Cães que não ladram

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Ricupero, Rubens “Cães que não ladram. “São Paulo: Folha de São Paulo, 06 de março de 2005
JEL:H
Cães que não ladram
RUBENS RICUPERO
No início do ano, um jornal britânico comparava o enigma da economia americana ao
episódio em que Sherlock Holmes solucionava um mistério, analisando o "curioso
incidente" do cachorro que não latiu quando deveria tê-lo feito. Para o editorial, o cachorro
que não havia latido tinha sido o mercado de títulos de longo prazo dos EUA, o qual, contra
toda lógica, terminara 2004 mais baixo do que no início. O jornal esperava que os juros
longos subissem -e, de fato, o movimento começou-, mas julgava desconcertante que isso já
não tivesse ocorrido antes.
Essa perplexidade capta bem a reação dos analistas a aspectos surpreendentes do
comportamento da economia americana e da mundial, nos quais o cachorro deveria latir e
ficou calado. Esperava-se, por exemplo, que o brusco aumento do petróleo provocasse
convulsão na Europa, como em meados de 2000, mas a valorização do euro em relação ao
dólar serviu de almofada.
Não obstante o festival de consumismo nos EUA, o endividamento generalizado, a
explosão das falências individuais, o desaparecimento da poupança familiar, as dívidas
continuam a cruzar a estratosfera e os consumidores tomam de assalto as lojas em dias de
liquidação.
Outro elemento do quebra-cabeça é a persistência do núcleo da inflação em nível baixo
apesar do crescimento rápido, do aprofundamento do déficit orçamentário e dos choques
petrolíferos. Tampouco se esperava que o déficit comercial dos EUA continuasse a se
escancarar depois que o dólar sofrera diante do euro perda de valor de 38%. O que nos
aconselha, aliás, a pôr as barbas de molho no caso de outro cachorro que, até agora, não
latiu: o da lentidão da reação das exportações brasileiras à valorização do real. Lá como
aqui, mudança preocupante da taxa cambial demora a produzir efeito, mas, quando produz,
é mortal, conforme ensinava mestre Simonsen.
É verdade que, medida pelo índice balanceado do Fed, a desvalorização do dólar foi de
apenas 16%. A discrepância se explica pela resistência da China e de demais asiáticos à
valorização de suas moedas, assegurando que o ajuste americano recaia em cheio sobre os
que não querem ou não podem evitar essa apreciação: europeus, latino-americanos,
brasileiros.
Por quanto tempo ainda há de prolongar o silêncio do cachorro diante do que alguns
chamam de "equilíbrio instável" e prefiro denominar "desequilíbrio estável"? Isto é, o
macrodesequilíbrio da economia mundial gerado pelo déficit comercial dos EUA, que se
aproxima dos 6% do PIB, mas consegue financiar-se, ano após ano, engolindo 70% dos
saldos de conta corrente somados da China, do Japão, da Alemanha e muitos outros países
superavitários.
Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI e professor de Harvard, e Maurice Obstfeld,
de Berkeley, acham que esse deveria ser o problema número 1 na agenda financeira do
presidente Bush e que a explosão está perto. Já Richard Cooper, também de Harvard e exsubsecretário do Tesouro, discorda radicalmente. Para ele, o déficit é não só sustentável
mas perfeitamente lógico, à luz do apetite mundial por bons retornos e reservas em dólares.
Não lhe parece exagero que os investidores queiram destinar 10%-15% da poupança global
(US$ 6 trilhões) aos EUA, onde os investimentos são mais rentáveis e seguros. O déficit
refletiria não só uma deficiência de poupança nos EUA em relação aos investimentos mas
também excesso de poupança no resto do mundo comparado às oportunidades de
investimento. Daí, conclui, qualquer intento de reduzir abruptamente o déficit americano
ocasionaria uma recessão mundial.
Como se vê, economistas respeitáveis têm, sobre o problema crucial da economia, opiniões
diametralmente opostas. Pelo jeito, continuaremos condenados à perplexidade até que o
cachorro comece a latir. Esperemos, quando isso acontecer, que ele só lata e não morda...
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