alguma norma, por algum princípio diretor. Uma liberdade absoluta, que recusa sujeitar-se a quaisquer leis, como a afirmada por Nietzsche e Sartre, torna-se necessariamente uma liberdade amoral. A que normas, porém, deve sujeitar-se a liberdade? Aqui tocamos a questão do critério supremo da moralidade, questão na qual os filósofos estão profundamente divididos. De um lado, encontra-se uma grande fila de autores que atribuem a função de critério supremo ao fim último para a qual se dirige o homem em suas ações. De outro lado, encontra-se um grupo bastante grande de filósofos que atribuem o papel de critério supremo às leis e aos deveres. (MONDIN: 1980, 94) A questão da norma constitui realmente o núcleo de toda a Ética. A que regras ou parâmetros se refere a liberdade e a consciência humana? A partir de que deliberar sobre uma ação a ser tomada ou como avaliar uma ação como boa ou má, como justa e virtuosa ou como viciosa e errada? Esta norma está dentro de nós (é subjetiva) ou fora de nós, independente de nós (objetiva)? Existem normas universais e incondicionais, isto é, válidas e obrigatórias para todo homem, independentemente do tempo e do lugar? Qual é a primeira norma ou o princípio mais fundamental de todos, do qual dependem todos os outros? Aqui, conforme vimos, existe uma grande divergência entre os filósofos, o que justifica o aparecimento de diversos sistemas éticos ou várias filosofias morais. 4.4 Ética: seus diversos níveis Ética fundamental (metaética): trata dos assuntos mais fundamentais referentes ao agir humano: a existência do fato moral e a sua fundamentação; o que é intrinsecamente bom? O bem é objetivo? Ética normativa: formulação e justificação de uma teoria ética. Ética Especial (ética aplicada): a aplicação de uma teoria ética a setores particulares da ação humana ou a casos particulares. Por exemplo: bioética, ética sexual, ética econômica, ética política, ética ambiental, etc., 63 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 5. A EMOÇÃO HUMANA: ESTÉTICA 5.1 A EMOÇÃO HUMANA E O BELO A vida do homem não se restringe à prática utilitária, a apenas agir e transformar a natureza. O mundo e a realidade tocam não só a inteligência do homem, mas também as suas emoções. O mundo, a natureza, antes de ser objeto do conhecimento e da atividade prática, é objeto de percepção e de contemplação. O mundo, no conjunto de seus objetos e seres, tange uma vasta gama das emoções humanas: admiração, prazer, dor, alegria, temor, tristeza, perplexidade... Desde os seus primórdios, o homem não apenas contemplou e encantou-se com a natureza, mas procurou expressar as suas emoções através de diversos meios, como também criar objetos que de certa forma reproduzissem e imitassem a beleza do mundo. É a criação artística: pintura, música, dança...expressões tão antigas quanto o próprio homem. Desde sempre, a arte é um dos segmentos constantes da cultura e da civilização humana (ao lado da ciência, da Filosofia e da religião...) 5.1.1 A Filosofia, as emoções humanas e a expressão artística A Filosofia, desde o seu início, incluiu a vida emocional e a expressão artística como objeto de sua reflexão. Aristóteles, por exemplo, dividiu a Filosofia em três partes: Filosofia teórica (ciência, saber), Filosofia prática (ação, ética) e Filosofia poética, a qual trata da engenhosidade e da criação humanas. Arte “poética” é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita, do canto e da dança: a poesia e o teatro (tragédia e comédia). A palavra “poética” é a tradução para “poeisis”, portanto, para “fabricação”. A arte poética estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos artificiais, isto é, produzidos pelos seres humanos. (CHAUÍ: 1995, 321) Segundo a filosofia grega, o tema da arte, da expressão e criação artística recorre em toda a história em todas as suas etapas. 5.2 ESTÉTICA 5.2.1 Estética: conceituação 64 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo A palavra “estética” provém do grego (aisthesis = sentido, percepção sensível) e significa uma “experiência” ou “percepção pelos sentidos”; é neste sentido, a palavra é usada por Kant, um dos filósofos que mais trabalhou a questão estética. A Estética em Kant é parte da gnosiologia (Estética Transcendental) que teoriza sobre a sensibilidade, a percepção sensível (Kant trata, porém, da estética no sentido normal na obra “Crítica do Juízo”) Hoje a idéia mais aceita sobre estética é do alemão Alexander Baumgarten: estética é a “percepção do belo” ou “teoria do belo”. Baumgarten reconheceu no seu campo semântico os seguintes aspectos: a presença de certos objetos melhor dotados, bem organizados nas suas formas, capazes de se dirigirem simultaneamente a todas as faculdades internas do homem, aos sentidos e ao espírito – objetos que correspondem à noção de beleza; a presença de uma experiência portadora de uma fruição desinteressada, prazer estético; a existência de uma atividade humana que tinha como finalidade a produção deste tipo de objetos belos e específicos da experiência estética – a arte. (MORAIS, C. Estética in Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, volume 02, coleção 270) 5.2.2 Arte: conceituação Para a pensadora norte-americana Suzanne Langer, a arte pode ser definida como a prática de criar formas perceptíveis expressivas do sentimento humano. Analisemos, então, o conteúdo essencial dos termos dessa definição: “Prática de criar”: a arte é produto do fazer humano. Deve combinar a habilidade desenvolvida no trabalho (prática) com a imaginação (criação). “Formas perceptíveis”: a arte se concretiza em formas capazes de serem percebidas por nossa mente. Essas formas podem ser estáticas (uma obra arquitetônica, uma escultura) ou dinâmica (uma música, dança). Qualquer que seja sua forma de expressão, cada obra de arte é sempre um todo perceptível, com identidade própria. A palavra “perceptível” não se refere às formas captadas apenas pelos sentidos exteriores, mas também pela imaginação. Um romance, por exemplo, é usualmente lido em silêncio, com os olhos, porém, não é feito para a visão, como o é o quadro; e conquanto o som represente papel vital na poesia, as palavras, mesmo sem poema, não são estruturas sonoras como na música. “Expressão do sentimento humano”: a arte é sempre a manifestação (expressão) dos sentimentos humanos. Esses sentimentos podem revelar a emoção diante daquilo que amamos ou a revolta em face dos problemas que atingem uma sociedade. Sentimentos de alegria, esperança, agonia ou decepção diante da vida. A função primordial da arte, para Suzanne Langer, é objetivar o sentimento de modo que possamos contemplá-lo a entendê-lo. É a formulação da chamada “experiência interior”, da “vida anterior”, que é impossível atingir pelo pensamento discursivo. (COTRIM: 1993, 295) 5.2.3 Estética e Filosofia da Arte: esclarecimento de conceitos Alguns pensadores identificam os termos “Filosofia da Arte” e “Estética”, mas outros os distinguem da seguinte maneira: 65 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Filosofia da Arte: seria a especulação metafísica especificamente sobre a criação artística. Estética: um tratado mais amplo sobre a beleza, sobre as condições do belo (uma vez que o belo existe além das obras de arte, na natureza, por exemplo). Estética – ciência da arte: na linguagem corrente, estética pode significar um estudo científico (histórico, sociológico, etc.) das manifestações artísticas. Crítica da arte: é a análise e juízo das obras de arte a partir de princípios e padrões da própria arte, de seus setores específicos. Exemplo: crítica literária, crítica musical, crítica do cinema... 5.2.4 Arte: caracterização A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego techne, técnica, significando: o que é ordenado ou toda espécie de atividade humana submetida a regras. Em sentido lato, significa habilidade, destreza, agilidade. Em sentido estrito, instrumento, ofício, ciência. Seu campo semântico se define por oposição ao acaso, ao espontâneo e ao natural. Por isso, em seu sentido mais geral, arte é um conjunto de regras para dirigir uma atividade humana qualquer. Nessa perspectiva, falamos em arte médica, arte política, arte bélica, retórica, lógica, poética, dietética. Platão não a distinguia das ciências nem da Filosofia, uma vez que estas, como a arte, são atividades humanas ordenadas e regradas. A distinção platônica era feita entre dois tipos de artes ou técnicas: as judicativas, isto é, dedicadas apenas ao conhecimento, e as dispositivas ou imperativas, voltadas para a direção de uma atividade, com base no conhecimento de suas regras. Aristóteles, porém, estabeleceu duas distinções que perduraram por séculos na Cultura ocidental. Numa delas distingue ciência-Filosofia de arte ou técnica: a primeira refere-se ao necessário, isto é, ao que não pode ser diferente do que é, enquanto a segunda se refere ao contingente ou ao possível , portanto, ao que pode ser diferente do que é. Outra distinção é feita no campo do próprio possível, pela diferença entre ação e fabricação, isto é, entre praxis e poiesis. A política e a ética são ciências da ação. As artes ou técnicas são atividades de fabricação. Plotino completa a distinção, separando teoria e prática e distinguindo as técnicas ou artes cuja finalidade é auxiliar a Natureza – como a medicina, a agricultura – daquelas cuja finalidade é fabricar um objeto com os materiais oferecidos pela Natureza – o artesanato. Distingue também um outro conjunto de artes e técnicas que não se relacionam com a Natureza, mas apenas com o próprio homem, para torná-lo melhor ou pior: música e retórica, por exemplo. A classificação das técnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela sociedade antiga e, portanto, pela estrutura social fundada na escravidão, isto é, uma sociedade que despreza o trabalho manual. Uma obra, As núpcias de Mercúrio e Filologia, escrita pelo historiador romano Varrão, oferece a classificação que perdurará do século II d.C. ao século XV, dividindo as artes em liberais (os dignas do homem livre) e servis ou mecânicas (próprias do trabalhador manual). São artes liberais: gramática, retórica, lógica, aritmética, geometria, astronomia e música, compondo o currículo escolar dos homens livres. São artes mecânicas todas as outras atividades técnicas: medicina, arquitetura, agricultura, pintura, escultura, olaria, tecelagem, etc. Essa classificação diferenciada será justificada por santo Tomás de Aquino durante a Idade Média como diferença entre as artes que dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos. Ora, somente a alma é livre e o corpo é para ela uma prisão, de sorte que as artes liberais são superiores às artes mecânicas. As palavras mecânica e máquina vêm do grego e significam estratagema engenhoso para resolver uma dificuldade corporal. Assim, a alavanca ou a polia são mecânicas ou máquinas. Qual é o estratagema astucioso? Fazer com que alguém fraco realize uma tarefa acima de suas forças, graças a um instrumento engenhoso. Uma alavanca permite deslocar um peso que uma pessoa, sozinha, jamais deslocaria. A técnica pertence, assim, ao campo dos instrumentos engenhosos e astutos para auxiliar o corpo a realizar uma atividade penosa, dura, difícil. A partir da Renascença, porém, trava-se uma luta pela valorização das artes mecânicas, pois o humanismo renascentista dignifica o corpo humano e essa dignidade se traduz na batalha pela 66 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo dignidade das artes mecânicas para convertê-las à condição de artes liberais. Além disso, à medida que o capitalismo se desenvolve, o trabalho passa a ser considerado fonte e causa das riquezas, sendo por isso valorizado. A valorização do trabalho acarreta a valorização das técnicas e artes mecânicas. A primeira dignidade obtida pelas artes mecânicas foi sua elevação à condição de conhecimento, como as artes liberais. A segunda dignidade foi alcançada no final do século XVII e a partir do século XVIII, quando distinguiram-se as finalidades das várias artes mecânicas, isto é, as que têm como fim o que é útil aos homens – medicina, agricultura, culinária, artesanato – e aquelas cujo fim é o belo – pintura, escultura, arquitetura, poesia, música, teatro, dança. Com a idéia de beleza surgem as sete artes ou as belas-artes, modo pelo qual nos acostumamos a entender a arte. A distinção entre artes da utilidade e artes da beleza acarretou uma separação entre técnica (o útil) e arte (o belo), levando à imagem da arte como ação individual espontânea, vinda da sensibilidade e da fantasia do artista como gênio criador. Enquanto o técnico é visto como aplicador de regras e receitas vindas da tradição ou da ciência, o artista é visto como dotado de inspiração, entendida como uma espécie de iluminação interior e espiritual misteriosa, que leva o gênio a criar a obra. Além disso, como a obra de arte é pensada a partir de sua finalidade – a criação do belo -, torna-se inseparável da figura do público (espectador, ouvinte, leitor), que julga e avalia o objeto artístico conforme tenha ou não realizado a beleza. Surge, assim, o conceito de juízo de gosto, que será amplamente estudado por Kant. Gênio criador e inspiração, do lado do artista (fala-se nele como “animal incomparável”); beleza, do lado da obra; e juízo de gosto, do lado do público, constituem os pilares sobre os quais se erguerá, como veremos adiante, uma disciplina filosófica: a estética. Todavia, desde o final do século XIX e durante o século XX, modificou-se a relação entre arte e técnica. Por um lado, como vimos ao estudar as ciências, o estatuto da técnica modificou-se quando esta se tornou tecnologia, portanto, uma forma de conhecimento e não simples ação fabricadora de acordo com regras e receitas. Por outro lado, as artes passaram a ser concebidas menos como criação genial misteriosa e mais como expressão criadora, isto é, como transfiguração do visível, do sonoro, do movimento, da linguagem, dos gestos em obras artísticas. As artes tornam-se trabalho da expressão e mostram que, desde que surgiram pela primeira vez, foram inseparáveis da ciência e da técnica. Assim, por exemplo, a pintura e a arquitetura da Renascença são incompreensíveis sem a matemática e a teoria da harmonia e das proporções; a pintura impressionista, incompreensível sem a física e a óptica, isto é, sem a teoria das cores, etc. A novidade está no fato de que, agora, as artes não ocultam essas relações, os artistas se referem explicitamente a elas e buscam nas ciências e nas técnicas respostas e soluções para problemas artísticos. A arte não perde seu vínculo com a idéia de beleza, mas a subordina a um outro valor, a verdade. A obra de arte busca caminhos de acesso ao real e de expressão da verdade. Em outras palavras, as artes não pretendem imitar a realidade, nem pretendem ser ilusões sobre a realidade, mas exprimir por meios artísticos a própria realidade. O pintor deseja revelar o que é o mundo visível; o músico, o que é o mundo sonoro; o dançarino, o que é o mundo do movimento; o escritor, o que é o mundo da linguagem; o escultor, o que é o mundo da matéria e da forma. Para fazê-lo, recorrem às técnicas e aos instrumentos técnicos (como, aliás, sempre o fizeram, apesar da imagem do gênio criador inspirado, que tira de dentro de si a obra). Três manifestações artísticas contemporâneas podem ilustrar o modo como arte e técnica se encontram e se comunicam: a fotografia, o cinema e o design. Fotografia e cinema surgem, inicialmente, como técnicas de reprodução da realidade. Pouco a pouco, porém, tornam-se interpretações da realidade e artes da expressão. O design, por sua vez, introduz as artes (pintura, escultura, arquitetura) no desenho e na produção de objetos técnicos (usados na indústria e nos laboratórios científicos) e de utensílios cotidianos (máquinas domésticas, automóveis, mobiliário, talheres, copos, pratos, xícaras, lápis, canetas, aviões, tecidos para móveis e cortinas, etc.). As fronteiras entre arte e técnica tornam-se cada vez mais tênues: é preciso uma película tecnicamente perfeita para a foto artística e para o cinema de arte; é preciso um material tecnicamente perfeito para que um disco possa reproduzir um concerto; é preciso equipamentos técnicos de alta qualidade e precisão para produzir fotos, filmes, discos, vídeos, cenários e iluminação teatrais. A técnica de fabricação dos instrumentos musicais e a invenção de aparelhos eletrônicos para música; as possibilidades técnicas de novas tintas e cores, graças aos materiais sintéticos, 67 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo modificando a pintura; as possibilidades técnicas de novos materiais de construção, modificando a arquitetura; o surgimento de novos materiais sintéticos, modificando a escultura, são alguns exemplos da relação interna entre atividade artística e invenção técnico-tecnológica. Em nossos dias, a distinção entre arte erudita e arte popular passa pela presença ou ausência da tecnologia de ponta nas artes. A arte popular é artesanal; a erudita, tecnológica. No entanto, em nossa sociedade industrial, ainda é possível distinguir as obras de arte e os objetos técnicos produzidos a partir do design e com a preocupação de serem belos. A diferença está em que a finalidade desses objetos é funcional, isto é, os materiais e as formas estão subordinados à função que devem preencher (uma cadeira deve ser confortável para sentar; uma caneta, adequada para escrever; um automóvel, adequado para a locomoção; uma geladeira, adequada para a conservação dos alimentos, etc.). Da obra de arte, porém, não se espera nem se exige funcionalidade, havendo nela plena liberdade para lidar com formas e materiais. (CHAUÍ: 1995, 317-319) 5.2.5 Estética filosófica: temática Ao abordarmos a questão estética, podemos fazê-la a partir de três vertentes: fenomenologia das emoções estéticas (o que estrutura que as emoções estéticas se dêem assim); a metafísica do belo (pelo que se caracteriza a beleza? Existe o belo universal?); os sentidos e funções da arte. 5.2.5.1 Função pedagógica da arte Alguns consideram que a arte tem por função formar e cultivar o espírito humano. Para Platão, Agostinho e Tomás de Aquino, a arte tem uma finalidade eminentemente pedagógica; por isso, recomendam apenas as obras de arte que sirvam à educação e condenam as que favorecem a corrupção. Platão, em “A República”, condena a comédia e a tragédia principalmente por dois motivos. Primeiro, porque os cômicos e os trágicos representam os deuses e os heróis, atribuindo-lhes baixezas e paixões, próprias da natureza humana e desse modo desvirtuam o sentido religioso. Segundo, porque, compondo as suas obras, não se baseiam sobre a razão, mas sobre o sentimento e fantasia; ao invés de servirem de ajuda à razão, agitam as paixões, provocando o prazer e a dor. Segundo Platão, uma só arte merece ser cultivada assiduamente: a música. Esta educa o belo e forma a alma à harmonia interior. (MONDIN: 1980, 143) 5.2.5.2 Função catártica da arte A arte é uma forma de purificação do espírito, um instrumento de domínio da sensibilidade humana. Para Aristóteles, Plotino e Schopenhauer, a arte possui um escopo essencialmente catártico; será cultivada enquanto ajuda a alma a libertar-se das paixões, a purificar-se, a elevar-se para contemplação. (MONDIN: 1980, 144) 68 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 5.2.5.3 Função metafísica da arte Esta é a função idealista da arte. Par Hegel, a arte é expressão do Absoluto em forma sensível, paralela às outras duas: Religião – representação; Filosofia – conceito/pensamento; Arte – intuição. Junto com a religião e a filosofia, a arte é a forma mais elevada da realização humana como espírito e sua identificação com o Espírito Absoluto. 5.2.5.4 Autonomia da Arte Hoje, essas finalidades secundárias da obra de arte (pedagógica, catártica, metafísica, metafísica) não despertam muitos consensos entre os filósofos. Geralmente, afirma-se, e a nossa ver de forma justa, que a arte possui uma função autônoma, que é fim a si mesma, como a ciência, a religião, a moral, a política, a economia... Produzindo a obra de arte, o artista supõe criar algo: quer nos colocar perante uma realidade nova. Sua criação, esta nova realidade, deve ser olhada frontalmente, por sua conta, sem a pretensão ou a preocupação de encontrar significados recônditos ou segundas intenções. Tudo o que o artista quis dizer é o quanto ele conseguiu manifestar. E aquilo que ele de fato conseguiu manifestar está ali diante de nós. (MONDIN: 1980, 144) 5.2.5.5 Arte e Moral Neste aspecto, existem duas posições contrárias: Uma corrente afirma a total autonomia da arte: a criação artística é independente da ética. A arte não pode ser julgada a partir de padrões morais. A arte é amoral, aquém do bem e do mal. Outra corrente (mais ligada à função pedagógica) afirma que o artista deve estar comprometido com os valores humanos e nisso também com os valores éticos. Para ser artista basta expressar bem os próprios sentimentos, enquanto o homem deve ser também moral, sábio e prático. Portanto, embora não estando sujeito à moral como artista, o artista está sujeito à moral como homem: “se arte está aquém da moral, não está do lado de cá nem do lado de lá, mas sob o seu império está o artista enquanto homem, que aos deveres do homem não pode escapar e a própria arte – a arte não é e não será nunca a moral – deve ser considerada como uma missão, exercida como um sacerdócio” (B. Croce). (MONDIN: 1980, 145-146) 69 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 6. A SOCIEDADE HUMANA: FILOSOFIA SOCIAL/POLÍTICA 6.1 A VIDA SOCIAL COMO PROBLEMA FILOSÓFICO Desde os primórdios, o homem viveu em agrupamento mais ou menos organizados, reunido em clãs, tribos, grupos étnicos, etc. Posteriormente criou sociedades mais complexas, chamadas “Estados”. O Estado assumiu, durante a história, diversas formas: pequenas cidades-Estado, Estados de grandes extensões territoriais, Estado teocrático, Estado absolutista, liberal, democrático, socialista... Em toda essa história, o homem se preocupou em questionar a organização social: Qual é a melhor forma de organização social? Que leis devem reger a realidade social? O que a organização social deve proporcionar ao homem? Quais as obrigações do Estado em relação ao homem? Quais as obrigações do homem em relação ao Estado? A quem cabe dirigir, governar o Estado? Como deve ser o governante? Qual a melhor forma de governo? Todas essas questões e outras mais constituem o conteúdo da Filosofia Social ou Filosofia Política, um dos ramos da Filosofia que tem por objetivo questionar e teorizar a dimensão social humana. 6.1.1 O pensamento político na história 6.1.1.1 Filosofia grega: conexão entre filosofia e política Existe uma ligação muito profunda entre Filosofia e Política na cultura grega. A organização mais complexa e sofisticada das “polis” gregas coincide, aliás, com o nascimento da Filosofia e é uma das condições de seu nascimento. Afirma um autor: O problema da cidade conduz à filosofia e a filosofia, por seu turno, conduz a reformas e à transformação da vida da cidade e dos seus fundamentos religiosos, éticos e sociais. A partir de vários pontos de vista e de várias maneiras, os filósofos tornaram-se assim os teóricos e críticos da polis. (AMADO et al.: 1988, 80) Toda a filosofia socrática tem um fundo político: as virtudes humanas (prudência, sabedoria, honestidade, justiça, etc.) sobre as quais Sócrates discute são as virtudes necessárias para a convivência na “polis”. 70 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 6.1.1.2 Platão: socialmente naturalmente classista Platão discorre sobre a vida em sociedade na “República” e nas “Leis”. Ele desenvolve uma concepção classista da sociedade – para ele um fato natural, decorrente da divisão das faculdades da alma. O governo pertence naturalmente à elite dos intelectuais. A cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas (magistrados), protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em contrapartida, a cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá-la com justiça. (CHAUÍ: 1995, 382) 6.1.1.3 Aristóteles: o mentor do pensamento político Uma referência universal do pensamento social é a obra “A Política”, de Aristóteles. Ele constata a radical naturalidade e consubstancialidade da sociabilidade humana: “o homem é um animal político” (“anthropos zoon politikon”). O homem é, por natureza, um ser político, porque não é auto-suficiente e necessita de seu semelhante para se desenvolver e para sobreviver. Ele se distingue dos demais animais pelo fato de que estes, embora vivam em associação permanente, só constituem agrupamentos em função dos instintos. O ser humano é o único animal que fundamenta sua convivência com base no conceito do bem e do mal, do justo e do injusto, valores que só se realizam pela presença do Estado. Essas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural e que o homem é por natureza um animal social e um homem por natureza e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma seria desprezível ou estaria acima da humanidade e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. Agora é evidente que o homem, muito mais do que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem (o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externa-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e, portanto, também o justo e o injusto; a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade (polis). (ARISTÓTELES. Política, Livro I, capítulo 01) Quanto às formas de governo, Aristóteles aponta três, sem preferência pessoal: monarquia, aristocracia e democracia, que, no entanto, podem degenerar em tirania, oligarquia e anarquia. 71 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 6.1.1.4 Política medieval: tendência à teocracia O pensamento político medieval tende a uma teocracia: a potestas não é conferida pelo povo, mas procede de Deus; o soberano é o braço temporal do poder espiritual (aliança tronoaltar). 6.1.1.5 Maquiavel (século XVI): a disjunção entre Política e Ética Levando em conta que a natureza humana é egoísta e o homem é, por natureza, um infrator de normas, Nicolau Maquiavel (autor de “O Príncipe”) pretende fundamentar a teoria de um Estado forte a absoluto. O governo deve ter todo o poder nas mãos e utilizar de todos os meios para garantir a unidade do Estado (“O fim justifica os meios”). Para ele, a política não deve ter nenhum compromisso com a ética. Maquiavel desliga a política da moral, prescindindo de toda a norma extrínseca, superior e transcendente de moralidade. A política é autônoma. Sua única norma é a utilidade e o bom êxito. Se se deseja o triunfo, não se devem ter em conta os preceitos e travas morais. A conduta do príncipe se justifica pela conveniência ou necessidade do Estado. Sua regra suprema é “a razão do Estado”. O Estado é seu próprio fim e não deve ter outra lei que o seu interesse...Todos os meios são bons se com eles se consegue o fim desejado. Quando este é alcançado, o príncipe é louvado e se esquecem facilmente os meios pelos quais conseguiu o triunfo. (FRAILE, G. Historia de la Filosofia. volume III. p. 303) 6.1.1.6 Thomas Hobbes (século XVII): o mentor do absolutismo Hobbes, autor de “O Leviatã”, nega a natural sociabilidade humana. Ele contrapõe o “estado natural” ao “estado civil”. No “estado natural”, o homem é egoísta, anti-social e vê o semelhante como seu concorrente (homo homini lupus); é o estado de liberdade absoluta, ausência de normas: a única lei que prevalece é a lei do mais forte. No entanto, o homem constata que nesse estado a vida é impossível, resultando a guerra de todos contra todos. Por isso, a sua razão o leva a limitar a sua liberdade e a renunciar a seus direitos, transferindo-se ao soberano governante, para assim garantir a segurança e a paz. Resulta, assim, o “estado civil” como fruto de um pacto tácito. O poder do Estado deve ser ilimitado e absoluto para conter a insociabilidade natural do homem e assegurar o bem comum (Absolutismo). 72 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 6.1.1.7 Rousseau (século XVIII) e o liberalismo Concepção inteiramente oposta à de Hobbes é a de Jean-Jacques Rousseau. No estado natural o homem é livre, puro, igualitário e bom (le bon sauvage). O mal começa com a organização social, especialmente com a afirmação da propriedade privada. Na organização social há sempre opressão dos fortes sobre os fracos. No entanto, a organização social é inevitável. Como concebê-la? Para Rousseau, o soberano é o povo e todo o poder procede dele. O governante deve ser, então, não o soberano, mas o representante da soberania popular. Ele deve representar e salvaguardar a “vontade geral”. Continuando as idéias de Rousseau, afirma-se nos séculos XVIII e XIX o liberalismo político (Locke, utilitarismo, etc.) e na sua esteira o capitalismo como teoria da economia política liberal (Adam Smith, Richard, Stuart Mill...). O liberalismo afirma as liberdades individuais como condição de ser no corpo político. O poder existe somente em função da salvaguarda e garantia das liberdades individuais. O “bem comum” é apenas a soma das felicidades individuais. O ideal é então quanto menos governo e quanto mais liberdades individuais. Em conjunção com o liberalismo, afirma-se a ideologia do capitalismo, como rejeição da intervenção do Estado em assuntos econômicos, a liberdade de mercado, a livre concorrência. O liberalismo político, considerando a vontade individual como fundamento das relações sociais, defendendo, portanto, as liberdades individuais – liberdade de pensamento e de opinião, liberdade de culto, etc. – em relação ao poder do Estado que deve ser limitado. Defende, assim, o pluralismo das opiniões e a independência entre os poderes – legislativo, executivo e judiciário – que constituem o Estado. O liberalismo econômico, cujo principal teórico foi Adam Smith, considera que existem leis inerentes ao próprio processo econômico – tais como a lei de oferta e procura – que estabelecem o equilíbrio entre a produção, a distribuição e o consumo de bens em uma sociedade, sendo que o Estado não deve interferir na economia, mas apenas garantir a livre iniciativa e a propriedade privada dos meios de produção. O liberalismo econômico defende assim a chamada economia de mercado. (PERIN, M.L. Cadernos da FAFIMC. 1996. número 16, p. 67) As teorias liberais defendem o Estado laico, recusando a intervenção da Igreja nas questões políticas. Defendem a economia de mercado, segundo a qual existe um equilíbrio natural, decorrente da lei da oferta e da procura, o que reduz a necessidade de intervenções (teoria do Estado mínimo). A economia de mercado supõe ainda a defesa propriedade privada dos bens de produção e a garantia de funcionamento da economia a partir do princípio do lucro e da livre iniciativa, o que valoriza o espírito empreendedor e competitivo. (ARRUDA ARANHA: 1992, 157) 73 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 6.1.1.8 Socialismo (século XIX): o sonho de uma sociedade igualitária Em decorrência da injustiça social compreendida como consequência natural do capitalismo, surgem, no século XIX, as idéias socialistas (socialismo francês, Marx, Engels, etc.). O socialismo pretende superar o capitalismo pela revolução sócio-econômica (cujo fulcro é a abolição da propriedade privada dos meios de produção) e chegar a uma nova estruturação social: uma sociedade igualitária, sem classes, justa e feliz. 6.1.1.9 Século XX: os totalitarismos ideológicos No século XX o mundo testemunhou o surgimento de sistemas políticos fundamentados sobre ideologias (da raça, da força, do poder militar), com todas as consequências nefastas que afetaram milhões de vidas: nazismo, fascismo, comunismo, ditaduras militares, etc. 6.1.1.10 Neoliberalismo e economia global1 Podemos definir o neoliberalismo como um conjunto de idéias políticas e econômicas capitalistas que defende a não participação do estado na economia. De acordo com esta doutrina, deve haver total liberdade de comércio (livre mercado), pois este princípio garante o crescimento econômico e o desenvolvimento social de um país. Surgiu na década de 1970, através da Escola Monetarista do economista Milton Friedman, como uma solução para a crise que atingiu a economia mundial em 1973, provocada pelo aumento excessivo no preço do petróleo. Características do Neoliberalismo (princípios básicos): 1 Mínima participação estatal nos rumos da economia de um país; Pouca intervenção do governo no mercado de trabalho; Política de privatização de empresas estatais; Livre circulação de capitais internacionais e ênfase na globalização; Abertura da economia para a entrada de multinacionais; Adoção de medidas contra o protecionismo econômico; Desburocratização do estado: leis e regras econômicas mais simplificadas para facilitar o funcionamento das atividades econômicas; Diminuição do tamanho do estado, tornando-o mais eficiente; Posição contrária aos impostos e tributos excessivos; Aumento da produção, como objetivo básico para atingir o desenvolvimento econômico; Contra o controle de preços dos produtos e serviços por parte do estado, ou seja, a lei da oferta e demanda é suficiente para regular os preços; A base da economia deve ser formada por empresas privadas. http://www.suapesquisa.com/geografia/neoliberalismo.htm, acesso aos 13/12/2009. 74 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Os críticos ao sistema afirmam que a economia neoliberal só beneficia as grandes potências econômicas e as empresas multinacionais. Os países pobres ou em processo de desenvolvimento (Brasil, por exemplo) sofrem com os resultados de uma política neoliberal. Nestes países, são apontadas como causas do neoliberalismo: desemprego, baixos salários, aumento das diferenças sociais e dependência do capital internacional. Os defensores do neoliberalismo acreditam que este sistema é capaz de proporcionar o desenvolvimento econômico e social de um país. Defendem que o neoliberalismo deixa a economia mais competitiva, proporciona o desenvolvimento tecnológico e, através da livre concorrência, faz os preços e a inflação caírem. 6.2 FILOSOFIA SOCIAL – FILOSOFIA POLÍTICA 6.2.1 Filosofia Social: conceituação Filosofia Social é a interpretação do fenômeno social. A Filosofia Social não é uma ciência normativa, mas uma ciência do ser, que tem por finalidade aclarar a questão apresentada pela realidade da experiência social, determinando a última realidade deontológica e metafísica da sociedade. (MESSNER, J. Ética Social, Política y Economia) 6.2.2 Filosofia Social: problemática Com relação ao ser social humano, a Filosofia Social aborda as seguintes questões: A dimensão social da vida humana; a importância da “política” na vida humana. A sociabilidade humana: é o homem um ser social? As obrigações sociais: o homem tem obrigações sociais? No tocante ao Estado, eis as problemáticas: O que é o Estado? O que ele representa? Definições de Estado. A legitimidade do Estado. A origem do Estado: sobrenatural (Santo Agostinho, Vico), natural (Aristóteles) ou convencional (Hobbes, Rousseau). Os fins e as obrigações do Estado (para que existe o Estado, o que ele deve proporcionar ao homem?) O Estado e o indivíduo; o público e o privado, direitos humanos no Estado. O Estado e a Igreja. Sobre o poder, temos as seguintes questões na Filosofia política: O sujeito e o poder. As formas de poder (legislativo, judiciário, executivo). Regimes políticos e formas de regimes (democracia, socialismo, etc.) Poder político e poder econômico. Com relação aos valores sociais, temos as seguintes discussões: 75 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O bem comum (proposto por Aristóteles, Santo Tomás); o que é o bem comum? A questão do bem comum e do bem privado. A justiça (o Estado deve realizar a justiça social e garantir a justiça). A liberdade (o Estado deve salvaguardar e promover a liberdade humana). A ordem social e o progresso social (propostos pelo Positivismo). Sobre a própria política e a ética: Pode haver uma autonomia da política frente a ética? Por fim, a problemática entre política e direito. Diz-se que o Estado deve ser Estado de Direito, isto é, fundamentado na lei, a qual obriga o Estado e os cidadãos: Qual a fonte da lei? O que é lei justa? A lei penal (alcance e limites). 76 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 7. O PROBLEMA DE DEUS: TEODICÉIA 7.1 QUESTÕES RACIONAIS SOBRE DEUS O discurso sobre Deus, o falar sobre Deus, geralmente se insere num contexto religioso. Cada indivíduo nasce num determinado ambiente religioso, pertence a um grupo social que tem sua religião e a sua noção de Deus é determinada por essa religião. No entanto, mesmo dentro da religião, a noção de Deus levanta naturalmente algumas perguntas de caráter racional. Essas perguntas ou afirmações podem ser bem simples ou mais elaboradas, conforme o grau de cultura da pessoa: O mundo tem explicação sem Deus? Tudo que existe pede ou não pede um Deus? A vida humana teria explicação ou teria sentido sem Deus? Se eliminamos Deus, não seria daí tudo permitido e válido? Não se eliminaria o bem ou o mal? Se Deus existe, de onde vem o mal, a dor, o sofrimento, as catástrofes, o erro, o pecado, etc. “Si Deus est, unde malum? Si Deus non est, unde bonum?”. Deus não seria o próprio universo? Deus não seria a unidade de todas as coisas? Enfim, a questão de Deus se torna necessariamente uma questão filosófica. Dissemos que a Filosofia é “uma ciência da fundamentação e da universalidade”; em outras palavras: a Filosofia quer buscar uma resposta para tudo o que existe, quer dar um sentido e uma explicação para tudo o que existe. Dessa maneira, deve, então, a Filosofia tocar necessariamente na questão do absoluto. E essa questão – a do absoluto – se traduz na seguinte pergunta: Qual a explicação de tudo o que existe: o mundo, o homem, a vida, o bem, o mal, etc.? Ou como Heidegger colocou a questão: “Por que o ser e não o nada?”. 7.2 A QUESTÃO DE DEUS NA FILOSOFIA A Filosofia, no decorrer da história, sempre se referiu à questão de Deus. No tocante a essa questão, as filosofias assumem uma grande diversidade de posições. Essas posições filosóficas podem ser classificadas da seguinte forma: posições teístas, panteístas, deístas, agnósticas e ateístas. 77 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 7.2.1 Filosofias Teístas São filosofias que concluem para a existência de Deus como causa transcendente e mantenedora do mundo e de toda a realidade. Podemos dividir as filosofias teístas em dois grupos: 7.2.1.1 Filosofias teístas intelectualistas São filosofias que afirmam que a existência de Deus é uma conclusão racional. Geralmente aduzem argumentos ou provas da existência de Deus. Além da existência de Deus, afirmam que podemos deduzir racionalmente alguns atributos ou perfeições de Deus, como a “unidade”, “transcendência”, “eternidade”, “imutabilidade”, etc. São exemplos de teístas intelectualistas: Aristóteles: Deus é o “Primeiro Motor Imóvel”, a causa de todas as coisas, ela própria não causada. Já na “Física”, Aristóteles tratara amplamente da existência de Deus. Na “Metafísica” ele retoma, de modo sintético, as teses da obra precedente. Os elementos fundamentais da prova são os seguintes: o fato do devir (a experiência mostra-nos que as coisas estão sujeitas a incessantes mudanças) e os dois princípios: a) tudo o que se move é movido por outro (ou por is mesmo enquanto outro); b) na série dos que movem, isto é, dos motores, não se pode retroceder infinitamente. Admitimos o fato e os dois princípios, segue-se inelutavelmente a conclusão: existe um Motor Imóvel. Esta é a célebre prova usada por ele; nas obras juvenis ele usou também as provas baseadas nos graus de perfeição e na ordem das coisas. (MONDIN: 1987a: 96-97) Santo Anselmo: elabora a famosa “prova ontológica” da existência de Deus. Sua formulação mais simples seria: Deus é ser perfeitíssimo; a existência está contida na sua perfeição. Santo Tomás de Aquino: elaborou as famosas “cinco vias” ou “cinco provas” da existência de Deus, que assim se resume: 1. 2. 3. 4. 5. Via cosmológica (movimento). Via da causalidade (causa eficiente). Via da contingência e necessidade. Via dos graus de perfeição. Via teleológica (ordem, fim). Descartes: para ele, a idéia de Deus é inata, própria da razão (para a filosofia clássica, Deus é uma dedução racional, não é conhecido imediatamente, mas por raciocínio). Um 78 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo de seus argumentos principais é assim expresso: “A idéia de Deus existe inata na nossa razão. De onde procede essa idéia? Do próprio Deus que nos criou”. Aplicando essa distinção ao caso da idéia de Deus, discorre Descartes da seguinte maneira: Eu tenho na minha mente a idéia de um ser perfeito e infinito. Pois bem, de onde me veio essa idéia? a) Pode ter vindo de fora de mim, nem eu a recebi pelos sentidos, porque os sentidos podem perceber os modos da substância extensa (figura e movimento), porém não a substância. Ademais, nos damos conta das coisas que conhecemos pelos sentidos e sabemos que através deles jamais percebemos Deus. b) Tampouco pode ser uma produção ou uma ficção de meu espírito... A idéia de Deus é tão perfeita que excede por completo a minha capacidade criadora... Eu sou um ser finito e não poderia ter idéia de uma substância infinita, “a não ser que esta idéia tenha sido colocada em mim, por alguma substância que seja verdadeiramente infinita”. c) Por conseguinte, essa idéia reclama uma causa superior e distinta de mim, ou seja, o próprio Deus, que é aquele que a infundiu na minha inteligência ao criar-me. Logo, essa idéia é inata e produzida desde que fui criado, junto com a idéia de mim mesmo. (FRAILE, G, op. cit. p. 525) 7.2.1.2 Filosofias teístas irracionalistas São filosofias que afirmam que Deus pode ser conhecido não pela razão, mas unicamente por um “sentimento” (ou intuição) ou pela fé (fideísmo). Não concedem valor aos argumentos racionais sobre a existência de Deus. São exemplos de teístas irracionalistas ou fideístas: Pascal (século XVII): Deus é conhecido não pela razão, mas pelo “coração”. É o coração que sente Deus e não a razão. Eis o que é a fé: é Deus sensível ao coração e não à razão... Por isso, aqueles aos quais Deus concedeu a religião por sentimento do coração são completamente felizes e legitimamente persuadidos. Enquanto que para aqueles que não a têm, nós não podemos fazer outra coisa que oferecê-la por raciocínio, esperando que Deus toque o sentimento do coração, sem o que a fé seria apenas humana e inútil para a salvação. (PASCAL, “Pensamentos”) Kierkegaard (século XIX): combatendo o racionalismo, sobretudo o hegeliano, Kierkegaard afirma que só podemos chegar a Deus pela fé. A fé é uma “salto em Deus”, sem razões ou justificativas. A razão e a filosofia são impotentes e inúteis para conhecer a Deus. Gabriel Marcel (1889-1973): também nega qualquer valor a uma “ciência” de Deus. Reiteradamente refuta Marcel as provas da existência de Deus da Teodiceia racional. O Deus abstrato da filosofia racional não é o Deus vivente que a experiência existencial descobre como presença imediata e inobjetivável. Nada, portanto, podemos “saber sobre Deus”, que permanece como o mistério ontológico e somente é afirmado na vivência subjetiva da 79 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo comunhão no ser e no paradoxo da fé. (URDANOZ, T. História de la Filosofia, volumen VII. p. 744) 7.2.2 Filosofias panteístas São filosofias que admitem Deus, porém o identificam com o mundo ou com o Todo da realidade. Apresentam diversas matizes: panteísmo naturalista, espiritualista, evolucionista, etc. Para certos filósofos, Deus pode ser concebido de modo panteísta. Deste ponto de vista, os dois mais célebres filósofos da história das idéias foram Espinosa no século XVII e Hegel no século XIX. O panteísmo consiste em dizer: Deus (Theós) está em tudo (Pan) e, reciprocamente, tudo está em Deus. Por outras palavras: não se pode separar Deus do mundo exterior, nem dissociar as almas de Deus. Tudo se confunde. Só existe uma substância: a alma, o corpo, o mundo exterior e Deus formam um todo, o uno. (HUISMAN: 1983, 32) São filosofias panteístas: Spinoza: seu lema é “Deus sive natura”, ou seja, Deus é identificado com a natureza universal. São dois os atributos de Deus: “res cogitans” e “res extensa”; esses atributos são eternos e infinitos. Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída de uma infinidade de atributos, cada qual expressando uma essência eterna e infinita. (SPINOZA, Ética) As coisas não são mais que afecções dos atributos de Deus ou modos pelos quais os atributos de Deus se exprimem de modo tal e determinado. (SPINOZA, Ética) Hegel: identifica Deus com o Espírito ou Razão Universal, que se explicita na dialética (devir). Idéia, Natureza, Espírito (homem) são os mesmos momentos evolutivos dialéticos. A Natureza é Deus “exteriorizado”, o Espírito (homem) é Deus consciente de si. O homem, enfim, é a última explicitação da razão universal (homem divinizado). 80 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 7.2.3 Filosofias deístas São filosofias que admitem a existência de Deus, porém recusam-lhe o atributo de causa mantenedora do mundo. Deus existe, é uma conclusão racional, porém, o mundo funciona pelo seu próprio mecanicismo de suas leis, isto é, Deus não interfere no mundo. Geralmente essas filosofias admitem Deus como idéia racional, mas recusam a religião com os dogmas, cultos, etc. Pretendem reter apenas uma “religião racional”. O deísmo nasceu, sobretudo, no século XVII com o movimento dos “Enciclopedistas” (Voltaire, Rousseau, J. Toland) e os “freethinkers” ingleses. É o francês Voltaire quem melhor expõe as teses gerais do deísmo, cujo sentido se captará com a sua simples enumeração: a) Deus existe e é autor do mundo. b) Não é possível determinar a natureza e os atributos de Deus. c) A criação do mundo por Deus não é fruto de um ato livre, mas necessário, pelo que Deus não é responsável do mal. d) Uma vez criado o mundo, Deus não volta a intervir nele. Negação, pois, do conceito de providência divina. O mal, se tal é possível, só é explicável a partir do homem; a este incumbe tentar anula-lo. (NAVARRO CORDON, J.M. & CALVO MARTINEZ, T. História da Filosofia, volume 2. p. 108) 7.2.4 Filosofias agnósticas São filosofias que suspendem totalmente o juízo em relação à existência de Deus. Negam totalmente o valor dos argumentos racionais sobre a existência de Deus. Afirmação central: é impossível qualquer conclusão em relação a Deus, nem contra, nem a favor. A nossa razão só pode pronunciar-se a respeito da experiência, mas não tem poder de elevar-se além da experiência. Pode-se entender o mundo com Deus ou sem Deus: é impossível qualquer conclusão. Particularmente agnóstico é Kant: ele nega qualquer conhecimento teórico de Deus, mas em seguida afirma que a existência de Deus é necessária pelo lado prático (referente à moral). O mundo, com tudo aquilo que contém e que o circunda, é mistério que pede explicação e que a potência de que o universo é manifestação, é completamente impenetrável. (SPENCER, H. Primeiros Princípios, século XIX) Somente Deus é permanentemente interessante. As outras coisas podemos sondar, mas Ele supera o nosso pensamento e não pode ser demonstrado nem contestado. (J.F. Newton) 81 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 7.2.5 Filosofias ateístas São filosofias que excluem completamente Deus ou qualquer ser superior como explicação do mundo e da realidade. Geralmente as filosofias ateístas vêm conexas com o materialismo filosófico: afirmam a eternidade da matéria, que ela contém em si mesma a causa de todos os fenômenos e seres. Encontramos filosofias ateístas já entre os gregos, mas a sua difusão maior deu-se a partir do século XIX. São representantes: Feuerbach, Freud, marxismo. O homem cria Deus à sua imagem e semelhança. (FEUERBACH) O homem – este é o mistério da religião – projeta seu próprio ser fora de si e depois se faz objeto deste ser metamorfoseado em pessoa; pensa a si mesmo, porém como objeto do pensamento de outro ser, e este ser é Deus. (FEUERBACH, Essência do Cristianismo) 7.3 TEODICÉIA 7.3.1 Teodiceia: terminologia 7.3.1.1 Teologia Natural A expressão “Teologia Natural” é o termo mais antigo para indicar o tratado filosófico sobre Deus A etimologia da expressão “Teologia Natural” assim se expressa: Theós (do grego = Deus); logia (do grego = ciência, discurso); natural (em contraposição a “Sobrenatural” ou “Revelada”). Francis Bacon, em sua obra “Argumentis Scientiarum” (1623), assim se exprime: Teologia Natural é o conhecimento que se pode obter de Deus por meio da luz natural da razão ou da contemplação das coisas criadas. Teologia Sagrada ou Inspirada é a ciência que se fundamenta sobre princípios ou dados diretamente revelados por Deus. 7.3.1.2 Teodiceia Trata-se de um termo mais recente, criado por Leibniz, como título de sua obra “Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal” (1710). A etimologia da palavra assim se apresenta: Theós (do grego = Deus) e Diké (do grego = justificação); Teodiceia, assim, significa “justificação de Deus”. O assunto da obra de Leibniz era restrito: como “justificar” Deus, na sua bondade e sabedoria, perante a presença do mal no mundo. Posteriormente o significado do termo foi 82 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo ampliado para designar o tratado filosófico geral sobre Deus, tornando-se sinônimo de “Teologia Natural”. 7.3.2 Teodiceia: coroamento da Metafísica A Metafísica estuda o ser enquanto ser, mas por isso mesmo deve estudar a causa do ser: eis a razão porque a sua parte mais elevada, que é por assim dizer a sua coroa, tem por objeto Aquele que é o próprio Ser subsistente. Chamam a esta parte da Metafísica Teologia Natural. (MARITAIN: 1970, 162) De acordo com Aristóteles, vemos que o metafísico se apresenta em duas formas. Primeiramente, há alguma coisa que não pode ser objeto de experiência e que está entranhado no experimentável como seu âmago mais íntimo: o ser indeterminado ou geral que penetra ou domina todo ente. Existe, em seguida, um Inexperimentável que ultrapassa o empírico como sua origem primeira: o Ser Infinito e divino, criador de todo o ente finito. Com isto se indicam os dois ramos da Metafísica. A doutrina do ser considera todo o ente desde o ponto de vista do ser, em geral, indagando-lhe a essência, propriedades e leis; dá-se-lhe ordinariamente o nome de Ontologia (Du Hamel, 1661, foi quem primeiro se serviu deste vocábulo). A doutrina de Deus considera todo o ente em relação ao Ser divino, do qual investiga a essência, existência e atividade; Aristóteles denominou-a Theologiké, e mais tarde recebeu o nome de “Teologia Natural” (em oposição à Teologia baseada na Revelação sobrenatural) e também (menos felizmente) de “Teodicéia”. (BRUGGER: 1962, 269) 7.3.3 Teodiceia: determinação do objeto Teologia racional ou Natural é a ciência de Deus à luz natural da razão ou, mais explicitamente, a parte da metafísica que estuda a existência e os atributos de Deus na sua qualidade de ser Absoluto e Infinito. (COSTA FREITAS, M. in Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 05. p. 104) Teologia Natural é a ciência de Deus enquanto ele é acessível à razão natural ou ainda enquanto é causa das coisas e autor da ordem natural. (MARITAIN: 1970, 162) Na Teodiceia trata-se de Deus não como divindade concreta de uma religião determinada, mas como o ponto mais alto da Metafísica: Deus como ser absoluto, razão e causa da realidade. Na Teodiceia, a fé e a Revelação não são negadas, mas dispensadas; trata-se de Deus “enquanto ele é acessível à razão natural”, que é instrumento de toda filosofia. Na Teodiceia, toda a ciência de Deus é intuitiva: parte-se do mundo para chegar a Deus como sua causa e razão. Busca-se o conhecimento de Deus “enquanto é causa das coisas e autor da ordem natural”. Não temos conhecimento imediato de Deus; só chegamos a ele por raciocínio. 83 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Com efeito, a existência de Deus não é imediatamente, e antes de tudo, o movimento discursivo do espírito, evidente para nós, como acreditaram Malebranche e os Ontologistas; é em virtude da operação intelectual, que é a operação mais fundamentalmente própria do homem, é em virtude do raciocínio que ela se torna evidente para nós. (MARITAIN: 1970, 162163) 7.3.4 A Teodiceia Clássica A Teodiceia clássica tradicional, disciplina filosófica ensinada sobretudo nas escolas católicas, era um tratado na filosofia tomista e tinha uma estrutura fixa e definida, constando de três partes básicas: Sobre a existência de Deus: reunião de argumentos e provas sobre a existência de Deus, construídas em torno das “cinco vias” de São Tomás de Aquino. Disso concluímos: a existência de Deus pode ser provada por argumentos racionais (refutando o agnosticismo e o fideísmo). Sobre a essência (natureza) de Deus: argumentos também extraídos de Santo Tomás para determinar os “atributos” (perfeições) de Deus. Disso concluímos que podemos chegar não somente à existência de Deus, mas ao que Deus é (embora limitadamente); temos, assim, a refutação do deísmo. Citamos como exemplo de atributos de Deus: a) Asseidade: trata-se do “ser-por-si”; Deus é o ser-por-si; todo outro ser é participado. b) Unidade: só é concebível um e apenas um Deus. c) Simplicidade: em Deus não se distinguem “matéria” e “forma”, essência e existência, substância e acidentes. d) Imutabilidade: Deus é “Ato Puro”, não se distinguem nele “ato” e “potência”. e) Eternidade. f) Bondade. Relação Deus-Mundo: argumentos racionais para entender como Deus se refere ao mundo, ou seja, perceber se Deus age ou não no mundo. Disso concluímos que Deus é “transcendente” (refutação ao panteísmo) e que ele é “providente” (refutação contra o deísmo); Deus e a liberdade humana não são irreconciliáveis (contra o deísmo); o mal no mundo não exclui a perfeição e a bondade de Deus. 7.3.5 Teodiceia: conteúdos hodiernos Os conteúdos da Teodiceia tradicional continuam válidos hoje, pois se apóiam na Metafísica; são eles questões racionais e universais sobre Deus. Esses conteúdos tradicionais necessitam, entretanto, de uma complementação e enfoque mais atuais; devem levar em consideração as perspectivas da filosofia moderna e contemporânea e também a ciência atual (Física, Antropologia, Psicologia, Biologia, etc.). Os conteúdos básicos da Teodiceia são: Argumentação sobre a existência de Deus. Exame e fundamentação dos principais argumentos: 84 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo a) b) c) d) Argumento sobre a causalidade (cosmológico): da contingência do mundo. Argumento da finalidade (teleológico): da ordem do mundo. Argumento moral: do fato moral humano. Argumento antropológico: sobre o sentido da vida humana. Argumentação sobre os atributos divinos: unidade, eternidade, bondade, providência, etc. Os enfoques atuais da Teodiceia são: Deus e a ciência: Física, Biologia, Evolução, Psicologia, etc. A questão de Deus e o confronto com os ateísmos modernos (Nietzsche, Freud, marxismo, etc.). Deus e as perspectivas filosóficas mais recentes: Filosofia da Linguagem, Hermenêutica, Personalismo, Alteridade, etc. 7.4 FILOSOFIA DA RELIGIÃO 7.4.1 A religião na história do pensamento A religião é um fato da história, um dos componentes da cultura e da civilização humana em todos os tempos. A Filosofia, assim, não pode deixar de interessar-se também por esse fenômeno. Na Idade Média, a Filosofia era construída principalmente em vista da religião (Philosophia ancilla Theologiae). A partir da Idade Moderna ocorre uma abordagem mais independente da religião. Os filósofos tratam da religião segundo diversas perspectivas: respeito e valorização do fenômeno religioso, aceitação parcial interpretativa ou negação. Típica do século XVIII é a redução racional da religião (deísmo), cuja expressão máxima é a obra de Immanuel Kant: “A Religião nos limites da pura razão”. A partir do século XIX, expandem-se as interpretações negativas da religião (ateísmo): Feuerbach, marxismo, positivismo, Nietzsche, Freud, etc. 7.4.2 As “Ciências da Religião” A partir do século XIX e início do século XX temos a proliferação das chamadas “ciências da religião”: considerações da religião sob o prisma histórico e sócio-antropológico. Como principais obras desta época citamos: Mitologia Comparada, de Müller (1856). Cultura Primitiva, de Tylor (1871). As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim (1912). 85 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo As origens da idéia de Deus, de Schmidt (1912). Essas “ciências da religião” sofrem, porém, grande influência do Positivismo filosófico e seguem um esquema interpretativo viciado: centram-se na questão da origem da religião e na sua evolução histórica. 7.4.3 A “Fenomenologia da Religião” A partir da metade do século XX temos um grande desenvolvimento das chamadas “Fenomenologias da Religião”. Na verdade, elas são uma continuação ou extensão das “ciências da religião” (pois situam-se no nível científico), porém, com uma metodologia mais cuidadosa e elaborada e, no geral, abstêm-se de esquemas filosóficos interpretativos. A influência filosófica é a “Fenomenologia” de Husserl, porém uma influência não nociva quanto ao método. As “Fenomenologias da Religião” centram-se na análise e descrição do fenômeno religioso, procurando evidenciar a sua estrutura e os seus elementos componenciais. Como principais representantes da Fenomenologia da Religião, citamos: Joachim Wach: The Comparative Study of Religion – 1958. G. van der Leeuw: Fenomenologia da Religião – 1933. G. Mausching: A religião: formas de manifestação e estrutura – 1959. F. Heiler: Formas e essência da Religião – 1961. Mircea Eliade: O Sagrado e o Profano – 1957. Rudolph Otto: O Santo – 1967. 7.4.4 Fenomenologia da Religião: objeto A Fenomenologia da Religião é um estudo científico dos fatos religiosos e de suas manifestações, assim como se apresentam na história da humanidade. O material, do qual ela se serve, é colhido da observação e dos testemunhos da vida e do comportamento religioso do homem, pois que este manifesta a sua atitude religiosa em atos como a oração, em ritos como o sacrifício e os sacramentos, os seus pensamentos e as suas aspirações religiosas enquanto expressas em mitos e símbolos, as suas crenças e as suas convicções acerca da realidade do sagrado e de Deus. (CANTONE, C. Le Scienze della Religione. LAS. Roma. 1981. p. 12) A Fenomenologia da Religião tem por objetivo identificar e descrever a estrutura da religião e os seus diversos elementos que a compõem. Seu conteúdo básico: a experiência religiosa, o sagrado e o profano, a atitude religiosa, seus elementos como: culto, sacrifício, oração, a configuração do divino, etc. 86 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 7.4.5 Filosofia da Religião: objeto Filosofia da Religião é a investigação filosófica da religião como tal ou daquilo pelo qual as religiões históricas se distinguem, enquanto religião, dos restantes fenômenos culturais. Sua investigação primordial incide sobre a essência da religião, sobre o que esta é e deve ser na plenitude de seu conceito. (BRUGGER: 1962, 358) A Filosofia da Religião tem por objeto a compreensão fundamental da religião em seus aspectos essenciais, sua estrutura como fato humano. Qual a diferença entre Teodiceia e Filosofia da Religião? A Teodiceia tem por objeto de estudo Deus ou o Absoluto como causa última do ser; já a Filosofia da Religião tem por objeto a própria religião, o fenômeno religioso como um fato humano, elemento fundamental da civilização humana na história. A Filosofia da Religião pressupõe a Fenomenologia da Religião que, por sua vez, pressupõe o conhecimento da história das religiões. Ela – a Filosofia da Religião – deve ser conduzida com especial cuidado: deve respeitar o fenômeno religioso como específico e autônomo, sem entrar em nenhuma espécie de redução, isto é, englobar o fenômeno religioso em outros fenômenos (sociais, psicológicos, filosóficos, etc.) e a partir disso interpretá-lo. O fenômeno religioso haverá, pois, de ser enfrentado como um fenômeno absolutamente singular e irredutível. 87 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 8. O PROBLEMA DO MUNDO FÍSICO: COSMOLOGIA 8.1 O MUNDO FÍSICO NA FILOSOFIA 8.1.1 A Filosofia Cosmológica grega O mundo é uma realidade problemática sob múltiplos aspectos: sua origem, seus elementos constitutivos fundamentais, sua duração, seu fim último. Acerca do mundo e com vistas à solução dos problemas mencionados, pode-se formular um duplo discurso, científico e filosófico. No primeiro caso, propõe-se uma descrição dos fenômenos, especialmente em suas relações de conjunto e em seu devir, interpretando-os segundo critérios lógicos, destinados a estabelecer entre eles uma ordem, uma estrutura, uma lei de conservação e evolução. No segundo caso, apresenta-se uma interpretação geral dos fenômenos do universo, em sua natureza essencial, em suas propriedades, em seu fundamento último. Essa distinção entre discurso científico e filosófico é conquista bem recente do pensamento humano. Ela tornou-se possível apenas com o surgimento das ciências experimentais, isto é, durante o século XVII. Antes disso, as pesquisas dos metafísicos e os estudos dos astrônomos e físicos eram considerados partes de uma disciplina: a filosofia. (MONDIN: 1980, 46) O mundo físico foi objeto da primeira reflexão filosófica (pré-socráticos: “filosofia cosmológica”). Os primeiros filósofos gregos buscavam encontrar o “estofo primeiro” de todas as coisas. Não haveria, debaixo da infinita diversidade de seres no mundo, alguns poucos elementos de que seriam compostas todas as coisas? A aurora do pensamento grego filosófico coincide com o estudo das questões relativas à “natureza” (physis). A filosofia pré-socrática se caracteriza pela busca da chave unificante de toda realidade sensível. Para eles, o único constante e permanente é a matéria original e o movimento. Tratam de encontrar esse algo “imortal e sempre jovem”, que constitui o fundo primordial de tudo o que existe. O fundo das coisas é a “physis”, ou seja, a natureza, substância constante através das mudanças. Que é aquilo que está em tudo e de que tudo é feito? (MANDRIONI: 1964, 84) A primeira filosofia sistemática sobre o mundo físico é a “Física” de Aristóteles (Aristóteles era um observador apaixonado da natureza: pesquisava o comportamento dos animais, as plantas, o curso dos astros e daí, como resultado, suas obras: “História dos Animais”, “Sobre as plantas”, “Sobre o céu”, “Metereológica”, etc.). Nesta obra – a “Física” – Aristóteles trata do “ente móvel”, isto é, o ser submetido à mudança, o ser material. A “Física” é um tratado filosófico, metafísico, mas engloba também aspectos que hoje seriam científicos, uma vez que não havia ainda a distinção entre saber filosófico e saber científico; o saber era global. 88 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 8.1.2 A Filosofia do mundo físico na Idade Média Na Idade Média, praticamente desapareceu o interesse filosófico pelo mundo físico, pois toda cosmologia era explicada à luz da Revelação e da Sagrada Escritura. 8.1.3 A ciência do mundo físico nos tempos modernos No início da Idade Moderna (séculos XVI – XVII) a natureza física volta a tornar-se o centro de interesses da reflexão humana. Muda, porém, o método de abordagem da natureza: não mais a perspectiva especulativa, mas a experimental. A nova metodologia da “Física” contém os seguintes elementos: observação dos fenômenos naturais, constatação de sua regularidade e formulação das leis dos fenômenos. Trata-se, assim, do nascimento da ciência experimental. O nome antigo – Física – é conservado, mas muda a sua perspectiva e seu conteúdo. Seus grandes nomes são: Francis Bacon, Galileu, Newton, etc. 8.1.4 O espaço da filosofia natural hoje Diante do espaço que a ciência ocupa no campo do saber, podemos nos perguntar: com o extraordinário desenvolvimento científico, haverá lugar para uma “Filosofia do mundo físico”? Não nos bastam as ciências para compreender o mundo físico e natural? Haveria ainda no mundo segredos reservados para a Filosofia? É preciso afirmar desde o início que o estudo das coisas materiais não pode ser esgotado pelas ciências positivas. Existe um autêntico saber filosófico que versa também sobre a natureza sensível e que se em um primeiro momento acreditou poder esgotar ele sozinho o estudo deste mundo, como também em um primeiro momento o acreditava fazer a ciência positiva, hoje é preciso voltar à afirmação da autonomia e competência de ambos os saberes, sobre a base de uma estreita interdependência. Tanto o pan-filosofismo como o cientismo revelaram-se incapazes de uma explicação exaustiva no que concerne o problema da natureza sensível. (MANDRIONI: 1964, 82) Verifica-se hoje um renovado interesse pela reflexão filosófica nesse campo, surgido principalmente em decorrência exatamente da grande fragmentação e especialização das ciências. Faz-se necessário construir uma visão mais total e integradora do universo físico, uma “cosmovisão” unitária e fundamentada. Disse o grande filósofo Wittgenstein: “ainda que todas as questões científicas fossem resolvidas, nossos problemas vitais não seriam sequer tocados”. 89 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Os próprios físicos contemporâneos sentiram essa necessidade e alguns deles até enveredaram pela reflexão filosófica. Assim, por exemplo, Albert Einstein escreveu a obra “Como vejo o universo” e Steven Hawkins faz o mesmo na “Pequena História do Tempo”. 8.2 COSMOLOGIA 8.2.1 Esclarecimento de terminologia Faz-se necessário uma breve distinção entre os termos “Cosmologia” e “Filosofia da Natureza”, os quais, na realidade, representam a mesma realidade: Cosmologia: vem do grego (kosmos) e significa ordem e, por extensão, mundo; trata-se de um termo largamente usado nos tratados escolásticos clássicos. Hoje o termo “Cosmologia” designa também uma ciência, que tem por objeto elaborar teorias de modelos do universo, sua origem, sua formação, etc., ou seja, uma ciência afim da Astronomia. Filosofia da Natureza: traduz a antiga denominação latina “Philosophia Naturae” ou “Philosophia Naturalis”. 8.2.2 Cosmologia: objeto e conteúdo O objeto material da Filosofia da Natureza é o conjunto dos entes naturais materiais. Estes entes são estudados também pelas ciências experimentais, porém, sob a perspectiva de suas causas próximas ou imediatas (por exemplo, as leis que regem determinados comportamentos dos corpos, sua constituição química, etc.). A filosofia natural se pergunta – com um esforço metafísico – pelo seu ser, buscando as causas mais profundas. Por isso, o objeto formal da Filosofia da Natureza é o ser do ente corpóreo. (ARTIGAS, M. Introducción a la Filosofia. p. 62) A Metafísica Natural procura alcançar uma compreensão filosófica dos conceitos básicos da ciência natural, como espaço, tempo, movimento, força, energia, matéria, vida orgânica, etc., estabelecer, na medida do possível, seus constitutivos essenciais e, a partir deles, elaborar uma imagem filosófica do universo. (BRUGGER: 1962, 194) O conteúdo básico da Cosmologia assim se expressa: Extensão: o se material é um ser extenso. Em que esta extensão consiste? Distinguese ela da substância? Quantidade-Qualidade: a qualidade é reduzível ou não à quantidade? Espaço: limitado ou ilimitado? Real ou ideal? E o vácuo? Tempo: correlativo ao espaço: é real ou ideal? Movimento: como interpreta-lo? Absolutamente ou relativamente? Movimento e ação à distância: causalidade física, determinismo, etc. Categorias do ente físico: o inorgânico e o vivo. A vida é ontologicamente superior à matéria? 90 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O ensino de Cosmologia requer hoje conhecimentos aprofundados sobre as novas teorias físicas (Teoria da Relatividade, Teoria dos Quanta, etc.) e até conhecimento sobre matemática teórica. 8.3 FILOSOFIA DA CIÊNCIA (EPISTEMOLOGIA) A ciência tornou-se um dos assuntos específicos da filosofia mais recente: o que é verdadeiramente um conhecimento científico? Quais são as suas características, fundamentos e pressupostos? Qual é a finalidade da ciência e seu lugar na cultura humana? A discussão sobre as proposições científicas nasceu a partir dos anos 20 do século XX no movimento chamado “Neopositivismo”. Representado principalmente pelo “Círculo de Viena” (Carnap, Schlick, Reichenbach), o Neopositivismo, ao mesmo tempo em que estabelece o conhecimento científico como único válido, discute a fundo o estatuto e a metodologia da ciência. Para o neopositivismo, a única função da Filosofia é exatamente ser “Filosofia da Ciência”, com sua “atividade clarificadora da linguagem científica”. A discussão mais ampla sobre a ciência, o método científico e o lugar da ciência na cultura é prosseguida por filósofos posteriores, como Karl Popper (crítico do Círculo de Viena), Gaston Bachelard, Thomas Kuhn, Larry Laudan, Alexander Koyré e outros. 8.3.1 Filosofia da Ciência: problemática A Gnosiologia é uma disciplina que se ocupa com o conhecimento humano em geral, enquanto Epistemologia deve ocupar-se com o conhecimento científico e seu método. Foi na segunda parte do século XIX que a Epistemologia ganhou corpo como disciplina filosófica e é atualmente uma das disciplinas mais importantes. Epistemologia é a disciplina filosófica que se ocupa com a forma da ciência. Ela indaga sobre as afirmações científicas; por isso mesmo ela é uma reflexão crítica, de estilo filosófico, sobre tudo o que a ciência faz. Ela é, por conseguinte, uma Filosofia da Ciência. Ela indaga sobre os critérios de cientificidade e sobre o método científico. Delimitar o campo das ciências experimentais e das não-experimentais, avaliar criticamente a natureza e o valor do conhecimento científico, analisar e discutir a linguagem usada na ciência, etc., estão entre as principais tarefas da Epistemologia. (OLIVEIRA: 1990, 195-196) Uma ciência particular pode ser considerada tanto do ponto de visa de seu conteúdo, quanto de sua forma. Conteúdo é a matéria estudada pela ciência. São os objetos e assuntos que cada ciência estuda. Forma é o modo como cada ciência se organiza: é a estrutura, é a lógica, que mostram e garantem que aquilo que é estudado e afirmado é feito de modo correto e científico. Conteúdo são as leis, as teorias e os objetos de cada ciência. Forma é a maneira de organizar o conteúdo. É aquilo que constitui propriamente a ciência. A Epistemologia se ocupa da Forma da ciência. (OLIVEIRA: 1990, 196) Elencamos como temas fundamentais da Filosofia da Ciência: 91 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O método da pesquisa científica. Os elementos fundamentais da ciência, tais como: observação, verificação, hipótese, lei, teoria, etc. A natureza das teorias científicas e sua capacidade de explicar a realidade. O papel cultural e social da ciência. Ciência e ideologia. Ciência e outras dimensões da cultura humana: ciência e filosofia, ciência e arte, ciência e religião. 92 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 9. O PROBLEMA DO SER: METAFÍSICA 9.1 O PROBLEMA FILOSÓFICO DO SER A Filosofia, na sua dimensão mais profunda, se pergunta sobre o ser em geral. O que é tudo o que existe? Só existe o que é sensorial, o que atinge os nossos sentidos? Podemos dividir tudo o que existe em “matéria” e “espírito”? Quais são os princípios fundamentais do ser? A noção do “ser” é a mais universal de todas. Tratando do ser em si, a Filosofia se caracteriza como “Filosofia Geral”: fundamenta-se e caracteriza-se aqui a visão geral de todas as coisas. 9.1.1 Questões sobre o ser na filosofia grega Já a primeira filosofia grega, os pré-socráticos, no intuito de entender a racionalidade da natureza física, às vezes transborda para questões mais gerais. Por exemplo: a questão do uno e do múltiplo. Há multiplicidade ou unidade do ser? Talvez existiria um só ser e a multiplicidade seria apenas aparente? Parmênides e Heráclito discutem sobre a questão da identidade e do devir. Parmênides dizia que o ser É, idêntico a si mesmo, e a mudança é apenas aparente. Heráclito, por sua vez, tinha opinião contrária: não há o ser, só existe a mudança. Não há nada que permaneça, “tudo muda” (panta rei). Platão dividiu a realidade em dois mundos (dualismo platônico): a realidade sensível, a matéria, é o “mundo das sombras”, da aparência. O verdadeiro ser é ideal: o “Mundo das Idéias”. Daí a sua divisão do conhecimento entre “doxa” e “episteme”, correspondendo à sua metafísica dualista. 9.1.2 A “Filosofia Primeira” de Aristóteles Aristóteles viu a necessidade de fundamentar uma “filosofia primeira”, ou seja, uma filosofia básica, que se ocupasse em investigar os primeiros princípios e as primeiras causas de tudo o que existe: é o seu tratado de “Metafísica”. Para Aristóteles, a “filosofia primeira” (Metafísica) é o coração e alma de toda a Filosofia. Ocupando-se da noção mais universal – a do “ser” – a Metafísica constitui-se no fundamento de toda a Filosofia: aqui é que se decide o tipo de filosofia e se plasma a visão geral da 93 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo realidade. Desta visão geral do ser ou da realidade depende a visão dos seres em particular, do mundo, do homem, da vida, etc. (isto é, a “filosofia segunda”). A parte culminante da Metafísica aristotélica e depois também de São Tomás é a Teologia Natural: a causa primeira e última do ser, que é Deus. A “filosofia primeira” aristotélica tornou-se o referencial para toda a filosofia até hoje. Os assuntos e a terminologia de Aristóteles (ato, potência, essência, existência, substância, acidente, etc.) são retomados e re-elaborados por filósofos posteriores até os dias de hoje. Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga o “Ser enquanto Ser”. Ao definir a ontologia ou metafísica como estudo do “Ser enquanto Ser”, Aristóteles está dizendo que a Filosofia Primeira estuda as essências sem diferenciar essências físicas, matemáticas, astronômicas, humanas, técnicas, etc., pois cabe às diferentes ciências estudalas enquanto diferentes entre si. À Metafísica cabem três estudos: 1. O do ser divino, a realidade primeira e suprema da qual todo o restante procura aproximar-se, imitando sua perfeição imutável; 2. O dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências existentes. 3. O das propriedades ou atributos gerais de todos os seres, sejam eles quais forem, graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser particular existente. A essência ou “ousia” é a realidade primeira e última de um ser, aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou deixará de ser o que é. À essência, entendida sob essa perspectiva universal, Aristóteles dá o nome de “substância”: o substrato ou o suporte permanente de qualidade ou atributos necessários de um ser. A metafísica estuda a substância em geral. (CHAUÍ: 1995, 218-219) 9.2 METAFÍSICA 9.2.1 Metafísica: origem do termo A palavra “Metafísica” deve sua origem a uma denominação especial na classificação das obras de Aristóteles feita no século I por Andrônico de Rodes. Como os livros que tratam da Filosofia primeira foram colocados na edição das obras do Estagirita a seguir dos livros de Física, chamou-se aos primeiros “Metafísica”, isto é, “aos que estão detrás da Física”. Esta designação, cujo sentido primitivo parece ser puramente classificador, teve posteriormente um significado mais profundo, pois, com os estudos que são objeto da filosofia primeira, se constitui um saber que pretende penetrar no que está situado para além ou detrás do ser físico enquanto tal. (FERRATER MORA: 1965, 260) 9.2.2 Metafísica: sentido do termo O termo “Metafísica” pode ter dois sentidos básicos, os quais são correlatos: 9.2.2.1 Metafísica como realidade não-física É o sentido apontado acima, na citação de Ferrater; trata-se de uma realidade “além da física”, não fenomênica e, ainda, o que não pode ser atingido por nenhuma experiência ou 94 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo conhecimento sensório, é apenas objeto do conhecimento intelectivo ou que é deduzido pela lógica racional, através do raciocínio discursivo. Assim, por exemplo, “alma”, “liberdade”, “Deus” são realidades metafísicas. 9.2.2.2 Metafísica como estudo do ser (Ontologia) Trata-se da disciplina filosófica – caracterizada a partir de Aristóteles – que trata sobre o ser em geral, suas propriedades e seus fundamentos. Neste sentido, a Metafísica também leva o nome de “Ontologia” (do grego “ontos” = ser + “logia” = ciência), termo criado pelo filósofo alemão Jacob Thomasius, no século XVII. A metafísica é a investigação filosófica que gira em torno da pergunta “O que é?”. Este “é” possui dois sentidos: 1. Significa “existe”, de modo que a pergunta se refere à existência da realidade e pode ser transcrita como “O que existe?”. 2. Significa “natureza própria de alguma coisa”, de modo que a pergunta se refere à essência da realidade, podendo ser transcrita como “Qual é a essência daquilo que existe?”. Existência e essência da realidade em seus múltiplos aspectos são, assim, os termos principais da metafísica, que investiga os fundamentos, as causas e o ser íntimo de todas as coisas, indagando por que existem e por que são o que são. (CHAUÍ: 1995, 207) 9.2.3 Metafísica: a alma da Filosofia Toda ciência verdadeiramente filosófica se pergunta pelo ser de seu objeto e tem, portanto, uma relação direta com a Metafísica, que estuda o ser em toda a sua amplitude. (ARTIGAS, N. Introducción a la Filosofia. p. 52) O núcleo da filosofia é a Metafísica: é o que lhe confere unidade. Os demais ramos da filosofai estudam seus temas sob o ponto de vista ou enfoque da metafísica, a que Aristóteles chama justamente de “filosofia primeira”. Por esta razão, a divisão da filosofia não dá lugar a disciplinas filosóficas meramente justapostas e relacionadas entre si de modo externo. (ARTIGAS, N. Introducción a la Filosofia. p. 53) 9.2.4 Metafísica: conteúdo básico Existem várias perspectivas de se desenvolver a Metafísica: a clássica (baseada na filosofia aristotélica-tomista), a existencialista, a fenomenológica (inspirada em Husserl, Heidegger, etc.) personalista, etc. 95 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 10. EDUCAÇÃO HUMANA: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 10.1 A EDUCAÇÃO COMO PROBLEMA FILOSÓFICO A educação, como todos sabemos, trata-se de um dado humano, ou seja, é resultado de uma construção cultural. É um fato que o ser humano não nasce “feito”, “pronto”; ele deve se formar, passa por uma longa fase de aprendizagem (a mais longa de todos os animais), precisa adquirir conhecimentos, habilidades e outros elementos para sobreviver, integrar-se no grupo social e, enfim, ter uma vida realmente digna e humana. É um fato que as gerações mais velhas “educam” as gerações mais novas (mesmo nas culturas mais primitivas), moldam o indivíduo de acordo com certos valores. O meio primordial da educação é o grupo familiar. Mas a educação continua depois no meio social mais amplo, através de suas instituições típicas, como a escola, a Igreja, o Estado, etc. A educação levanta algumas interrogações ou questões mais de fundo sobre essa realidade: O que é mesmo a educação? Em que ela consiste? Que significa educar? Educar é moldar um indivíduo ou desenvolver suas potencialidades? Quais são os parâmetros da educação? Educar a partir de quê? De que idéias, modelos ou princípios? Quais são as dimensões da educação ou que aspectos da realidade humana a educação deve abranger? Quais são os valores envolvidos na educação? Quais são as finalidades da educação? A quem compete educar? Como fica a questão da família diante da educação? O Estado tem o direito de educar? Quais os compromissos e os limites do educador? Quais são as finalidades das instituições educacionais? O papel da família, Estado, Igreja quanto à educação? 10.1.1 As teorias da educação na história 10.1.1.1 Os ideais gregos da educação Podemos destacar os seguintes elementos da “filosofia da educação” grega: A educação fundamenta-se sobre o conceito do homem como sendo primariamente racional. A educação como desenvolvimento intelectual da personalidade, o que acarreta não só a aquisição da ciência, mas envolve também o aspecto moral (o viver segundo a razão; identificação socrática do sábio com o bom). Educação para o exercício da cidadania. O homem cabal é o cidadão. Aspecto estético da educação. 96 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo O direito fundamental de educação pertence ao Estado (para Platão, direito exclusivo, os filhos devem ser entregues ao Estado para serem educados; os romanos transferem esse direito à família: “patria potestas”). 10.1.1.2 Educação Medieval Citamos como características da educação do Medievo: Influência do ideal grego: intelectualismo, trabalho “liberal”. Fundamenta-se sobre os princípios cristãos. Mesmo influenciado pelo intelectualismo grego, dá ênfase preponderante ao aspecto moral. Ênfase no ascetismo como controle da vontade. 10.1.1.3 Educação nos tempos modernos a) Rousseau: a educação moral Jean-Jacques Rousseau é o primeiro filósofo a tratar especificamente da educação, de modo específico na obra “Emílio”. Para o pensador francês, o homem é bom por natureza e a sociedade o corrompe (bom selvagem). Diante dessa concepção antropológica, a educação trata-se do desenvolvimento das capacidades naturais do indivíduo; é ela um processo e deve acompanhar o desenvolvimento natural do indivíduo, sem forçar etapas. Os primeiros movimentos da natureza são sempre honestos e não há perversidade original no coração humano. (ROUSSEAU. Emílio) A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. A infância tem certos modos de ver, de pensar e de sentir inteiramente especiais: nada é mais tolo do que querer substituí-los pelos nossos. (ROUSSEAU. Emílio) b) Pestalozzi, Herbart, Froebel: teóricos da educação no século XIX Os teóricos citados acima se restringem a comentários sobre a educação escolar. Pestalozzi: respeito à individualidade do educando; educação centrada não no conteúdo, mas no desenvolvimento intelectual; saber correspondente ao poder (conquista de técnicas), importância da relação pessoal professor - educando. Herbart: educação voltada para a modificação de conduta do educando. Froebel: educação pela atividade. c) Educação no século XX: Dewey, Killpatrick, Montessori, Freinet, Piaget, Makarenko 97 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo No século XX surge uma “multidão” de autores que tratam da questão educacional e concorrem para a renovação pedagógica e metodológica. Seus princípios filosóficos são diversos: pragmatismo, personalismo, marxismo, etc. No fundo, o princípio educacional é comum a todos os pensadores: o aluno como sujeito da própria educação, liberdade, métodos auto-avaliativos, métodos, sócio-ativos, etc. 10.2 FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO 10.2.1 Filosofia da Educação: conceituação A Filosofia Educacional procura compreender a educação em sua integridade, interpretando-a por meio dos conceitos gerais que guiem a nossa escolha de objetivos e diretrizes educacionais. (KNELLER: 1964, 12) A filosofia educacional depende da filosofia geral ou formal na medida em que os problemas da educação são de caráter filosófico geral. Não podemos criticar a política educacional vigente ou sugerir novas diretrizes sem tomar em consideração problemas filosóficos gerais como: a) a natureza da vida boa, que é um alvo primordial da educação; b) a natureza do próprio homem, que é o homem que estamos educando; c) a natureza da sociedade, pois a educação é um processo social; d) a natureza da realidade suprema, que todo o conhecimento procura penetrar. Portanto, a filosofia educacional envolve, entre outras coisas, a aplicação da filosofia formal ao campo da educação. (KNELLER: 1964, 13) São tarefas da Filosofia da Educação: 1. analisar a linguagem educacional; 2. fazer a hermenêutica geral do processo educativo; 3. analisar a estrutura constante do educacional; 4. divisar a teleologia da tarefa educativa. (FULLAT: 1995, 86) 10.2.2 Filosofia da Educação e Pedagogia A Pedagogia é a ciência da educação. Alimenta-se ela dos seguintes ramos do conhecimento: a) de outras ciências humanas (biologia, psicologia, sociologia, etc.) para o conhecimento da realidade educacional; b) da Filosofia para estabelecer fundamentos e princípios teóricos da educação. A Filosofia da Educação é a reflexão e a análise filosófica da realidade educacional. São, pois, diferentes, mas, ao mesmo tempo, correlativas: a Filosofia da Educação oferece a fundamentação e princípios à Pedagogia e esta oferece dados de reflexão e análise àquela. 10.2.3 Filosofia da Educação: conteúdos 10.2.3.1 Educação: conceituação A palavra “educação” possui duas raízes semânticas: 98 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo Educere: tirar, extrair, desenvolver as potencialidades. Educare: conduzir, guiar. Educação é a prática dos meios aptos para o desenvolvimento das possibilidades humanas do sujeito da educação. (FULLAT: 1995, 25) Educação é o processo que visa a levar o indivíduo, simultaneamente, a explicitar as suas virtualidades e a encontrar-se com a realidade para nela atuar de maneira consciente, eficiente e responsável, tendo em vista a continuidade e o desenvolvimento social, para serem atendidas as necessidades e as aspirações individuais e coletivas. (NERICI, I. O homem e a educação. p. 16) 10.2.3.2 Os princípios da educação A Filosofia da Educação possui a tarefa de questionar a própria educação sobre os princípios basilares de sua tarefa; quais são, afinal, os modelos e parâmetros a serem seguidos na tarefa educativa? Que tipo de ser humano queremos formar? No fundo, os princípios da educação baseiam-se e fundamentam-se numa filosofia antropológica, isto é, o modelo de educação que possuímos nasce de nosso modelo antropológico. 10.2.3.3 As dimensões da educação Diz-se que a educação deve ser “integral”; mas quais são os aspectos do ser humano que devem ser educados? Dimensão física e psico-motora. Dimensão intelectual. Dimensão psicológica. Dimensão social. Dimensão moral. Dimensão religiosa. Dimensão prático-operativa. 10.2.3.4 O sujeito da educação A Filosofia da Educação se questiona sobre quem é, realmente, o sujeito ou quais são os sujeitos do ato educativo; aqui temos, então, os elementos proporcionados pelas ciências biológicas, psicológicas e sociais para o conhecimento da realidade bio-psíquica do educando. 10.2.3.5 Os agentes da educação Destacam-se como agentes da educação as seguintes instituições: família, escola, Estado, Igreja, etc. Mas, afinal, qual o papel de cada uma dessas instituições? 99 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo 100 Introdução à Filosofia – Professor J. André de Azevedo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AAVV. Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa: Editorial Verbo. 1992. AAVV. Para Filosofar. São Paulo: Scipione. 1995. AMADO, J. et al. O Prazer de Pensar 1: Primeiro Ano de Filosofia. 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