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Pensando sobre sexo:
Notas para uma teoria radical da política da
sexualidade*
Gayle S. Rubin**
I - As guerras sexuais
Consultado, o Dr. J. Guerin afirmou que, depois de ter
experimentado em vão outros tratamentos, ele conseguira
curar meninas viciadas em onanismo queimando os seus
clitóris com um ferro quente... Eu aplico a ponta quente três
vezes em cada grande lábio e uma no clitóris... Depois da
primeira operação, o número de espasmos voluptuosos, que
era de catorze a quinze vezes por dia, diminuiu para três ou
quatro... Acreditamos, pois, que em casos semelhantes
àqueles que nos foram apresentados, não se pode hesitar em
recorrer ao ferro quente, e o mais cedo possível, para
In: ABELOVE,Henry; BARALE, Michèle Aina e HALPERIN, David. The Lesbian and
Gay Studies Reader. London/New York, Routledge, 1992. Gayle S.Rubin,
Publicado pela primeira vez em VANCE, Carole S. (ed.) Pleasure and Danger:
Exploring Female Sexuality, 1984.
** Antropóloga feminista que escreveu sobre uma vasta gama de assuntos, entre os
quais teoria antropológica, sexo sadomasoquista e literatura lésbica moderna.
Neste ensaio, publicado pela primeira vez em 1984, Rubin afirma que no Ocidente,
a década de 1880, a década de 1950 e a era contemporânea foram períodos de
pânico sexual, períodos nos quais o Estado, as instituições médicas e a mídia
popular se mobilizaram para atacar e oprimir aqueles cujos gostos sexuais diferem
dos que são aceitos pelo modelo vigente de correção sexual. Ela afirma também
que na era contemporânea o ataque mais feroz é dirigido contra aqueles que
praticam sexo sadomasoquista e intergerações. Rubin sustenta que se temos que
desenvolver uma teoria que explique o surgimento e a orientação do pânico sexual,
temos que fundamentar a teoria não apenas no pensamento feminista. Embora o
pensamento feminista explique as injustiças de gênero, ele por si só não pode
explicar, de forma completa, a opressão das minorias sexuais. Atualmente Gayle S.
Rubin está trabalhando numa coletânea de seus ensaios – inclusive seu famoso
trabalho teórico “Traffic in Women” – e num trabalho etnográfico e histórico sobre
a comunidade homossexual masculina leather de San Francisco.
*
cadernos pagu (21) 2003: pp..
Pensando sobre sexo
combater o onanismo clitoriano e vaginal em meninas.
(Demetrius Zambaco1)
Chegou a hora de pensar sobre sexo. Para alguns, a
sexualidade pode parecer um assunto sem importância, um desvio
frívolo de problemas mais graves como pobreza, guerra, doença,
racismo, fome ou destruição nuclear. Mas é precisamente em
épocas como essa, quando vivemos sob a ameaça de uma
destruição inimaginável, que as pessoas ficam perigosamente
enlouquecidas com a sexualidade. Os conflitos contemporâneos
relacionados aos valores sexuais e ao comportamento erótico têm
muito em comum com os conflitos religiosos de séculos passados.
Eles adquirem um imenso peso simbólico. Discussões sobre o
comportamento sexual muitas vezes são meios de esquivar-se de
preocupações sociais e descarregar as tensões sociais que as
acompanham. Assim sendo, a sexualidade devia ser tratada com
especial cuidado em tempos de grande stress social.
O reino da sexualidade também tem sua própria política interna,
suas desigualdades e modos de opressão. E, juntamente com outros
aspectos do comportamento humano, as formas institucionais
concretas da sexualidade em determinado tempo e lugar são
produtos da atividade humana. Elas são permeadas por conflitos de
interesses e por manobras políticas, tanto deliberadas como
acidentais. Nesse sentido, o sexo é sempre político. Mas há também
períodos históricos em que as disputas em torno da sexualidade são
mais acirradas e mais abertamente politizadas. Nesses períodos, o
domínio da vida erótica é renegociado.
A Inglaterra e os Estados Unidos viveram um período como esse
no final do século XIX. Nessa época, vigorosos movimentos sociais
preocuparam-se com “vícios” de todo tipo. Havia campanhas
ZAMBACO, Demetrius. Onanism and Nervous Disorders in Two Little Girls. In:
PERALDI, François. (ed.) Polysexuality, Semiotext(e), vol. IV, nº 1, 1981, pp.31, 36.
1
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Gayle S. Rubin
educacionais e políticas para promover a castidade, eliminar a
prostituição e desestimular a masturbação, especialmente entre os
jovens.Cruzados da moralidade atacavam a literatura pornográfica,
os nus na pintura, music-halls, o aborto, informações sobre
controle de natalidade e casas de dança.2 A consolidação da
moralidade vitoriana, assim como o aparato social médico e jurídico
que a respaldavam, eram conseqüência de um longo período de luta
cujos resultados, desde então, têm sido objeto de uma disputa
feroz.
As conseqüências desses grandes paroxismos morais do
século XIX ainda estão presentes entre nós. Elas deixaram uma
marca profunda nas atitudes em relação a sexo, nos procedimentos
médicos, na educação das crianças, nas preocupações dos pais, na
ação da polícia, na legislação sobre sexo.
A idéia de que masturbação prejudica a saúde é parte dessa
herança. No século XVIII era crença geral que um interesse
“prematuro” por sexo, a excitação sexual e, acima de tudo, a
liberdade sexual, prejudicavam a saúde e comprometiam o
amadurecimento de uma criança. Os teóricos divergiam sobre as
reais conseqüências da precocidade sexual. Alguns achavam que ela
levava à loucura, outros achavam que prejudicava o crescimento.
Para proteger os jovens do despertar prematuro para o sexo, os pais
amarravam as crianças à noite para que não pudessem se tocar; os
médicos amputavam os clitóris das meninas que se masturbavam.3
GORDON, Linda e DUBOIS, Ellen. Seeking Ecstasy on the Battlefield: Danger and
Pleasure in Nineteenth Century Feminist Sexual Thought. Feminist Studies, vol. 9,
nº 1, primavera de 1983; MARCUS, Steven. The Other Victorians. Nova York, New
American Library, 1974; RYAN, Mary. The Power of Women´s Networks: A Case
Study of Female Moral Reform in America. Feminist Studies, vol. 5, nº 1, 1979;
WALKOWITZ, Judith R. Prostitution and Victorian Society. Cambridge, Cambridge
University Press, 1980; e Male Vice and Feminist Virtue: Feminism and the
Politics of Prostitution in Nineteenth-Century Britain. History Workshop Journal,
nº 13, primavera de 1982; WEEKS, Jeffrey. Sex, Politics and Society: The
Regulation of Sexuality Since 1800. Nova York, Longman, 1981.
3 BARKER-BENFIELD, G.J. The Horrors of the Half-Known Life. Nova York, Harper
Colophon, 1976; MARCUS, S. The Other Victorians. Op. cit.; WEEKS, J. Sex, Politics
2
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Pensando sobre sexo
Embora as técnicas mais terríveis tenham sido abandonadas, as
atitudes e pontos de vista que as motivaram persistem. A idéia de que
o sexo, em si mesmo, é prejudicial aos jovens se materializou em
estruturas sociais e jurídicas destinadas a afastar os jovens do
conhecimento e da experiência sexual.
Muito da legislação ainda vigente relativa a sexo data das
cruzadas morais do século XIX. A primeira lei federal contra a
obscenidade nos Estados Unidos foi aprovada em 1873. A Lei
Comstock – que leva o nome de Anthony Comstock, um velho
ativista contra a pornografia e fundador da New York Society for the
Suppression of Vice – tornou um crime federal fazer, anunciar,
vender, possuir, enviar pelo correio ou importar livros com
ilustrações consideradas obscenas. A lei também proibia as drogas
e dispositivos anticoncepcionais e abortivos, assim como a
divulgação de informações sobre eles.4 Na esteira da lei federal,
muitos Estados criaram suas próprias leis contra a obscenidade.
Na década de 1950, a Suprema Corte começou a limitar o
alcance da lei Comstock tanto nos estados como no âmbito Federal.
Em 1975, a proibição do uso de métodos anticoncepcionais e da
veiculação de informações sobre estes se tornou inconstitucional.
Não obstante, embora as disposições legais tenham sido
modificadas, sua constitucionalidade fundamental foi preservada.
Assim, continua sendo crime fazer, vender, enviar pelo correio ou
importar material com a finalidade exclusiva de provocar excitação
sexual.5
Embora as disposições legais sobre a sodomia datem de
estratos mais antigos da lei, quando elementos do direito canônico
foram incorporados aos códigos civis, a maioria das leis que
determinavam a prisão de homossexuais e prostitutas deriva das
campanhas vitorianas contra a “escravidão branca”. Essas
campanhas levaram às miríades de proibições: contra abordagem
and Society… Op. cit., principalmente páginas 48-52; ZAMBACO, D. Onanism and
Nervous... Op. cit.
4 BESSERA, Sarah Senefield; FRANKLIN, Sterling G. e CLEVENGER, Norma. (eds.) Sex
Code of California. Sacramento, Planned Parenthood Affiliates of California, 1977,
p.113.
5 ID., IB., pp.113-17.
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Gayle S. Rubin
de potenciais clientes pelas prostitutas, comportamento indecente,
vagabundear para fins imorais, atos que só são considerados
criminosos em função da idade de quem os pratica, bordéis e casas
de tolerância.
Em sua discussão sobre o medo britânico da “escrava
branca”, a historiadora Judith Walkowitz observa:
Pesquisas recentes indicam uma vasta discrepância entre
relatos jornalísticos horripilantes e a realidade da
prostituição. Há poucos registros de prisão de moças em
Londres e em outras cidades.6 6
Contudo, a fúria do público com esse pretenso problema...
...levou à promulgação da Emenda do Direito Penal de 1885,
uma lei bastante abrangente e particularmente odiosa e
perniciosa. A lei de 1885 elevou de 13 para 16 a idade do
consentimento, e também ampliou muitíssimo o poder da
polícia sobre as mulheres e crianças pobres das classes
trabalhadoras... ela continha uma cláusula que criminalizava
os atos indecentes praticados de comum acordo por homens,
criando assim as bases legais para que se pudessem processar
homossexuais homens na Grã Bretanha até 1967... as
cláusulas da nova lei foram aplicadas principalmente contra
as mulheres da classe trabalhadora, e disciplinavam mais o
comportamento sexual dos adultos que o dos jovens.7
Nos Estados Unidos, a Lei Mann, também conhecida como
Lei do Tráfico de Escravas Brancas, foi promulgada em 1910.
Posteriormente, todos os estados da União aprovaram uma
legislação contra a prostituição.8
Na década de 1950, nos Estados Unidos, aconteceram
mudanças mais importantes em relação à organização da
WALKOWITZ, J. R. Male Vice and Feminist Virtue. Op. cit., p.83. Toda a discussão
de Walkowitz sobre Maiden Tribute of Modern Babylon e suas consequências
(pp.83-5) é muito esclarecedora.
7 ID., IB., p.85.
8 BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp.106-7.
6
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Pensando sobre sexo
sexualidade. Em vez de se concentrar na prostituição e na
masturbação, as preocupações da década de 1950 voltaram-se mais
especificamente para o fantasma da “ameaça homossexual” e o
dúbio espectro do “criminoso sexual”. Pouco antes e pouco depois
da Segunda Guerra Mundial, o “criminoso sexual” se tornou objeto
do temor e da vigilância pública. Muitos estados e cidades,
inclusive Massachusetts, New Hampshire, Nova Jersey, Estado de
Nova York, Cidade de Nova York e Michigan, iniciaram programas
para colher informações sobre essa ameaça à segurança pública.9 O
termo “criminoso sexual” às vezes era aplicado aos estupradores, às
vezes aos “molestadores de crianças” e finalmente passou a
designar, em linguagem cifrada, os homossexuais. Em suas versões
burocráticas, médicas e populares, o discurso sobre o criminoso
sexual tendia a apagar as distinções entre ataque sexual violento e
atos ilegais, mas consensuais, como sodomia, por exemplo. A
justiça criminal incorporou essas idéias quando uma onda de leis
relativas a psicopatas sexuais assolou a legislação dos Estados.10
Essas leis deram às profissões ligadas à psicologia um maior poder
de polícia sobre os homossexuais e outros “desviados”.
Do final da década de 1940 até o começo da década de 1960 as
comunidades eróticas cujas atividades não se coadunavam com o
sonho americano do pós-guerra sofreram intensa perseguição. Os
homossexuais, juntamente com os comunistas, foram objeto da
caça às bruxas e dos expurgos que se davam em nível federal.
COMMONWEALTH OF MASSACHUSETTS. Preliminary Report of the Special
Commission Investigating the Prevalence of Sex Crimes, 1947; ESTADO DE NEW
HAMPSHIRE. Report of the Interim Commission of the State of New Hampshire to
Study the Cause and Prevention of Serious Sex Crimes, 1949; CIDADE DE NOVA
YORK. Report of the Mayor´s Committee for the Study of Sex Offences, 1939;
ESTADO DE NOVA YORK. Report to the Governor on a Study of 102 Sex Offenders at
Sing Prison, 1950; HARTWELL, Samuel. A Citizen´s Handbook of Sexual
Abnormalities and the Mental Hygiene Approach to Their Prevention. Estado de
Michigan, 1950; ESTADO DE MICHIGAN, Report on the Governor´s Study
Commission on the Deviated Criminal Sex Offender, 1951. Aqui temos apenas
uma amostra.
10 FREEDMAN, Estelle B. “Uncontrolled Desire”: The Threat of the Sexual
Psychopath in America, 1935-1960. Trabalho apresentado no Encontro Anual da
American Historical Association, San Francisco, dezembro de 1983.
9
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Gayle S. Rubin
Inquéritos parlamentares, decretos-lei e denúncias públicas
sensacionalistas objetivavam banir os homossexuais do serviço
público. Milhares perderam seus empregos, e até hoje ainda
existem restrições ao emprego de homossexuais no serviço público
federal.11 O FBI começou a vigiar e a importunar de forma
sistemática os homossexuais, e isso durou pelo menos até a década
de 1970.12
Muitos estados e cidades grandes conduziram suas próprias
investigações, e a caça às bruxas em âmbito federal refletiu-se em
grande número de punições severas locais. Em Boise, Idaho, em
1955, um professor primário sentou-se para tomar café e leu no
jornal que o vice-presidente do First National Bank de Idaho fora
preso sob acusação de ter praticado felonia e sodomia; o promotor
local
afirmou
pretender
eliminar
completamente
o
homossexualismo na comunidade. O professor não terminou de
tomar o café.
Ele pulou da cadeira, arrumou suas malas o mais depressa
que pôde, pegou o carro e foi direto para San Francisco... Os
ovos frios, o café e as torradas ficaram em sua mesa por dois
dias, antes que alguém da escola viesse ver o que se passara.13
Em San Francisco a polícia e a mídia moveram guerra contra
os homossexuais ao longo de toda a década de 1950. A polícia fazia
batidas em bares, patrulhava regiões onde se faziam encontros,
vasculhava ruas e anunciava aos quatro ventos sua intenção de
BÉRUBÉ, Allan. Behind the Spectre of San Francisco. Body Politic, abril de 1981;
e Marching to a Different Drummer. Advocate, 15 de outubro de 1981; D´EMILIO,
John. Sexual Politics, Sexual Communities: The Making of the Homosexual
Minority in the United States, 1940-1970. Chicago, University of Chicago Press,
1983; KATZ, Jonathan. Gay American History. Nova York, Thomas Y. Crowell,
1976.
12 D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., pp.46-7; Allan Bérubé, comunicação
pessoal.
13 GERASSI, John. The Boys of Boise. Nova York, Collier, 1968, p.14. Agradeço a
Allan Bérubé por ter me chamado a atenção para esse incidente.
11
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Pensando sobre sexo
banir as bichas de San Francisco.14 Punições severas contra
indivíduos, bares e áreas de convivência aconteciam em todo o país.
Embora as cruzadas contra os homossexuais sejam os exemplos
mais bem documentados de repressão erótica na década de 1950,
uma pesquisa futura poderia revelar padrões semelhantes de
repressão crescente contra materiais pornográficos, prostitutas e
desviantes eróticos de todos os tipos. É necessário fazer uma
pesquisa para avaliar todo o alcance da perseguição policial e da
reforma da legislação.15
Allan Bérubé, comunicação pessoal; D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit.; e
Gay Politics, Gay Communitiy: San Francisco´s Experience. Socialist Review, nº
55, janeiro-fevereiro de 1981.
15 Os exemplos seguintes apontam alguns caminhos para novas pesquisas.
Encontra-se um relato de uma ação repressiva local na Universidade de Michigan
em Tsang, Daniel. Gay Ann Arbor Purges. Midwest Gay Academic Journal, vol. 1,
nº 1, 1977; e em Ann Arbor Gay Purges part. 2. Midwest Gay Academic Journal,
vol. 1, nº 2, 1977. Na Universidade de Michigan, o número de professores
demitidos por suposto homossexualismo revela-se próximo do número de
demitidos por supostas tendências comunistas. Seria interessante poder analisar
dados estatísticos sobre o número de professores que perderam seus cargos nessa
época por crimes políticos, comparando-os com os que os perderam por delitos
sexuais. Na reforma da legislação, muitos estados aprovaram leis proibindo a
venda de bebidas alcoólicas a “notórios pervertidos sexuais” ou determinando o
fechamento de bares que atendiam a uma clientela de “pervertidos sexuais”. Uma
lei desse tipo foi aprovada na Califórnia em 1955, e declarada inconstitucional pela
Suprema Corte em 1959 (Allan Bérubé, comunicação pessoal). Seria muito
interessante saber exatamente que estados aprovaram leis como essas, as datas de
sua aprovação, a discussão que as precedeu, e quantas ainda estão em vigor. Sobre
a perseguição de outros grupos eróticos, há provas de que John Willie e Irving
Klaw, os dois primeiros produtores e distribuidores de bondage erótica nos
Estados Unidos do final da década de 1940 até o início da década de 1960, tiveram
muitos problemas com a polícia e que Klaw foi submetido a um inquérito
parlamentar conduzido pelo Comitê Kefauver. Devo à comunicação pessoal de J.B.
Rund as informações sobre as carreiras de Willie e Klaw. São raros os textos
publicados sobre o assunto, mas vejam-se WILLIE, John. The Adventures of Sweet
Gwendoline. Nova York, Belier Press, 1974; RUND, J.B. Preface. Bizarre Comix,
vol. 8, Nova York, Belier Press, 1977; Preface. Bizarre Fotos, vol. 1, Nova York,
Belier Press, 1978; e Preface. Bizarre Katalogs, Nova York, Belier Press, 1979.
Seria muito útil ter informações mais sistemáticas sobre mudanças jurídicas e
sobre ações policiais que afetaram a dissidência erótica não gay.
14
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Gayle S. Rubin
O momento presente tem semelhanças incômodas com as
décadas de 1880 e de 1950. A campanha de 1977 para revogar as leis
que garantiam direitos gays em Dade, Flórida, deu início a uma
nova onda de violência, perseguição pelo Estado e medidas
jurídicas dirigidas contra minorias sexuais e contra a indústria do
sexo. Nos últimos seis anos, os Estados Unidos e o Canadá
sofreram uma grande repressão sexual, no sentido político e não
psicológico. Na primavera de 1977, poucas semanas antes da
votação de Dade, os noticiários da mídia estavam cheios de
reportagens sobre batidas em áreas de encontros homossexuais,
detenções por prostituição e investigações sobre a produção e
distribuição de materiais pornográficos. Desde então, a ação
policial contra a comunidade gay cresceu de forma exponencial. A
imprensa gay documentou centenas de prisões, em lugares como as
bibliotecas de Boston, as ruas de Houston e as praias de San
Francisco. Mesmo as comunidades urbanas gays de grande porte,
organizadas e relativamente poderosas, não conseguiram evitar
esses ataques. Saunas e bares de gays eram depredados numa
freqüência assustadora, e a polícia ficou mais atrevida. Num
incidente especialmente dramático, os policiais de Toronto fizeram
uma batida nas quatro saunas de gays da cidade. Eles arrombaram
cubículos com pés-de-cabra e arrastaram para as ruas frias quase
trezentos homens envoltos em suas toalhas. Nem a “liberada” San
Francisco ficou imune. Instauraram-se processos contra muitos
bares, fizeram-se muitas prisões em parques e, no outono de 1981, a
polícia deteve mais de 400 pessoas numa série de batidas em Polk
Street, artéria de maior movimento da vida noturna gay local.
Agredir homossexuais se tornou um dos maiores divertimentos
para os jovens machões da cidade. Eles entravam nas zonas de
concentração gay armados com tacos de beisebol e procurando
confusão, sabendo que seus responsáveis adultos os aprovariam
secretamente ou olhariam para o outro lado.
A repressão da polícia não se limitou aos homossexuais. A
partir de 1977, passou-se a aplicar com maior freqüência as leis já
existentes contra a prostituição e a obscenidade. Além disso, os
estados e municípios começaram a tomar novas e mais rigorosas
medidas jurídicas para controle do sexo comercial. Promulgaram9
Pensando sobre sexo
se leis restritivas, alteraram-se leis de zoneamento, reformaram-se
regulamentos referentes a alvarás de funcionamento e segurança,
multiplicaram-se as sentenças e reduziram-se as exigências
probatórias. Essa sutil manobra jurídica para um controle mais
rigoroso sobre o comportamento sexual dos adultos foi
praticamente ignorada fora da imprensa gay.
Por todo um século, nenhum meio para despertar uma
histeria erótica foi mais eficiente que conclamar as pessoas para
proteger as crianças. A atual onda de terror erótico penetrou mais
fundo nas áreas que de certa forma confinam, ainda que apenas
simbolicamente, com a sexualidade dos jovens. O lema da
campanha pela revogação das já referidas leis de Dade era “Salvem
Nossas Crianças” – de um suposto aliciamento homossexual. Em
fevereiro de 1977, pouco antes da votação de Dade, uma
preocupação súbita com o tema da “pornografia infantil” sacudiu a
mídia nacional. Em maio, o Chicago Tribune publicou durante
quatro dias uma sombria série com manchetes garrafais que
pretendia denunciar um grupo de delinqüentes organizados para
atrair e recrutar meninos para a prostituição e pornografia.16 Em
todo o país, os jornais publicaram histórias semelhantes, com a
duvidosa credibilidade do National Enquirer. No fim de maio,
estava em curso um inquérito parlamentar. Algumas semanas
depois, o governo federal promulgou uma extensa lei contra a
“pornografia infantil” e muitos estados a acompanharam,
aprovando suas próprias leis. Essas leis restabeleceram restrições a
materiais de tema sexual que tinham sido abrandadas por uma das
importantes decisões da Suprema Corte. Por exemplo, a Corte
estabeleceu que nem a nudez nem o ato sexual em si eram
obscenos. Mas as leis sobre pornografia infantil definem como
obscena qualquer representação de menores nus ou entregues à
Chigago is Center of National Child Porno Ring: The Child Predators; Child Sex:
Square in New Town Tells it All; U.S. Orders Hearings On Child Pornography:
Rodino Calls Sex Racket an “Outrage” “Hunt Six Men, Twenty Boys in Crackdown,
Chicago Tribune, 16 de maio de 1977; Dentist Seized in Child Sex Raid: Carey to
Open Probe; How Ruses Lure Victms to Child Pornographers, Chicago Tribune, 17
de maio de 1977; Child Pornographers Thrive on Legal Confusion; U.S. Raids Hit
Porn Sellers, Chicago Tribune, 18 de maio de 1977.
16
10
Gayle S. Rubin
prática sexual. Isso significa que fotografias de crianças nuas em
livros-texto de antropologia e muitos dos filmes etnográficos
exibidos nas escolas são tecnicamente ilegais em muitos estados.
Na verdade, os monitores podem sofrer uma acusação adicional de
felonia por mostrar essas imagens a alunos com menos de 18 anos.
Embora a Suprema Corte tenha determinado ser um direito
constitucional possuir material obsceno para uso particular,
algumas leis contra pornografia infantil proíbem mesmo a posse
privada de qualquer material sexual que envolva menores.
As leis geradas pelo pânico da pornografia infantil são mal
elaboradas e mal direcionadas. Elas implicam alterações de longo
alcance na legislação sobre o comportamento sexual e revogam
importantes liberdades sexuais civis. Mas poucos perceberam
quando elas assolaram o Congresso e as Assembléias estaduais.
Com exceção da North American Man/Boy Love Association e da
American Civil Liberties Union, ninguém ensaiou um protesto.17
Um novo e ainda mais duro projeto de lei federal contra a
pornografia infantil acaba de chegar ao Senado. Ela revoga a
exigência, feita aos promotores, de provar que a suposta
pornografia infantil estava sendo distribuída para ser
comercializada. Se o projeto for transformado em lei, uma pessoa
que simplesmente possua a fotografia de seu namorado(a) de
dezessete anos despido, pode ir para a cadeia e cumprir quinze
anos de pena e pagar uma multa de 100.000 dólares. O projeto foi
aprovado na Câmara por 400 votos a 1.18
Para mais informações sobre o “pavor da pornografia infantil”, ver CALIFIA, Pat.
The Great Kiddy Porn Scare of ´77 and Its Aftermath. Advocate, 16 de outubro de
1980; e A Thorny Issue Splits a Movement. Advocate, 30 de outubro de 1980;
MITZEL. The Boston Sex Scandal. Boston, Glad Day Books, 1980; RUBIN, Gayle.
Sexual Politics, the New Right, and the Sexual Fringe. In: TSANG, Daniel. (ed.) The
Age Taboo. Boston, Alyson Publications, 1981. Sobre a questão dos
relacionamentos entre gerações diferentes, ver também MOODY, Roger. Indecent
Assault. Londres, Word is Out Press, 1980; O´CARROLL, Tom. Paedophilia: The
Radical Case. Londres, Peter Owen, 1980; TSANG, D. The Age Taboo. Op. cit.; e
WILSON, Paul. The Man They Called A Monster. New South Wales, Cassell
Australia, 1981.
18 House Passes Though Bill on Child Porn. San Francisco Chronicle, 15 de
novembro de 1983, p.14.
17
11
Pensando sobre sexo
A caso da fotógrafa de arte Jacqueline Livingston mostra bem
o clima criado pelo pânico da pornografia infantil. Professora
assistente de fotografia da Universidade de Cornell, Livingston foi
demitida em 1978 por ter exposto fotografias de pessoas do sexo
masculino nuas, inclusive a de seu filho de sete anos se
masturbando. As revistas Ms. Magazine, Chrysalis e Art News se
recusaram a publicar anúncios dos pôsteres de Livingston
mostrando homens nus. A certa altura, a Kodak confiscou alguns de
seus filmes e, por muitos meses, Livingston viveu sob a ameaça de
sofrer um processo com base nas leis contra a pornografia infantil.
O Departamento de Serviço Social de Tompkins investigou se ela
era capaz de exercer convenientemente a maternidade. Os pôsteres
de Livingston foram comprados pelo Museum of Modern Art, o
Metropolitan, e por outros grandes museus. Mas ela pagou um
preço muito alto – teve que suportar a perseguição e a ansiedade –
por seu esforço para registrar em filme o nu masculino, sem
censura, em diferentes idades.19
É fácil reconhecer numa pessoa como Livinston uma vítima
das campanhas contra a pornografia infantil. É mais difícil para a
maioria das pessoas simpatizar com os homens que gostam de
meninos. Como os comunistas e os homossexuais na década de
1950, eles são tão estigmatizados que é difícil achar quem defenda
suas liberdades civis, sem falar em sua orientação erótica.
Conseqüentemente, a polícia abusou deles o quanto quis. As
polícias locais, o FBI e zelosos inspetores dos correios se juntaram
para criar um gigantesco aparato com o único objetivo de limpar a
comunidade de homens que amam jovens de menor idade. Dentro
de uns vinte anos, quando a poeira tiver baixado, será mais fácil
mostrar que esses homens foram vítimas de uma imerecida caça às
bruxas. Muitas pessoas se sentirão constrangidas por sua
colaboração com essa perseguição, mas será tarde demais para
fazer alguma coisa de bom para esses homens que passaram suas
vidas na prisão.
STAMBOLIAN, George. Creating the New Man: A Conversation with Jacqueline
Livingston. Christopher Street, maio de 1980; Jacqueline Livingston. Clothed
With the Sun, vol. 3, nº 1, maio de 1983.
19
12
Gayle S. Rubin
A desgraça dos homens que amam meninos afeta pouca
gente, mas o outro legado duradouro da revogação de leis de Dade
afeta quase todo mundo. O sucesso da campanha anti-gay
alimentou um ódio duradouro da direita americana, e foi o estopim
que deu origem a um amplo movimento para estreitar os limites do
comportamento sexual aceitável.
O fato de a ideologia da direita associar sexo fora do âmbito
familiar a comunismo e debilidade política não é uma coisa nova.
No período macartista, Alfred Kinsey e seu Instituto para Pesquisas
sobre Sexo foram atacados por debilitar o ânimo moral dos
americanos, tornando-os mais vulneráveis à influência do
comunismo. Em 1954, depois de inquéritos parlamentares e
campanhas de difamação pela imprensa, a subvenção de
Rockefeller ao instituto de pesquisa de Kinsey foi cortada.20
Por volta de 1969, a extrema direita descobriu o Sex
Information and Education Council of the United States (SIECUS).
Em livros e panfletos como The Sex Education Racket:
Pornography in the School e SIECUS: Corrupter of Youth, a direita
acusou o SIECUS e a educação sexual de serem uma estratégia
comunista para destruir a família e debilitar o ânimo da nação.21
Outro panfleto, Pavlov´s Children (They may be Yours), afirma
que a UNESCO está de conluio com o SIECUS para solapar os tabus
religiosos, promover a aceitação de relações sexuais anormais,
degradar os padrões morais absolutos e para “destruir a coesão
racial” pela exposição de pessoas brancas (principalmente as
mulheres brancas) aos supostos padrões sexuais “mais baixos” dos
negros.22
A Nova Direita e a ideologia neoconservadora atualizaram
esses temas e apostam na estratégia de associar comportamento
sexual “imoral” ao suposto declínio do poder da nação americana.
20 GEBHARD,
Paul H. The Institute. In: WEINBERG, Martin S. (ed.) Sex Research:
Studies from the Kinsey Institute. Nova York, Oxford University Press, 1976.
21 COURTNEY, Phoebe. The Sex Education Racket: Pornography in the Schools (An
Exposé). Nova Orleans, Free Men Speak, 1969; DRAKE, Dr. Gordon V. SIECUS:
Corrupter of Youth. Tulsa, Oklahoma, Chistian Crusade Publications, 1969.
22 Pavlov´s Children (They May Be Yours). Impact Publishers, Los Angeles,
Califórnia, 1969.
13
Pensando sobre sexo
Em 1977, Norman Podhoretz escreveu um ensaio acusando os
homossexuais pela suposta incapacidade dos Estados Unidos de
enfrentar os russos.23 Com isso, estabelecia-se uma clara relação
entre “a luta anti-gay no âmbito nacional e as lutas anticomunistas
na política externa”.24
A oposição da ala direita à educação sexual, ao
homossexualismo, à pornografia, ao aborto e ao sexo antes do
casamento passou da zona mais periférica para o centro da arena
política a partir de 1977, quando os estrategistas da direita e os
fundamentalistas religiosos descobriram que as massas eram muito
receptivas a esses temas. A reação sexual teve um papel importante
no sucesso eleitoral da direita em 1980.25 Organizações como Moral
Majority and Citizens for Decency conquistaram multidões de
adeptos, vultosos recursos financeiros e uma inimaginável força
política. A Emenda de Igualdade de Direitos foi derrotada, criaramse novas restrições legais contra o aborto e cortaram-se verbas para
programas como o de Planejamento Familiar e educação sexual.
Promulgaram-se leis e regulamentos para dificultar o acesso das
adolescentes ao aborto e a preservativos. O retrocesso sexual foi
explorado em ataques bem-sucedidos ao Programa de Estudos
Femininos da California State University em Long Beach.
A iniciativa mais ambiciosa da direita em termos de legislação
foi a FPA (Lei de Proteção à Família), apresentada ao Congresso em
1979. Essa lei constitui um amplo ataque ao feminismo, aos
PODHORETZ, Norman. The Culture of Appeasement. Harper´s, outubro de 1977.
Alan e SANDERS, Jerry. Resurgent Cold War Ideology: The Case of the
Committee on the Present Danger. In: FAGEN, Richard. (ed.) Capitalism and the
State in U.S.- Latin American Relations. Stanford, Stanford University Press,
1979.
25 BRESLIN, Jimmy. The Moral Majority in Your Motel Room. San Francisco
Chronicle, 22 de janeiro de 1981, p.41; GORDON, Linda e HUNTER, Allen. Sex,
Familiy, and the New Right. Radical America, inverno 1977-8; GREGORY-LEWIS,
Sasha. The Neo-Right Political Apparatus. Advocate, 8 de fevereiro de 1977; Right
Wing Finds New Organizing Tactic. Advocate, 23 de junho de 1977; Unravelling
the Anti-Gay Network. Advocate, 7 de setembro de 1977; KOPKIND, Andrew.
America´s New Right. New Times, 30 de setembro de 1977; PETCHESKY, Rosalind
Pollack. Anti-abortion, Anti-feminism, and the Rise of the New Right. Feminist
Studies, vol. 7, nº 2, verão de 1981.
23
24 WOLFE,
14
Gayle S. Rubin
homossexuais e às famílias não convencionais e à privacidade
sexual dos adolescentes.26 Muito provavelmente a FPA não vai ser
aprovada, mas os parlamentares conservadores continuam a
implementar o seu programa de forma mais gradual. Talvez o
símbolo mais evidente dos tempos é o Adolescent Family Life
Program. Também conhecido como Programa de Castidade dos
Adolescentes, ele recebe 15 milhões de dólares de subvenção federal
para desestimular os adolescentes a ter relações sexuais, para
convencê-los a não usar anticoncepcionais quando fazem sexo e
evitar o aborto em caso de gravidez. Nos últimos anos, houve
inúmeros conflitos localizados em relação a direitos dos gays,
educação sexual, direito de aborto, livrarias para adultos e currículo
da escola pública. Não há indícios de que o retrocesso sexual tenha
acabado, e nem ao menos de que já atingiu o seu ponto máximo. A
menos que haja uma mudança radical, é muito provável que nos
próximos anos assistamos a uma exacerbação dessa tendência.
Períodos como a década de 1880 na Inglaterra e a de 1950 nos
Estados Unidos reformulam as relações de sexualidade. As lutas
travadas deixam um resíduo expresso em leis, práticas sociais e
ideologias que afetam a forma como se vivencia a sexualidade,
muito tempo depois de os conflitos se terem encerrado. Tudo indica
que o período atual é mais um divisor de águas na política do sexo.
O legado da década de 1980 terá um impacto num futuro distante. É
absolutamente necessário, portanto, entender o que está
acontecendo e o que está em jogo para tomar decisões
fundamentadas sobre que política apoiar e que política combater.
É difícil tomar essas decisões na falta de um coerente e
inteligente corpus de pensamento radical sobre sexo. Infelizmente,
as análises políticas progressistas da sexualidade ainda são muito
incipientes. Muito do material do movimento feminista contribuiu
para a confusão que envolve o assunto. É necessário urgentemente
desenvolver pontos de vista radicais sobre a sexualidade.
Paradoxalmente, houve uma verdadeira irrupção de escritos
políticos e eruditos muito interessantes sobre sexo nesses anos
sombrios. Na década de 1950, iniciou-se e desenvolveu-se o ainda
26 Brown,
Rhonda. Blueprint for a Moral America. Nation, 23 de maio de 1981.
15
Pensando sobre sexo
incipiente movimento pelos direitos dos gays, ao mesmo tempo em
que os bares sofriam batidas policiais e se promulgavam leis antigays. Nos últimos seis anos, desenvolveram-se novas comunidades
eróticas, alianças e análises políticas em meio à repressão. Neste
ensaio, proponho elementos de um quadro descritivo e conceitual
para refletir sobre sexo e política. Espero contribuir para a urgente
tarefa de criar uma criteriosa, humana e genuinamente libertária
reflexão sobre a sexualidade.
II - Reflexões sobre sexo
“Sabe, Tim”, disse Phillip de repente, “o que você diz não é
razoável. Suponha que eu admita que o homossexualismo é
justificável em determinados casos e com algumas restrições.
Mas aí temos um problema: até onde vai a justificação e onde
começa a degeneração? A sociedade deve condenar para
proteger. Permita-se um lugar de respeito mesmo a um
homossexual intelectual e cai a primeira barreira. Então vem
a seguinte, depois outra, até que o sádico, o flagelador, os
malucos criminosos vão reivindicar o seu lugar, e a sociedade
deixa de existir. Então eu pergunto novamente: qual a linha
que separa uma coisa da outra? Onde começa a degeneração
senão no começo da liberdade individual nesses assuntos?”
(Trecho de uma discussão entre dois homens gays tentando
decidir se podiam se amar, de um romance publicado em
1950.27)
Uma teoria radical do sexo deve identificar, descrever,
explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual. Essa
teoria requer instrumentos conceituais refinados que possam
apreender o tema e colocá-lo em pauta. Deve apresentar ricas
descrições da sexualidade tal como ela existe na sociedade e na
história. Ela exige uma linguagem crítica convincente que possa
comunicar a barbaridade da perseguição sexual.
Vários traços duradouros do pensamento sobre o sexo inibem
o desenvolvimento de uma teoria como essa. Essas idéias
permeiam de tal forma a cultura ocidental que raramente são
27
Barr, James. Quatrefoil. Nova York, Greenberg, 1950, p.310.
16
Gayle S. Rubin
questionadas. Assim, elas terminam por ressurgir em contextos
políticos diferentes, valendo-se de outro estilo para se exprimir,
mas reproduzindo suas premissas básicas.
Um desses axiomas é o essencialismo sexual – a idéia de que
o sexo é uma força natural que existe antes da vida social e molda
as instituições. O essencialismo sexual baseia-se na sabedoria
popular das sociedades ocidentais, que considera o sexo
eternamente imutável, associal e não histórico. Dominado por mais
de um século pela medicina, pela psiquiatria e pela psicologia, o
estudo acadêmico do sexo reproduziu o essencialismo. Esses
campos de estudo classificam o sexo como propriedade de
indivíduos. Certamente ele está em seus hormônios e em suas
psiques. Ele pode ser considerado como fisiológico ou psicológico.
Mas dentro dessas categorias etnocientíficas, a sexualidade não tem
história nem determinantes sociais importantes.
Nos últimos cinco anos, uma sofisticada cultura histórica e
teórica desafiou o essencialismo sexual de forma explícita e
também implícita. A história gay, especialmente o trabalho de
Jeffrey Weeks, liderou esse ataque mostrando que o
homossexualismo tal como o conhecemos é um complexo
institucional relativamente moderno.28 Muitos historiadores
chegaram a considerar as formas institucionais contemporâneas de
heterossexualismo como ainda mais recentes.29 Uma das pessoas
que muito contribuíram para essa nova cultura é Judith Walkowitz,
cuja pesquisa demonstrou o quanto a prostituição sofreu
transformações por volta da virada do século XIX para o século XX.
Ela apresenta descrições minuciosas de como a interação de forças
sociais como a ideologia, o medo, a agitação política, a reforma
28 Quem
primeiro formulou essa idéia foi MCINTOSH, Mary. The Homosexual Role.
Social Problems, vol. 16, nº 2, outono de 1968; a idéia foi desenvolvida em WEEKS,
Jeffrey. Coming Out: Homosexual Politics in Britain from the Nineteenth Century
to the Present, Nova York, Quartet, 1977, e Sex, Politics and Society… Op. cit.; ver
também D´EMILIO, J. Sexual Politics, Sexual Communities... Op. cit.; e RUBIN,
Gayle. Introduction. In: VIVIEN, Renée. A Woman Appeared to Me. Weatherby
Lake, Mo., Naiad Press, 1979.
29 HANSEN, Bert. The Historical Construction of Homosexuality. Radical History
Review, nº 20, primavera/verão 1979.
17
Pensando sobre sexo
jurídica, e a clínica médica podem mudar a estrutura do
comportamento sexual e suas conseqüências.30
A História da Sexualidade, de Michel Foucault, foi o texto
mais influente e mais emblemático desse novo conhecimento sobre
sexo. Foucault critica a forma tradicional de entender a sexualidade
como um desejo natural libidinal de livrar-se das peias sociais. Ele
afirma que os desejos não são entidades biológicas pré-existentes,
mas são constituídos no curso de práticas sociais específicas,
determinadas historicamente. Ele ressalta mais os aspectos
geradores da organização social do sexo que seus elementos
repressivos, mostrando que novas sexualidades estão sempre sendo
produzidas. Ele identifica uma maior descontinuidade entre
sistemas de sexualidade baseados em parentesco e formas mais
modernas.31
O novo conhecimento sobre o comportamento sexual dotou o
sexo de uma história e criou uma alternativa construtivista ao
essencialismo sexual. Subjacente ao conjunto desse trabalho há o
pressuposto de que a sexualidade se constitui na sociedade e na
história, não sendo biologicamente determinada.32 Isso significa
que a sexualidade humana não pode ser compreendida em termos
puramente biológicos. Organismos humanos com cérebros
humanos são necessários para culturas humanas, mas nenhum
exame do corpo ou de suas partes pode explicar a natureza e
variedade dos sistemas sociais humanos. A fome do estômago não
dá nenhuma pista para as complexidades da culinária. O corpo, o
cérebro, a genitália, e a capacidade de linguagem são todos
necessários para a sexualidade humana. Mas eles não determinam
seu conteúdo, suas experiências, ou suas formas institucionais.
Além disso, nunca nos deparamos com o corpo sem as mediações
que as culturas lhe acrescentam. Parafraseando Lévi-Strauss,
WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society… Op. cit.; e Male Vice and
Female Virture… op. cit.
31 FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality. Nova York, Pantheon, 1978.
32 Encontra-se uma discussão muito útil desses temas em PADGUG, Robert. Sexual
Matters: On Conceptualizing Sexuality in History. Radical History Review, nº 20,
primavera/verão 1979.
30
18
Gayle S. Rubin
minha posição sobre a relação entre a biologia e a sexualidade é um
“kantismo sem uma libido transcendental.”33
É impossível pensar com um mínimo de clareza sobre a
política racial e de gênero enquanto os consideramos antes como
entidades biológicas que como construto sociais. Da mesma forma,
a sexualidade é refratária à análise política enquanto for concebida
basicamente como um fenômeno biológico ou um aspecto da
psicologia individual. A sexualidade é um produto humano tanto
quanto as dietas, os meios de transporte, as regras de etiqueta,
formas de trabalho, tipos de divertimentos, processos de produção
e formas de opressão. Quando entendemos o sexo em termos de
análise social e compreensão histórica, torna-se possível uma
política sexual mais realista. Pode-se pensar então a política sexual
em termos de fenômenos como populações, regiões, modelos de
povoamento, migração, conflitos urbanos, epidemiologia e técnicas
de repressão policial. Estas são categorias de pensamento mais
fecundas que as mais tradicionais, como pecado, doença, neurose,
patologia, decadência, corrupção ou o declínio e queda de impérios.
Examinando minuciosamente as relações entre as populações
eróticas estigmatizadas e as forças sociais que as regulam, trabalhos
como os de Allan Bérubé, John d’Emilio, Jeffrey Weeks e Judith
Walkowitz contêm categorias implícitas de análise e crítica política.
Não obstante, a perspectiva construtivista mostrou uma certa
fraqueza política. Isso ficou mais evidente nas interpretações
errôneas da posição de Foucault.
Devido à ênfase que dava às formas como se produz a
sexualidade, Foucault se tornou vulnerável a interpretações que
negam ou minimizam a realidade da repressão sexual num sentido
mais político. Foucault deixa bastante claro que não nega a
existência da repressão sexual, inscrevendo-a numa dinâmica mais
ampla.34 A sexualidade nas sociedades ocidentais foi estruturada
dentro de um contexto social extremamente punitivo, e foi
LÉVI-STRAUSS, Claude. A Confrontation. New Left Review, nº 62, julho/agosto
1970. Nessa conversa, Lévi-Strauss chama sua posição de “um kantismo sem um
sujeito transcendental.”
34 FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op. cit., p.11.
33
19
Pensando sobre sexo
submetida a controles formais e informais bastante efetivos.
Cumpre reconhecer o fenômeno repressivo sem nos reportarmos às
hipóteses essencialistas da linguagem da libido. É importante
focalizar as práticas sexuais repressivas, ainda que as situando
numa outra totalidade e no contexto de uma terminologia mais
precisa.35
Boa parte do pensamento radical sobre sexo se insere no
modelo de instintos e de suas restrições. Idéias de opressão sexual
encontravam-se no bojo dessa forma mais biológica de entender a
sexualidade. É sempre mais fácil voltar a uma noção de uma libido
natural submetida a uma repressão inumana que reformular
conceitos de injustiça sexual num quadro mais construtivista. Mas
é essencial que façamos isto. Precisamos de uma crítica radical dos
arranjos sexuais que tenham a elegância conceitual de Foucault e a
paixão evocativa de Reich.
O novo conhecimento sobre sexo trouxe a idéia, bem-vinda,
de que os termos sexuais devem ficar limitados aos seus devidos
contextos sociais e históricos, e um prudente ceticismo em relação a
generalizações temerárias. Mas é importante ser capaz de indicar
grupos de comportamento erótico e tendências gerais no âmbito do
discurso erótico. Além do essencialismo sexual, existem pelo menos
cinco outras formações ideológicas cuja influência sobre o
pensamento sexual é tão forte que deixar de discuti-las é resignarse a continuar enredado em suas teias. Estamos falando da
negatividade sexual, das falácias da escala deslocada, da
classificação hierárquica dos atos sexuais, da teoria do dominó do
perigo sexual e da falta de um conceito de variação sexual benigna.
Desses cinco, o mais importante é a negatividade do sexo. As
culturas ocidentais em geral consideram o sexo uma força perigosa,
destrutiva e negativa.36 Boa parte da tradição cristã, seguindo São
Paulo, sustenta que o sexo é em essência pecaminoso. Ele pode ser
redimido se praticado no casamento para a procriação e se não se
der uma atenção muito grande ao aspecto do prazer. Essa forma de
encarar o sexo está implícita na idéia de que a genitália é uma parte
35
Ver a discussão em WEEKS, J. Sex, Politics and Society… Op. cit. p.9.
p.22.
36 ID., IB.,
20
Gayle S. Rubin
do corpo intrinsecamente inferior, muito mais baixa e menos
sagrada que a mente, a “alma”, o “coração”, ou mesmo a parte
superior do sistema digestivo (o status dos órgãos excretores é bem
próximo do da genitália).37 Essas idéias atualmente adquiriram
vida própria e já não dependem da religião para continuar a existir.
Essa cultura sempre encara o sexo com desconfiança. Ela
analisa e julga quase todas as práticas sexuais em termos de sua
pior expressão. O sexo é culpado até prova em contrário.
Praticamente todo comportamento erótico é considerado mau, a
menos que se estabeleça uma razão específica que o inocente. As
desculpas mais aceitáveis são o casamento, a reprodução e o amor.
Em alguns casos, a curiosidade científica, a experiência estética ou
uma relação íntima duradoura podem servir. Mas o exercício da
aptidão, da inteligência, da curiosidade ou criatividade eróticas
exigem pretextos que não se exigem para outros prazeres, como a
apreciação da comida, da ficção ou da astronomia.
O que chamamos de falácia da escala deslocada é um
corolário da negatividade do sexo. Susan Sontag certa vez
comentou que uma vez que o cristianismo “considerou o
comportamento sexual como a raiz da virtude, todas as coisas a ele
relacionadas se tornaram um caso especial em nossa cultura.”38 A
legislação relativa a sexo incorporou a crença religiosa de que o
sexo herético é um pecado especialmente hediondo, que merece a
mais rigorosa punição. Ao longo de quase toda a história da Europa
e da América a simples penetração anal, praticada de comum
acordo pelos parceiros, era motivo para execução. Em alguns
estados americanos, a sodomia ainda acarreta sentenças de vinte
anos de prisão. Fora do âmbito da lei, o sexo também é uma
Ver, por exemplo, Pope Praises Couples for Self-Control, San Francisco
Chronicle, 13 de outubro de 1980, p.5; Pope Says Sexual Arousal Isn´t a Sin If It´s
Ethical, San Francisco Chronicle, 6 de novembro de 1980, p.33; Pope Condemns
“Carnal Lust” As Abuse of Human Freedom”, San Francisco Chronicle, 15 de
janeiro de 1981, p.2; Pope Again Hits Abortion, Birth Control, San Francisco
Chronicle, 16 de janeiro de 1981, p.13; e Sexuality, Not Sex in Heaven, San
Francisco Chronicle, 3 de dezembro de 1981, p.50. Ver também, mais adiante,
nota 62.
38 SONTAG, Susan. Styles of Radical Will. Nova York, Farrar, Straus & Giroux, 1969,
p.46.
37
21
Pensando sobre sexo
categoria que inspira uma certa suspeita. Pequenas diferenças na
forma de encará-lo e praticá-lo são sempre consideradas como
ameaças universais. Embora as pessoas possam se mostrar
intolerantes, estúpidas ou ousadas no que diz respeito ao que
constitui uma dieta adequada, as diferenças no cardápio raramente
provocam o tipo de ódio, preocupação e pavor que normalmente
acompanham as diferenças no gosto erótico. Os atos sexuais são
sobrecarregados com um excesso de significados.
As sociedades ocidentais modernas avaliam os atos sexuais de
acordo com um sistema hierárquico de valor sexual. Os casais
heterossexuais, ligados pelo casamento, estão sozinhos no topo da
pirâmide erótica. Muito mais embaixo, nessa escala, estão os casais
heterossexuais monogâmicos não casados, seguidos pela maioria
dos outros heterossexuais. O sexo solitário oscila ambiguamente. O
terrível estigma do século XIX sobre a masturbação continua em
formas mais brandas e alteradas, como a idéia de que a
masturbação é um substituto inferior para o encontro de parceiros.
Casais estáveis, de lésbicas e de gays estão próximos da
respeitabilidade, mas lésbicas de bares e homossexuais promíscuos
estão pouco acima dos grupos que ficam na parte mais baixa da
pirâmide. As castas sexuais mais desprezadas atualmente são os
transexuais, os travestis, os fetichistas, os sadomasoquistas, os
trabalhadores do sexo como prostitutas e modelos pornôs e, abaixo
de todas os outros, aqueles cujo erotismo ultrapassa as fronteiras
das gerações.
Os indivíduos cujo comportamento os situa na escala mais
alta dessa hierarquia são recompensados com o reconhecimento de
sua saúde mental, respeitabilidade, legitimidade, mobilidade social
e física, apoio institucional e benefícios materiais. À medida que se
vai descendo na escala dos comportamentos sexuais ou ocupações,
os indivíduos que os praticam tendem a ser considerados doentes
mentais e criminosos, têm sua mobilidade social e física cerceada,
sofrem sanções econômicas e carecem de apoio institucional.
O estigma extremo e punitivo mantém alguns
comportamentos sexuais num status bem baixo, e isso constitui
uma sanção bastante efetiva contra aqueles que os adotam. A
intensidade desse estigma tem raízes nas tradições religiosas do
22
Gayle S. Rubin
ocidente. A maioria de seus conteúdos contemporâneos, porém,
deriva de opróbrio médico e psiquiátrico.
Os velhos tabus religiosos baseavam-se inicialmente nas
formas de parentesco da organização social. Eles visavam a impedir
uniões indesejáveis e garantir um modelo de parentesco adequado.
As leis sexuais extraídas dos textos bíblicos visavam a evitar que se
estabelecessem relações inadequadas: com parentes consangüíneos
(incesto), com pessoa de mesmo gênero (homossexualismo), com
animais (bestialidade). Quando a medicina e a psiquiatria
adquiriram amplos poderes sobre a sexualidade, elas se
preocuparam menos com cônjuges inadequados que com formas
inadequadas de desejo. Se os tabus do incesto eram o traço mais
característico dos sistemas de parentesco da organização social, a
mudança para uma ênfase nos tabus contra a masturbação era mais
adequada aos sistemas mais novos, organizados em torno das
qualidades da experiência erótica.39
A medicina e a psiquiatria multiplicaram as categorias de má
conduta sexual. A seção sobre distúrbios psicossexuais no
Diagnostic and Statistical Manual of Mental and Physical
Disorders (DSM) [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais] da American Psychiatric Association (APA) é um mapa
bastante confiável da atual hierarquia moral das atividades sexuais.
A lista da APA é muito mais acurada que a tradicional condenação
da prostituição, sodomia e adultério. A edição mais recente, DSMIII, tirou o homossexualismo da lista dos distúrbios mentais, ao
cabo de uma longa luta política. Mas fetichismo, sadismo,
masoquismo,
transexualismo,
travestismo,
exibicionismo,
voyeurismo e pedofilia estão firmemente estabelecidos como
disfunções psicológicas.40 Ainda se escrevem livros sobre a gênese,
a etiologia, o tratamento e a cura dessas várias “patologias”.
A condenação psiquiátrica de comportamentos sexuais se
vale de conceitos de inferioridade emocional e mental e não de
categorias de pecado sexual. Práticas sexuais que gozam de um
39 Ver
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., pp.106-7.
PSYCHIATRIC ASSOCIATION Diagnostic an Statistical Manual of Mental
and Physical Disorders. 3ª ed. Washington DC, American Psychiatric Association.
40 AMERICAN
23
Pensando sobre sexo
baixo status são tachadas de doenças mentais ou sintomas de um
desajuste de personalidade. Além disso, os termos psicológicos
combinam dificuldades de funcionamento psicodinâmico com
formas de conduta erótica. Eles tratam como equivalentes o
masoquismo sexual e os padrões de personalidade autodestrutiva, o
sadismo sexual e a agressão emocional, o homoerotismo e a
imaturidade. Essas confusões terminológicas tornaram-se
poderosos estereótipos que são aplicados indiscriminadamente a
indivíduos com base em sua orientação sexual.
A cultura popular é permeada de idéias de que a variação
erótica é perigosa, insalubre, depravada e constitui uma ameaça
contra tudo, desde as criancinhas até a segurança nacional. A
ideologia sexual popular é um cozido malsão feito de idéias de
pecado sexual, inferioridade psicológica, anticomunismo, histeria
de massas, acusações de bruxaria e xenofobia. Os meios de
comunicação de massa alimentam essas posições com uma
propaganda incessante. Eu consideraria esse sistema de estigma
erótico como a última forma socialmente respeitável de
preconceito, se as velhas formas não mostrassem tamanha
vitalidade, e se as novas não se tornassem cada dia mais
conspícuas.
Todas essas hierarquias de valor sexual – religioso,
psiquiátrico e popular – funcionam de forma muito semelhante às
dos sistemas ideológicos do racismo, etnocentrismo, e chauvinismo
religioso. Eles racionalizam o bem-estar dos sexualmente
privilegiados e o infortúnio da ralé sexual.
A figura 1 representa uma versão geral do sistema de valores
sexual. Segundo esse sistema, a sexualidade “boa”, “normal” e
“natural” deveria ser, em termos ideais, heterossexual, conjugal,
monogâmica, reprodutiva e não comercial. Deveria ocorrer num
casal, no contexto de uma relação afetiva, entre pessoas da mesma
geração e dentro de casa. Deve excluir a pornografia, objetos de
fetiche, brinquedos sexuais de qualquer espécie, e papéis que não
os de homem e mulher. Qualquer forma de sexo que viole essas
regras é “má”, “anormal” ou “não natural”. O mau sexo é
homossexual, fora do casamento, promíscuo, não visa à reprodução
ou é comercial. Ele pode ser masturbatório ou acontecer em orgias,
24
Gayle S. Rubin
pode ser ocasional, praticado entre pessoas de gerações diferentes,
pode ocorrer “em público”, no mato ou em saunas. Ele pode fazer
uso de pornografia, objetos de fetiche, brinquedos sexuais ou
papéis não convencionais (ver Figura 1).
Os grupo dos eleitos:
Sexualidade Boa, Normal, Natural, Abençoada
Heterossexual
Conjugal
Monogâmica
Procriadora
Não comercial
Entre casais
Num relacionamento
Mesma geração
Em particular
Sem pornografia
Só os corpos
Pasteurizada
[No círculo menor]
Heterossexual
No casamento
Monogâmica
P/ procriação
Não paga
Casal
Num relacionamento
Inter-gerações
Em casa
Sem pornografia
[No círculo maior]
Homossexual
Em pecado
Promíscua
Não-procriativa
Por dinheiro
Sozinho ou em grupo
Ocasional
Mesma geração
No parque
Pornografia
25
Pensando sobre sexo
Só os corpos
Pasteurizada
Com acessórios
Sadomasoquista
Os excluídos:
Sexualidade Má, Anormal,
Não natural,
Condenável
Homossexual
Fora do casamento
Promíscua
Não-procriativa
Comercial
Sozinho ou em grupo
Ocasional
Entre gerações
Em público
Pornografia
Com acessórios
Sadomasoquista
FIGURA 1. A hierarquia sexual: os eleitos versus os excluídos
A Figura 2 apresenta um outro aspecto da hierarquia sexual:
a necessidade de traçar e manter uma linha imaginária entre o bom
e o mau sexo. A maioria dos discursos sobre sexo, seja ele religioso,
psiquiátrico, popular ou político, reconhece apenas uma pequena
porção do potencial sexual humano como sendo puro, seguro,
saudável, maduro, legal ou politicamente correto. A “linha” separa
este tipo de sexo de todos os outros comportamentos eróticos, que
são vistos como obra do demônio, perigosos, psicopatológicos,
infantis ou politicamente incorretos. Discute-se então “onde traçar
a linha” e como determinar que outras atividades podem entrar no
círculo dos que são aceitáveis.*
Nota de 1992. Em todo este ensaio tratei o comportamento transgênero e os
indivíduos em termos de sistema sexual e não em termos de sistema de gênero,
*
26
Gayle S. Rubin
Todos esses modelos adotam um teoria do dominó do perigo
sexual. A linha parece se colocar entre a ordem e o caos sexual. Ela
expressa o receio de que, permitindo-se que algo ultrapasse essa
“zona desmilitarizada”, a barreira contra o sexo pavoroso se rompa
e uma coisa terrível passe por ela.
A maioria dos sistemas que enunciam juízos de valor sobre
sexo – religiosos, psicológicos, feministas ou socialistas – procura
decidir sobre em que lado da linha fica um determinado ato. Só se
atribui complexidade moral aos atos que se situam do lado bom da
linha. Por exemplo, os encontros heterossexuais podem ser
sublimes ou desagradáveis, livres ou à força, benéficos ou
destrutivos, românticos ou mercenários. Desde que não viole outras
regras, reconhece-se que o heterossexualismo pode apresentar toda
a gama da experiência humana. Em contrapartida, todos os atos do
lado mau da linha são considerados absolutamente repulsivos e
faltos de todo matiz emocional. Quanto mais se distanciam da
linha, mais eles são descritos como uma experiência absolutamente
má.
Sexo “bom”:
Normal, Natural, Saudável, Abençoado
Heterossexual
No casamento “A Linha”
Monogâmico
Para reprodução
Em casa
embora os travestis e os transexuais claramente ultrapassem as fronteiras de
gênero. Fiz isso porque as pessoas que saem dos limites de seu gênero são
estigmatizadas, importunadas, perseguidas e tratadas normalmente como
“desviantes” e pervertidas. Mas isto é um exemplo de como meu sistema
classificatório não dá conta de todas as complexidades existentes. A apresentação
esquemática das hierarquias sexuais da Figura 1 e 2 foi simplificada para fins de
demonstração. Embora a demonstração continue válida, as verdadeiras relações
de poder no âmbito da variação sexual são muito mais complexas.
27
Pensando sobre sexo
Área mais controversa
Casal heterossexual não casado
Heterossexuais promíscuos
Masturbação
Casais estáveis de homossexuais
masculinos e femininos
Lésbicas de bares
Gays promíscuos de saunas e parques.
Sexo “mau”:
Anormal, Não natural,
Doentio, Pecaminoso, “Avançado”
Travestis
Transexuais
Fetichistas
Sadomasoquistas
Por dinheiro
Entre gerações
Melhor - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Pior
linha.
Figura 2. A hierarquia sexual: a disputa sobre onde traçar a
Como resultado das lutas travadas na última década, alguns
comportamentos sexuais que se encontravam fora do limite da
respeitabilidade estão começando a se tornar mais aceitos. Casais
não casados que vivem juntos, masturbação e algumas formas de
homossexualismo tendem a se tornar respeitáveis (Figura 2). A
maior parte dos tipos de homossexualismo encontra-se ainda do
lado mau da linha. Mas quando se trata parceiros monogâmicos, a
sociedade está começando a reconhecer que a relação comporta
toda a gama de interações humanas. O homossexualismo
28
Gayle S. Rubin
promíscuo, o sadomasoquismo, o fetichismo, o transexualismo e
encontros entre pessoas de gerações diferentes ainda são
considerados como horrores desregrados, que não comportam
afeição, amor, livre escolha, ternura ou transcendência.
Esse tipo de moral sexual é mais próximo das ideologias
racistas que da verdadeira ética. Ele atribui virtudes aos
privilegiados e o vício aos desfavorecidos. Uma moral democrática
deveria julgar os atos sexuais pela forma como os parceiros tratam
um ao outro, pelo grau de respeito mútuo, pela presença ou
ausência de coerção e pela quantidade e qualidade dos prazeres que
eles propiciam. O fato de o ato sexual ser gay ou não, aos pares ou
em grupo, sem roupa ou com roupas íntimas, comercial ou não,
com ou sem vídeo, não deveria ser objeto de preocupações éticas.
É difícil desenvolver uma ética sexual pluralista sem uma
concepção de variação sexual benigna. A variação é uma
propriedade fundamental de toda vida, do mais simples organismo
biológico às mais complexas organizações sociais humanas. Não
obstante espera-se que a sexualidade se conforme a um padrão
único. Uma das idéias mais arraigadas a respeito de sexo é que só
existe uma forma de praticá-lo, e que todo mundo devia se guiar
pelo padrão.
A maioria das pessoas acha difícil entender que o que quer
que gostem de fazer, em termos sexuais, pode ser totalmente
repulsivo para uma outra pessoa, e que o que as repugna pode
constituir um prazer indizível para uma outra pessoa, em algum
lugar do mundo. Uma pessoa não precisa gostar de praticar ou
praticar um determinado tipo de ato sexual para reconhecer que os
outros podem fazê-lo e que essa diferença não indica uma falta de
gosto, de sanidade mental ou de inteligência, de um ou de outro
lado. A maioria das pessoas comete o erro de tomar suas
preferências sexuais por um sistema universal que funciona, ou
deveria funcionar, para todo mundo.
Essa idéia de uma sexualidade ideal única caracteriza a
maioria dos sistemas de pensamento sobre sexo. Para a religião, o
ideal é um casamento com fins de procriação. Para a psicologia, é
um heterossexualismo maduro. Embora seu conteúdo varie, o
modelo de um padrão sexual único é continuamente retomado em
29
Pensando sobre sexo
outras estruturas teóricas, inclusive no feminismo e no socialismo.
É tão questionável insistir que todas as pessoas deviam ser lésbicas,
não monogâmicas ou pervertidas, como acreditar que todos
deveriam ser heterossexuais, casados, ou “certinhos” – embora esta
última corrente de opinião seja respaldada por uma força muito
mais coercitiva que a primeira.
Os progressistas se envergonhariam de se revelar
chauvinistas culturais em outras áreas, mas o fazem normalmente
em relação às diferenças sexuais. Nós aprendemos a reconhecer
culturas diferentes como expressões únicas da criatividade humana
e não como hábitos inferiores ou desagradáveis de selvagens. Da
mesma forma, precisamos de um entendimento antropológico das
diferentes culturas sexuais.
A pesquisa sexual empírica é um campo que deve incorporar
um conceito positivo de variação sexual. Alfred Kinsey acercou-se
do estudo do sexo com a mesma curiosidade desenvolta com que se
dedicou ao estudo de uma espécie de vespa. Sua imparcialidade
científica deu ao seu trabalho uma neutralidade pouco comum que
enfureceu os moralistas e provocou uma imensa controvérsia. 41
Entre os seguidores de Kinsey, John Gagnon e William Simon
foram pioneiros na aplicação de critérios sociológicos à diversidade
sexual.42 Mesmo a velha sexologia tem algo de aproveitável.
Embora seu trabalho esteja eivado de intragáveis crenças
eugênicas, Havelock Ellis era um observador agudo e dotado de
grande empatia. Seu monumental Estudos de Psicologia do Sexo é
exuberante de particularidades e minudências.43
Muitos escritos políticos sobre a sexualidade revelam
completa ignorância a respeito da sexologia clássica e da moderna
KINSEY, Alfred; POMEROY, Wardell e MARTIN, Clyde. Sexual Behavior in the
Human Male. Filadélfia, W.B. Saunders, 1948; KINSEY, Alfred; POMEROY, Wardell e
MARTIN, Clyde e GEBHARD, Paul Sexual Behavior in the Human Female. Filadélfia,
W.B. Saunders, 1953.
42 GAGNON, John e SIMON, William. Sexual Deviance. Nova York, Harper & Row,
1967; The Sexual Scene, Chicago, Transaction Books, Aldine, 1970; Gagnon, John.
Human Sexualities. Glenview, Illinois, Scott, Foresman, 1977.
43 ELLIS, Havelock. Studies in the Psychology of Sex (dois volumes). Nova York,
Random House, 1936.
41
30
Gayle S. Rubin
pesquisa sobre sexo. Isto talvez se explique pelo fato de que poucas
faculdades e universidades se preocupam em ensinar sexualidade
humana, e também pelo estigma que marca mesmo a pesquisa
acadêmica sobre sexo. Nem a sexologia nem a pesquisa sobre sexo
ficaram imunes ao sistema de valores dominante referente a sexo.
Ambas têm pressupostos e informações que não deveriam ser
aceitos de forma acrítica. Mas a sexologia e a pesquisa sobre sexo
apresentam grande profusão de detalhes, uma promissora
serenidade e uma grande capacidade para tratar a diversidade
sexual antes como algo que existe que como algo que deva ser
abolido. Esses campos de estudo podem propiciar uma base
empírica para uma teoria radical da sexualidade mais profícua que
a combinação de psicanálise e princípios elementares de
feminismo, a que tantos textos recorrem.*
Nota de 1992. A pretensão desta seção não era invocar autoridade científica,
nem cobrar objetividade científica da sexologia, e muito menos privilegiar modelos
biológicos como “instrumentos para pesquisa social” (VALVERDE, Mariana. Beyond
Gender Dangers and Private Pleasures: Theory and Ethics in the Sex Debates.
Feminist Studies, vol. 15, nº 2, verão de 1989, pp. 237-54). Era apresentar a idéia
de que a sexologia poderia ser um rico filão a ser explorado para análises da
sexualidade, embora nunca me tenha ocorrido que aqueles que o fazem pudessem
deixar de submeter os textos de sexologia a um rigoroso exame. Eu queria dizer
que os estudos de sexologia eram muito mais relevantes que as intermináveis
releituras de Freud e de Lacan em que se baseou boa parte do pensamento
feminista sobre sexo. Eu achava então, e ainda acho, que muito das análises
feministas sobre sexo derivam, a priori, de princípios elementares do feminismo
mesclados com psicanálise. Essas topografias são um pouco como os mapas mundi
da Europa de antes de 1492. Elas se ressentem da falta de dados empíricos. Não
acredito em “fatos” não mediados por estruturas culturais de interpretação.
Acredito, porém, que as teorias da ciência social que não reconhecem, não
assimilam e não explicam as informações relevantes são meros exercícios
calistênicos. Com exceção da matemática, a maioria das teorias baseia-se numa
série de dados selecionados, e o feminismo psicanalítico não pode ser uma
exceção. Para uma história feminista exemplar da sexologia americana do século
XX, ver IRVINE, Janice. Disorders of Desire. Filadélfia, Temple University Press,
1990.
*
31
Pensando sobre sexo
III - Transformação sexual
Tal como definida pelo direito civil e canônico, a sodomia era
uma categoria de atos proibidos; os que praticavam esses atos
eram apenas os sujeitos jurídicos dos mesmos. O
homossexual do século XIX se tornou um personagem, um
passado, uma anamnésia e uma infância, além de ser um
modo de vida e uma morfologia, com uma anatomia pouco
discreta e uma fisiologia misteriosa... O sodomita foi uma
aberração temporária; o homossexual agora era uma espécie.
(Michel Foucault44)
Apesar de guardarem muitas relações de continuidade com
formas ancestrais, os arranjos sexuais modernos têm um caráter
distinto que os distanciam dos modelos pré-existentes. Na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos, a industrialização e a urbanização
transformaram as populações rurais e camponesas numa nova
força de trabalho para o setor industrial e de serviços. Elas geraram
novas formas de organização do Estado, reorganizaram as relações
familiares, alteraram os papéis de gênero, tornaram possíveis novas
formas de identidade, produziram novas formas de desigualdade
social e criaram novas modalidades de conflito ideológico e social.
Deram origem também a um novo sistema sexual caracterizado por
diferentes pessoas sexuais, populações, estratificação, e conflito
político.
Os escritos do século XIX sobre sexologia indicam o
surgimento de um processo de formação e fixação de novas
espécies eróticas. Independentemente da estranheza de suas
explicações, os primeiros sexologistas estavam assistindo ao
surgimento de novos tipos de pessoas eróticas e à formação de suas
primeiras e rudimentares comunidades. O moderno sistema sexual
contém uma série dessas populações, estratificadas pela ação de
uma hierarquia ideológica e social. Diferenças em valores sociais
criam atritos entre esses grupos, que se engajam em lutas políticas
para modificar ou manter seu lugar no ranking. A política sexual
contemporânea devia ser reformulada em função do processo de
44 FOUCAULT,
M. História da Sexualidade. Op. cit., p.43.
32
Gayle S. Rubin
desenvolvimento, ainda em curso, desse sistema, em função
também de suas relações sociais, das ideologias que o interpretam e
dos tipos específicos de conflito a que dá origem.
O homossexualismo é o melhor exemplo desse processo de
especiação erótica. O comportamento homossexual está sempre
presente entre os seres humanos. Mas em diferentes sociedades e
épocas ele pode ser estimulado ou punido, exigido ou proibido,
pode ser uma experiência passageira ou algo para toda a vida. Em
algumas sociedades da Nova Guiné, por exemplo, as atividades
homossexuais são obrigatórias para os homens. Os atos
homossexuais são considerados uma coisa extremamente
masculina, os papéis se baseiam na idade e os parceiros são
determinados a partir das relações de parentesco.45 Embora os
homens se entreguem a atividades homossexuais e pedófilas, eles
não são nem homossexuais nem pederastas.
Tampouco o sodomita do século XVI era homossexual. Em
1631, Mervyn Touchet, conde de Castlehaven, foi julgado e
executado por sodomia. Fica claro, lendo-se as peças do processo,
que o conde não se via como alguém que fosse um tipo especial de
pessoa sexual.
Embora do ponto de vista do século XX Lorde Castlehaven
evidentemente sofresse de problemas psicossexuais que
exigiam os cuidados de um analista, do ponto de vista do
século XVII ele contrariara deliberadamente a lei de Deus e as
leis da Inglaterra, o que demandava os modestos serviços de
um carrasco.46
HERDT, Gilbert. Guardians of the Flutes. Nova York, McGraw-Hill, 1981; KELLY,
Raymond. Witchcraft and Sexual Relations. In: BROWN, Paula e BUCHBINDER,
Georgeda. (eds.) Man and Woman in the New Guinea Highlands. Washington,
DC, American Anthropological Association, 1976; RUBIN, Gayle. Coconuts: Aspects
of Male/Female Relationships in New Guinea. manuscrito inédito, 1974; resenha
de Guardians of the Flutes. Advocate, 23 de dezembro, 1982; VAN BAAL, J. Dema.
The Hague, Nijhoff, 1966; WILLIAMS, F.E. Papuans of Trans-Fly. Oxford,
Clarendon, 1936.
46 BINGHAM, Caroline. Seventeenth-Century Attitudes Toward Deviant Sex.
Journal of Interdisciplinary History, primavera de 1971, p.465.
45
33
Pensando sobre sexo
O conde não saia saltitando, com seu casaco mais apertado, para ir
encontrar-se com seus companheiros sodomitas na taverna gay
mais próxima. Ele ficava em seu solar e sodomizava seus servos. A
autoconsciência gay, bares de gays, a percepção da existência de um
grupo com características comuns e mesmo o termo homossexual
não faziam parte do universo do conde.
O homem solteiro da Nova Guiné e o nobre sodomita têm
apenas uma leve aproximação com um gay, que pode migrar da
região rural do Colorado para San Francisco para viver num bairro
gay, trabalhar num negócio gay e participar de uma experiência
complexa que compreende uma identidade autoconsciente,
solidariedade de grupo, uma literatura, uma imprensa, e um alto
nível de atividade política. Nas sociedades ocidentais industriais
modernas, o homossexualismo adquiriu muito da estrutura
institucional de um grupo étnico.47
O deslocamento do homoerotismo para essas comunidades
quase étnicas, concentradas, sexualmente constituídas é, em certa
medida, conseqüência dos movimentos de populações provocados
pela industrialização. Como os trabalhadores estavam migrando
para trabalhar nas cidades, havia maiores oportunidades para a
formação de comunidades organizadas por vontade própria.
Homens e mulheres com tendências homossexuais, que se
encontrariam vulneráveis e isolados em aldeias pré-industriais,
começaram a se congregar em pequenos redutos nas cidades
grandes. A maioria das grandes cidades da Europa ocidental e dos
Estados Unidos tinha áreas em que os homens podiam vagar à
procura de outros homens. As comunidades lésbicas parecem ter-se
aglutinado mais lentamente e em escala menor. Não obstante, na
década de 1890 havia vários cafés em Paris, perto da Place Pigalle,
que atendiam a uma clientela lésbica, e é provável que existissem
lugares semelhantes em outras grandes capitais da Europa
ocidental.
Áreas como essa adquiriram má reputação, o que alertou
outros indivíduos interessados para sua existência e localização.
MURRAY, Stephen O. The Institutional Elaboration of a Quasi-Ethnic
Community. International Review of Modern Sociology, julho/dezembro de 1979.
47
34
Gayle S. Rubin
Nos Estados Unidos, havia territórios lésbicos e gays bem
estabelecidos em Nova York, Chicago, San Francisco e Los Angeles
na década de 1950. Migrações sexualmente motivadas para lugares
como Greenwich Village se tornaram um fenômeno sociológico de
proporções consideráveis. No final da década de 1970, a migração
sexual se dava numa escala tão grande que começou a ter um efeito
notável na política urbana dos Estados Unidos, sendo San
Francisco o exemplo mais notório e mais conspícuo.48
A prostituição sofreu uma metamorfose semelhante. Ela
começou mudar: de trabalho temporário, passou a ser uma
ocupação permanente, em decorrência da agitação, da reforma
jurídica e da perseguição policial do século XIX. As prostitutas, que
em geral pertenciam à classe trabalhadora, foram ficando cada vez
mais isoladas enquanto membros de um grupo proscrito.49
Prostitutas e outros trabalhadores do sexo diferem de
homossexuais e de outras minorias sexuais. O trabalho sexual é
uma profissão, enquanto que um desvio sexual é uma preferência
erótica. Não obstante, eles partilham algumas características de
organização social. Como os homossexuais, as prostitutas são um
grupo sexual estigmatizado com base na atividade sexual. Em toda
parte, as prostitutas e os gays são as principais vítimas da polícia.50
50 Como os gays, as prostitutas ocupam territórios urbanos bem
delimitados e lutam com a polícia para defender e manter esses
territórios. A perseguição, pela Justiça, dos homossexuais e das
prostitutas, é justificada por uma ideologia que os classifica como
pessoas perigosas, inferiores e indesejáveis que não devem ser
deixadas em paz.
48 Para
uma análise mais acurada desses processos, ver: BÉRUBÉ, A. Behind the
Spectre of San Francisco. Op. cit., Marching to a Different Drummer. Op. cit.;
D´EMILIO, J. Gay Politics, Gay Community… Op. cit.; Sexual Politics, Sexual
Communities… Op. cit.; FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit.; HANSEN,
B. The Historical Construction of Homosexuality. Op. cit.; KATZ, J. Gay American
History. Op. cit.; WEEKS, J. Coming Out… Op. cit.; e Sex, Politics and Society. Op.
cit.
49
W ALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society. Op. cit.
agentes das delegacias de costumes também perturbam todos os negócios
relacionados a sexo, sejam bares ou saunas gays, livrarias para adultos e
produtores e distribuidores de arte comercial erótica, ou clubes de swing.
50 Os
35
Pensando sobre sexo
Além de organizar homossexuais e prostitutas em
aglomerados populacionais localizados, a “modernização do sexo”
gerou um sistema de contínua etnogênese sexual. Outras
populações de dissidentes eróticos – que têm as assim chamadas
“perversões” ou “parafilias” – também começam a se aglutinar. As
sexualidades continuam se afastando do Manual Diagnóstico e
Estatístico para entrar nas páginas da história social. Atualmente,
muitos outros grupos estão tentando repetir o sucesso dos
homossexuais. Bissexuais, sadomasoquistas, indivíduos que
preferem relações com pessoas de outra geração, transexuais e
travestis encontram-se em diferentes estágios de formação de
comunidades próprias e de aquisição de identidade. As perversões
não proliferam no mesmo ritmo que sua luta para conseguir espaço
social, pequenos negócios, recursos políticos e um pouco de alívio
das punições por heresia sexual.
IV - Estratificação sexual
Toda uma sub-raça nasceu, diferente – apesar de certos laços
de parentesco – dos libertinos do passado. Do fim do século
XVIII até o nosso, seus indivíduos circularam pelos poros da
sociedade; eles sempre eram perseguidos, mas nem sempre
pela Justiça; eram sempre presos, mas nem sempre em
cárceres; eram vítimas, doentes talvez, mas escandalosas e
perigosas, presas de um estranho mal que também tinha o
nome de vício e às vezes de crime. Eram crianças mais
espertas do que se podia esperar de sua idade, menininhas
precoces, escolares ambíguos, criados e preceptores
duvidosos, maridos cruéis ou maníacos, colecionadores
solitários, passeadores com impulsos bizarros; eles
freqüentavam as casas de correção, as colônias penais, os
tribunais e os asilos; eles levavam sua infâmia aos médicos e
sua doença aos juízes. Era a numerosa família de pervertidos
que mantinha boas relações com os delinqüentes e tinha
afinidades com os loucos. (Michel Foucault 51)
51
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., p.40.
36
Gayle S. Rubin
A transformação industrial da Europa ocidental e da América
do Norte trouxe novas formas de estratificação social. As
desigualdades de classe que dela derivaram são bem conhecidas e
foram exaustivamente exploradas por um século de estudos. A
construção de modernos sistemas de discriminação racial e a
injustiça étnica foram bem documentadas e bem analisadas. O
pensamento feminista analisou a organização predominante da
opressão de gênero. Mas embora grupos eróticos específicos, como
militantes homossexuais e trabalhadores do sexo, tenham se
mobilizado contra os maus-tratos que sofriam, não houve uma
tentativa semelhante para situar variedades específicas de
perseguição sexual dentro de um sistema mais geral de
estratificação sexual. Não obstante, esse sistema existe, e em sua
forma contemporânea é uma conseqüência da industrialização do
Ocidente.
A legislação referente a sexo é o mais implacável instrumento
de estratificação social e de perseguição erótica. O Estado intervém
rotineiramente no comportamento sexual, em um nível que não
seria tolerado em outras áreas da vida social. A maioria das pessoas
não tem consciência do alcance da legislação sobre sexo, da
quantidade e características do comportamento sexual ilegal, e do
caráter punitivo das sanções legais. Embora os órgãos federais
possam agir em casos de obscenidade e prostituição, a maioria das
leis relativas a sexo são promulgadas em nível estadual e municipal,
e cabe à polícia local, em larga medida, fazer com que sejam
cumpridas. Assim, as leis variam de forma extraordinária de lugar
para lugar. Além disso, a aplicação das leis relativas a sexo varia de
forma impressionante de acordo com o clima político local. Minha
discussão da legislação sexual não se aplica a leis contra a coerção
sexual, à agressão sexual ou ao estupro. Ela diz respeito à miríade
de proibições relativas ao sexo consensual e aos atos que só são
considerados crimes em função da idade das pessoas envolvidas,
como por exemplo o estupro por presunção de violência.
A legislação sobre sexo é dura. As penas pela violação de suas
regras são, em toda parte, desproporcionais a qualquer dano social
ou individual. Um único ato de sexo consensual mas ilícito, como
colocar os lábios na genitália de um parceiro excitado, é punido em
37
Pensando sobre sexo
muitos estados com mais severidade do que estupro, espancamento
ou assassinato. Cada beijo genital como esse, cada carícia lúbrica, é
um crime classificado de forma diferente. Portanto, é muito fácil
cometer vários tipos de felonia no curso de uma única noite de
paixão ilegal. Uma vez que alguém é acusado de algum crime
sexual, se praticar pela segunda vez o mesmo ato é enquadrado com
reincidente, e nesse caso as penas são ainda mais severas. Em
alguns estados, alguns indivíduos foram qualificados de
reincidentes por terem tido relações homossexuais em duas
ocasiões diferentes. Quando uma atividade erótica é proscrita pela
legislação sexual, todo o poder do Estado é mobilizado para
garantir o respeito aos valores corporificados nessas leis. As leis
relativas a sexo são aprovadas com uma facilidade notável, uma vez
que os legisladores temem ser brandos com o vício. Uma vez
inscritas nos livros, é extremamente difícil revogá-las.
A legislação sobre sexo não reflete de forma perfeita as
avaliações morais predominantes do comportamento sexual. A
variação sexual em si é vigiada de forma explícita por profissionais
de saúde mental, pela ideologia popular e pela prática social
extralegal. Alguns dos comportamentos sexuais mais odiados, como
o fetichismo e o sadomasoquismo, não são tão regulamentados pela
justiça criminal quanto outras práticas relativamente menos
estigmatizadas como o homossexualismo. Áreas do comportamento
sexual entram no campo de ação da lei quando se tornam objeto de
preocupação social e de agitação política. Cada susto em relação ao
sexo e cada campanha de moralização deixa uma novo estrato de
regulamentos como uma espécie de resíduo fóssil de sua passagem.
O sedimento jurídico é mais denso – e a legislação sexual é mais
vigorosa – em áreas relacionadas a obscenidade, dinheiro, menores
e homossexualismo.
As leis contra a obscenidade impõem um poderoso veto
contra a representação direta de atividades eróticas. A ênfase que
atualmente se dá à forma como a sexualidade se tornou o foco da
atenção social não deve ser usada indevidamente para invalidar a
crítica a essa proibição. Uma coisa é criar um discurso sexual na
forma de psicanálise, ou no curso de uma cruzada moral. Outra
muito diferente é representar graficamente atos sexuais ou
38
Gayle S. Rubin
genitália. A primeira é muito mais aceitável socialmente do que a
outra. O discurso sexual é obrigado à reticência, ao eufemismo e à
referência indireta. A questão da liberdade de falar sobre sexo é
uma exceção às proteções da Primeira Emenda, que nem ao menos
se considera aplicável a asserções puramente sexuais.
As leis contra a obscenidade também fazem parte de um
grupo de estatutos que torna quase todo comércio sexual ilegal. A
legislação sexual estabelece uma rigorosa proibição contra a
mistura de sexo e dinheiro, exceto no casamento. Além das
disposições contra a obscenidade, outras leis que interferem no
comércio sexual são as leis contra a prostituição, a regulamentação
sobre bebidas alcoólicas, e as disposições sobre a localização e
funcionamento de estabelecimentos “para adultos”. A indústria do
sexo e a economia gay conseguiram contornar um pouco essa
legislação, mas esse processo não foi fácil nem simples. O caráter
essencialmente fora da lei do empreendimento comercial dedicado
ao sexo fá-lo marginal, subdesenvolvido, distorcido. O negócio do
sexo só pode operar nos brechas deixadas pela lei. Isso leva a que o
nível dos investimentos se mantenha baixo e desvia a atividade
comercial para o objetivo de se manter fora das grades, em vez de
concentrar-se na distribuição de bens e prestação de serviços. Isso
também torna os trabalhadores do sexo mais vulneráveis à
exploração e a más condições de trabalho. Se o comércio do sexo
fosse legal, os trabalhadores do sexo teriam mais chances de
organizar-se e lutar por melhor remuneração, melhores condições
de trabalho, mais autonomia e menos estigma.
Independentemente do que se pense sobre as limitações do
comércio capitalista, uma exclusão tão extrema do processo de
mercado dificilmente seria aceitável em qualquer outro ramo de
atividade. Imagine, por exemplo, que fosse ilegal pagar em dinheiro
atendimento médico, informação farmacológica e aconselhamento
psicológico. A prática médica se faria em condições muito mais
precárias se médicos, enfermeiras, farmacêuticos e terapeutas
pudessem ser metidos na cadeia por decisão da “patrulha médica”
local. Mas essa é, essencialmente, a situação de prostitutas,
trabalhadores do sexo e empresários sexuais.
39
Pensando sobre sexo
O próprio Marx considerava o mercado capitalista uma força
revolucionária, embora limitada. Ele afirmava que o capitalismo
era progressista na medida em que eliminava as superstições e
preconceitos pré-capitalistas e os grilhões dos modos de vida
tradicionais. “Daí a grande influência civilizadora do capital, a
criação de um estágio da sociedade comparado com o qual todos os
anteriores se nos afiguram como mero progresso local e idolatria da
natureza.”52 Impedir o sexo de levar a efeito os progressos da
economia de mercado dificilmente levará a uma economia
socialista.
A lei é especialmente implacável ao estabelecer uma fronteira
entre a “inocência” da infância e a sexualidade “adulta”. Em vez de
reconhecer a sexualidade dos jovens e tentar dar-lhe suporte de
forma prudente e responsável, nossa cultura nega e pune o
interesse e atividade erótica de qualquer pessoa que não atingiu a
maioridade. O volume de disposições legais destinadas a proteger
os jovens de um exercício prematuro da sexualidade é espantoso.
O principal mecanismo para garantir a separação das
gerações sexuais são as leis de maioridade. Essas leis não fazem
distinção entre o estupro mais brutal e o mais terno dos romances.
Uma pessoa de 20 anos acusada de ter mantido relações sexuais
com outra de 17 sofrerá uma pesada pena em quase todos os
estados americanos, independentemente da natureza do
relacionamento.53 Os menores tampouco podem ter acesso à
sexualidade dos adultos por outras vias. Eles são proibidos de ler
livros, assistir a filmes ou a programas de televisão nos quais a
sexualidade é representada de forma “realista” demais. Os jovens
podem assistir a terríveis cenas de violência, mas é ilegal ver
representações explícitas da genitália. Os jovens sexualmente ativos
muitas vezes são encarcerados em casas de correção, ou punidos
por sua “precocidade”.
Karl Marx. In: MCLELLAN, David. (ed.) The Grundisse. Nova York, Harper &
Row, 1971, p.94.
53NORTON, Clark. Sex in América. Inquiry, 5 de outubro de 1981. Esse artigo é
uma síntese magistral de boa parte da legislação sexual em vigor e deveria ser
lido por todos os que se interessam por sexo.
52
40
Gayle S. Rubin
Os adultos que se desviam demais dos padrões convencionais
de comportamento sexual normalmente são afastados das crianças,
mesmo tratando-se de seus filhos. As leis de custódia permitem que
o Estado roube os filhos de qualquer pessoa cujas atividades
eróticas pareçam questionáveis a um juiz da vara de família.
Inúmeras lésbicas, gays, prostitutas, adeptos do sexo grupal,
trabalhadores do sexo e mulheres “promíscuas” foram declarados
incapazes de exercer de forma adequada a maternidade ou
paternidade, em função dessa sua condição. Os trabalhadores da
educação são estreitamente vigiados, para detectar ocasionais
sinais de desvio de comportamento. Em muitos estados
americanos, as leis determinam que os professores presos por
crimes sexuais percam seus empregos e suas credenciais. Em
alguns casos, um professor pode ser demitido simplesmente porque
seu estilo de vida não convencional chegou ao conhecimento dos
funcionários da escola. A depravação é uma das poucas
justificativas legais para a anulação da licença para lecionar.54
Quanto mais influência uma pessoa tem sobre a geração seguinte,
mais rigoroso é o controle de sua conduta e de suas opiniões. O
poder de coerção da lei garante a transmissão dos valores sexuais
conservadores através desses controles que se exercem sobre pais e
educadores.
O único comportamento sexual adulto legal em todos os
estados é a introdução do pênis na vagina, no âmbito do
casamento. A situação legal de adultos que fazem sexo consensual
tem melhorado em pouco mais da metade dos estados. A maioria
dos estados impõe severas penas contra sodomia consensual,
contato homossexual próximo da sodomia, adultério, sedução e
incesto entre adultos. As leis sobre sodomia variam muito. Em
alguns estados, elas se aplicam tanto a parceiros homossexuais
como a heterossexuais, independentemente de serem ou não
casados. Em alguns estados, a Justiça determina que casais casados
têm o direito de praticar sodomia em particular. Em outros, só a
sodomia homossexual é ilegal. Algumas leis sobre sodomia proíbem
o sexo anal e o contato oral-genital. Há estados em que se fala de
54
BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp.165-7.
41
Pensando sobre sexo
sodomia apenas em relação à penetração anal, e o sexo oral é
tratado à parte. 55
Leis como essas criminalizam o comportamento sexual
escolhido livremente e buscado avidamente. A ideologia a elas
subjacente reflete as hierarquias de valores acima referidas. Isto é,
alguns atos sexuais são considerados tão intrinsecamente vis que
não se pode permitir que ninguém, em hipótese alguma, os
pratique. O fato de que indivíduos concordem com eles e mesmo
que os prefiram é considerado mais uma prova de depravação. Esse
sistema de legislação sexual é semelhante ao racismo legalizado. A
proibição, pelo Estado, de contato sexual entre pessoas do mesmo
sexo, de penetração anal e de sexo oral faz dos homossexuais um
grupo criminoso sem as prerrogativas da plena cidadania. Com
essas leis, processar é perseguir. Mesmo quando elas não são
aplicadas estritamente, como em geral acontece, os membros das
comunidades sexuais criminalizadas ficam vulneráveis diante da
possibilidade de detenção arbitrária, ou de períodos em que eles se
tornam objeto de ondas de pânico social. Quando estas acontecem,
as leis estão a postos e a ação da polícia é rápida. Mesmo a
aplicação esporádica serve para lembrar aos indivíduos que eles são
membros de uma população subalterna. A prisão ocasional por
sodomia, por comportamento lascivo, por tentar aliciar clientes (as
prostitutas) ou por sexo oral mantém todo mundo assustado,
nervoso e cauteloso.
O Estado também resguarda a hierarquia através de normas
burocráticas. A polícia de imigração ainda proíbe a entrada de
homossexuais (e outros “desviantes” sexuais) nos Estados Unidos.
Os regulamentos militares impedem que os homossexuais integrem
as Forças Armadas.* O fato de os gays não poderem se casar
BESSERA, S. S; JEWEL, Nancy M.; MATTHEWS, Melody West e GATOV, Elizabeth R.
(eds.) Sex Codes of Califórnia. Public Education and Research Committee of
California, 1973, pp.163-8. Essa edição mais antiga do Sex Code of California é
anterior à lei sobre o consentimento de adultos, de 1976, por isso dá uma visão
melhor das leis sobre sodomia.
* Nota de 1992. Para uma excelente história das relações entre os gays e o exército
americano, ver BÉRUBÉ, Allan. Coming Out Under Fire: The History of Gay Men
and Women in World War II. Nova York, The Free Press, 1990.
55
42
Gayle S. Rubin
legalmente significa que eles não podem gozar dos mesmos direitos
que os heterossexuais, em muitos campos, como herança,
tributação, proteção às testemunhas, e aquisição de direito de
cidadania para parceiros estrangeiros. Estes são apenas alguns
exemplos de como o Estado reflete e mantém as relações sociais
ligadas à sexualidade. A Justiça reforça as estruturas de poder,
códigos de comportamento e formas de preconceito. Em seu pior
aspecto, a legislação sobre sexo é simplesmente um apartheid
sexual.
Embora o aparato legal do sexo esteja um tanto vacilante, a
maior parte do controle social do dia-a-dia é extralegal. Impõem-se
sanções sociais menos formais, mas bastante efetivas, aos membros
dos grupos sexuais “inferiores”.
Em seu excelente estudo etnográfico da vida gay na década de
1960, Esther Newton observou que a população homossexual
dividia-se no que ela chamava de “abertos” e “encobertos”. “Os
abertos vivem toda a sua vida profissional dentro do contexto da
comunidade [gay]; os encobertos vivem toda a sua vida nãoprofissional naquele contexto”.56 À época do estudo de Newton, a
comunidade gay oferecia muito menos empregos do que agora, e o
mundo do trabalho não gay era quase absolutamente intolerante
com o homossexualismo. Havia alguns indivíduos afortunados que
podiam ser abertamente gays e ganhar salários dignos. Mas a
grande maioria dos homossexuais tinha que escolher entre uma
pobreza honesta e a tensão de manter uma identidade falsa.
Embora essa situação tenha mudado bastante, ainda há uma
feroz discriminação contra os gays. Para o grosso da população gay,
assumir o homossexualismo no trabalho é praticamente impossível.
Em geral, quanto mais importante e elevado o cargo, menos a
sociedade tolera um desvio erótico aberto. É difícil para os gays
achar emprego onde não tenham que fingir, e é dupla ou
triplamente difícil para indivíduos que têm preferências eróticas
mais exóticas. Os sadomasoquistas deixam suas roupas-fetiche em
casa, e sabem que devem buscar esconder ao máximo sua
NEWTON, Esther. Mother Camp: Female Impersonators in America. Englewood
Cliffs, Nova Jersey, Prentice-Hall, 1972, p.21, grifo do original.
56
43
Pensando sobre sexo
verdadeira identidade. Um pedófilo que fosse descoberto seria
expulso do trabalho. É um grande fardo ser obrigado a viver uma
vida com tal grau de dissimulação. Mesmo aqueles que se
contentam com uma vida clandestina correm o risco de ser
acidentalmente descobertos. Indivíduos não convencionais do
ponto de vista erótico correm o risco de ficar sem emprego ou de
não poder seguir a carreira que escolheram.
Funcionários públicos ou qualquer um que ocupe uma
posição de certa importância são especialmente vulneráveis. Um
escândalo sexual é o método mais eficiente de expulsar alguém de
seu emprego ou destruir uma carreira política. O fato de que se
espera que pessoas com cargos importantes se conformem aos mais
estritos padrões de comportamento erótico desestimula os
pervertidos de todos os tipos a procurar ocupá-los. Ao contrário, os
dissidentes eróticos se encaminham para funções que têm menos
impacto nas mais importantes atividades sociais e na opinião
pública.
A expansão da economia gay na última década criou algumas
alternativas de emprego e um certo alívio da discriminação contra
homossexuais no mercado de trabalho. Mas a maioria dos
empregos da economia gay é de baixa qualificação e paga salários
baixos. Os gays são garçons, ajudantes em casas de sauna e discjóqueis, mas não diretores de banco ou executivos de empresa.
Muitos dos migrantes sexuais que afluem para lugares como San
Francisco descem na escala social. Eles enfrentam uma grande
concorrência na disputa pelos cargos. A afluência de migrantes
sexuais fornece uma reserva de mão-de-obra barata e explorável
para os negócios da cidade, tanto gays como não gays.
As famílias exercem um papel crucial na tarefa de assegurar a
conformidade aos padrões sexuais convencionais. Há uma grande
pressão social para que se negue aos dissidentes sexuais os
confortos e os recursos proporcionados pela família. A ideologia
popular sustenta que as famílias não devem produzir nem acolher o
inconformismo erótico. Muitas famílias reagem tentando
recuperar, punir ou banir os membros que não se conformam aos
padrões sexuais vigentes. Muitos migrantes sexuais foram expulsos
de casa por suas famílias, e muitos outros estão fugindo da ameaça
44
Gayle S. Rubin
da institucionalização. Qualquer grupo aleatório de homossexuais,
trabalhadores do sexo ou pervertidos de vários tipos pode nos
contar histórias estarrecedoras de rejeição e de maus tratos por
parte de famílias horrorizadas. O Natal é a grande festa da família
nos Estados Unidos, sendo portanto um momento de grande tensão
na comunidade gay. Metade dos moradores dessas comunidades
vai visitar as suas famílias de origem; muitos dos que permanecem
nos guetos gays não podem fazer o mesmo, e revivem toda a sua
raiva e sua amargura.
Além das punições econômicas e da tensão nas relações
familiares, o estigma da dissidência erótica cria áreas de atrito em
outros níveis da vida cotidiana. O público em geral ajuda a punir a
discrepância erótica quando, seguindo os valores que lhes foram
ensinados, os locadores se recusam a alugar suas casas, os vizinhos
chamam a polícia, arruaceiros promovem pancadarias. As
ideologias da inferioridade erótica e do perigo sexual diminuem a
força dos pervertidos sexuais e dos trabalhadores do sexo em lutas
sociais de todo tipo. Eles têm menos proteção contra
comportamentos inescrupulosos ou criminosos, menos acesso à
proteção da polícia, e têm menos chances de recorrer à Justiça.
Suas relações com instituições e burocracias – hospitais, polícia,
magistrados, bancos, funcionários públicos – são mais difíceis.
Sexo é um vetor de opressão. O sistema de opressão sexual
atravessa outros modos de desigualdade social, separando
indivíduos e grupos segundo sua própria dinâmica intrínseca. Ele
não pode ser reduzido a classe, raça, etnia ou gênero, nem pode ser
entendido nesses termos. Riqueza, pele branca, gênero masculino e
privilégios étnicos atenuam os efeitos da estratificação sexual. Um
pervertido branco e rico em geral é menos afetado que uma
pervertida pobre e negra. Mas mesmo os mais privilegiados não
ficam imunes à opressão sexual. Algumas das conseqüências do
sistema de hierarquia sexual são meros aborrecimentos. Outras são
muito graves. Em suas manifestações mais sérias, o sistema sexual
é um pesadelo kafkiano no qual as infelizes vítimas se transformam
em hordas de gado humano cuja identificação, vigilância, detenção,
tratamento, encarceramento e punição criam empregos e auto-
45
Pensando sobre sexo
satisfação para milhares de agentes das delegacias de costumes,
funcionários da carceragem, psiquiatras e assistentes sociais.57
V - Conflitos Sexuais
O pânico moral cristaliza os medos e ansiedades amplamente
difundidos, e em geral tenta enfrentá-los sem procurar as
verdadeiras causas dos problemas e as condições de que são
reflexo, mas projetando-as sobre “Folk Devils” [demônios
populares] de determinado grupo social (sempre o “imoral”
ou “degenerado”). A sexualidade teve um papel muito
importante nesse tipo de pânico, e os desviantes sexuais
sempre foram, em toda parte, os eternos bodes
expiatórios.(Jeffrey Weeks58)
O sistema sexual não é uma estrutura monolítica e
onipresente. Travam-se incessantes batalhas quanto a definições,
avaliações, acordos, privilégios e custos do comportamento sexual.
A luta política sexual assume formas bastante específicas.
A ideologia sexual tem um papel fundamental na experiência
sexual. Em conseqüência, as definições e avaliações do
comportamento sexual são objeto de acerba disputa. Os confrontos
entre o movimento de liberação gay, em seus primórdios, e o
establishment psiquiátrico são o melhor exemplo desse tipo de luta,
mas há constantes escaramuças. Acontecem batalhas recorrentes
entre o principais produtores da ideologia sexual – as igrejas, a
família, os psiquiatras e psicanalistas e a mídia – e os grupos cuja
experiência eles rotulam, distorcem e ameaçam.
As leis que regulam o comportamento sexual são outro campo
de batalha. Há mais de um século, Lysander Spooner dissecou o
57
D´Emilio traz uma excelente discussão da opressão dos gays na década
de 1950, cobrindo muitas das áreas que mencionei. As dinâmicas que ele
descreve, porém, funcionam também, em formas modificadas, em relação a
outros grupos eróticos, e em outros períodos. O modelo específico da opressão
contra os gays precisa ser generalizado para se aplicar, com as devidas
modificações, a outros grupos sexuais. D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit.,
pp.40-53.
58 WEEKS, J. Sex, Politics and Society… Op. cit., p.14.
46
Gayle S. Rubin
sistema de coerção moral sancionado pelo Estado, num texto
inspirado principalmente pelas campanhas contra o alcoolismo.
Em Vices Are Not Crimes: A Vindication of Moral Liberty [Vícios
Não São Crimes: Uma Defesa da Liberdade Moral], Spooner
afirmou que o governo devia proteger os cidadãos contra o crime,
mas que era insensato, injusto e tirânico legislar contra o vício. Ele
discute racionalizações que ainda se ouvem em defesa do
moralismo traduzido em leis – como a de que os “vícios” (Spooner
refere-se à bebida, mas aqui caberia também homossexualismo,
prostituição ou uso de drogas como diversão) levam a crimes,
devendo portanto ser evitados; que aqueles que se entregam ao
“vício” são non compus mentis, devendo, portanto, ser protegidos
da autodestruição pela destruição perpetrada pelo Estado; e que as
crianças devem ser resguardadas contra conhecimentos
supostamente nocivos.59 Esse discurso sobre crimes sem vítimas
não mudou muito. A luta jurídica em torno da legislação sobre sexo
vai continuar até que se consigam garantias de liberdades básicas
de ação e expressão sexual. Isso exige a revogação de todas as leis
sexuais exceto as poucas que se aplicam à coerção real, não sendo
meramente estatutárias; e isso implica a abolição de delegacias de
costumes, cuja função é fazer cumprir a legislação moral.
Além das guerras jurídicas e guerras em torno de definições,
existem formas menos evidentes de conflito político sexual que
chamamos de territoriais ou de fronteiras. Os processos pelos quais
as minorias eróticas formam comunidades e a existência de forças
que se lhe opõem levam a lutas que têm por objeto a natureza e os
limites das zonas sexuais.
A sexualidade dissidente é mais rara e mais estreitamente
vigiada nas cidades pequenas e na zona rural. Conseqüentemente, a
vida metropolitana atrai os jovens pervertidos. A migração sexual
cria aglomerados de parceiros, amigos e sócios. Ela permite que os
indivíduos criem uma rede de relações adultas, semelhantes a
relações de família, nas quais vivem. Mas os migrantes sexuais têm
que superar muitas barreiras.
SPOONER, Lysander. Vices Are Not Crimes: A Vindication of Moral Liberty.
Cupertino, Cal., Tanstaafl Press, 1977.
59
47
Pensando sobre sexo
Segundo a mídia mais influente e o preconceito popular, os
mundos sexuais marginais são tristes e perigosos. Descrevem-nos
como pobres, feios e habitados por psicopatas e criminosos. Os
novos imigrantes devem estar suficientemente motivados para
resistir ao impacto de imagens tão desanimadoras. As tentativas de
neutralizar essa contrapropaganda por meio de informações mais
fidedignas em geral são obstruídas pela censura, e há uma luta
ideológica incessante em torno de que representações das
comunidades sexuais devem entrar na mídia.
Restringem-se também informações sobre como fazer para
encontrar os mundos sexuais e para neles viver. Os guias também
são escassos e deficientes. No passado, boatos, mexericos e
propaganda negativa eram as formas disponíveis para localizar
comunidades eróticas semi-clandestinas. No fim da década de 1960
e começo da década de 1970 tornaram-se acessíveis informações
mais confiáveis. Novos grupos como a Maioria Moral desejam
reconstruir as muralhas ideológicas em volta dos submundos
sexuais e dificultar ao máximo o movimento de entrada e de saída
nessas comunidades.
A migração custa caro. Os custos do transporte, as despesas
com o deslocamento e a necessidade de encontrar um novo
emprego e moradia são dificuldades econômicas que os migrantes
sexuais precisam enfrentar. Essas são as barreiras mais difíceis
para os jovens, que em geral têm um desejo ardente de mudar-se.
Não obstante, há acessos para as comunidades eróticas que abrem
picadas no matagal da propaganda e oferecem um certo amparo
econômico no caminho. Nível superior de educação pode ser um
caminho para os jovens de famílias abastadas. Apesar de sérias
limitações, a informação sobre comportamento sexual em muitos
colégios e universidades é muito melhor que em outros lugares, e a
maioria dos colégios e universidades abrigam pequenas redes
eróticas de todos os tipos.
Para os rapazes mais pobres, o exército é a maneira mais fácil
de livrar-se do ambiente aversivo em que se encontram. As
proibições militares contra o homossexualismo tornam esse
caminho perigoso. Embora jovens homossexuais constantemente
procurem o exército para fugir de situações intoleráveis em suas
48
Gayle S. Rubin
cidades de origem e para se aproximarem de comunidades gays
funcionais, eles correm o risco de ser descobertos, de corte marcial
e de dispensa desonrosa.
Uma vez nas cidades, as populações eróticas tendem a se
aglutinar e a ocupar um território regular e visível. Igrejas e outras
forças moralizadoras constantemente pressionam as autoridades
locais para conter essas áreas, torná-las menos visíveis ou expulsar
seus habitantes da cidade. Há batidas periódicas em que as
delegacias de costumes se encarniçam contra as populações sob sua
jurisdição. Os grupos de gays, prostitutas e às vezes travestis são
concentrados e numerosos o bastante para travar intensas batalhas
com os policiais por determinadas ruas, parques e alamedas. Essas
guerras de fronteiras raramente são decisivas, mas resultam em
muitas baixas.
Durante boa parte do século XX, os submundos sexuais foram
marginais e pobres, seus moradores submetidos a stress e
exploração. O sucesso espetacular dos empresários gays na criação
de uma economia gay diversificada mudou a qualidade de vida no
interior do gueto gay. É sem precedentes o nível de conforto
material e de organização social alcançado pela comunidade gay
nos últimos quinze anos. Mas é importante lembrar o que
aconteceu com milagres semelhantes. O crescimento da população
negra em Nova York no início do século XX levou a um
renascimento do Harlem, mas esse período de criatividade foi
sufocado pela Depressão. A relativa prosperidade e florescimento
cultural do gueto gay talvez seja igualmente frágil. Como os negros
que fugiram do sul para o leste metropolitano, os homossexuais
podem simplesmente ter trocado os problemas rurais por
problemas urbanos.
O pioneiros gays ocuparam áreas que ficavam no centro das
cidades mas que estavam degradadas. Assim, ele se estabeleceram
próximo a regiões pobres. Os gays, principalmente os de baixa
renda, terminam por concorrer com outros grupos de renda
igualmente baixa pela escassa oferta de moradias baratas e
razoáveis. Em San Francisco, a disputa por moradias baratas
exacerbou o racismo e a homofobia, e é uma das razões por que se
vê tanta violência nas ruas contra homossexuais. Em vez de se
49
Pensando sobre sexo
encontrarem isolados e passarem despercebidos como na área
rural, os gays da cidade agora são numerosos e alvos muito visíveis
para as frustrações urbanas.
Em San Francisco, a construção desenfreada de arranha-céus
no centro da cidade e os condomínios caros estão acabando com as
moradias acessíveis. Construções milionárias estão criando uma
pressão sobre todos os moradores. Inquilinos gays pobres são
visíveis nas áreas de moradores de baixa renda; empreiteiros
multimilionários não. O espectro da “invasão homossexual” é um
bode expiatório conveniente que desvia a atenção dos bancos, dos
departamentos de obras, do establishment político e das grandes
empreiteiras. Em San Francisco, o bem-estar da comunidade gay é
obstado pela alta política imobiliária urbana.
No centro comercial da cidade, a expansão afeta toda a área
do submundo erótico. Em San Francisco e em Nova York, as
construções de alto investimento e a revitalização urbana
interferiram nas principais áreas de prostituição, pornografia e
bares leather. Os empreiteiros estão com olho gordo no Times
Square, no Tenderloin e no que sobrou de North Beach e South of
Market. A ideologia anti-sexo, a lei contra a obscenidade, as
normas sobre prostituição e sobre bebidas alcoólicas estão todas
sendo usadas para expulsar os negócios “sujos” para o público
adulto, os trabalhadores do sexo e os adeptos do leather. Dentro de
dez anos, a niveladora já terá passado pela maioria dessas áreas,
tornando-as adequadas para a construção de centros de
convenções, hotéis internacionais, sedes de empresas e residências
para ricos.
O tipo mais importante de conflito sexual é o que Jeffrey
Weeks chamou de “pânico moral”. Episódios de pânico moral são
os “momentos políticos” do sexo, nos quais opiniões difusas são
orientadas no sentido de uma ação política e daí para a mudança
social.60 A histeria da escravidão branca da década de 1880, as
campanhas contra os homossexuais da década de 1950 e o pânico
da pornografia infantil do final da década de 1970 foram pânicos
morais típicos.
60 Adotei
essa terminologia da utilíssima discussão que se encontra em WEEKS, J.
Sex, Politics and Society... Op. cit., pp.14-15.
50
Gayle S. Rubin
Como a sexualidade é muito mistificada nas sociedades
ocidentais, as lutas que se travam em torno desse tema se dão de
uma forma oblíqua, visando a alvos falsos, e são conduzidas por
ódios orientados na direção errada; além disso, são extremamente
simbólicas. As atividades sexuais sempre funcionam como símbolos
para os medos e apreensões sociais e pessoais com os quais não têm
relação. Durante um período de pânico moral, esses medos se
prendem a alguma prática sexual ou a um segmento desafortunado
da população. A mídia se enche de indignação, o público age como
uma turba irada, aciona-se a polícia, e o Estado promulga novas leis
e regulamentos. Passado o furor, algum grupo erótico inocente terá
sido dizimado, e o Estado terá estendido seu poder a novas áreas do
comportamento sexual.
O sistema de estratificação sexual fornece vítimas fáceis que
não têm forças para se defender, e um aparato pré-existente para
controlar seus movimentos e restringir suas liberdades. O estigma
contra os dissidentes sexuais os torna moralmente indefesos. Todo
pânico moral tem conseqüências em dois níveis. A população alvo é
a que mais sofre, mas todos são afetados pelas mudanças sociais e
jurídicas.
Os pânicos morais raramente atenuam algum problema real,
porque investem contra quimeras e símbolos. Eles recorrem a uma
estrutura discursiva pré-existente que inventa vítimas para
justificar o fato de tratarem “vícios” como crimes. Racionaliza-se a
criminalização
de
comportamentos
inócuos
como
homossexualismo, prostituição, obscenidade ou o uso de drogas
para fins de divertimento, apresentando-os como ameaças à saúde
e à segurança, aos homens e às mulheres, à segurança nacional, à
família ou à própria civilização. Mesmo quando se sabe que a
prática não é nociva, considera-se que deve ser banida porque
“leva” a algo muito pior (outra manifestação da teoria do dominó).61
Construíram-se grandes e imponentes edifícios com base nesses
Ver SPOONER, L. Vices Are Not Crimes… Op. cit., pp.25-29. O discurso feminista
contra a pornografia encaixa-se perfeitamente na tradição de justificar as
tentativas de controle moral afirmando que assim se protegem mulheres e crianças
da violência.
61
51
Pensando sobre sexo
fantasmas. Em geral, a eclosão de um pânico moral é precedida de
uma intensificação dos ataques a bodes expiatórios.
É sempre arriscado profetizar. Não é preciso, porém, muita
capacidade de previsão para detectar potenciais pânicos morais em
duas tendências atuais: os ataques contra sadomasoquistas da
parte de um segmento do movimento feminista e o uso cada vez
maior da AIDS, por parte da direita, para incitar uma homofobia
violenta.
A ideologia feminista contra a pornografia sempre continha
uma condenação velada, e às vezes aberta, ao sadomasoquismo. As
imagens de pessoas trepando ou se chupando, que constituem o
grosso do material pornográfico, podem ser chocantes para pessoas
que não estão familiarizadas com elas. Mas é difícil demonstrar que
elas são violentas. As primeiras mostras de imagens contra a
pornografia usavam exemplos cuidadosamente selecionados de
cenas de sadomasoquismo para inculcar uma análise superficial.
Fora de seu contexto, essas imagens são sempre chocantes. A força
desse impacto era usada cruelmente para assustar o público e fazêlo aceitar o ponto de vista contra a pornografia.
Grande parte da propaganda contra a pornografia insinua
que o sadomasoquismo é a “verdade” subjacente e fundamental
para a qual tende toda a pornografia. Considera-se que a
pornografia leva ao sadomasoquismo pornográfico; este, por sua
vez, leva ao estupro. Essa é uma história que recupera a idéia de
que são os pervertidos sexuais que cometem crimes, não as pessoas
normais. Não há indícios de que os leitores da literatura
pornográfica sadomasoquista ou que os praticantes do
sadomasoquismo cometam um grande número de crimes sexuais.
A literatura antipornográfica acusa uma minoria sexual impopular
e seu material de leitura de problemas que ela não cria.
O uso de imagens de sadomasoquismo no discurso
antipornográfico excita os ânimos. Ele leva a acreditar que a forma
de tornar o mundo um lugar seguro para as mulheres é eliminar o
sadomasoquismo. O uso de imagens de sadomasoquismo no filme
Not a Love Story era o equivalente moral de usar imagens de
negros estuprando mulheres brancas, ou de judeus velhos, a baba a
52
Gayle S. Rubin
escorrer-lhes da boca, agarrando jovens árabes, para provocar a
histeria racista ou anti-semita.
O discurso feminista tem uma lamentável tendência a
ressurgir em contextos reacionários. Por exemplo, em 1980 e 1981 o
papa João Paulo II fez uma série de pronunciamentos reafirmando
seu compromisso com uma visão mais conservadora, mais próxima
do pensamento do apóstolo Paulo, da sexualidade humana. Ao
condenar o divórcio, o aborto, a prática de coabitar por algum
tempo antes de casar, a pornografia, a prostituição, o controle da
natalidade, o hedonismo desenfreado e a luxúria, o papa usou, em
larga medida, a retórica feminista sobre a objetificação sexual. Num
estilo que lembrava o da polemista feminista lésbica Julia
Penelope, Sua Santidade explicou que “encarar uma pessoa com
luxúria faz dessa pessoa um objeto sexual e não um ser humano a
quem se deve respeito”.62
A direita rejeita a pornografia e já adotou elementos do
discurso feminista contra a pornografia. O discurso contra a
pornografia sadomasoquista desenvolvido no movimento feminista
pode muito bem funcionar como instrumento para uma caça às
bruxas. Ele apresenta uma população indefesa, pronta para servir
de alvo. Ele apresenta motivos para a recriminalização de materiais
sexuais que ficaram fora do alcance das leis atuais contra a
obscenidade. Seria por demais fácil aprovar leis contra a arte
masoquista semelhantes às que existem contra a pornografia
infantil. O objetivo confesso dessas leis seria reduzir a violência
pela eliminação da chamada pornografia violenta. Uma intensa
campanha contra a ameaça leather também pode levar à aprovação
de leis que criminalizem comportamentos sadomasoquistas que
atualmente não são ilegais. O resultado final desse pânico moral
seria legalizar a violência contra uma comunidade de pervertidos
inofensivos. É pouco provável que essa caça às bruxas traga alguma
62
Pope´s Talk on Sexual Spontaneity, San Francisco Chronicle, 13 de
novembro de 1980, p.8; ver também, acima, nota 37. Julia Penelope afirma que
“não precisamos de nada que se autodenomine puramente sexual” e que “a
fantasia, enquanto um aspecto da sexualidade, pode ser uma ´necessidade´
falocêntrica da qual não estamos livres...” PENELOPE, Julia. And Now For the
Really Hard Questions. Sinister Wisdom, nº 15, outono de 1980, p.103.
53
Pensando sobre sexo
contribuição apreciável para a redução da violência contra as
mulheres.
Ainda mais provável é um pânico da AIDS. Quando o medo de
uma doença incurável se mistura ao terror sexual, o resultado é
bastante explosivo. Um século atrás, tentativas para erradicar a
sífilis levaram, na Inglaterra, à aprovação das Leis sobre Doenças
Contagiosas. Essas leis baseavam-se em teorias médicas errôneas e
em nada contribuíram para evitar a propagação da doença. Mas
elas infelicitaram a vida de centenas de mulheres que foram
encarceradas, submetidas a exame vaginal obrigatório e
estigmatizadas, pelo resto da vida, como prostitutas.63
Aconteça o que acontecer, a AIDS trará conseqüências
duradouras para o sexo em geral e para a homossexualidade em
particular. A doença terá um impacto muito grande nas opções
feitas pelos gays. A migração para os santuários gays diminuirá, por
medo da doença. Aqueles que já vivem nos guetos vão evitar
situações que os exponham a riscos. A economia gay e o aparato
político que a ampara talvez se revelem muito frágeis. O medo da
AIDS já afetou a ideologia sexual. Exatamente quando os
homossexuais estavam conseguindo resultados positivos em sua
luta para livrar-se do estigma da doença mental, eles se vêem
metaforicamente associados à imagem da degradação física fatal. A
síndrome, suas características específicas e forma de transmissão
estão sendo usadas para fortalecer velhos medos de que a atividade
sexual, o homossexualismo e a promiscuidade levem à doença e à
morte.
A AIDS é uma tragédia pessoal para os que contraem a
síndrome e uma calamidade para a comunidade gay. Os homófobos
se comprouveram em voltar essa tragédia contra suas vítimas. Um
colunista afirmou que a AIDS sempre existiu, que as proibições
bíblicas da sodomia visavam a proteger da AIDS, e que portanto a
AIDS é uma punição adequada para a violação dos códigos levíticos.
Usando o medo da infecção como justificativa, a ala direita local
tentou impedir a realização do rodeio gay de Reno, no estado de
Ver principalmente WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society… Op.
cit., e WEEKS, J. Sex, Politics and Society... Op. cit.
63
54
Gayle S. Rubin
Nevada. Um número recente da Moral Majority Report mostrou
uma foto de uma família branca “típica” usando máscaras
cirúrgicas. Na manchete se lia: “AIDS: A DOENÇA HOMOSSEXUAL
AMEAÇA AS FAMÍLIAS AMERICANAS.”64 Há pouco tempo, Phyllis
Schlafly publicou um folheto afirmando que aprovação da Emenda
de Igualdade de Direitos nos impediria de nos proteger, “em termos
legais, da AIDS e de outras doenças de homossexuais”.65 A literatura
da direita atual propõe o fechamento de saunas gays, a decretação
de uma lei proibindo os homossexuais de trabalharem com
manipulação de alimentos e a proibição, pelo Estado, da doação de
sangue pelos gays. Essas medidas exigiriam que o governo
identificasse todos os homossexuais e lhes impusesse distintivos
legais e sociais facilmente reconhecíveis.
Já é muito ruim que a comunidade gay tenha que enfrentar a
infelicidade de ter sido o primeiro segmento da população em que a
doença se disseminou e se fez notar. Pior é ter que enfrentar, além
disso, as conseqüências sociais. Mesmo antes do pavor da AIDS, a
Grécia aprovou uma lei que autoriza a polícia a prender suspeitos
de serem homossexuais e submetê-los a um exame para detectar
doenças sexualmente transmissíveis. Muito provavelmente, até que
se conheçam os processos de transmissão, haverá de surgir todo
tipo de proposta para erradicação da doença recorrendo-se à
punição da comunidade gay e ao ataque a suas instituições. Quando
se desconhecia a causa da legionelose, a doença dos legionários,
ninguém propôs submeter a quarentena os membros da Legião
Americana ou fechar seus locais de reunião. As Leis das Doenças
Contagiosas da Inglaterra pouco fizeram para erradicar a sífilis,
mas causaram muito sofrimento às mulheres que por elas foram
atingidas. A história do pânico que acompanhou as novas
epidemias, e as baixas sofridas por seus bodes expiatórios, deviam
fazer que todo mundo parasse para considerar com extrema
64 Moral
Majority Report, julho de 1983. Agradeço a Allan Bérubé por me chamar
a atenção para essa foto.
65 apud BUSH, Larry. Capitol Report. Advocate, 8 de dezembro de 1983, p.60.
55
Pensando sobre sexo
desconfiança quaisquer tentativas de justificar medidas políticas
baseadas na AIDS.*
VI Os limites do feminismo
Sabemos que na maioria esmagadora dos casos, o crime
sexual está ligado à pornografia. Sabemos que os que
praticam crimes sexuais são claramente influenciados por
ela. Creio que, se pudermos eliminar a distribuição desse tipo
de material entre crianças impressionáveis, haveremos de
reduzir consideravelmente nossa assustadora taxa de crimes
sexuais. (J. Edgar Hoover66 )
Na falta de uma teoria radical do sexo mais articulada, muitos
progressistas procuraram uma orientação no feminismo. Mas a
relação entre o feminismo e o sexo é complexa. Uma vez que a
sexualidade é um elo das relações entre gêneros, muito da opressão
das mulheres é gerada e mediada pela sexualidade, e constituída no
interior desta. O feminismo sempre teve um interesse vital em sexo.
Mas houve duas correntes de pensamento feminista sobre esse
assunto. Uma tendência criticava as restrições ao comportamento
sexual das mulheres e condenava o alto custo imposto às mulheres
por serem sexualmente ativas. Essa tradição do pensamento sexual
Nota de 1922. A literatura sobre a AIDS e suas seqüelas sociais multiplicou-se
desde a publicação deste ensaio. Alguns dos textos importantes são AIDS: CRIMP,
Douglas. Cultural Analysis, Cultural Ativism. Cambridge, Mass., MIT Press, 1988;
CRIMP, Douglas e ROLSTON, Adam. AIDS DEMOGRAPHICS. Seattle, Bay Press,
1990; FEE, Elizabeth e FOX, Daniel M. AIDS: The Burdens of History. Berkeley,
University of California Press, 1988; e AIDS: The Making of a Chronicle Disease.
Berkeley, University of California Press, 1992; PATTON, Cindy. Sex and Germs: The
Politics of AIDS. Boston, South End Press, 1985; e Inventing AIDS. Nova York,
Routledge, 1990; WATNEY, Simon. Policing Desire: Pornography, AIDS, and the
Media. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987; CARTER, Erica e
WATNEY, Simon. Taking Liberties: AIDS and Cultural Politics. Londres, Serpent´s
Tail, 1989; BOFFIN, Tessa e GUPTA, Sunil. Ecstatic Antibodies. Rivers Oram Press,
1990; e KINSELLA, James. Covering the Plague: AIDS and the American Media.
New Brunswick, Rutgers University Press, 1989.
66 apud HYDE, H. Montgomery. A History of Pornography. Nova York, Dell, 1965,
p.31.
*
56
Gayle S. Rubin
feminista lutava por uma liberação sexual feminina que
funcionasse para as mulheres da mesma forma que para os
homens. A segunda tendência considerava que a liberação sexual
era, essencialmente, uma extensão do privilégio dos homens. Essa
tradição é afim do discurso conservador, anti-sexual. Com o
advento do movimento contra a pornografia, ela conseguiu uma
hegemonia temporária na análise feminista.
O movimento contra a pornografia e seus textos foram a
expressão mais ampla desse discurso.67 Além disso, os que
defendiam esse ponto de vista condenaram praticamente toda
expressão sexual variante como anti-feminista. Dentro desse
quadro, o lesbianismo monogâmico no âmbito de relações íntimas
duradouras e que excluem o desempenho de papéis polarizados
substituiu o heterossexualismo procriador no topo da hierarquia de
valores. O heterossexualismo foi rebaixado para uma posição
intermediária. Afora essa mudança, tudo o mais parece mais ou
menos familiar. As posições mais baixas são ocupadas pelos grupos
e comportamentos de sempre: prostituição, transexualismo,
sadomasoquismo e relações entre pessoas de gerações diferentes.68
A maioria dos comportamentos do homossexual masculino, todo
sexo ocasional, promiscuidade e lesbianismo em que existam
papéis não convencionais ou que excluam a monogamia também
são condenados.69 Mesmo a fantasia sexual durante a masturbação
é considerada um resquício falocêntrico.70
67Ver,
por exemplo, LEDERER, Laura. (ed.) Take Back the Night. Nova York,
William Morrow, 1980; DWORKIN, Andrea. Pornography, Nova York, Perigee,
1981. O Newspage, do grupo Women Against Violence in Pornography and Media,
de San Francisco, e o Newsreport, do grupo Women Against Pornography, de
Nova York, são fontes excelentes.
68 BARRY, Kathleen. Female Sexual Slavery. Englewood Cliffs, Nova Jersey,
Prentice-Hall, 1979; Raymond, Janice. The Transsexual Empire, Boston, Beacon,
1979; BARRY, Kathleen. Sadomasochism: The New Blacklash to Feminism. Trivia,
nº 1, outono de 1982; LINDEN, Robin Ruth; PAGANO, Darlene R.; RUSSEL, Diana
E.H. e STARR, Susan Leigh. (eds.) Against Sadomasochism. East Palo Alto, Cal.,
Frog in the Well, 1982; e Rush, Florence. The Best Kept Secret, Nova York,
McGraw-Hill, 1980.
69 GEARHART, Sally. An Open Letter to the Voters in District 5 and San Francisco´s
Gay Community, 1979; Rich, Adrienne. On Lies, Secrets, and Silence. Nova York,
57
Pensando sobre sexo
Esse discurso sobre a sexualidade é menos uma sexologia que
uma demonologia. Ele apresenta a maioria dos comportamentos
sexuais em seu pior aspecto possível. Suas descrições do
comportamento erótico sempre usam o pior exemplo disponível
como se ele fosse representativo. Ele apresenta a pornografia mais
repugnante, as formas de prostituição mais exploradas e as menos
aceitáveis ou as mais chocantes manifestações da variação sexual.
Essa tática de convencimento falseia a sexualidade humana em
todas as suas formas. O panorama da sexualidade humana que se
descortina a partir dessa literatura é invariavelmente feio.
Além disso, essa tática de convencimento contra a
pornografia é um exercício da atribuição de todos os males a bodes
expiatórios. Ela critica os atos de amor não rotineiros em vez de
criticar os atos rotineiros de opressão, exploração ou violência. Essa
demonologia/sexologia canaliza para indivíduos, práticas e
comunidades inocentes a legítima revolta das mulheres contra a
falta de segurança pessoal. A propaganda contra a pornografia
afirma que o sexismo tem origem dentro da indústria do sexo e em
seguida contamina todo o resto da sociedade. Do ponto de vista
sociológico, isso é um contra-senso. Não se pode dizer que a
indústria do sexo seja uma utopia feminista. Ela reflete o sexismo
que existe na sociedade como um todo. Precisamos analisar e
combater as manifestações de desigualdade de gênero
característica da indústria do sexo. Mas isto não é o mesmo que
procurar eliminar o sexo comercial.
W.W. Northon, 1979, p.225. (“Por outro lado, existe uma cultura patriarcal
homossexual, uma cultura criada por homens homossexuais, que reflete esses
estereótipos masculinos como a dominação e a submissão como modos de
relacionamento, e a separação de sexo do envolvimento emocional – uma cultura
permeada pelo profundo ódio contra as mulheres. A cultura masculina ´gay´
ofereceu às lésbicas a imitação dos papéis estereotipados de ´sapatão´ e ´lady´,
´ativo´ e ´passivo´, ‘caçar´, sadomasoquismo e o mundo violento e autodestrutivo
dos bares ´gays´.”); PASTERNACK, Judith. The Strangest Bedfellows: Lesbian
Feminism and the Sexual Revolution. WomanNews, outubro de 1983; RICH,
Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence. In: SNITOW, Ann;
STANSELL, Christine e THOMPSON, Sharon. (eds.) Powers of Desire: The Politics of
Sexuality. Nova York, Monthly Review Press, 1983.
70 PENELOPE, Julia. And Now For the Really Hard Questions. Op. cit.
58
Gayle S. Rubin
Da mesma forma, as minorias eróticas, como as
sadomasoquistas e os transexuais por exemplo, têm tanta tendência
a apresentar atitudes sexistas quanto quaisquer outros grupos
sociais. Mas afirmar que eles são intrinsecamente anti-feministas é
pura fantasia. Boa parte da literatura feminista atual atribui a
opressão das mulheres às representações realistas de sexo, à
prostituição, à educação sexual, ao sadomasoquismo, ao
homossexualismo masculino e transexualismo. E onde ficam a
família, a religião, a educação, a mídia, o Estado, a psiquiatria, a
discriminação no mercado de trabalho e a falta de paridade
salarial?
Em última análise, o chamado discurso feminista recria uma
moral sexual muito conservadora. Por mais de um século,
travaram-se lutas para determinar o quanto de vergonha, dor e
sofrimento se deveria impingir à atividade sexual. A tradição
conservadora combateu a pornografia, a prostituição, o
homossexualismo, todas as variantes eróticas, a educação sexual, a
pesquisa sobre sexo, a aborto e os anticoncepcionais. A tradição
oposta, pró-sexo, contou com indivíduos como Havelock Ellis,
Magnus Hirschfeld, Alfred Kinsey e Victoria Woodhull, e também
com o movimento pela educação sexual, com organizações de
prostitutas e homossexuais militantes, com o movimento pelos
direitos de reprodução e com organizações como a Sexual Reform
League da década de 1960. Esse grupo bastante diversificado de
reformadores sexuais, educadores e militantes sexuais misturaram
registros sobre temas feministas e sexuais. Mas certamente eles
estão mais próximos do espírito do feminismo moderno que os
cruzados morais, o movimento pela pureza social e as organizações
de combate ao vício. Não obstante, a demonologia sexual feminista
atual em geral eleva os cruzados contra o vício a posições de honra,
ao mesmo tempo em que condena a tradição mais libertária como
sendo anti-feminista. Num ensaio que dá bem uma mostra dessas
tendências, Sheila Jeffreys critica Havelock Ellis, Edward
Carpenter, Alexandra Kolontai, “que crêem na alegria do sexo de
todas as facções políticas possíveis”, e o congresso de 1929 da World
59
Pensando sobre sexo
League for Sex Reform, por “por ter contribuído, em larga medida,
para a derrota do feminismo militante.”71*
O movimento contra a pornografia e seus avatares pretendem
falar por todo o feminismo. Felizmente, eles não falam. A liberação
sexual foi e continua sendo um objetivo feminista. O movimento
das mulheres pode ter produzido alguns dos mais retrógrados
pensamentos sobre sexo deste lado do Vaticano. Mas ele produziu
também uma estimulante, inovadora e articulada defesa do prazer
sexual e da justiça erótica. Esse feminismo “pró-sexo” foi liderado
por lésbicas cuja sexualidade não se conforma aos padrões de
pureza (principalmente lésbicas sadomasoquistas e lésbicas tipo
sapatão e lady), por heterossexuais que não fazem apologia de sua
opção sexual e por mulheres que se alinham mais com o feminismo
radical clássico que com as celebrações revisionistas da
feminilidade atualmente tão comuns.72 Embora as forças contra a
JEFFREYS, Sheila. The Spinster and Her Enemies: Sexuality and the Last Wave of
Feminism. Scarlet Woman, nº 13, parte 2, julho de 1981, p.26; encontra-se uma
formulação mais desenvolvida dessa tendência em PASTERNACK, J. The Strangest
Bedfellows... Op. cit.
* Nota de 1992. Essas tendências agora estão muito mais articuladas. Alguns dos
textos-chave são JEFFREYS, Sheila. The Spinster and Her Enemies: Feminism and
Sexuality 1880-1930. Londres, Pandora Press, 1985; Anti-Climax. Londres, The
Women´s Press, 1990; COVENEY, Lal; JACKSON, Margaret; JEFFREYS, Sheila; KAY,
Leslie e MAHONY, Pat. The Sexuality Papers: Male Sexuality and the Social
Control of Women. Londres, Hutchinson, 1984; e LEIHOLDT, Dorchen e RAYMOND,
Janice G. The Sexual Liberals and the Attack on Feminism. Nova York, Pergamon,
1990.
72 CALIFIA, Pat. Feminism vs. Sex: A New Conservative Wave. Advocate, 21 de
fevereiro, 1980; Among Us, Against Us – The New Puritans. Advocate, 17 de abril
de 1980; The Great Kiddy… Op. cit.; A Thorny Issue Splits a Movement… Op. cit.;
Sapphistry. Tallahassee, Florida, Naiad, 1980; What Is Gay Liberation. Advocate,
25 de junho de 1981; Feminism and Sadomasochism. Co-Evolution Quarterly, nº
33, primavera de 1981; Response to Dorchen Leidholdt. New Women´s Times,
outubro de 1982; Public Sex. Advocate, 30 de setembro, 1982; Doing It Together:
Gay Men, Lesbians, and Sex. Advocate, 7 de julho de 1983; Gender-Bending.
Advocate, 5 de setembro de 1983; The Sex Industry. Advocate, 13 de outubro de
1983; ENGLISH, Deirdre; HOLLIBAUGH, Amber e RUBIN, Gayle. Talking Sex. Socialist
Review, julho-agosto de 1981; Sex Issue. Heresies, nº 12, 1981; HOLLIBAUGH,
Amber. The Erotophobic Voice of Women: Building a Movement for the
Nineteenth Century. New York Native, 26 de setembro/9 de outubro, 1983; HOLZ,
71
60
Gayle S. Rubin
pornografia tenham tentado expulsar do movimento as vozes
discordantes, o fato é que o pensamento feminista continua
profundamente polarizado.73
Onde quer que haja polarização, há uma lamentável
tendência a pensar que a verdade está em algum ponto mediano.
Ellen Willis comentou sarcasticamente que “a tendência do
feminismo é achar que as mulheres são iguais aos homens, e a dos
chauvinistas, que as mulheres são inferiores. A verdade está em
algum ponto entre as duas posições.”74O mais recente avanço nas
guerras sexuais feministas é o surgimento de um “meio” que
procura evitar os perigos do fascismo antipornográfico, de um lado,
e um suposto libertarismo do “vale tudo”, de outro.75 Embora seja
difícil criticar um ponto de vista ainda não totalmente consolidado,
gostaria de chamar a atenção para alguns problemas preliminares.*
Maxine. Porn: Turn On or Put Down, Some Thoughts on Sexuality. Processed
World, nº 7, primavera de 1983; O’DAIR, Barbara. Sex, Love, and Desire: Feminists
Struggle Over the Portrayal of Sex. Alternative Media, primavera de 1983;
ORLANDO, Lisa. Bad Girls and “Good” Politics. Village Voice, Literary Supplement,
dezembro de 1982; RUSS, Joanna. Being Against Pornography. Thirteenth Moon,
vol. VI, nos. 1 e 2, 1982; SAMOIS. What Color is Your Handkerchief, Berkeley,
Samois, 1979; SAMOIS. Coming to Power, Boston, Alyson, 1982; SUNDAHL,
Deborah. Stripping For a Living. Advocate, 13 de outubro de 1983; WECHSLER,
Nancy. Interview with Pat Califia and Gayle Rubin. parte 1, Gay Community
News, Book Review, 18 de julho de 1981, e parte II, Gay Community News, 15 de
agosto de 1981; WILLIS, Ellen. Beginning to See the Light. Nova York, Knopf, 1981.
Para uma excelente síntese da história das mudanças ideológicas do feminismo
que afetaram os debates sexuais, ver ECHOLS, Alice. Cultural Feminism: Feminist
Capitalism and the Anti-Pornography Movement. Social Text, nº 7, primavera e
verão de 1983.
73 ORLANDO, Lisa. Lust at Last Spandex! Invades the Academy. Gay Community
News, 15 de maio de 1982; WILLIS, Ellen. Who Is a Feminist? An Open Letter to
Robin Morgan. Village Voice, Literary Supplement, dezembro de 1982.
74WILLIS, Ellen. Beginning to See the Light… Op. cit., p.146. Agradeço a Jeanne
Bergman por me chamar a atenção para esta citação.
75Ver, por exemplo, BENJAMIN, Jessica. Master and Slave: The Fantasy of Erotic
Domination. In: SNITOW, A. et alii (eds.) Powers of Desire... Op. cit., p.297; e RICH,
B. Ruby. resenha de Powers of Desire. These Times, 16-22 de novembro de 1983.
*Nota de 1992. A denominação “feminismo libertário” ou “libertarismo sexual
continua a ser aplicada às radicais sexo-feministas. A denominação é errônea e
enganosa. É verdade que o Libertarian Party é contra o controle, pelo Estado, do
61
Pensando sobre sexo
Essa posição intermediária que está surgindo baseia-se numa
caracterização falseada dos pólos do debate, que considera ambos
os lados como igualmente extremistas. Segundo B. Ruby Rich, “o
desejo de uma linguagem da sexualidade levou as feministas a
territórios (pornografia, sadomasoquismo) por demais estreitos ou
determinados para propiciarem uma discussão proveitosa. O
debate descambou para a briga.”76 De fato, as lutas entre a Women
Against Pornography (WAP) e as sadomasoquistas lésbicas
pareciam conflitos de gangues. Mas o principal responsável por isso
é o movimento contra a pornografia, e sua recusa a estabelecer uma
discussão sóbria. As lésbicas sadomasoquistas foram obrigadas a
comportamento sexual consensual. Concordamos quanto ao caráter pernicioso da
atuação do Estado nessa área, e considero a proposta libertária de revogação de
boa parte da legislação sobre sexo superior às propostas de quaisquer outras
facções políticas. Mas a concordância fica por aí. As radicais sexo-feministas
baseiam-se em conceitos de desigualdades sistêmicas e socialmente estruturadas e
em poderes diferenciais. Nesta análise, a regulamentação do sexo pelo Estado é
parte de um sistema mais complexo de opressão que ela reflete, reforça e
influencia. O Estado também desenvolve suas próprias estruturas de interesses,
poderes e recursos na regulamentação do sexo.
Como explicamos neste ensaio e em outros textos, o conceito de consentimento
tem papel diferente, na legislação sobre sexo, do que tem no contrato social ou
num acordo salarial. O caráter, a extensão e a importância da intervenção e
regulamentação do sexo por parte do Estado devem ser analisados no contexto, e
não podem ser equiparados grosseiramente a análises derivadas da teoria
econômica. Determinadas liberdades básicas que são ponto pacífico em outros
setores da vida não existem no campo do sexo. As que existem não permitem o
acesso, em condições de igualdade, às diferentes populações sexuais e são
aplicadas de forma desigual a várias atividades sexuais. As pessoas não são
chamadas de “libertárias” por lutar pelas liberdades básicas e por igualdade
jurídica para grupos étnicos ou raciais; não vejo nenhuma razão para negar a
certos grupos sexuais mesmo os parcos benefícios das sociedades capitalistas
liberais.
Duvido que alguém quisesse chamar Marx de liberal ou libertário, mas ele
considerava o capitalismo um sistema social revolucionário, embora limitado. “Daí
a grande influência civilizadora do capital, a criação de um estágio da sociedade
comparado com o qual todos os anteriores se nos afiguram como mero progresso
local...” (MARX, Karl. The Grundisse, Nova York, Harper Torchbooks, 1971, pp.9495). Deixar de apoiar as liberdades sexuais democráticas não vai levar ao
socialismo; só contribui para manter algo mais próximo do feudalismo.
76 RICH, B. R. resenha de Powers of Desire. Op. cit., p.76.
62
Gayle S. Rubin
lutar para manter seu grupo no movimento e para defender-se de
calúnias. Nenhuma porta-voz autorizada das sadomasoquistas
lésbicas postulou uma supremacia S/M, nem defendeu a idéia de
que todos devem ser sadomasoquistas. Além de se ocuparem da
própria defesa, as lésbicas sadomasoquistas exigiram que se levasse
em conta a diversidade sexual e que se fizesse uma discussão mais
aberta da sexualidade.77 Tentar encontrar um meio termo entre a
WAP e Samois é como dizer que a verdade sobre a
homossexualidade está entre as posições da Maioria Moral e as do
movimento gay.
Na vida política, é fácil demais marginalizar os radicais e
tentar ganhar adesões a uma posição moderada tachando os outros
de extremistas. Durante anos, os liberais fizeram isso com os
comunistas. Os radicais sexuais abriram os debates sobre sexo. É
uma vergonha negar sua contribuição, falsear suas posições e
acentuar o estigma que pesa sobre eles.
Ao contrário das feministas culturais, que querem
simplesmente expulsar os dissidentes sexuais, os moderados
sexuais pretendem defender os direitos políticos dos nãoconformistas eróticos. Não obstante, essa defesa de direitos
políticos está ligada a um sistema de condescendência ideológica.*
O debate tem dois pontos principais. O primeiro é a alegação de
que os dissidentes sexuais não prestaram atenção bastante ao
significado, às fontes ou à construção histórica de sua sexualidade.
Essa ênfase no significado parece funcionar como funcionou a
questão da etiologia nas discussões sobre a homossexualidade. Isto
é, a homossexualidade, o sadomasoquismo, a prostituição ou o
amor por meninos são considerados como misteriosos e
SAMOIS. What Color Is... Op. cit.; e Coming To Power… Op. cit.; Califia, Pat.
Feminism and Sadomasochism... Op. cit.; e Sapphistry... Op. cit.
* Nota de 1992. Um exemplo recente de condescendência ideológica é o seguinte:
“Os sadomasoquistas não são inteiramente ‘desprovidos de valores’, mas eles se
mostraram refratários a quaisquer valores que limitassem sua liberdade e que
fossem além do mero julgamento por parte de um terceiro; e nisto eles revelam
sua incompreensão das exigências da vida em comum.” Fonte: Identity Politics:
Lesbian Feminism and the Limits of Community, Filadélfia, Temple University
Press, 1989, p.133.
77
63
Pensando sobre sexo
problemáticos, diferentemente do que acontece com sexualidades
mais respeitáveis. A busca de uma causa é a busca de algo que
poderia mudar as coisas de tal forma que esses erotismos
“problemáticos” simplesmente deixariam de existir. Os militantes
sexuais responderam a essas formulações que, embora a questão da
etiologia ou da causa tenha um interesse intelectual, não é um item
prioritário de seu programa político e que, além disso, privilegiar
esse tipo de questão constitui um retrocesso político.
O segundo ponto da posição “moderada” se concentra em
questões de consentimento. Os sexuais radicais de todos os tipos
reivindicaram a legitimação social e jurídica do comportamento
sexual consensual. As feministas os criticaram por abusar de
artifícios em questões como “os limites do consentimento” e
“restrições estruturais” ao consentimento.78 Embora existam
problemas graves no discurso político do consentimento, e embora
haja restrições estruturais à escolha sexual, essa crítica foi usada
sistematicamente de forma incorreta nos debates sobre sexo. Ela
não leva em conta o conteúdo semântico muito específico que o
consentimento tem na legislação e na prática sexual.
Como disse anteriormente, boa parte da legislação sobre sexo
não faz a distinção entre comportamento consensual e sob coação.
Somente a lei sobre o estupro faz essa distinção. A lei do estupro
baseia-se no pressuposto, em minha opinião correto, de que a
atividade heterossexual pode ser escolhida livremente ou imposta
pela força. As pessoas têm o direito de se entregar a práticas
heterossexuais desde que isso não contrarie outras determinações
legais e desde que isso seja agradável para ambas as partes.
Não é isso que acontece na maioria dos outros atos sexuais.
As leis sobre a sodomia, como disse acima, baseiam-se na idéia de
que os atos proibidos são “um abominável e detestável crime contra
a natureza.” A criminalidade é intrínseca aos próprios atos,
independentemente dos desejos dos participantes. “Ao contrário do
que acontece com o estupro, a sodomia ou um outro ato sexual não
78ORLANDO,
Lisa. Power Plays: Coming To Terms Whith Lesbian S/M. Village
Voice, 26 de julho de 1983; WILSON, Elizabeth. The Context of “Between Pleasure
and Danger”: The Barnard Conference on Sexuality. Feminist Review, nº 13,
primavera de 1983, principalmente pp.35-41.
64
Gayle S. Rubin
natural ou pervertido pode ocorrer entre duas pessoas de comum
acordo e, independentemente de quem é o agressor, os dois devem
ser processados.”79 Antes da aprovação, na Califórnia, do estatuto
sobre o consentimento entre adultos, em 1976, amantes lésbicas
podiam ser processadas por praticar cópula oral. Se ambas as
parceiras fossem legalmente responsáveis, ambas recebiam a
mesma punição.80
As leis sobre o incesto entre adultos funcionam da mesma
forma. Ao contrário do que supõe a mitologia popular, essas leis
têm pouco a ver com a proteção de crianças contra a agressão
sexual da parte de parentes próximos. Essas leis proíbem o
casamento ou a relação sexual entre adultos que são parentes
próximos. Os processos são raros, mas dois vieram a público
recentemente. Em 1979, um fuzileiro naval de 19 anos veio a
conhecer sua mãe, de 42 anos, de quem fora separado desde o
nascimento. Eles se apaixonaram e se casaram. Os dois foram
processados e considerados culpados de incesto, o que, pelas leis da
Virgínia, pode levar a até dez anos de cadeia. Durante o julgamento
o fuzileiro afirmou: “Eu a amo muito. Acho que duas pessoas que se
amam deviam poder viver juntas.”81 Em outro caso, um irmão e
uma irmã que tinham sido criados separados se conheceram e
decidiram casar-se. Eles foram presos e acusados de incesto. A
pena foi suspensa, sob a condição de não voltarem a viver juntos
como marido e mulher. Se eles não tivessem aceitado, teriam que
cumprir vinte anos de prisão.82
Num famoso caso de sadomasoquismo, um homem foi
declarado culpado de agressão grave por ter chicoteado uma pessoa
numa sessão de sadomasoquismo. Nenhuma vítima prestou queixa.
As sessões tinham sido filmadas e ele foi acusado com base no
Taylor v. State, 214 Md. 156, 165, 133 A. 2d 414, 418. Essa citação é de uma
opinião dissidente, mas consta da lei vigente.
80BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp 163-5. Ver nota 55
acima.
81Marine and Mom Guilty of Incest. San Francisco Chronicle, 16 de novembro de
1979, p.16.
82NORTON, C. Sex in América. Op. cit., p.18.
79
65
Pensando sobre sexo
filme. O homem recorreu da decisão judicial argumentando que
participara de um encontro sexual consensual e que não agredira
ninguém. O tribunal não aceitou o recurso, afirmando que uma
pessoa não pode consentir em ser agredida “exceto numa situação
que normalmente envolve contato físico ou pancadas que são
normais em esportes como futebol, boxe ou lutas em geral.”83 O
tribunal acrescentou que “o consentimento de uma pessoa sem
capacidade jurídica para tal, como no caso de uma criança ou de
um louco, é inválido” e que “Todo mundo sabe que uma pessoa
normal e em pleno gozo de suas faculdades mentais não consente
livremente em ser submetida a agressões que lhe causem grandes
danos físicos.”84 Assim, qualquer um que consinta em ser
chicoteado deve ser considerado non compos mentis e legalmente
incapaz de consentimento. No sexo sadomasoquista em geral se usa
muito menos força que na média dos jogos de futebol, e os danos
físicos que dele resultam são muito menores que os provocados
pela maioria dos esportes. Mas para os tribunais os jogadores de
futebol são normais, e os masoquistas não.
As leis sobre sodomia, as leis sobre incesto entre adultos e as
interpretações jurídicas como as que comentamos acima interferem
no comportamento consensual e punem legalmente. No que tange à
lei, o consentimento é um privilégio de que gozam apenas aqueles
que se situam nos patamares mais altos da hierarquia dos
comportamento sexuais aceitos. Os que pertencem a um status
sexual mais baixo, não gozam desse direito. Além disso, sanções
econômicas, pressões da família, estigma erótico, discriminação
social, ideologia negativa e escassez de informações sobre o
comportamento erótico – tudo isso torna mais difícil, para as
pessoas, a opção por comportamentos sexuais não convencionais.
Não há dúvida de que existem certas restrições de caráter estrutural
que impedem a livre escolha sexual, mas elas não atuam no sentido
de coagir alguém a se tornar um pervertido. Ao contrário, elas
atuam no sentido de obrigar a todos à normalidade.
83People
84
v. Samuels, 250 Cal. App. 2d 501, 513, 58 Cal. Rptr. 439, 447 (1967).
People v. Samuels, 250 Cal. App. 2d em 513-514, 58 Cal. Rptr. At 447.
66
Gayle S. Rubin
A “teoria da lavagem cerebral” explica a diversidade erótica
partindo do pressuposto de que alguns atos sexuais são tão
repulsivos que ninguém desejaria praticá-los. Portanto – continua
o raciocínio – se alguém os pratica deve ter sido forçado ou
enganado. Mesmo a teoria sexual construtivista foi obrigada a
explicar por que indivíduos racionais têm um comportamento
sexual não convencional. Outro ponto de vista ainda não
totalmente estruturado usa as idéias de Foucault e de Weeks para
concluir que as “perversões” são um aspecto detestável da
construção da sexualidade moderna.85 Há ainda outra versão da
idéia de que os dissidentes sexuais são vítimas de sutis
maquinações do sistema social. Weeks e Foucault não aceitariam
essas interpretações, uma vez que suas teorias consideram toda
sexualidade como construída, tanto a convencional como a não
convencional.
A psicologia é o último recurso daqueles que se recusam a
admitir que os dissidentes sexuais são tão conscientes e livres
quanto quaisquer outros grupos de pessoas que praticam sexo. Se
os que praticam formas não convencionais de sexo não estão sendo
vítimas das manipulações do sistema social, então talvez a causa de
suas escolhas incompreensíveis devam ser procuradas numa
infância infeliz, numa socialização imperfeita ou numa falha na
formação da identidade. Em seu ensaio sobre a dominação erótica,
Jessica Benjamin recorre à psicanálise e à filosofia para explicar
por que o que ela chama de “sadomasoquismo” é algo alienado,
distorcido, insatisfatório, sem vigor, sem próposito, e uma tentativa
de “compensar um primeiro esforço de diferenciação frustrado.”86
Esse ensaio não usa os meios mais comuns de depreciar o erotismo
dissidente, mas lhe atribui uma inferioridade psicofilosófica. Um
crítico chegou a afirmar que a tese de Benjamin mostra que o
85 VALVERDE,
Mariana. Feminism Meets Fist-Fucking: Getting Lost in Lesbian S &
M. Body Politic, fevereiro de 1980; WILSON, P. The Man They Called A Monster.
Op. cit., p.38.
86 BENJAMIN, J. Master and Slave… Op. cit., p.292, mas ver também pp.286, 291-7.
67
Pensando sobre sexo
sadomasoquismo não passa de “uma repetição obsessiva da luta
infantil pelo poder.”87
A atitude de quem defende os direitos políticos dos
pervertidos mas que procura entender sua sexualidade “alienada” é
certamente preferível aos banhos de sangue no estilo WAP. Mas, em
sua maioria, os moderados sexuais ainda não conseguiram vencer o
mal-estar que lhes causam as opções sexuais diferentes das suas.
Não se pode redimir o chauvinismo erótico travestindo-o numa
teoria marxista construtivista ou valendo-se de uma psicologia
barata e retrógrada.
Qualquer que seja a posição feminista em relação sexo –
direita, esquerda ou centro – que termine por se impor sobre as
demais, a existência de uma discussão tão rica constitui uma prova
de que o movimento feminista sempre haverá de ser uma fonte de
reflexões interessantes sobre o assunto. Não obstante, discordo da
idéia de que o feminismo é ou deveria ser o espaço privilegiado
para uma teoria da sexualidade. O feminismo é uma teoria da
opressão de gênero. Concluir que isso a faz uma teoria da opressão
sexual é mostrar-se incapaz de fazer a distinção entre gênero, de
um lado, e desejo erótico, de outro.
Em inglês a palavra sex tem dois significados muito
diferentes. Ela significa gênero e identidade de gênero, como em
“the female sex” [o sexo feminino] ou “the male sex” [o sexo
masculino]. Mas o termo refere-se também a atividade sexual,
sensualidade, relações sexuais e excitação, como na frase “to have
sex” [fazer sexo]. Essa mistura semântica reflete o pressuposto
cultural de que a sexualidade pode ser reduzida à relação sexual e
que é uma função das relações entre mulheres e homens. A fusão
cultural de gênero com sexualidade deu origem à idéia de se pode
derivar uma teoria da sexualidade de uma teoria do gênero.
Num ensaio anterior, “The Traffic in Women”, usei o conceito
de um sistema de sexo/gênero definido como “uma série de acordos
pelos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em
EHRENREICH, Barbara. What Is This Thing Called Sex. Nation, 24 de setembro de
1983, p.247.
87
68
Gayle S. Rubin
produtos da atividade humana.”88 Cheguei a afirmar que “O sexo
tal como o conhecemos – identidade de gênero, desejo e fantasia
sexual, conceitos de infância – é ele próprio um produto social.”89
Naquele ensaio eu não fazia a distinção entre sensualidade e
gênero, considerando a ambos como modalidades do mesmo
processo social subjacente.
“The Traffic in Women” foi inspirado pela literatura sobre
sistemas sociais de organização baseados no parentesco. Àquela
época, parecia-me que gênero e desejo confundiam-se
sistematicamente nessas formações sociais. No que se refere às
relações entre sexo e gênero nas organizações tribais, essa
observação pode, ou não, ser válida. Mas com certeza não é uma
formulação adequada à sexualidade nas sociedades industriais do
ocidente. Como observou Foucault, um sistema de sexualidade se
originou das primeiras formas de parentesco e adquiriu grande
autonomia.
A partir do século XVIII, principalmente, as sociedades
ocidentais criaram e desenvolveram um novo aparato que se
sobrepôs ao que existia antes e que, sem suplantá-lo
completamente, contribuiu para diminuir sua importância.
Estou falando do desenvolvimento da sexualidade... No
primeiro [parentesco], o que importa é a relação entre os
parceiros e determinadas normas; a segunda [sexualidade]
preocupa-se com as sensações do corpo, a qualidade dos
prazeres e a natureza das impressões.90
O desenvolvimento de um sistema sexual teve lugar num
contexto de relações de gênero. Parte da moderna ideologia
considera que a sensualidade é o território do homem, e a pureza, o
das mulheres. Não é por acaso que a pornografia e as perversões
foram consideradas como parte do domínio masculino. Na
indústria do sexo, as mulheres foram excluídas de boa parte do
88 RUBIN,
Gayle. The Traffic in Women. In: REITER, Rayna R. (ed.) Toward an
Anthropology of Women. Nova York, Monthly Review Press, 1975, p.159.
89 ID., IB., p.166.
90 FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op. cit., p.106.
69
Pensando sobre sexo
consumo e da produção, sendo permitido que participassem
principalmente como trabalhadoras. Para participar das
“perversões”, as mulheres tinham que superar sérias limitações em
sua mobilidade social, em seus recursos econômicos, e em suas
liberdades sexuais. O gênero afeta o funcionamento do sistema
sexual, e o sistema sexual tem manifestações específicas de gênero.
Mas embora sexo e gênero estejam relacionados, eles não são a
mesma coisa e constituem a base de dois diferentes campos de
prática social.
Diferentemente do que afirmei em “The Traffic in Women”,
agora afirmo que é essencial separar, em termos analíticos, gênero
e sexualidade, para pensar de forma mais acurada em sua
existência social separada. Isso vai contra o espírito de boa parte do
pensamento feminista contemporâneo, que considera a sexualidade
como algo que decorre do gênero. Por exemplo, a ideologia
feminista lésbica analisou a opressão das lésbicas principalmente
em termos da opressão das mulheres. Contudo, as lésbicas também
são oprimidas enquanto praticantes de uma modalidade sexual não
convencional e enquanto pervertidas, em decorrência da
estratificação sexual, e não de gênero. Embora seja doloroso para
muitas lésbicas pensar sobre isso, a verdade é que elas partilharam
muitos traços sociológicos e sofreram muitas das punições sociais
impostas aos gays, sadomasoquistas, travestis e prostitutas.
Catherine MacKinnon fez a mais categórica tentativa de
incorporar a sexualidade ao âmbito do pensamento feminista.
Segundo MacKinnon,
A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o
marxismo... a configuração, a orientação e a expressão da
sexualidade organiza a sociedade em dois sexos, homens e
mulheres.91
91
MACKINNON, Catherine. Feminism, Marxism, Method and the State: An
Agenda for Theory. Signs, vol. 7, nº 3, primavera de 1982, pp.515-16.
70
Gayle S. Rubin
Por sua vez, a estratégia de análise baseia-se numa decisão de “usar
sexo e gênero de forma relativamente intercambiável.”92 É essa
mescla das definições que eu pretendo contestar.*
Há uma analogia reveladora na história da diferenciação do
pensamento feminista contemporâneo em relação ao marxismo. O
marxismo é provavelmente o mais simples e o mais poderoso
sistema conceitual que existe para analisar a desigualdade social.
Mas as tentativas de fazer do marxismo o único sistema de análise
das desigualdades sociais fracassaram. O marxismo é mais efetivo
nos setores da vida social para os quais ele foi desenvolvido
originalmente – as relações de classe sob o capitalismo.
Nos primórdios do movimento contemporâneo das mulheres,
deu-se um conflito sobre a questão da aplicabilidade do marxismo à
estratificação de gênero. Como a teoria marxista é um instrumento
relativamente poderoso, ela de fato detecta aspectos importantes e
interessantes de opressão de gênero. Ela funciona melhor para os
aspectos de gênero mais estreitamente relacionados às questões de
classe e de organização do trabalho. Os temas mais específicos da
estrutura social de gênero estão fora do alcance da análise marxista.
A relação entre o feminismo e uma teoria radical da opressão
sexual é semelhante. Os instrumentos conceituais do feminismo
foram desenvolvidos para identificar e analisar hierarquias
baseadas em gênero. Na medida em que estas coincidem com as
estratificações eróticas, a teoria feminista tem um certo poder de
elucidação. Mas à medida que os temas se afastam de gênero e se
aproximam da sexualidade, a análise feminista vai se tornando
mais equívoca e muitas vezes irrelevante. O pensamento feminista
simplesmente carece de ângulos de visão que abranjam por
completo a organização da sexualidade. O critério de relevância no
pensamento feminista não lhe permite ver ou avaliar relações de
poder cruciais no campo da sexualidade.
92 ID.
Feminism, Marxism, Method and the State: An Agenda for Theory. Signs,
vol. 8, nº 4, verão de 1983, p.635.
* Nota de 1992. A obra de MacKinnon continua a crescer: Toward a Feminist
Theory of the State, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1989; Feminism
Unmodified Discourses on Life and Law, Cambridge, Mass., Harvard University
Press, 1987.
71
Pensando sobre sexo
Em longo prazo, a crítica feminista da hierarquia de gênero
pode se incorporar a uma teria radical do sexo, e a crítica da
opressão sexual pode enriquecer o feminismo. Mas é preciso
desenvolver uma teoria autônoma e uma política específica da
sexualidade.
É um erro substituir o marxismo pelo feminismo como a
última palavra em teoria social. O feminismo, tanto como o
marxismo, não pode oferecer uma análise definitiva e completa de
toda desigualdade social. Tampouco o feminismo é a teoria residual
que pode dar conta de tudo aquilo de que Marx não se ocupou.
Essas ferramentas críticas foram desenvolvidas para lidar com
áreas específicas da atividade social. Outras áreas da vida social,
suas formas se poder e seus modos específicos de opressão exigem
seus próprios instrumentos conceituais. Neste ensaio, defendi um
pluralismo teórico e sexual.
VII - Conclusão
...esses prazeres
físicos...(Colette93)
que
chamamos
levianamente
de
Assim como o gênero, a sexualidade é política. É organizada
em sistemas de poder, que recompensam e estimulam alguns
indivíduos e atividades, enquanto punem e reprimem outros. Como
a organização capitalista do trabalho e sua distribuição de
recompensas e poderes, o sistema sexual moderno foi objeto de luta
política desde que surgiu e se desenvolveu. Mas se as disputas entre
trabalho e capital são mistificadas, os conflitos sexuais são
completamente camuflados.
A reforma jurídica que ocorreu no fim do século XIX e nas
primeiras décadas do século XX foi uma resposta ao surgimento do
sistema erótico moderno. Durante aquele período, formaram-se
novas comunidades eróticas. Tornou-se mais fácil que em qualquer
outra época ser um homossexual masculino ou uma lésbica. A arte
93
COLETTE. The Ripening Seed. traduzido e citado em ALDERFER, Hannah;
JAKER, Beth e NELSON, Marybeth. Diary of a Conference on Sexuality. Nova York,
Faculty Press, 1982, p.72.
72
Gayle S. Rubin
erótica de massa se tornou acessível, aumentaram as possibilidades
para o comércio sexual. Formaram-se as primeiras organizações de
defesa dos direitos homossexuais, e formularam-se as primeiras
análises da opressão sexual.94
A repressão da década de 1950 foi, em certa medida, um
retrocesso para a expansão das comunidades e das possibilidades
sexuais que se verificou durante a Segunda Guerra Mundial.95 Na
década de 1950 surgiram as organizações de defesa dos direitos
gays, publicaram-se os relatórios Kinsey, e a literatura lésbica
floresceu. A década de 1950 foi um período de formação e ao
mesmo tempo de repressão.
A atual contra-ofensiva da direita sexual é, em parte, uma
reação à liberação sexual da década de 1960 e do início da década de
1970. Além disso, ela acarretou uma coalizão unificada e
autoconsciente dos radicais sexuais. Em certo sentido, o que está
acontecendo agora é o surgimento de um novo movimento sexual,
preocupado com novos temas e em busca de uma nova base teórica.
As lutas sexuais que se travaram nas ruas foram em parte
responsáveis por um novo foco na sexualidade. Mais uma vez, o
sistema sexual está mudando e estamos vendo muitos sintomas
dessa mudança.
Na cultura ocidental, o sexo é encarado com excessiva
seriedade. Uma pessoa não é considerada imoral, não é mandada
para prisão e não é expulsa da própria família por gostar de pratos
apimentados. Mas um indivíduo pode sofrer tudo isso e ainda mais
por ter fixação erótica em sapatos. Afinal de contas, que
importância social pode ter o fato de uma pessoa gostar de se
masturbar diante de um sapato? Pode não ser uma coisa
consensual mas, assim como não pedimos autorização aos sapatos
para calçá-los, não me parece necessário conseguir autorização
para usá-los sexualmente.
LAURITSEN, John e THORSTAD, David. The Early Homosexual Rights
Movement in Germany, Nova York, Times Change Press, 1974.
95 D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., BÉRUBÉ, A. Behind the Spectre of San
Francisco. Op. cit.; e Marching to a Different… Op. cit.
94
73
Pensando sobre sexo
Se por um lado o sexo é visto com excessiva seriedade, a
perseguição sexual não é vista com seriedade bastante. Maltratamse de forma sistemática indivíduos e comunidades com base no
gosto ou no comportamento erótico. Há sérias punições contra
aqueles que pertencem às várias castas profissionais sexuais. Negase a sexualidade dos jovens e sempre se trata a sexualidade adulta
como uma espécie de lixo nuclear, e a representação realista do
sexo se faz em meio a um charco de circunlóquios jurídicos e
sociais. Grupos específicos sofrem o impacto do atual sistema de
poder erótico, mas sua perseguição sustenta um sistema que afeta
todo mundo.
A década de 1980 já fora uma época de grande sofrimento
sexual. Foi também uma época de efervescência e de novas
perspectivas. Cabe a todos nós procurar evitar mais ações bárbaras
e estimular a criatividade erótica. Aqueles que se consideram
progressistas devem analisar as próprias preocupações, atualizar
sua educação sexual e tomar conhecimento da existência e do
funcionamento da hierarquia sexual. É tempo de reconhecer as
dimensões políticas da vida erótica.
Agradecimentos
É sempre com grande prazer que, no curso de um trabalho,
chego ao momento de agradecer àqueles que contribuíram para a
sua elaboração. Muitas das minhas idéias sobre a formação de
comunidades sexuais me ocorreram pela primeira vez durante um
curso ministrado por Charles Tilly sobre “A Urbanização da Europa
de 1500 a 1900.” Poucos cursos foram capazes de despertar tanto
entusiasmo, de trazer tanto estímulo e riqueza conceitual como esse
de Charles Tilly. Daniel Tsang me alertou para a importância dos
acontecimentos de 1977 e me ensinou a prestar atenção à legislação
sobre sexo. Pat Califia fez que eu aprofundasse minha análise da
variedade sexual humana e me ensinou a respeitar o difamado
campo da pesquisa e da educação sexual. Jeff Escoffier partilhou
sua grande compreensão e conhecimento da história e da sociologia
gay, e eu aproveitei, de modo especial, seu conhecimento da
economia gay. O trabalho de Allan Bérubé, ainda em curso, sobre a
74
Gayle S. Rubin
história gay me permitiu refletir com maior clareza sobre a
dinâmica da opressão sexual. As conversas com Ellen Dubois,
Amber Hollibaugh, Mary Ryan, Judy Stacey, Kay Trimberger,
Rayna Rapp e Martha Vicinus influenciaram minhas reflexões.
Sou muito grata a Cynthia Astuto por seus pareceres e
pesquisas na área jurídica, e a David Sachs, extraordinário livreiro,
por me apresentar os folhetos da extrema-direita sobre sexo. Sou
grata a Allan Bérubé, Ralph Bruno, Estelle Freedman, Kent Gerard,
Barbara Kerr, Michael Shively, Carole Vance, Bill Walker e Judy
Walkowitz por referências várias e informações factuais. Não tenho
como agradecer às pessoas que leram e comentaram as várias
versões deste trabalho: Jeanne Bergman, Sally Binford, Lynn Eden,
Laura Engelstein, Jeff Escoffier, Carole Vance e Ellen Willis. Além
de editar o texto, Mark Leger desempenhou funções heróicas de
secretariado, preparando os originais. Marybeth Nelson auxiliou
bastante nos problemas gráficos que surgiram de última hora.
Agradeço especialmente a dois amigos cuja atenção aliviou
um pouco a tensão do ato de escrever. E.S. me deu apoio logístico e
me orientou nos momentos em que sofri brancos homéricos no
trabalho de redação. As muitas atenções de Cynthia Astuto e seu
apoio incansável me permitiram continuar trabalhando num ritmo
absurdo por muitas semanas.
Nenhuma dessas pessoas deve ser responsabilizada por
minhas opiniões, mas sou grata a todas elas pela inspiração,
informação e ajuda.
Uma nota sobre as definições
Em todo este ensaio, usei termos como homossexual,
trabalhador do sexo e pervertido. Uso “homossexual” referindo-me
tanto a homens como a mulheres. Quando quero ser mais precisa,
uso termos como “lésbica” ou “homossexual masculino”. O termo
“trabalhador(a) do sexo” pretende ser mais abrangente que
“prostituta”, para englobar os muitos trabalhos da indústria do
sexo. Ele inclui dançarinas eróticas, strippers, modelos pornô,
mulheres nuas que falam com clientes através de um circuito
telefônico interno e que podem ser vistas, mas não tocadas,
75
Pensando sobre sexo
profissionais do tele-sexo e vários outros empregados do negócio
do sexo como recepcionistas, zeladoras e encarregadas de atrair o
público em altos brados. Obviamente, o termo também se aplica às
prostitutas, michês e “modelos masculinos”. Eu uso o termo
“pervertido” para designar todas as orientações sexuais
estigmatizadas. Ele costumava se aplicar também ao
homossexualismo masculino e feminino, mas, como estes se
tornaram menos infamantes, agora se aplica cada vez mais a outros
“desvios”. Termos como “pervertido”, e “desviantes” em geral são
usados com uma conotação de reprovação, repulsa e desagrado.
Uso esses termos em sentido denotativo, sem nenhuma intenção de
desaprovação de minha parte.
Pós-escrito
Terminei de escrever “Thinking Sex” no início da primavera
de 1984. Para esta nova impressão, corrigi erros tipográficos, fiz
algumas pequenas mudanças editoriais e acrescentei várias notas
de pé de página. O ensaio continua praticamente o mesmo, mas o
trabalho de repassá-lo de ponta a ponta aumentou minha
percepção da extensão das mudanças que ocorreram nos contextos
social, político e intelectual da sexualidade nos oito anos desde que
ele foi escrito. Além disso, o ritmo dessa mudança parece estar se
acelerando vertiginosa e exponencialmente.
Há apenas quatro meses escrevi um longo posfácio para
acompanhar uma outra reimpressão de “Thinking Sex” [KAUFFMAN,
Linda. (ed.) American Feminist Thought, 1982-1992. Oxford, Basil
Blackwell, no prelo]. Nesse posfácio mostrei como se deram
algumas mudanças na política e no pensamento sexual, desde que o
ensaio foi publicado. Não preciso retomá-las aqui. Não obstante,
desde que enviei o posfácio, em meados de fevereiro, aconteceram
vários avanços que ilustram o que está em jogo nos conflitos
relacionados a sexo, e a forma vertiginosamente rápida como
ocorrem. Três áreas em que se desenvolve a atividade crítica são: a
expressão de idéias antipornográficas em lei, a crescente
criminalização da representação e da prática sadomasoquista, e
76
Gayle S. Rubin
número assustador de espancamentos de gays que aconteceu nas
eleições norte-americanas de 1992.
No final de fevereiro, a Suprema Corte do Canadá apoiou a
legislação sobre obscenidade numa decisão (Butler v. Her Majesty
the Queen) que redefiniu a obscenidade seguindo a linha defendida,
desde o final da década de 1970, pelas feministas que lutam contra a
pornografia.96 1 A justiça canadense adotou uma linguagem
semelhante às definições dos assim chamados “regulamentos dos
direitos civis antipornográficos” MackKinnon/Dworkin. No
Canadá, a definição jurídica de obscenidade agora se baseia, em
parte, na descrição de comportamentos sexuais considerados
“desumanos e degradantes”. Essa definição foi rejeitada pela
Suprema Corte dos Estados Unidos por contrariar a Primeira
Emenda. O Canadá não tem nada equivalente à Carta de Direitos, e
tem menos proteções legais para o direito de expressão política.
Embora a situação jurídica do Canadá seja diferente da dos
Estados Unidos, a Suprema Corte americana, cada dia mais
dominada pelos direitistas, pode se deixar influenciar pela decisão
canadense da próxima vez que for reexaminar os termos da lei
referentes ao mesmo assunto. A lógica do Projeto de lei 1521 (Lei de
Indenização a Vítimas de Pornografia) baseia-se nos mesmos
pressupostos errôneos da decisão Butler. O projeto passou na
Comissão Jurídica do Senado no final de junho e agora vai a
plenário.
Além disso, a decisão Butler, ao que parece, foi facilitada pela
lenta acumulação de precedentes jurídicos em casos de menor
importância. Nos Estados Unidos, os ativistas contra a pornografia
e os procuradores estão buscando construir um corpus semelhante
de precedentes a partir de casos que à primeira vista pouco têm a
ver com a lei contra a obscenidade. Feministas que lutam contra a
censura e advogados defensores dos direitos civis devem estar
atentos a uma certa linguagem que trata a pornografia como algo
intrinsecamente “nocivo” e “anti-mulher” em casos como o de
96 LEVIN,
Tamar. Canada Court Says Pornography Harms Women and Can Be
Barred. New York Times, 28 de fevereiro de 1992, p.1; LANDSBERG, Michele.
Canada: Antipornography Break-through in the Law. Ms., maio/junho de 1992,
pp.14-15.
77
Pensando sobre sexo
assédio sexual, por exemplo (a pornografia, como as latas de CocaCola ou grande número de outros objetos, pode de fato ser usada
para o assédio sexual; mas é muitíssimo mais fácil considerar a
pornografia como nociva, independentemente do contexto, que
fazer o mesmo em relação a objetos menos demonizados).
Muitos ativistas gays do Canadá advertiram que as novas
definições de obscenidade iriam ser usadas de forma parcial contra
as mídias gay e lésbica. A Glad Day Books, a livraria gay e lésbica de
Toronto, sofreu durante uma década a intervenção da polícia, e
confiscos na alfândega impediram a circulação de muitas
publicações gays e lésbicas no Canadá. Estimulada pelas definições
Butler, a polícia invadiu a Glad Day em 30 de abril e acusou o
gerente da livraria de violar a lei contra a obscenidade por vender
Bad Attitude, uma revista erótica lésbica americana que mostrava
cenas de bondage e penetração. Em 4 de maio o proprietário e a
empresa também foram acusados de obscenidade.97 2
Essa nova definição de obscenidade torna os materiais
pornográficos sadomasoquistas totalmente ilegais no Canadá, uma
vez que estes se aproximam da categoria de pornografia “desumana
e degradante”.98 3 Além disso, os materiais sadomasoquistas dos
homossexuais masculinos parecem ter contribuído de forma
decisiva para que a Justiça adotasse os novos critérios de
classificação da obscenidade. Um artigo de jornal elogiando a
decisão da justiça canadense traz uma afirmação perturbadora,
feita por uma das procuradoras vitoriosas. O artigo diz que ela
atribui o sucesso de seu pleito ao fato de ter mostrado aos juízes
“filmes gays violentos e degradantes. Argumentamos que os
homens violentados nesses filmes estavam sendo tratados como
mulheres – e os juízes entenderam assim. De outro modo os
homens não conseguem se colocar em nosso lugar.”99 4 Se essa
97
SYMS, Shawn e W OFFORD, Carrie. Obscenity Crackdown: Using obscenity
laws, U.S. customs begins new tactic of seizing gay magazines; Toronto police
raid a gay bookstore. Gay Community News, 22 de maio - 4 de junho de 1992,
pp.1,7.
98 DIAZ, Kathryn E. The porn debates reignite. Gay Community News, 6-19 de
junho de 1992, pp.3,5.
99 LANDSBERG, M. Canada: Antipornography… Op. cit., p.15, grifo meu.
78
Gayle S. Rubin
informação é correta, as feministas fizeram valer o seu ponto de
vista usando filmes de homossexuais masculinos sadomasoquistas
para incitar a previsível intolerância que o filme despertaria entre
homens heterossexuais. Por muitos anos, as feministas que
lutavam contra a pornografia exploraram a ignorância e
intolerância em relação ao sadomasoquismo, na falta de provas
convincentes; explorando a ignorância e a intolerância contra o
homossexualismo masculino, elas foram ainda mais fundo na
irresponsabilidade política e no oportunismo.
Isso é especialmente preocupante, considerando-se que
acontece na esteira de uma recente decisão da justiça da Inglaterra
e no contexto da ampla campanha anti-gay das eleições americanas
de 1992. Na Inglaterra, em 1990, quinze homens foram acusados de
vários delitos por se terem entregado a práticas homossexuais
sadomasoquistas. Muitos foram condenados, alguns receberam
penas de até quatro anos e meio. Nenhum dos participantes fez
nenhuma denúncia nem prestou queixa; os homens foram presos
depois que a polícia apreendeu as fitas de vídeo, gravadas em casa,
que documentavam suas práticas.100 5 Os acusados recorreram da
sentença. No final de fevereiro, o tribunal de apelação confirmou as
sentenças, argumentando que “a questão do consentimento é
irrelevante”,
confirmando
na
prática
que
atividades
sadomasoquistas são ilegais na Inglaterra.101 6 Embora essa decisão
se baseie em leis antigas, esse tipo de processo, até então, era
extremamente raro. O fato de tantos homossexuais terem sido
condenados a penas de prisão tão longas por práticas sexuais
consensuais entre adultos é muito mau sinal.
jailed for “degrading” sex acts. The Guardian, dezembro de
1990; W OCKNER, Rex. SM Crackdown in London. Bay Area Reporter, 24 de
janeiro de 1991, p.16; London S/M Gays Fight Opression. Bay Area Reporter, 21
de fevereiro de 1991, p.20; Taking Liberties. Marxism Today, março de 1991,
p.16; FELDWEBEL, T.A. Two Steps Backward. DungeonMaster 43, p.3; SM Gays –
SM and the Law. DungeonMaster 43, 4.
101WOODS, Chris. SM sex was a crime, court rules. Capital Gay, 21 de fevereiro de
1992; HAMILTON, Angus. Criminalizing gay sex. The Pink Paper, 23 de fevereiro,
1992, p.9; S & M is illegal in England. Growing Pains, maio de 1992, pp.1-2.
100Sado-masochists
79
Pensando sobre sexo
Nos Estados Unidos, a homofobia se tornou uma das mais
importantes táticas políticas neste ano de eleições. Em fevereiro, as
eleições primárias para a presidência ainda estavam começando a
esquentar. À medida que avançava o processo eleitoral, o National
Endowment for the Arts – NEA [Fundo Nacional das Artes], a
emissora pública dos EUA (PBS), os representantes da
homossexualidade, e a própria homossexualidade se tinham
tornado os principais alvos da campanha. Fizeram-se críticas às
verbas destinadas ao PBS, e o presidente da NEA foi demitido (por
acreditar na Constituição e na Carta de Direitos). Do palavreado
neo-nazista de Patrick Buchanan à ênfase eufêmica nos “valores da
família” de Dan Quayle, ataques abertos ou velados ao
homossexualismo foram táticas largamente usadas na campanha
eleitoral de 1992.102 7
No Oregon, a organização de direita Oregon Citizens Alliance
(OCA) está tentando fazer aprovar dois projetos de emenda à
Constituição que iriam definir, em termos legais, o
homossexualismo, o sadomasoquismo, a pedofilia, o bestialismo e a
necrofilia como “anormais, imorais, não naturais e perversos”. Se
aprovada, a nova legislação iria impedir que esses grupos usassem
102Buchanan´s
New Anti-Bush Ad Shows Gay Scenes From PBS. San Francisco
Chronicle, 27 de fevereiro de 1992, p.A-2; YOACHUM, Susan. Buchanan Calls AIDS
“Retribution”. San Francisco Chronicle, 28 de fevereiro de 1992, p.1; KOLBERT,
Elizabeth. Bitter G.O.P. Air War Reflects Competitiveness of Georgia Race. New
York Times, 28 de fevereiro de 1992, p.A-9; Hitler´s ‘Courage’ Etc. San Francisco
Examiner, 8 de março de 1992, p.A-12; Schmitz, DAWN. Riggs, Buchanan battle for
public TV. Gay Community News, 5-18 de abril de 1992, p.5; ROBERTS, Jerry.
Quayle Blames Riots on Decline of Family Values. San Francisco Chronicle, 20 de
maio de 1992, p.1; IRVING, Carl. Quayle: Marriage is a key to ending poverty. San
Francisco Examiner, 20 de maio de 1992, p.A-14; GINSBURG, Marsha e HATFIELD,
Larry D. “Murphy Brown” furor grows. San Francisco Examiner, 20 de maio de
1992, p.1; ROBERTS, Jerry. Uproar Over Comments By Quayle. San Francisco
Chronicle, 21 de maio de 1992, p.1; RAINE, George. Quayle planned attack on
“Murphy”. San Francisco Examiner, 21 de maio de 1992, p.A-1; Bush Links BigCity Woes To Collapse of the Family. San Francisco Chronicle, 10 de março de
1992, p.A-4; OSBORN, Torie e SMITH, David M. Are Gays Being Made ‘92´s Hate
Symbol?. San Francisco Chronicle, 9 de março de 1992, p.A-21; HERSCHER, Elaine.
Gays Under Fire in Presidential Race. San Francisco Chronicle, 26 de junho de
1992, p.1.
80
Gayle S. Rubin
os serviços públicos, que gozassem da proteção dos direitos civis
garantida às minorias sexuais e proibiria que uma visão positiva
desses comportamentos fosse ensinada em qualquer escola, colégio
ou universidade financiada pelo Estado.
Ainda que a OCA afirme que seu projeto não iria mudar o
direito penal ou aumentar as penas contra esses comportamentos,
em muitos aspectos ele nos lembra a legislação nacional-socialista.
Se aprovados, os projetos da OCA iriam privar as minorias sexuais
de direitos iguais de cidadania, torná-las “inferiores” nos termos da
lei e das políticas públicas, e fazer que se ensinasse nas instituições
públicas de ensino que elas são inferiores; a aprovação levaria
também a que se proibisse a divulgação de opiniões ou de provas
que contradissessem essa inferioridade expressa pela lei.103 8
Estou me preparando agora para enviar este pós-escrito no
começo de julho. Ainda faltam quatro meses para as eleições de
1992. Sabe-se lá que histerias e que medos serão provocados, que
hostilidades e antagonismos serão incitados, a que baixos níveis o
processo político chegará para manter o poder, a riqueza e os
privilégios tão concentrados quanto possível. Quem pode dizer
quantas pessoas inocentes serão presas, banidas, importunadas,
financeiramente destruídas ou agredidas fisicamente? Quem
saberia dizer por que pessoas sabidamente progressistas e bemintencionadas continuam a se omitir na luta contra políticas
retrógradas com conseqüências sérias devastadoras? A essa altura
eles deviam estar mais bem avisados.
Sintonizem seus aparelhos no próximo ano para mais um
emocionante episódio.
Gayle Rubin
San Francisco, 4 de julho de 1992.
103As
informações sobre esses projetos baseiam-se em folhetos publicados pelo
Right to Privacy PAC e pela Campanha por um Oregon Livre do Ódio, de Portland,
Oregon.
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