ZIGUEZAGUE: UM CAMINHO DE VOLTA AO SILÊNCIO Sérgio A. Sardi Introdução O filosofar indicia uma atitude, uma disposição do pensar que enfrenta, atravessa e perpassa a radicalidade e a inefabilidade do viver. É a partir dessa aproximação que se torna possível, na primeira parte deste estudo, estabelecer as linhas gerais de uma concepção metodológica acerca do ensinar-aprender filosofia. Nesse contexto, a admiração (thaumátzein) platônico-aristotélica e o conceito de vivência (Erlebnis) expressarão possibilidades (dentre outras, não tematizadas aqui) da gênese do filosofar. Em ambos os casos, obtém-se o dinamismo no qual o tensionamento com os limites do dizer retroage ao silêncio, ao que permanece não-dito neste mesmo dizer, desde onde são virtualmente instauradas novas possibilidades às relações entre o viver e o pensar por via de um dizer originário. Um dizer é originário quando indicia aquilo que está aquém e além de si mesmo e que, mesmo assim, participa de sua significação. Talvez sejamos assim lançados perto demais do próprio viver, a quase não suportar. Mas este também pode ser um modo de brincar de pensar, de buscar a infância do pensar, em vista de um sentido, de uma direção. Nesse caminho, no qual se desce indefinidamente em direção ao não-dito, gesta-se a vida do dizer. Nesse caminho, do qual emergem inusitadas possibilidades ao dizer, a criação de linguagem resulta de uma relação com a linguagem: a atitude que lança o dito em direção ao não-saber, pois o religa ao viver. Trata-se, aqui, de uma virada de perspectiva. Não o caminho unilateral que vai das palavras às coisas, do dizer ao mundo, pois as significações passam a ser produzidas em uma relação de estrangeiridade. E o que permanece significativo no dito remete a um silêncio de fundo. Silêncio grávido de virtualidades. Eis o devir onde se produz o sentido filosófico-filosofante de uma questão ou proposição. Nesse devir, se o tensionamento com os limites do dizer é a dinâmica que sugere e disponibiliza um dizer originário, ou seja, se o silêncio do dizer traça um ziguezague com o dizer que emerge do silêncio, é nessas idas e vindas que o ensinar-aprender filosofia se produz. Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutor em Filosofia pela Unicamp/SP. A construção da significabilidade das perguntas filosóficas, dentre outras possibilidades expressivas, indicia a dinâmica de um ziguezague entre o dito e o seu entorno de silêncio. Este é também o movimento no qual e leitura de um texto filosófico, ou a leitura filosófica de um texto, considera a diferença como condição de possibilidade do pensar. O ensinar-aprender filosofia, compreendido sob tais bases, sugere este mesmo ziguezague, repercutindo sobre a criação de sentidos ao viver. O movimento que, no limite, retroage ao não-dito, adentra o silêncio e reinstaura sucessivamente o não-dito como horizonte do dizer. O silêncio da linguagem é disposto em uma linguagem do silêncio. O silêncio, ao ser dito, desloca-se mais além, ou aquém, instaurando um novo horizonte ao pensar, o que nos remete, antes, ao seu dinamismo, ao movimento no qual é intermitente ou continuamente reinstaurado, do que às suas estruturas e conteúdos. Na segunda parte deste texto, histórias para filosofar com crianças (Sardi, 2004a; 2005) são relacionadas com algumas das concepções acerca da correlação entre a filosofia, o filosofar e a linguagem que orientaram a elaboração da primeira seção. A leitura das histórias sugere uma interação com o texto, ao modo de um ziguezague, e visa suscitar uma leitura da vida. I. Ziguezague 1. O caminho de volta A admiração (thaumátzein) platônico-aristotélica e o conceito de vivência (Erlebnis) indiciam um momento de ruptura. Há, aqui, um ‘estado de excesso’ e de tensão, onde o não-dito se faz visível no limite mesmo do dizer, o que incita a recriá-lo em suas possibilidades. Não há obviedades quando o pensar retroage sobre si mesmo e se situa diante do saber de um não-saber. Mas, é neste mesmo silêncio, na tensão com os seus limites, que se faz possível reconhecer a sua superabundância, um transbordar da significação do dito. Ou seja, faz-se necessário trilhar um caminho de volta para poder avançar. Pois, nessa relação de estrangeiridade, a linguagem é prenhe de um silêncio que impregna o dito e que não o deixa calar. Ela carrega, em seu âmago, a experiência humana como aquilo que, primordialmente, dá a pensar. Se, ao retroagir sobre as condições de possibilidade da significabilidade do dizer observamos nossos limites, será, por outro lado, a percepção desses mesmos limites a condição da ruptura com a mera repetição da lógica interna do dito, por um retorno ao originário. Nesse caso, não é a linguagem, mas uma determinada relação com a linguagem que é posta em questão. Assim, a urgência de criar e recriar as condições pelas quais o dizer poderá tangenciar o seu próprio silêncio funda-se em uma atitude ética e existencial. O silêncio surge no decurso de um dizer que, ao sugerir aquilo que lhe excede, prenuncia um movimento inaugural que reclama a urgência de um outro dizer, de um outro pensar e de uma outra práxis. Criar linguagem é também criar pensamentos e ações, e instaurar potências ao viver. 2. A interrogação que emerge do silêncio O caminho em direção ao silêncio da linguagem é também linguagem, embora sinalize uma outra relação com a mesma, face ao movimento que situa o não-dito como momento de significação do dito. É no âmbito da linguagem que a vivência é anunciada em sua inefabilidade relativa e requerida em sua condição significante. Ocorre, assim, que a expressão desse mesmo silêncio poderá assumir a forma lacunar de uma interrogação. Pois a interrogação dispõe, em seu dizer, aquilo que propriamente não diz, embora sinalize. Ao perguntar, delimitamos o já sabido em função de sua ultrapassagem. Pois, se perguntamos, é porque já sabemos algo, ou seja, aquilo que nos incita a perguntar. Porém, nesse gesto nos damos conta de que há algo que não sabemos relacionado àquilo que sabemos: uma nova perspectiva, uma nova relação entre conceitos, a inviabilidade de expressar uma idéia por termos usuais, uma suspeita, uma nova direção ao pensar. Mas, ao saber que em relação ao que sabemos há algo que não sabemos, então já sabemos algo mais. Perguntar é, por si só, construir conhecimento, independentemente das respostas que possamos obter. Ademais, a formulação de uma pergunta, ou seja, a sua estrutura sintática e semântica, delimita as condições e os limites nos quais uma resposta poderá ser estabelecida: “algo da natureza da interrogação passa à resposta” (Merleau-Ponty, 1957, p. 17). Desde a estrutura interrogativa – por quê, para quê, onde, como, etc – aos pressupostos conceituais e às estruturas de coordenação sintáticas, há algo que queremos saber quando perguntamos. Perguntar é delimitar o que queremos saber. É traçar um entorno nisso que deverá se apresentar como resposta. Ou seja, o campo de respostas possíveis corresponde sempre às estruturas preestabelecidas pela própria pergunta. Perguntar é uma operação cognitiva que instaura uma direção determinada ao pensar. Nesse sentido, buscar compreender a significação mais radical de uma pergunta é já começar a responder. O perguntar filosófico-filosofante indicia um ziguezague, desde onde o perguntar se move em direção à novidade do pensar. Nesse caso, a significabilidade da pergunta não se esgota em sua formulação. Porém, a formulação da pergunta elabora uma aproximação e um jogo de perspectivações em torno do perguntado. O sentido, a direção que as perguntas filosófico-filosofantes prenunciam ao pensar, remonta a acontecimentos nos quais suas significações são instauradas, mesmo que sejam construídas com a estrutura sintática do uso comum das palavras. Mas, sendo assim, é preciso reconhecer aqui uma posição assumida diante desse problema, a qual, ao pressupor que o dizer, ao tensionar com os seus próprios limites, em um caminho de volta que tangencia, sucessivamente, o silêncio da linguagem, guarda a latência que pode incitar a uma interrogação filosófico-filosofante, prenuncia uma relação crítica com concepções totalitárias de racionalidade. A pergunta que emerge do silêncio não pretende calar. Deseja a partilha, uma aproximação, mesmo à distância. Mas, dessa partilha, desse movimento único de aproximação e distanciamento do outro, também há um convite e um sentido a aprender. 3. Aprender a convidar o outro a aprender... Ensinar-aprender a filosofar requer a arte do entrelaçamento: a criação de situações que propiciem vivências, ou tensionamentos com os limites do dizer, assim como o trabalho de criação lingüística, é um trabalho com o inusitado. O inusitado é mesmo o lugar a ser atingido. Trilhar este caminho poderá implicar, a cada um, o risco de se perder. De algum modo, é preciso poder se dispor a se perder de si, para se reinventar. Não há manuais, técnicas ou procedimentos que possam ser simplesmente aplicados. O detalhe, a nuança modifica toda uma situação. É no trabalho de aprimoramento destes detalhes, no exercício da sensibilidade que permite adaptar uma proposta de trabalho a contextos e grupos diversos, na reinvenção dos procedimentos, na reinvenção de sua própria disposição em relação à sua ação, nas crises, rupturas e reinvenções de certos processos, na experimentações de novas possibilidades para suscitar ou provocar no outro a sua própria relação com o ainda não pensado, que se efetiva a práxis docente. Certas atividades ou experiências poderão ser significativas a alguns grupos, e outros não, ou em determinados momentos ou contextos diferentes das suas vidas, em outros não. É preciso multiplicar caminhos, criar alternativas, pôr-se a si mesmo em busca e em pesquisa de situações que possam provocar o pensamento a ir além de si mesmo. Aprender a convidar o outro a aprender sugere uma práxis pedagógica que deverá reinventar continuamente a si mesma. Trata-se, pois, da arte de exercitar um convite a algo que, em última instância, caracteriza-se pelo inesperado, e não pode nem deve ser determinado. Pois, o outro pode sempre aceitá-lo, ou não, estar predisposto, ou não, o que inclui um respeito prévio à posição daqueles com quem nos relacionamos. Ademais, sugerir a ocorrência de vivências em outrem requer que possamos nos dispor a buscá-las por nós mesmos, em função de uma postura assumida com relação ao filosofar e ao sentido desse gesto em nossas vidas. Pois, mais que ‘ensinar’, trata-se sempre de convidar o outro a aprender não só a aprender, mas o sentido do aprender, fazendo o papel daquele que incita e requer do outro que ele possa ultrapassar a si mesmo na construção do sentido do seu e do nosso viver. Trata-se, pois, de sugerir uma outra relação com o conhecimento, encarnada em nossas existências. 4. O texto como pretexto para pensar Não importa tanto o que lemos quanto a relação que temos com o que lemos. Podemos fazer uma leitura filosófica de um texto supostamente não-filosófico, ou mesmo uma leitura não-filosófica de um texto filosófico. É preciso filosofar com o texto, mesmo que, para isso, seja necessário ultrapassá-lo, criar alternativas de interpretação, embora à base da sempre possível aproximação com aquilo que o texto, em sua estrutura lógicoconceitual, está a sugerir. Pois o que lemos passa a fazer algum sentido para nós na medida em que repercute em nosso próprio viver. Assim, toda leitura, incluindo aqui a leitura do mundo, insere-se no contexto de uma história pessoal, adquirindo significação nesse horizonte. Considerada assim, parece inevitável que a relação com o texto, ao estabelecer a escuta virtual de alguém que o lê em busca de si mesmo em sua humanidade, seja a de continuamente remeter ao tempo vivido. A leitura é um ato dialogal onde há uma correspondência: o texto deve me dizer algo, e eu a ele. O ler e o escrever efetivam um diálogo vivo e, portanto, sempre inacabado com o outro e com nós mesmos. Mas, sendo assim, o ler e o escrever sugerem o aprendizado de uma sensibilidade que tensiona, transgride e recria os significados, enquanto, simultaneamente, aponta uma direção ao pensar, embora essa direção permaneça em aberto face ao silêncio do próprio viver. II. Do texto à gênese do filosofar 1. Quando as palavras indicam aquilo que as excede As histórias da personagem Ula (Sardi, 2004a) não dizem ou explicam idéias de filósofos, mas pretendem suscitar a atitude originante do filosofar, ao mesmo tempo em que mantém latentes alguns dos problemas que perpassam a História da Filosofia. Por isso, não se trata de um livro de filosofia para crianças, mas para que as crianças possam filosofar entre si, ou consigo mesmas, ou, ainda, para que possamos filosofar com elas. O texto indica caminhos, e esses caminhos remetem a experiências vivenciais, que estão na base da significabilidade de suas questões. O filosofar, esse processo de construção do sentido do viver, principia, assim, no silêncio. Ao remontar à gênese do filosofar, o que é originário e relativamente indizível demarca a condição de possibilidade de um discurso e de um diálogo que rompem com a obviedade. Nesse caso, o dizer excede do uso cotidiano da linguagem e tensiona com os seus próprios limites, incitando a pensar e a recriar sentidos. Será nesse dinamismo que vamos encontrar as personagens Ula e Nico, na história A pergunta de Ula: “- Nico, você já pensou quem você é? - Eu sou o Nico... Nicolau, se você quer saber! - Não! Eu não quero saber o seu nome! Eu tô perguntando quem é você... você mesmo! - Ué!? Eu sou o Nico. Já disse...” Na pergunta de Ula há uma distância entre as suas palavras e a escuta de Nico. É que, nesse caso, a intenção e a intensidade da sua questão requeriam uma escuta especial, pois, anteriormente, ela havia se visto em um espelho, “bem no fundo dos seus olhos”... Seria preciso que Nico estivesse atento não apenas à formulação da sua pergunta, mas ao que se mantinha latente, ao silêncio que a ligava a uma experiência, ou a uma sucessão de experiências que rompiam com a repetição mecânica da vida. Porém, isso deveria exigir que ele pudesse ir em busca daquilo que as palavras de Ula apenas indiretamente anunciavam. É a partir desta fronteira que o texto começa a nos dizer algo: ali, onde nós mesmos podemos dizer algo a partir da tensão com os limites do dizer e com o silêncio prenunciado em uma situação vivencial; pois é preciso que também possamos perguntar a nós mesmos, a partir desse mesmo lugar, onde nos percebemos calar, mesmo em situação bastante diversa. Pois, se cada vivência é única, para cada um e a cada momento de nossas vidas, ela é também inexaurível, e instiga o pensar a um retorno às suas próprias condições de possibilidade e a um cuidado com o dizer. Nico não compreende a pergunta de Ula. E Ula não deixa de se admirar também com o fato de Nico não compreender a sua interrogação. Talvez as sua palavras possam fazê-lo buscar, por si mesmo, o seu significado... ou não. Não basta a ela formular a pergunta para que ela se torne significativa para Nico. Isso não depende apenas dela, ou ela deveria propor outro caminho. Por isso, ela irá pensar sobre o uso das palavras: mais tarde, ao lado de sua mãe, percebe que elas parecem não dar conta daquilo que pretendia dizer. No retorno à sua vivência, e defrontando-se com os limites das suas palavras, ensaia um diálogo interior e outra relação consigo mesma. Continua a perguntar, formando uma rede de questões nas quais está implicada a construção do sentido da sua vida: “Quem sou eu? Eu mesma, não o meu nome... E por que eu estou aqui no mundo?” Ao pensar assim, Ula percebe que, se Nico ainda não pôde escutá-la, quem sabe o próprio leitor poderá compreendê-la? Ula quer saber, então, se aquele que lê já passou pela mesma experiência que ela: “E, você? Já se olhou bem no fundo dos seus olhos?”. Há, nessa pergunta, a indicação de outro ponto de partida. E o ponto de partida define a direção de todo o caminhar. O texto, por si só, não é filosófico: é preciso interagir com ele. É a atitude do leitor frente ao texto o que o torna filosófico. Para ler e sentir a significação do texto é preciso ler e sentir aquilo que as palavras sugerem, para além, ou aquém das próprias palavras. Talvez, no entanto, as palavras possam convidar a uma experimentação originária do viver e, assim, suscitar aquilo que só o silêncio pode dizer... A significação das perguntas de Ula não estão apenas nos enunciados, ou mesmo nas imagens; mas no silêncio a que remetem. E o silêncio é esta impossibilidade de esgotar o acontecimento com o dito e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de calar ante a sua densidade. Mas, nesse caso, é preciso romper com a repetição, retroagir sobre o próprio pensar, e recriar caminhos, para que o dizer possa adentrar aquilo que lhe excede. As perguntas que Ula faz a Nico e ao leitor, em A pergunta de Ula, ou à sua mãe, em O olho e o olhar, são perguntas que antes ela fez a si mesma. E as suas perguntas podem ser também as nossas perguntas. Mas, para que possam ser nossas, cada um deverá assumi-las, antes, para si mesmo e diante de si mesmo. Talvez seja possível, então, um encontro entre dois silêncios, uma aproximação na diferença e na unicidade, uma escuta especial. Ula é uma criança e, como criança, partilha da infância da condição humana. O termo infância indica, etimologicamente, aquele que está ‘sem voz’. Pois é preciso perder a voz para reencontrá-la em sua possibilidade outra e inaugural; é preciso calar para inverter a direção habitual de nossas relações com a linguagem. A infância do humano é também a infância da linguagem (cf. Kohan, 2002; Agamben, 2001) na medida em que designa o estado do que é novo, inaugural e incita a pensar. As perguntas de Ula nascem de vivências e guardam, assim, o desejo de saber. São acolhidas em sua interioridade e, aí, lhe movem. Quem se admira com o mundo, com o viver, com os fenômenos que lhe cercam, quem interroga a partir de um gesto admirativo e vê, com um novo olhar, aquilo que era tido como já-sabido e dialoga, assim, consigo mesmo e com o outro, converge para uma outra relação com o conhecimento. Trata-se, como na alegoria da caverna, de Platão, tematizada na história As sombras da caverna, de ver a própria cegueira, o que equivale a superá-la. Na história Estranho e curioso, as situações de estranhamento e admiração da personagem expressam um convite a que cada leitor possa formular as suas próprias interrogações. Há, aqui, algo que não pode ser ‘transmitido’ a outrem. Mas, talvez possa ser aprendido. O filosofar é um gesto que deve ser redescoberto por cada um, em sua própria diferença, e em sua própria experiência do pensar. Será preciso, então, reconhecer uma via indireta, pela qual poderemos participar do aprender do outro. Participamos de seu aprendizado ao lhe permitir inventar os caminhos do seu próprio aprender, no contexto da relação que mantemos com o nosso aprender. Isso exige um compromisso, reinaugurado e reaprendido a cada dia, ou a cada etapa das nossas vidas. Instigamos, facilitamos, ou convidamos, indiretamente, a aprender, quando somos, nós mesmos, aprendizes do aprender, e partilhamos, na diferença, as nossas próprias diferenças. 2. Quando o pensar se diz em sua diferença A leitura de um texto é um momento da leitura da vida. Vista desse modo, a leitura se insere no quadro de um acontecimento mais amplo. Isso inclui a possibilidade de se poder não apenas interagir com aquilo que se está lendo, mas, também, de recriar o sentimento de fruição do ato de ler. O prazer inicia-se, assim, apenas no momento em que não estamos mais, stricto sensu, “lendo palavras”, e os códigos da língua escrita conotam um movimento mais abrangente. Pois, quando o texto nos diz algo, somos nós mesmos quem o diz, ante aquilo que é sugerido, em sua estrutura, a um pensar que o ordena e perspectiva para recolher e acolher relações possíveis, e nos limites da coerência lógica interna de sua estrutura, com o viver. Quando interpretamos, assim, o sentido de um texto, a partir do estilo, dos motivos e das linhas de força de outro pensar, ensaiamos um diálogo onde as antecipações de seus horizontes de sentido traçam paralelos com a diferença, a originalidade e a coerência do nosso próprio pensar, isto é, de um pensar que retorna sucessivamente à sua posição de origem e, na dinâmica instaurada pelo ziguezague entre o que é enunciado e o que permanece não dito, ou anunciado, elabora sentidos. Mais além do escrito, os textos estão por toda parte; porém, o leitor está, grande parte do tempo, ausente. Nesse processo, brincar de pensar, por uma leitura que deseja uma interação vivida com o derredor, pode se constituir em um desafio. Porém, o pensar se move frente a desafios. Instigante é o desafio que advém do maravilhar-se pela sensibilidade que impregna o olhar diante do que excede o próprio saber. “As coisas belas são difíceis”, diriam os gregos, pois é preciso habilitar-se a uma outra visão e a uma outra condição. Trata-se de uma escolha que se põe ao princípio de todas as outras, para aceitar, ou não, esse desafio. Relativamente ao filosofar, o desafio não está na vivência, em si mesma, mas em resgatar, a partir da mesma, a fruição, o tomar posse da própria temporalidade no prazer de um pensar que se move a partir do seu silêncio, e em direção a ele, e rompe com a repetição. E, se esse dizer deseja e requer o diálogo com o outro, até mesmo para se autocompreender, esse diálogo já será diferente. Mais que regras e procedimentos determinados, será também a desconstrução, a recriação dos métodos, na interseção da complexidade de um diálogo intra e intersubjetivo, pela escuta atenciosa do outro desde a própria interioridade, a abrir caminhos onde o pensar espera o inesperado. Nesse caso, a diferença do pensar não está apenas nos conteúdos, mas na forma e na dinâmica do pensar, em sua inauguralidade potencial. Se, por um lado, esse caminho transcende o diálogo investigativo e metódico, por outro, vale-se de procedimentos que auxiliam a compreensão, a aproximação dialógica, o avançar, passo a passo, no processo de elaboração. Pois o pensar originário retroage sobre o pensar antes de qualquer método, de qualquer procedimento, mas se serve de métodos e procedimentos, mesmo para negá-los ou recriálos. Pensar sobre o pensar... não é um mero pensar, ou o pensar segundo regras, mas o pensar que surpreende a si mesmo em uma relação outra com o dizer. Considerado em seu dinamismo, o filosofar não é, portanto, um pensar de ordem superior, mas um pensar que tensiona com os seus próprios limites, excedendo-os ante o desafio de construir, desconstruir e reconstruir sentidos ao viver. Nesse caso, a hierarquização – e a conseqüente exclusão de todo outro pensar ‘inferior’ – dá lugar à diferença da potência do pensar, onde múltiplas lógicas se tornam virtualmente latentes na circularidade entre o dito e o não-dito. A vivência ou a atitude admirativa, ou ainda, dito de outro modo e dentre outras possibilidades, o retorno ao limite no qual o dizer poderá adentrar o seu próprio silêncio, não se reduzem a um ‘ponto de partida’, uma propedêutica do filosofar e, menos ainda, do filosofar das crianças, exclusivamente consideradas. O movimento em direção à gênese do filosofar parece ser indissociável da possibilidade de conferir significabilidade filosófica a qualquer texto ou contexto a todo aquele que suspende o juízo ante a sua condição no mundo como condição de instauração de um horizonte de sentido ao seu próprio viver. Caso contrário, a leitura será reduzida a uma hermenêutica exclusivamente analítica. Porém, o horizonte de significação filosófica de um texto ou contexto exige uma visão de conjunto, e exige a reintegração do mesmo ao viver, na temporalidade de cada leitor e em sua experiência do pensar. É preciso, então, percorrer o caminho indireto que anuncia o sentido do que se lê, quando então o que há de significativo no dizer remete para além dos enunciados. Nesse dinamismo, o pensar assume a sua diferença, na medida em que a diferença do pensar não é apenas o ‘pensar diferente’, mas a condição na qual o pensar assume e acolhe, em seu dizer, aquilo que lhe excede, preparando as condições de seu devir-outro. 3. Uma concepção metodológica é também uma posição ético-política O problema de saber como ensinar-aprender filosofia ou a filosofar deve ser antecedido pelo problema de saber o que é a filosofia e o filosofar? E o que é o pensar? Estes são problemas que se definem no âmbito de cada filosofia, no decorrer da história. A primeira conseqüência direta dessa consideração é a de que qualquer concepção acerca de como ensinar-aprender filosofia ou a filosofar congrega, explícita ou implicitamente, uma posição acerca das relações entre a racionalidade, o conhecimento e o sentido do humano. E nenhuma posição é isenta, pois traz consigo profundas implicações na práxis ética, política e educacional. Não há neutralidade possível. Trata-se sempre de uma posição que, em qualquer caso, tem conseqüências práticas. Pois delimitamos, em cada caso, e segundo pressupostos diversos, a compreensão das relações entre linguagem e ação, afirmando e negando possibilidades de realização de nossas experiências no mundo. Assume-se, portanto, no exposto acima, que pensar é agir. Mesmo que esse agir seja mecânico e repetitivo, e ignore, assim, a sua própria potência. Ou não... Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2001. BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1996. BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant. Paris: Quadrigue/PUF, 1993. BORNHEIM, Gerd A. Motivação básica e atitude originante do filosofar. Porto Alegre: Meridional, 1961. DILTHEY, Wilhelm. Vida y poesía. México: Fondo de Cultura Económica, 1953. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. KOHAN, Walter Omar. 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