A REFORMA DO ENSINO MÉDIO: Universalização, Eqüidade e Desigualdade. Dirce Maria Falcone Garcia1 Este trabalho refere-se a uma reflexão sobre a reforma do Ensino Médio, em andamento no Brasil após a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996, e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCENEM), aprovadas em 01/06/1998. Segundo o Art.º. 21, da L.D.B., o Ensino Médio constitui a fase final do Nível I da educação escolar, a Educação Básica, com duração de 3 anos e foi proposto com as seguintes finalidades: “ I- Consolidação e aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental; II- preparação básica para o trabalho e para a cidadania do educando de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação; III- o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética, o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV- a compreensão dos fundamentos científico-tecnológico dos processos produtivos, relacionando teoria com prática, no ensino de cada disciplina.” ( LDB n. 9394/96). Segundo o texto oficial, ao configurar a educação básica não obrigatória, o Ensino Médio deve ser organizado para superar a exclusão dos maiores contingentes de jovens das camadas populares que aspiram “empregabilidade e melhoria de vida” (PCNEM,1999), bem como dos que já estando inseridos no mercado de trabalho (jovens ou jovens adultos), necessitam da escolaridade para a melhoria salarial e social, ou adquirir habilidades no manejo das novas tecnologias. Relacionando o acesso limitado ao Ensino Médio como reflexo da desigualdade social, que o modelo de crescimento econômico aqui dominante instaurou, propõe a universalização deste nível de ensino como estratégia para a competitividade econômica nacional no cenário mundial, e para o exercício da cidadania, embora reconhecendo as dificuldades que esta proposição envolve. O documento explicativo oficial, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, o PCNEM, ainda justifica a necessidade da reforma neste nível de ensino, com uma vocação historicamente dualista ou para a preparação para o trabalho, com caráter de terminalidade, ou para a continuidade dos estudos em nível superior, como imposição da reestruturação do sistema produtivo, desencadeada 1 Doutoranda FE- UNICAMP. 2 pelas alterações substanciais no mercado de trabalho, nas relações produtivas, na gestão das empresas e na utilização de novas tecnologias. E, tomando por referência as alterações ocorridas na organização educacional de vários países do mundo, baseadas na integração curricular e na desespecialização profissional, sugere que o Ensino Médio seja unificado, voltado para a formação de competências, habilidades e disposição de condutas mais do que pela quantidade de informações. “Essa preparação será básica ou seja, aquela que deve ser a base para a formação de todos e para todos os tipos de trabalho. Por ser básica, terá como referência as mudanças nas demandas do mundo do trabalho, daí a importância da capacidade de continuar aprendendo; não se destina apenas àqueles que já estão no mercado de trabalho ou que nele ingressarão no curto prazo; nem será preparação para o exercício de profissões específicas ou para a ocupação de postos de trabalho determinados” (PCNEM,1999:70) E, para “não ser subordinado apenas às necessidades da economia”, deve agregar idéias de humanismo e diversidade, fundamentais ao desenvolvimento mais equilibrado da personalidade dos indivíduos e à preparação para a vida. Uma breve reflexão sobre as novas diretrizes organizadoras do Ensino Médio e voltadas à sua universalização porque reconhecidamente desigual, põe a descoberto, nas estratégias políticas da implementação da lei, descompassos e ambigüidades em vários aspectos, demonstrando, no mínimo, a aplicação de um “receituário” segundo um paradigma que ignora as condições históricas e sócioeconômicas do país. A universalização deste nível de ensino, desejável e necessária, demandaria maiores investimentos. E no entanto, há cortes orçamentários para as políticas sociais, inclusive para a educação pública. Além disso, há recomendações do Banco Mundial para que a prioridade seja dada ao Ensino Fundamental, por ser este nível de ensino o que proporciona maior retorno econômico (segundo estudos do próprio banco), sendo irracional o investimento público em um nível de ensino mais elevado (situação do Ensino Médio) e, menos ainda, em um tipo de educação de formação profissional cara e demorada, (situação do Ensino Médio Técnico) em face da crescente extinção dos postos de trabalho e da mudança (KUENZER,2000:23). do paradigma técnico para o tecnológico. 3 Tudo indica que estas recomendações são aceitas e transformadas em diretrizes das políticas oficiais. Tanto que as escolas públicas técnicas, estaduais ou federais, têm diminuído a oferta de vagas para o Ensino Médio Regular Integrado, tendendo tais escolas técnicas para a oferta de cursos modulares específicos, de média e curta duração, destinados a alunos que têm até a 8ª série, ou que estejam cursando o Ensino Médio regular ou que já tenham terminado o Ensino Médio. Além disso, de acordo com o novo modelo de Estado proposto dentro do contexto da globalização e da predominância das práticas neoliberais, o Estado tem trabalhado com políticas compensatórias, fundadas no princípio da eqüidade, por exemplo. Para APPAY(1997) este conceito, usado com o intuito de substituir o conceito de igualdade, responsável por inspirar as políticas de Integração Social, sobretudo no Pós-guerra, pressupondo a possibilidade de garantir a todos estabilidade, cidadania e pleno emprego, sugere que o contrato social, na atualidade, deve ser estabelecido em nome das diferenças, dando a cada um segundo as suas necessidades específicas. Na prática, reconhece a desigualdade e aquilo que poderia ser um avanço não se configura como tal porque a ação política está direcionada no sentido de compensar, minimamente, as carências dos setores mais necessitados da população, dentro da racionalidade econômica, não com o objetivo de promover maior igualdade, mas de conter num determinado patamar social, a grande massa que poderia pressionar por benefícios sociais. Esta apropriação do conceito transposta para a área da educação leva a uma política seletiva, com os ciclos mais altos reservados a uma minoria, normalmente dos grandes centros urbanos e com uma trajetória de freqüência a escolas de bom nível educacional. A organização do sistema de educação tende a um padrão flexível que facilite o crescimento do setor privado, e o término precoce da escolaridade com custos mais baixos. De acordo, ainda, com APPAY (1997), o processo de institucionalização legitimadora da precarização social, decorrente deste novo modelo do sistema capitalista, o da “acumulação flexível” ( HARVEY, 1996), se faz pela apropriação paradoxal de conceitos de caráter progressista como o de flexibilidade, competência, autonomia e eqüidade, entre outros. Perceber tal uso ideológico desses conceitos é essencial para a compreensão das relações contraditórias do momento, fundadas em combinações de 4 opostos que dificultam a percepção clara do processo de concentração de capitais, de exclusão social, de atomização do indivíduo e do trabalhador, em suma, do aumento das distâncias sociais. Com relação ao Ensino Médio, aprofundam-se as distâncias sociais, embora o discurso e os dados quantitativos pareçam indicar o oposto. Porque houve um real aumento do acesso às escolas de Ensino Médio_ o número de alunos dobrou, mas ainda assim atende à apenas 25% dos jovens nesta faixa etária. Houve um crescimento do Ensino Médio, sobretudo do noturno, e também do supletivo, para os alunos com defasagem na relação idade/ curso ( crescimento de 40%), o que provoca uma pressão nos cursos superiores (crescimento de 20% ao ano). Este crescimento no curso superior, com um aumento no número de vagas de 58% entre 1994 e 1999, tem ocorrido nas escolas privadas. Estes dados divulgados pelo INEP ( Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais ) do MEC, são mostrados como símbolos da “ melhoria do ensino”, tendo sido cunhada a expressão revolução silenciosa do ensino, para designar este fato.(Estado de São Paulo, 25/10/2000,Geral. EDUCAÇÃO- A- 13). Tais dados são significativos e mostram que, realmente, os alunos com origem social nas camadas populares têm chegado aos níveis mais elevados da escolaridade, exigindo uma escola mais adequada à sua realidade e melhor estruturada; e não o aligeiramento do ensino. Os jovens estudantes do Ensino Médio, estudam, em sua maioria, nos cursos noturnos das escolas públicas; trabalham normalmente no setor de serviços, e neste, nos ramos mais precarizados, estando em condições desiguais desde a partida. As escolas públicas, empobrecidas em termos de equipamentos, bibliotecas, laboratórios e de pessoal, vêem sua situação ser agravada por uma série de outros condicionantes objetivos acrescidos a estes acima citados, configurando o quadro responsável pelos resultados insatisfatórios da educação pública: desde questões sociais vinculadas à segurança dos alunos e professores, decorrentes da violência crescente nos centros urbanos, condicionando o aumento das ausências às aulas ou a saída antecipada no turno, até às práticas administrativo-pedagógicas ligadas à implementação das normas legais educacionais segundo as políticas sociais de contenção de custos. Observam-se distorções no proposto, confundindo qualidade da educação com elevação dos índices de aprovação, o que seria louvável caso não decorresse da minimalização do ensino. Quanto mais a educação ministrada é 5 superficializada, mais os órgãos oficiais celebram o sucesso_ um sucesso meramente estatístico. E a apropriação do conhecimento oficial, que garante maior possibilidade de acesso à inserção social, _ sabendo-se que a escolaridade é condição necessária mas não suficiente para a empregabilidade _ fica restrita a poucos, aos bem- nascidos ou àqueles que resistem em permanecer à margem do trabalho e da participação social. E a segmentação entre escolas públicas e privadas, refletindo a origem de classe de seus clientes continua cada vez mais nítida, reforçando a dualidade que a reforma não elimina. Não por ineficiência, mas porque faz parte do modelo de política compensatória de contenção social, jogar com afirmações contraditórias, implementar ações que se chocam, criar situações paradoxais, que conduzem a expectativas frustradas, por garantir distinção social, prestígio, acesso ao conhecimento e ao poder, apenas, aos já incluídos. Ou seja, a declaração formal, no texto da lei, do fim da dualidade do ensino, baseada na eqüidade e na universalização do ensino, embora positiva, é insuficiente. Porque as práticas, no momento da implementação da lei, revelam ao contrário, o reforço das desigualdades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPAY, B. Precarisation sociale et reestructurations productives. In: APPAY, B. & MONY, A . T. ( orgs. ) Precarisation sociale, travail et santé. Paris: IRESCO, 1997. ESTADO DE SÃO PAULO, 25/10/2000,Geral. EDUCAÇÃO- A- 13. HARVEY, D. A Condição Pós- Moderna. São Paulo: Loyola, 1996. KUENZER, A .Z. Dossiê Ensino Médio. In: Educação e Sociedade. Campinas: CEDES/ UNICAMP, ano XXI, n. 70, p. 16-39 Abril/2000. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS- Ensino Médio. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. Brasília- MEC. 1999. SAVIANI, D. A Nova Lei da Educação- LDB, Trajetória, Limites e Perspectivas. São Paulo: Editora Autores Associados,1998. TOMASI, L. WARDE, M. J. HADDAD, S. (orgs) O Banco Mundial e as Políticas Educacionais. São Paulo: Cortez/ PUC/Ação Educativa, 1998.