www.direitoacomunicacao.org.br/novo/index.php?option=com_docman&task=doc_downl oad&gid=218 DIREITO HUMANO À COMUNICAÇÃO: UMA AFIRMAÇÃO CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS1 Roberto Cordoville Efrem de Lima Filho2 1. Quem criminaliza quem e o discurso hegemônico na esfera pública. Durante os meses de Junho e Julho do ano de 2006, multiplicaram-se no estado de Pernambuco outdoors, cartazes e notas públicas com os seguintes dizeres: “Sem-Terra: sem lei, sem respeito e sem qualquer limite. Como tudo isso vai parar?”. Assinava o material midiático a Associação de Oficiais Subtenentes e Sargentos da Polícia e Bombeiro Militares de Pernambuco (AOSS). A mensagem alusiva aos movimentos sociais de trabalhadores(as) rurais em luta pela terra, notadamente ao Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem-Terra (MST), constituía apenas uma face da estratégia da associação. Alguns meses antes, ela havia publicado em jornais de grande circulação em Pernambuco notas de repúdio às entidades de defesa dos Direitos Humanos, acusando-as de “defensoras de bandidos” e propagando a tese segundo a qual os Direitos Humanos deveriam servir aos “humanos direitos”. O discurso da AOSS, não é possível negar, reverbera socialmente, encontra espaço no senso comum conservador, ao tempo que traz para ele novos elementos. É o discurso da criminalização dos movimentos sociais, ou seja, da tentativa bem sucedida de transformar 1 Trabalho defendido no II Seminário Internacional de Direitos Humanos, promovido pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em Setembro de 2006. 2 Roberto Cordoville Efrem de Lima Filho é estudante do curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, ex-monitor das disciplinas de Ciência Política e Introdução ao Estudo do Direito II, pesquisador do PIBIC/CNPq, extensionista do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular – Direito nas Ruas e militante do Movimento Nacional de Direitos Humanos. 1 os sujeitos políticos organizados em criminosos, baderneiros, arruaceiros, deslegitimando sua condição de disposição ao convencimento, seus argumentos e práticas. Em suma: o discurso em questão é aquele que procura retirar os movimentos sociais da esfera pública, relegando-lhes o lócus social de criminosos, estes, por sua vez, sujeitos que, segundo o próprio senso comum, devem ser excluídos da participação democrática. Importante, nesse contexto, exercer certa caracterização política dos sujeitos nele envolvidos. Ou, como Boaventura Santos3 diria, é preciso regressar às perguntas simples, ainda que elas aparentem ser um “B A BA” desprovido de razão no mundo acadêmico. Quem são os movimentos sociais? Quem criminaliza os movimentos sociais? O que é o senso comum? Desenhar as correlações de forças e interesses sociais, mesmo que superficialmente, é fator fundamental tanto para o desenvolvimento do presente trabalho quanto para a proposição da solução dos conflitos nelas embutidos. A resposta para quem são os movimentos sociais e os sujeitos que os criminalizam pode ser encontrada naquilo que Paulo Freire denomina “contradição opressores- oprimidos(as)”4. Em uma definição superficial, os movimentos sociais representam a organização solidária dos sujeitos oprimidos em prol de sua libertação. Quem pretende sua libertação, por certo, quer se livrar do que o/a domina, oprime. Os movimentos sociais são, portanto, resultado de um processo de auto-reconhecimento numa relação em que há oprimidos(as) e opressores. Se os movimentos sociais são a comunidade oprimida organizada, quem são os opressores? Ora, quem se vale da subordinação conseqüente das relações de opressão, quem lidera a hegemonia. Antônio Gramsci, citado por John Downing5 quando de sua teorização acerca da mídia radical, assegura que a hegemonia capitalista consistiria no domínio cultural da classe dominante (opressora) sobre a classe trabalhadora (oprimida). É certo que as múltiplas relações de opressão não estão presentes exclusivamente na relação capital-trabalho, mas é preciso salientar, compartilhando uma visão de mundo marxista, que a estrutura econômica 3 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 55. 4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.30. 5 DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: SENAC São Paulo, 2002, p. 46. 2 repercute sobremaneira sobre todas as manifestações da contradição opressoresoprimidos(as), seja difundindo a cultura das elites, cultura esta condizente com seus interesses econômicos, seja como fato gerador direto da opressão. Os opressores, dessa forma, sendo aqueles que se valem da subordinação dos(as) oprimidos(as) capitaneando a hegemonia, são conseqüentemente aqueles que se valem do modo de produção capitalista. O senso comum, segundo Boaventura Santos6, é aquele que quando contrastado com o paradigma científico da modernidade, assume o caráter de obviedade, objetividade e preconceito, em contraposição ao conhecimento científico moderno, este prodigioso e incompreensível. O senso comum, em outros termos, seria o conhecimento compartilhado pelas classes oprimidas e tomado pejorativamente por não alcançar a certeza científica da modernidade. Não é, nem de longe, no entanto, um conhecimento disposto à libertação dos(as) oprimidos(as), ou formador de uma consciência de classe, diferenciando-se assim do conhecimento popular7. É orientado pela ideologia hegemônica das classes dominantes, estas detentoras do conhecimento científico moderno ou, no mínimo, do status de quem o detém. A Associação de Oficiais Subtenentes e Sargentos da Polícia e Bombeiro Militares de Pernambuco ao difundir na sociedade o discurso de criminalização dos movimentos sociais encontra nela – inclusive nas classes populares – respaldo argumentativo. Mas isso não por intenção das classes populares: atribuir culpa aos sujeitos oprimidos pela sua própria condição é um instrumento discursivo da classe opressora que, culpando os/as oprimidos(as), desresponsabiliza-se pela relação de opressão. Um exemplo: o fato de a população em geral desconhecer as atividades educativas e os pleitos políticos do MST, julgando então o Movimento como agressor e baderneiro, não é culpa da população ou do MST. Ocorre que os latifundiários e a classe dominante, como será discutido no próximo tópico deste trabalho, possuem um poder de convencimento social muito maior que o do MST. Latifundiários e MST ocupam posições assimétricas na esfera pública. Esta que, 6 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 107. 7 PERUZZO, Cicília Krohling. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 118. 3 segundo Jürgen Habermas8 deveria ser uma “estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento”, ou “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opinião”, faz-se na realidade como um processo depositário9 de conhecimentos e valores de uma classe sobre a outra, ou seja, um espaço de opressão. 2. O exercício democrático e o Direito Humano à Comunicação Em resposta às investidas da AOSS e a outros casos similares ocorridos no estado, os movimentos sociais pernambucanos deram início em Julho de 2006 a um fórum de debates acerca da criminalização dos movimentos sociais na mídia. Este fórum, inicialmente promovido pela Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG), tem contado com a participação dos mais diversos movimentos e organizações sociais. Do MST ao Fórum de Mulheres de Pernambuco, do Observatório Negro, organização do movimento negro, ao Núcleo de Assessoria Jurídica Popular – Direito nas Ruas (NAJUP): aproximadamente trinta entidades contribuem com o processo. Resultado dos trabalhos do fórum foi a produção de uma carta aberta à sociedade em repúdio ao crescente processo de criminalização dos movimentos sociais no estado. A produção em questão foi delegada a uma comissão formada por aproximadamente cinco entidades da sociedade civil, tendo suas atividades coordenadas por Cássia Bechara, assessora de comunicação do MST/PE. O inteiro teor da carta foi objeto de discussão de uma plenária em que, além da comissão, estavam presentes todos os movimentos e organizações envolvidos na discussão. Este acadêmico, dada sua participação no NAJUP – Direito nas Ruas, teve a oportunidade de participar da comissão de feitura da carta. Mas o que é uma carta no supracitado contexto de assimetria da esfera pública, de crise democrática, em que o direito de origem liberal à liberdade de expressão é insuficiente para garantir a efetivação do acesso aos meios de comunicação pela maioria da população? O que é uma carta num país em que 37,5% da distribuição de concessões da mídia televisiva 8 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade, vol. 2. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 92. 9 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.57. 4 estão nas mãos do Partido da Frente Liberal – partido representante da extrema direita concentradora de propriedades e, portanto, de informações?10 Não é de hoje que movimentos sociais afirmam a necessidade de reconhecimento do Direito à Comunicação para a garantia do exercício democrático. O Estatuto Social do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação11 desde 1996 prevê: “Art. 2º - São finalidades do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação: I - fomentar, por todas as suas instâncias e meios, a democratização da comunicação; II - incentivar a máxima ampliação das condições de acesso de todos os segmentos da sociedade à propriedade, posse e utilização dos meios de comunicação social;” A razão do reconhecimento se apresenta na concepção de democracia em discussão. Se em pauta está uma democracia superficial, de caráter liberal, caracterizada pela representatividade, pela igualdade formal-abstrata e pela centralização da política, os argumentos do FNDC e de outros movimentos sociais atuantes na seara da comunicação nela não encontram apoio. No entanto, se a concepção em questão for a da radicalização democrática, da participação popular, da descentralização dos processos decisórios, da igualdade material e da efetivação dos Direitos Fundamentais, o Direito à Comunicação a ela é imprescindível. Isso porque não há que se falar em democracia – ao menos não nessa última concepção – sem igualdade real de possibilidade de convencimento. O ideário paulofreireano já citado não propõe relevância política ao diálogo à toa. Se não houver horizontalidade nas relações sociais, igual potencial de expor idéias, concordar, discordar, argumentar, não há democracia. Ou, segundo o socialista Rodolfo Cabral: “enquanto poucos falarem e muitos apenas ouvirem não vai haver democracia na comunicação, tampouco um Estado Democrático”.12 Por isso reconhecer a comunicação como um direito, 10 CAPPARELLI Sérgio; LIMA Venício A. de. Comunicação e televisão desafios da pós-globalização. São Paulo: Hacker Editores, 2004, p. 30. 11 FNDC. Estatuto Social do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação. Disponível em: < http://www.fndc.org.br/arquivos/estatuto.doc>. Acesso em: 01 de ago. 2006. 12 CABRAL, Rodolfo de Carvalho. O Direito de Antena e a Democratização dos Meios de Comunicação no Brasil. In: Anais do V Congresso Jurídico dos Estudantes de Direito – Direito e Comunicação. Recife: Editora Universitária UFPE, 2006. 5 assegurando sua essência pública, desconstruindo então a visão consumeirista propagada pelos grandes meios de comunicação. O tratamento da comunicação como um objeto de consumo é um elemento discursivo hegemônico merecedor de considerações. A idéia de que algo é passível de comercialização, afasta a priori a sua essencialidade à democracia. Algo que depende das leis do mercado, que é consumível e comercializável ao bel prazer de interesses particulares não pode ser tido como fundamental à dignidade da pessoa humana. Não é, no entanto, de estranhar que o senso comum acredite “consumir comunicação”. É como consumidor que a população é percebida pelos meios de comunicação de massa, isso quando não é o sujeito receptor da informação o próprio objeto, coisificado, com sua humanidade descaracterizada. Sobre a temática, a própria Constituição Federal Brasileira de 1988 tem o que dizer. Em seu Art. 21 recebe a comunicação como um serviço público. Ou seja, de acordo com a concepção democrática adotada pela Constituição é preciso compreender a comunicação como um Direito Fundamental, portanto de função pública. Assim sendo, deve ser encarado não como um objeto, mas sim como uma face do exercício da Democracia acessível a todos e todas. 3. Conclusão: a afirmação do Direito Humano à Comunicação e o fortalecimento da contra-hegemonia. O que é consumível o sujeito compra, do que é público o sujeito participa. A participação na comunicação social demanda, no entanto, acesso aos meios de comunicação. Aqui o discurso do Direito Humano à Comunicação afeta diretamente as elites econômicas e se coloca mais claramente junto à discursividade contra-hegêmonica, visto que a concentração dos grandes meios nas mãos desse grupo social é colocada em xeque. Como dito anteriormente, se não garantida a igualdade material na possibilidade do convencimento, inexistente é a Democracia. A radicalização democrática, dessa forma, interferiria diretamente no projeto de hegemonia da classe dominante. Não é por outra razão que o tratamento legal brasileiro direcionado às rádios comunitárias, tradicionais 6 meios de comunicação dos movimentos populares, burocratiza e restringe a formalização desse instrumento de organização13. Não se quer a descentralização dos meios, mesmo que eles sejam locais e de menor repercussão. Quer-se a centralização, o domínio e a manutenção do poder de formação da opinião pública e do senso comum. Qualquer sujeito político que se oponha a esse cenário, segundo a ideologia hegemônica, deve ser mantido na periferia do processo de produção de informação e conhecimento. Esse é o lócus destinado pela supracitada hegemonia aos movimentos sociais que, criminalizados, além de não acessarem os grandes meios de comunicação, são deslegitimados em sua condição de interlocutores em disposição ao diálogo. O que é uma carta? O começo. É um instrumento que busca, nas palavras de Gramsci, formar um “vínculo de solidariedade com os que se encontram na mesma situação”14 organizando assim a contra-hegemonia. Os trabalhos do fórum pernambucano de discussão acerca da criminalização dos movimentos sociais refletem uma tentativa desses movimentos de propor um contraponto à opinião opressora propagada pelos meios de comunicação de massa. É certo que a estratégia dos movimentos não é proporcional ao aparato que as elites detém, mas inicialmente democratiza entre os próprios movimentos sociais a relevância política da comunicação social. Ocorre que ela deve ser pleiteada não por uma ou outra entidade, por este ou aquele movimento, mas por todos eles. É fundamental que se tenha início nos movimentos e conseqüentemente na sociedade um estranhamento com relação ao atual contexto comunicativo nacional. É preciso que ele perca seus ares de naturalidade, que seja questionado. Boaventura Santos propõe esse estranhamento como pressuposto para a tópica da emancipação, para a formação de um novo senso comum. Este senso comum reinventado prezaria a solidariedade no campo da ética, a participação na política e a criação e o reencantamento na estética15. Esses princípios devem ser compartilhados pelos movimentos sociais na sua prática cotidiana, mas em verdade são insuficientes quando se trata do senso 13 SILVEIRA, Paulo Fernando. Rádios Comunitárias. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 40. GRAMSCI, Antônio. Escritos Políticos, vol. 1. Organização e Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 59. 15 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 107. 14 7 comum da sociedade. Nela, a existência desse novo senso comum é impossível enquanto o modo de produção capitalista moldar as relações humanas, enquanto houver uma elite. Quero dizer com isso que, a não ser que um processo de ruptura com o atual sistema econômico tenha início, a democracia radical não se efetivará, tampouco se realizarão os Direitos Humanos em sua plenitude. Apenas uma sociedade socialista, quiçá comunista, promoveria então o desenvolvimento da esfera pública simétrica, desprovida de relações de opressão e promotora do Direito Humano à Comunicação, assim como de todos os Direitos Fundamentais à dignidade da pessoa humana. 3. Referências Bibliográficas. CABRAL, Rodolfo de Carvalho. O Direito de Antena e a Democratização dos Meios de Comunicação no Brasil. In: Anais do V Congresso Jurídico dos Estudantes de Direito – Direito e Comunicação. Recife: Editora Universitária UFPE, 2006. CAPPARELLI Sérgio; LIMA Venício A. de. Comunicação e televisão desafios da pósglobalização. São Paulo: Hacker Editores, 2004. DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: SENAC São Paulo, 2002. FNDC. Estatuto Social do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação. Disponível em: < http://www.fndc.org.br/arquivos/estatuto.doc>. Acesso em: 01 de ago. 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade, vol. 2. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. PERUZZO, Cicília Krohling. Comunicação nos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. SILVEIRA, Paulo Fernando. Rádios Comunitárias. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. 8 9