119 8.0. Considerações finais 8.1. Uma definição para adolescência e saída da adolescência Percorridos os aspectos socio-históricos e psíquicos presentes na constituição da adolescência, podemos, enfim, chegar a uma definição que os articule sem cair em deformações sociologistas ou psicologistas, evitando desse modo uma concepção ideológica de adolescência. Alguns psicanalistas já buscaram uma definição como essa. Utilizo aqui a de Ruffino (1996, p.93) para introduzir essa articulação: “adolescer é construir-se de modo a fazer, na ‘interioridade’ de sua história subjetiva, aquilo que faltou na ‘exterioridade’ do social”. Ou, como afirma, em outro momento (1995, p.42): Adolescer é (...) um acontecimento que se apresenta à subjetividade sob uma dupla face. Em uma das faces, é uma instituição historicamente constituída que caracteriza a modernidade e se materializa na subjetividade de cada um ao tempo de seu final de infância. Em outra face, é uma operação psíquica que se põe em marcha no interior da subjetividade de cada um, por faltar fora, no espaço da sociabilidade, o trabalho que outrora fora societário e que cuidava da hominização adulta dos membros de uma comunidade. Numa outra perspectiva, Rosa (2002, p.230), ao demonstrar como as identificações e os ideais vinculam o sujeito ao grupo social, também busca tal articulação: 120 ...dois pontos se articulam: a constituição subjetiva engendrada no complexo de Édipo e as considerações freudianas sobre as transformações no sujeito, quando enlaça-se nos grupos sociais. Acrescente-se mais um aspecto: a inserção dos agentes do grupo familiar na sociedade. O exercício das funções materna e paterna opera-se a partir dos lugares (...) atribuídos ou não aos membros de determinada família, classe social e ao momento cultural. A sua eficácia não é independente de tais fatores, uma vez que a família é, ao mesmo tempo, o veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expressão, em sua organização, do funcionamento de uma classe social (...). Com estes elementos, pode-se considerar a adolescência como a operação que expõe a cena social presente na base da cena familiar, até então encarregada das operações referentes às funções materna e paterna para a constituição subjetiva. Partindo dessas definições e, principalmente, de todo percurso realizado até aqui, pode-se dizer, portanto, que a adolescência é um fenômeno próprio da modernidade e consiste, em suma, em um momento de ressignificação da metáfora paterna – que implica um período de travessia de identificações –, decorrente do impacto, no sujeito, do encontro com o real da puberdade em uma sociedade contraditória – pois, se por um lado produz uma cultura capaz de oferecer ao sujeito uma ampla variedade de opções para que se estabeleçam novas identificações simbólicas, por outro, onera-o por mobilizar sua libido para fins economicamente (ir)racionais, impelindo-o a realizar identificações imaginárias a fins de consumo e dificultando, assim, a elaboração dos conflitos psíquicos provenientes desse encontro. Em meio a tudo isso, é o próprio significante adolescente que permite ao jovem se situar perante os outros por meio de uma identificação com uma imagem que sustente seu eu. É, portanto, a subjetivação desse significante pelo indivíduo – que se dá então a partir de uma construção da imagem do que é “ser um adolescente” – que lhe garante, assim, uma identidade como indivíduo de um grupo social, o que não basta, porém, para que se sustente como sujeito desejante. 121 No entanto, é preciso deixar claro que nessa definição há uma tensão entre o que é da ordem do sujeito e das condições totalitárias de nossa sociedade. Por um lado, se o jovem passa por dificuldades nesse processo, isso não se deve somente às condições sociais. Há muitos casos em que as dificuldades dizem respeito mais a uma inibição obsessiva, um sintoma histérico ou um surto psicótico, por exemplo, que não são derivados diretamente das condições sociais, mas das fantasias produzidas por um sujeito no decurso de sua história de vida que lhe davam acesso a um meio de gozo. Creio que é isso que pode nos levar a definir uma saída da adolescência: o abandono de um meio de gozo encontrado na infância. Se, de fato, as condições sociais apontadas favorecem a permanência dos filhos na casa dos pais1, considerada para alguns como um comportamento adolescente, isso não significa, contudo, de um ponto de vista psicanalítico, uma permanência do sujeito na adolescência. Um jovem pode muito bem morar na casa dos pais sem que isso signifique que ele se posicione diante deles como um adolescente, como também ele pode muito bem morar sozinho preservando uma posição de submissão ante à autoridade de um pai imaginário. Trata-se aí de uma escolha inconsciente do sujeito. Foi o que observamos no caso de Fernando. Vimos aí como a entrada no mundo do trabalho é um momento simbólico para o sujeito, pois o remete à autonomia financeira, à saída da casa dos pais e, conseqüentemente, à definitiva responsabilização por sua própria vida. Exatamente por isso, Fernando voltou a repetir uma inibição obsessiva que se fazia presente em todas questões de ordem 1 Uma recente pesquisa realizada no Rio de Janeiro demonstra que aproximadamente 30% dos adultos moram com os pais. A maioria desses adultos justifica essa permanência pela possibilidade de fazer seu “pé-de-meia” enquanto não casam ou enquanto não conseguem dinheiro para comprar sua própria residência (Henriques, 2004). 122 simbólica, por exemplo, quando ia se posicionar diante de seus pais, diante de uma mulher e, enfim, diante de seu próprio desejo, como também na escolha do curso universitário. Nesses momentos, muitas vezes ele mesmo voltava a delegar para a mãe a responsabilidade sobre seus desejos, evitando a todo custo assumir um lugar fálico – daí sua queixa de uma adolescência prolongada. Essa inibição surgiu também na forma de um pânico na apresentação de seminários ou na conversa com um professor, que, por sua vez, representavam a conclusão do curso e, ao mesmo tempo, uma nova demanda do Outro para que se posicionasse de forma a se comprometer com seus próprios desejos. Evidencia-se, assim, a função precisa desse sintoma: protelar as escolhas para evitar sua assunção como sujeito. Essa difícil imcumbência de assunção foi observada também por Leclaire, embora sua preocupação não fosse tratar do tema da adolescência. Em El obsessivo y su deseo (1974), ele relata fragmentos da análise de outro sujeito obsessivo. Filón, um rapaz de trinta anos que ainda não se sentia um homem. Diz Leclaire (op. cit., p.144, 145): Aos trinta anos, ele continua sendo o pequeno, o submisso, o que pede com cortesia, pede desculpas a todo momento, lamenta seus próprios estalidos. Não se sente semelhante a esses machos que possuem mulheres: todavia, isso não é consciente para ele, e quase escuta a voz que o diz: “quando for grande”. Então se rebela, protesta, proclama sua superioridade, sua inteligência, mas não faz nada. E continua se sentindo o mesmo: porém, não é “um grande”. Não se sente possuidor nem senhor de seu próprio sexo.2 A experiência clínica do inconsciente apresenta evidências, portanto, de que não há uma correlação direta entre um sintoma e as condições sociais. 2 Tradução minha do espanhol. 123 Por outro lado, é muito sério, como diz Alberti (1996, p.95), quando essas condições [morais] chegam a impedir toda a ação do sujeito, não tanto por uma inibição obsessiva, mas antes por um imperativo cultural, levando-o a uma inibição que Freud chama de neurótica fundamental – aquela que o proíbe de modificar o futuro. Por isso, como diz Ramos (1997, p.64), a denúncia da fixação obsessiva a um desejo impossível não pode impedir que se questione (...) as condições opressivas da totalidade sobre as aspirações do particular. (...) Por esse motivo, a exclusividade do enfoque psicanalítico do sujeito é insuficiente e perigosa, e sua confrontação com as condições objetivas é necessária e esclarecedora. Mas há também um outro termo conceitualizado por Lacan que pode servir para essa confrontação: o gozo. 8.2. Sobre o gozo do sujeito na sociedade moderna Longe de tentar traçar aqui as diferentes conotações desse termo na teoria psicanalítica3, pretendo usá-lo principalmente em seu sentido extraído das relações entre gozo, linguagem e corpo onde essas “encontram correlatos em questões éticas” (Dunker, 2002, p.42), uma vez que “o lugar conferido ao gozo inspira, em Lacan, uma crítica a certas posições éticas consolidadas a partir da modernidade” (op. cit., loc. cit.). Segundo Roudinesco e Plon (1998), o gozo foi inicialmente associado ao prazer sexual, como se observa nas poucas vezes que Freud utilizou este termo. Foi 3 Para quem interessar, ver Valas (2001) e Dunker (2002). 124 Lacan quem estabeleceu a distinção entre gozo e prazer, apontando no primeiro aquilo que o sujeito busca, mas que está para além do prazer, estando por isso sempre associado a um excesso ou uma transgressão de um limite. Trata-se, na sua origem, de um movimento ligado à busca de um objeto com o qual o sujeito encontrou uma satisfação decorrente da resposta à necessidade4, o que impele o sujeito à repetição do processo por meio do investimento pulsional. Segundo os autores (op. cit., p.300), “a necessidade transforma-se então em demanda (..) sem que, no entanto, o gozo inicial, o da passagem da sucção para o chuchar, possa ser resgatado. O Outro imaginário permanece inatingível, barrado pela demanda que se tornou ilusoriamente primária”. Isso remete à inacessibilidade a um gozo pleno. Lacan desenvolve essa idéia ao estabelecer algumas modalidades de gozo: o gozo do Outro, que corresponde à satisfação originária, apresentada como mítica, “uma perda que produz mítica e retrospectivamente um momento originário onde se mostraria não perdido” (Dunker, 2002, p.34), isto é, um gozo do corpo, real, pois está para além do significante; o gozo fálico, “que resulta de sua codificação pelo significante e assume sua significação fálica no Édipo” (Valas, 2001, p.36), o gozo obtido pela realização da significação como, por exemplo, num chiste; dessa significação resta, porém, um gozo que escapa ao significante na forma do objeto a, o mais-gozar.5 Numa perspectiva clínica, o gozo se apresenta como um paradoxo para o sujeito: “como o sujeito desejante pode estar à procura do gozo, enquanto este comporta, na sua obtenção, a abolição subjetiva?” (Valas, 2001, p.34). Isto ocorre na 4 A busca de um objeto perdido desde a mais tenra infância especificado por Freud, como vimos no capítulo 5.0.. 5 Há ainda o gozo feminino que Lacan elaborou a partir das fórmulas da sexuação, que não discutirei aqui. 125 medida em que essa busca de uma satisfação perdida implica insatisfação, sofrimento, dada sua inacessibilidade. Fernando, por exemplo, toda vez – entrando aqui na dimensão da repetição – que era demandado a ocupar um lugar em que deveria se colocar como um sujeito desejante, obliterava seu próprio desejo, parecendo buscar um estado não-desejante. Nesse quadro, como diz Dunker (2002, p.53), a questão ética, na relação com o Outro, assumiria a seguinte forma: como sustentar o desejo, e subjetivá-lo, uma vez que sua causa é também matéria de gozo, e, portanto, de apagamento do sujeito? Em outras palavras, como não reduzir o Outro ao outro e ao mesmo tempo fazer-se sujeito? Soma-se a esse quadro todas as condições sociais apontadas acima. Ramos (1997, p.70), inclusive, lembra-nos que é preciso buscar no conceito de gozo “a possibilidade de confrontação com o âmbito do social e nova leitura que dela pode emergir para este conceito”. Esse autor procura descobrir por meio da noção de gozo qual o benefício do indivíduo ao se alienar na massa. Para isso, aponta a coordenada estrutural do sujeito do inconsciente, enfatizada por Lacan, para compreender a sustentação desse gozo, e sua emergência e manutenção, enfatizada por Adorno e Horkheimer, na dialética do esclarecimento. Nesse enfoque teórico crítico, o gozo é visto como uma tentativa de escapar à civilização, uma vez que é por meio dele que os homens conseguem se livrar do pensamento (Adorno & Horkheimer, 1944, p.101). Paradoxalmente, as sociedades totalitárias fazem uso desse gozo para preservação da civilidade, levando-os simultaneamente à barbárie. Como isso se dá? 126 Segundo Adorno e Horkheimer (op. cit., loc. Cit.) Os dominadores apresentam o gozo como algo racional, como tributo à natureza não inteiramente dominada: ao mesmo tempo procuram torná-lo inócuo para seu uso e conservá-lo na cultura superior; e, finalmente, na impossibilidade de eliminá-lo totalmente, tentam dosá-lo para os dominados. O gozo torna-se objeto da manipulação até desaparecer inteiramente nos divertimentos organizados. Não é preciso entrar em minudências aqui, pois já vimos anteriormente6 como esse domínio é necessário para manutenção da engrenagem social e como ela ocorre, no plano da adolescência, por meio da transmissão de ideais, nos quais está presente a ideologia do consumo, que são circulados pela indústria cultural. Com isso, como afirma Ramos (1997., p.180), O gozo cai sob o domínio das forças sociais e vai se rarefazendo nos momentos controlados que a própria sociedade cede, usando as ‘energias’ do gozo para as vias de consumo. Cada vez menos ‘gozo’ e ‘controle social’ se opõem, graças à ‘magia’ alcançada pelo consumo, que não é mais do que a efetivação do domínio social do gozo. O gozo já não pode ‘atrapalhar’ os objetivos da totalidade, pois agora ele é um de seus soldados. Trata-se, portanto, de uma sociedade que impele os indivíduos ao gozo, daí a articulação tanto de Lacan como de Adorno e Horkheimer do imperativo categórico de Kant com o fantasma sadeano do gozo. Assim, como diz Zizek (apud Ramos, 1997, p.179), A situação tradicional do sujeito burguês liberal que recalca por meio de sua ‘lei interna’, seus impulsos inconscientes, que tenta dominar, por meio do autodomínio, sua própria ‘espontaneidade’ pulsional, sofre uma inversão, na medida em que a instância do controle social não mais assume a forma de uma 6 Capítulo 2.3 e 2.4. 127 ‘lei’ ou de uma ‘proibição’ interna que exige a renúncia, autodomínio, etc., mas, antes, assume a forma de uma instância ‘hipnótica’ que inflige uma atitude de ‘se deixar levar pela correnteza’, e cuja ordem se reduz a um Goza! – o próprio Adorno já o disse – à imposição de um gozo obtuso ditado pelo meio social (...). Ramos (2002) também utiliza a expressão “socialização do gozo” para descrever esse fenômeno social. Segundo o autor (op. cit., p.16), entende-se por isso “quer a produção e a determinação sociais do gozo como satisfação inconsciente de um sujeito particular, quer a apropriação, absorção ou dominação desta satisfação pela esfera social”. Penso, entretanto, como já afirmei, que as evidências clínicas confirmam que o ser humano paga um preço simbólico pela aquisição da linguagem. Uma vez constituído esse mundo da linguagem, o Outro, a inserção do sujeito nesse campo traz implicações irreversíveis, pela própria estrutura da linguagem. Por isso, creio que o gozo, como satisfação para além do prazer, não é constituído pelas condições sócio-históricas da modernidade; sua determinação social estaria somente no fato de que historicamente os homens se organizaram pela mediação da linguagem. Justamente por isso que não basta conscientizar os indivíduos para que eles consigam largar um meio de gozo que os levam a um sofrimento intenso. É só pela experiência do inconsciente que alcançamos, de maneira evanescente, o sujeito. É o que nos mostra também a análise de Fernando: é somente por meio dessa experiência que ele pôde fazer um cálculo de seu gozo, como diz Dunker (2002), mesmo não tendo consciência de como isso aconteceu – ele chegou a dizer que não sabia como nem por que, mas tinha mudado após falar livremente sobre tudo que lhe ocorria. Assim, como afirma Quinet (1991, p.118), a análise, ao levar o sujeito a atravessar a fantasia, promove um abalo e uma 128 modificação nas relações do sujeito com a realidade, levando-o a uma zona de incerteza, pois ele é largado pela âncora da fantasia, liberado das amarras das identificações que mapeavam sua realidade. Lembrando, contudo, que se a conscientização não liberta o sujeito de suas fantasias infantis, a experiência analítica, por sua vez, não liberta o indivíduo da coerção social, embora talvez ele passe a reconhecê-la com mais facilidade. Um analisando não está livre das condições sociais que o leva a encontrar soluções neuróticas para o impasse provocado por elas. Por isso, pode-se dizer também que a sociedade moderna se apropriou e dominou as vias de um gozo possível para manutenção de seu sistema, trazendo conseqüências psíquicas para os indivíduos e contribuindo, inclusive, para o fortalecimento – por meio da expansão do mundo do consumo – da adolescência e de seu prolongamento.