Pensando sobre sexo: Notas para uma teoria radical da política da sexualidade* Gayle S. Rubin** I - As guerras sexuais Consultado, o Dr. J. Guerin afirmou que, depois de ter experimentado em vão outros tratamentos, ele conseguira curar meninas viciadas em onanismo queimando os seus clitóris com um ferro quente... Eu aplico a ponta quente três vezes em cada grande lábio e uma no clitóris... Depois da primeira operação, o número de espasmos voluptuosos, que era de catorze a quinze vezes por dia, diminuiu para três ou quatro... Acreditamos, pois, que em casos semelhantes àqueles que nos foram apresentados, não se pode hesitar em recorrer ao ferro quente, e o mais cedo possível, para In: ABELOVE,Henry; BARALE, Michèle Aina e HALPERIN, David. The Lesbian and Gay Studies Reader. London/New York, Routledge, 1992. Gayle S.Rubin, Publicado pela primeira vez em VANCE, Carole S. (ed.) Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality, 1984. ** Antropóloga feminista que escreveu sobre uma vasta gama de assuntos, entre os quais teoria antropológica, sexo sadomasoquista e literatura lésbica moderna. Neste ensaio, publicado pela primeira vez em 1984, Rubin afirma que no Ocidente, a década de 1880, a década de 1950 e a era contemporânea foram períodos de pânico sexual, períodos nos quais o Estado, as instituições médicas e a mídia popular se mobilizaram para atacar e oprimir aqueles cujos gostos sexuais diferem dos que são aceitos pelo modelo vigente de correção sexual. Ela afirma também que na era contemporânea o ataque mais feroz é dirigido contra aqueles que praticam sexo sadomasoquista e intergerações. Rubin sustenta que se temos que desenvolver uma teoria que explique o surgimento e a orientação do pânico sexual, temos que fundamentar a teoria não apenas no pensamento feminista. Embora o pensamento feminista explique as injustiças de gênero, ele por si só não pode explicar, de forma completa, a opressão das minorias sexuais. Atualmente Gayle S. Rubin está trabalhando numa coletânea de seus ensaios – inclusive seu famoso trabalho teórico “Traffic in Women” – e num trabalho etnográfico e histórico sobre a comunidade homossexual masculina leather de San Francisco. * cadernos pagu (21) 2003: pp.. Pensando sobre sexo combater o onanismo clitoriano e vaginal em meninas. (Demetrius Zambaco1) Chegou a hora de pensar sobre sexo. Para alguns, a sexualidade pode parecer um assunto sem importância, um desvio frívolo de problemas mais graves como pobreza, guerra, doença, racismo, fome ou destruição nuclear. Mas é precisamente em épocas como essa, quando vivemos sob a ameaça de uma destruição inimaginável, que as pessoas ficam perigosamente enlouquecidas com a sexualidade. Os conflitos contemporâneos relacionados aos valores sexuais e ao comportamento erótico têm muito em comum com os conflitos religiosos de séculos passados. Eles adquirem um imenso peso simbólico. Discussões sobre o comportamento sexual muitas vezes são meios de esquivar-se de preocupações sociais e descarregar as tensões sociais que as acompanham. Assim sendo, a sexualidade devia ser tratada com especial cuidado em tempos de grande stress social. O reino da sexualidade também tem sua própria política interna, suas desigualdades e modos de opressão. E, juntamente com outros aspectos do comportamento humano, as formas institucionais concretas da sexualidade em determinado tempo e lugar são produtos da atividade humana. Elas são permeadas por conflitos de interesses e por manobras políticas, tanto deliberadas como acidentais. Nesse sentido, o sexo é sempre político. Mas há também períodos históricos em que as disputas em torno da sexualidade são mais acirradas e mais abertamente politizadas. Nesses períodos, o domínio da vida erótica é renegociado. A Inglaterra e os Estados Unidos viveram um período como esse no final do século XIX. Nessa época, vigorosos movimentos sociais preocuparam-se com “vícios” de todo tipo. Havia campanhas ZAMBACO, Demetrius. Onanism and Nervous Disorders in Two Little Girls. In: PERALDI, François. (ed.) Polysexuality, Semiotext(e), vol. IV, nº 1, 1981, pp.31, 36. 1 2 Gayle S. Rubin educacionais e políticas para promover a castidade, eliminar a prostituição e desestimular a masturbação, especialmente entre os jovens.Cruzados da moralidade atacavam a literatura pornográfica, os nus na pintura, music-halls, o aborto, informações sobre controle de natalidade e casas de dança.2 A consolidação da moralidade vitoriana, assim como o aparato social médico e jurídico que a respaldavam, eram conseqüência de um longo período de luta cujos resultados, desde então, têm sido objeto de uma disputa feroz. As conseqüências desses grandes paroxismos morais do século XIX ainda estão presentes entre nós. Elas deixaram uma marca profunda nas atitudes em relação a sexo, nos procedimentos médicos, na educação das crianças, nas preocupações dos pais, na ação da polícia, na legislação sobre sexo. A idéia de que masturbação prejudica a saúde é parte dessa herança. No século XVIII era crença geral que um interesse “prematuro” por sexo, a excitação sexual e, acima de tudo, a liberdade sexual, prejudicavam a saúde e comprometiam o amadurecimento de uma criança. Os teóricos divergiam sobre as reais conseqüências da precocidade sexual. Alguns achavam que ela levava à loucura, outros achavam que prejudicava o crescimento. Para proteger os jovens do despertar prematuro para o sexo, os pais amarravam as crianças à noite para que não pudessem se tocar; os médicos amputavam os clitóris das meninas que se masturbavam.3 GORDON, Linda e DUBOIS, Ellen. Seeking Ecstasy on the Battlefield: Danger and Pleasure in Nineteenth Century Feminist Sexual Thought. Feminist Studies, vol. 9, nº 1, primavera de 1983; MARCUS, Steven. The Other Victorians. Nova York, New American Library, 1974; RYAN, Mary. The Power of Women´s Networks: A Case Study of Female Moral Reform in America. Feminist Studies, vol. 5, nº 1, 1979; WALKOWITZ, Judith R. Prostitution and Victorian Society. Cambridge, Cambridge University Press, 1980; e Male Vice and Feminist Virtue: Feminism and the Politics of Prostitution in Nineteenth-Century Britain. History Workshop Journal, nº 13, primavera de 1982; WEEKS, Jeffrey. Sex, Politics and Society: The Regulation of Sexuality Since 1800. Nova York, Longman, 1981. 3 BARKER-BENFIELD, G.J. The Horrors of the Half-Known Life. Nova York, Harper Colophon, 1976; MARCUS, S. The Other Victorians. Op. cit.; WEEKS, J. Sex, Politics 2 3 Pensando sobre sexo Embora as técnicas mais terríveis tenham sido abandonadas, as atitudes e pontos de vista que as motivaram persistem. A idéia de que o sexo, em si mesmo, é prejudicial aos jovens se materializou em estruturas sociais e jurídicas destinadas a afastar os jovens do conhecimento e da experiência sexual. Muito da legislação ainda vigente relativa a sexo data das cruzadas morais do século XIX. A primeira lei federal contra a obscenidade nos Estados Unidos foi aprovada em 1873. A Lei Comstock – que leva o nome de Anthony Comstock, um velho ativista contra a pornografia e fundador da New York Society for the Suppression of Vice – tornou um crime federal fazer, anunciar, vender, possuir, enviar pelo correio ou importar livros com ilustrações consideradas obscenas. A lei também proibia as drogas e dispositivos anticoncepcionais e abortivos, assim como a divulgação de informações sobre eles.4 Na esteira da lei federal, muitos Estados criaram suas próprias leis contra a obscenidade. Na década de 1950, a Suprema Corte começou a limitar o alcance da lei Comstock tanto nos estados como no âmbito Federal. Em 1975, a proibição do uso de métodos anticoncepcionais e da veiculação de informações sobre estes se tornou inconstitucional. Não obstante, embora as disposições legais tenham sido modificadas, sua constitucionalidade fundamental foi preservada. Assim, continua sendo crime fazer, vender, enviar pelo correio ou importar material com a finalidade exclusiva de provocar excitação sexual.5 Embora as disposições legais sobre a sodomia datem de estratos mais antigos da lei, quando elementos do direito canônico foram incorporados aos códigos civis, a maioria das leis que determinavam a prisão de homossexuais e prostitutas deriva das campanhas vitorianas contra a “escravidão branca”. Essas campanhas levaram às miríades de proibições: contra abordagem and Society… Op. cit., principalmente páginas 48-52; ZAMBACO, D. Onanism and Nervous... Op. cit. 4 BESSERA, Sarah Senefield; FRANKLIN, Sterling G. e CLEVENGER, Norma. (eds.) Sex Code of California. Sacramento, Planned Parenthood Affiliates of California, 1977, p.113. 5 ID., IB., pp.113-17. 4 Gayle S. Rubin de potenciais clientes pelas prostitutas, comportamento indecente, vagabundear para fins imorais, atos que só são considerados criminosos em função da idade de quem os pratica, bordéis e casas de tolerância. Em sua discussão sobre o medo britânico da “escrava branca”, a historiadora Judith Walkowitz observa: Pesquisas recentes indicam uma vasta discrepância entre relatos jornalísticos horripilantes e a realidade da prostituição. Há poucos registros de prisão de moças em Londres e em outras cidades.6 6 Contudo, a fúria do público com esse pretenso problema... ...levou à promulgação da Emenda do Direito Penal de 1885, uma lei bastante abrangente e particularmente odiosa e perniciosa. A lei de 1885 elevou de 13 para 16 a idade do consentimento, e também ampliou muitíssimo o poder da polícia sobre as mulheres e crianças pobres das classes trabalhadoras... ela continha uma cláusula que criminalizava os atos indecentes praticados de comum acordo por homens, criando assim as bases legais para que se pudessem processar homossexuais homens na Grã Bretanha até 1967... as cláusulas da nova lei foram aplicadas principalmente contra as mulheres da classe trabalhadora, e disciplinavam mais o comportamento sexual dos adultos que o dos jovens.7 Nos Estados Unidos, a Lei Mann, também conhecida como Lei do Tráfico de Escravas Brancas, foi promulgada em 1910. Posteriormente, todos os estados da União aprovaram uma legislação contra a prostituição.8 Na década de 1950, nos Estados Unidos, aconteceram mudanças mais importantes em relação à organização da WALKOWITZ, J. R. Male Vice and Feminist Virtue. Op. cit., p.83. Toda a discussão de Walkowitz sobre Maiden Tribute of Modern Babylon e suas consequências (pp.83-5) é muito esclarecedora. 7 ID., IB., p.85. 8 BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp.106-7. 6 5 Pensando sobre sexo sexualidade. Em vez de se concentrar na prostituição e na masturbação, as preocupações da década de 1950 voltaram-se mais especificamente para o fantasma da “ameaça homossexual” e o dúbio espectro do “criminoso sexual”. Pouco antes e pouco depois da Segunda Guerra Mundial, o “criminoso sexual” se tornou objeto do temor e da vigilância pública. Muitos estados e cidades, inclusive Massachusetts, New Hampshire, Nova Jersey, Estado de Nova York, Cidade de Nova York e Michigan, iniciaram programas para colher informações sobre essa ameaça à segurança pública.9 O termo “criminoso sexual” às vezes era aplicado aos estupradores, às vezes aos “molestadores de crianças” e finalmente passou a designar, em linguagem cifrada, os homossexuais. Em suas versões burocráticas, médicas e populares, o discurso sobre o criminoso sexual tendia a apagar as distinções entre ataque sexual violento e atos ilegais, mas consensuais, como sodomia, por exemplo. A justiça criminal incorporou essas idéias quando uma onda de leis relativas a psicopatas sexuais assolou a legislação dos Estados.10 Essas leis deram às profissões ligadas à psicologia um maior poder de polícia sobre os homossexuais e outros “desviados”. Do final da década de 1940 até o começo da década de 1960 as comunidades eróticas cujas atividades não se coadunavam com o sonho americano do pós-guerra sofreram intensa perseguição. Os homossexuais, juntamente com os comunistas, foram objeto da caça às bruxas e dos expurgos que se davam em nível federal. COMMONWEALTH OF MASSACHUSETTS. Preliminary Report of the Special Commission Investigating the Prevalence of Sex Crimes, 1947; ESTADO DE NEW HAMPSHIRE. Report of the Interim Commission of the State of New Hampshire to Study the Cause and Prevention of Serious Sex Crimes, 1949; CIDADE DE NOVA YORK. Report of the Mayor´s Committee for the Study of Sex Offences, 1939; ESTADO DE NOVA YORK. Report to the Governor on a Study of 102 Sex Offenders at Sing Prison, 1950; HARTWELL, Samuel. A Citizen´s Handbook of Sexual Abnormalities and the Mental Hygiene Approach to Their Prevention. Estado de Michigan, 1950; ESTADO DE MICHIGAN, Report on the Governor´s Study Commission on the Deviated Criminal Sex Offender, 1951. Aqui temos apenas uma amostra. 10 FREEDMAN, Estelle B. “Uncontrolled Desire”: The Threat of the Sexual Psychopath in America, 1935-1960. Trabalho apresentado no Encontro Anual da American Historical Association, San Francisco, dezembro de 1983. 9 6 Gayle S. Rubin Inquéritos parlamentares, decretos-lei e denúncias públicas sensacionalistas objetivavam banir os homossexuais do serviço público. Milhares perderam seus empregos, e até hoje ainda existem restrições ao emprego de homossexuais no serviço público federal.11 O FBI começou a vigiar e a importunar de forma sistemática os homossexuais, e isso durou pelo menos até a década de 1970.12 Muitos estados e cidades grandes conduziram suas próprias investigações, e a caça às bruxas em âmbito federal refletiu-se em grande número de punições severas locais. Em Boise, Idaho, em 1955, um professor primário sentou-se para tomar café e leu no jornal que o vice-presidente do First National Bank de Idaho fora preso sob acusação de ter praticado felonia e sodomia; o promotor local afirmou pretender eliminar completamente o homossexualismo na comunidade. O professor não terminou de tomar o café. Ele pulou da cadeira, arrumou suas malas o mais depressa que pôde, pegou o carro e foi direto para San Francisco... Os ovos frios, o café e as torradas ficaram em sua mesa por dois dias, antes que alguém da escola viesse ver o que se passara.13 Em San Francisco a polícia e a mídia moveram guerra contra os homossexuais ao longo de toda a década de 1950. A polícia fazia batidas em bares, patrulhava regiões onde se faziam encontros, vasculhava ruas e anunciava aos quatro ventos sua intenção de BÉRUBÉ, Allan. Behind the Spectre of San Francisco. Body Politic, abril de 1981; e Marching to a Different Drummer. Advocate, 15 de outubro de 1981; D´EMILIO, John. Sexual Politics, Sexual Communities: The Making of the Homosexual Minority in the United States, 1940-1970. Chicago, University of Chicago Press, 1983; KATZ, Jonathan. Gay American History. Nova York, Thomas Y. Crowell, 1976. 12 D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., pp.46-7; Allan Bérubé, comunicação pessoal. 13 GERASSI, John. The Boys of Boise. Nova York, Collier, 1968, p.14. Agradeço a Allan Bérubé por ter me chamado a atenção para esse incidente. 11 7 Pensando sobre sexo banir as bichas de San Francisco.14 Punições severas contra indivíduos, bares e áreas de convivência aconteciam em todo o país. Embora as cruzadas contra os homossexuais sejam os exemplos mais bem documentados de repressão erótica na década de 1950, uma pesquisa futura poderia revelar padrões semelhantes de repressão crescente contra materiais pornográficos, prostitutas e desviantes eróticos de todos os tipos. É necessário fazer uma pesquisa para avaliar todo o alcance da perseguição policial e da reforma da legislação.15 Allan Bérubé, comunicação pessoal; D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit.; e Gay Politics, Gay Communitiy: San Francisco´s Experience. Socialist Review, nº 55, janeiro-fevereiro de 1981. 15 Os exemplos seguintes apontam alguns caminhos para novas pesquisas. Encontra-se um relato de uma ação repressiva local na Universidade de Michigan em Tsang, Daniel. Gay Ann Arbor Purges. Midwest Gay Academic Journal, vol. 1, nº 1, 1977; e em Ann Arbor Gay Purges part. 2. Midwest Gay Academic Journal, vol. 1, nº 2, 1977. Na Universidade de Michigan, o número de professores demitidos por suposto homossexualismo revela-se próximo do número de demitidos por supostas tendências comunistas. Seria interessante poder analisar dados estatísticos sobre o número de professores que perderam seus cargos nessa época por crimes políticos, comparando-os com os que os perderam por delitos sexuais. Na reforma da legislação, muitos estados aprovaram leis proibindo a venda de bebidas alcoólicas a “notórios pervertidos sexuais” ou determinando o fechamento de bares que atendiam a uma clientela de “pervertidos sexuais”. Uma lei desse tipo foi aprovada na Califórnia em 1955, e declarada inconstitucional pela Suprema Corte em 1959 (Allan Bérubé, comunicação pessoal). Seria muito interessante saber exatamente que estados aprovaram leis como essas, as datas de sua aprovação, a discussão que as precedeu, e quantas ainda estão em vigor. Sobre a perseguição de outros grupos eróticos, há provas de que John Willie e Irving Klaw, os dois primeiros produtores e distribuidores de bondage erótica nos Estados Unidos do final da década de 1940 até o início da década de 1960, tiveram muitos problemas com a polícia e que Klaw foi submetido a um inquérito parlamentar conduzido pelo Comitê Kefauver. Devo à comunicação pessoal de J.B. Rund as informações sobre as carreiras de Willie e Klaw. São raros os textos publicados sobre o assunto, mas vejam-se WILLIE, John. The Adventures of Sweet Gwendoline. Nova York, Belier Press, 1974; RUND, J.B. Preface. Bizarre Comix, vol. 8, Nova York, Belier Press, 1977; Preface. Bizarre Fotos, vol. 1, Nova York, Belier Press, 1978; e Preface. Bizarre Katalogs, Nova York, Belier Press, 1979. Seria muito útil ter informações mais sistemáticas sobre mudanças jurídicas e sobre ações policiais que afetaram a dissidência erótica não gay. 14 8 Gayle S. Rubin O momento presente tem semelhanças incômodas com as décadas de 1880 e de 1950. A campanha de 1977 para revogar as leis que garantiam direitos gays em Dade, Flórida, deu início a uma nova onda de violência, perseguição pelo Estado e medidas jurídicas dirigidas contra minorias sexuais e contra a indústria do sexo. Nos últimos seis anos, os Estados Unidos e o Canadá sofreram uma grande repressão sexual, no sentido político e não psicológico. Na primavera de 1977, poucas semanas antes da votação de Dade, os noticiários da mídia estavam cheios de reportagens sobre batidas em áreas de encontros homossexuais, detenções por prostituição e investigações sobre a produção e distribuição de materiais pornográficos. Desde então, a ação policial contra a comunidade gay cresceu de forma exponencial. A imprensa gay documentou centenas de prisões, em lugares como as bibliotecas de Boston, as ruas de Houston e as praias de San Francisco. Mesmo as comunidades urbanas gays de grande porte, organizadas e relativamente poderosas, não conseguiram evitar esses ataques. Saunas e bares de gays eram depredados numa freqüência assustadora, e a polícia ficou mais atrevida. Num incidente especialmente dramático, os policiais de Toronto fizeram uma batida nas quatro saunas de gays da cidade. Eles arrombaram cubículos com pés-de-cabra e arrastaram para as ruas frias quase trezentos homens envoltos em suas toalhas. Nem a “liberada” San Francisco ficou imune. Instauraram-se processos contra muitos bares, fizeram-se muitas prisões em parques e, no outono de 1981, a polícia deteve mais de 400 pessoas numa série de batidas em Polk Street, artéria de maior movimento da vida noturna gay local. Agredir homossexuais se tornou um dos maiores divertimentos para os jovens machões da cidade. Eles entravam nas zonas de concentração gay armados com tacos de beisebol e procurando confusão, sabendo que seus responsáveis adultos os aprovariam secretamente ou olhariam para o outro lado. A repressão da polícia não se limitou aos homossexuais. A partir de 1977, passou-se a aplicar com maior freqüência as leis já existentes contra a prostituição e a obscenidade. Além disso, os estados e municípios começaram a tomar novas e mais rigorosas medidas jurídicas para controle do sexo comercial. Promulgaram9 Pensando sobre sexo se leis restritivas, alteraram-se leis de zoneamento, reformaram-se regulamentos referentes a alvarás de funcionamento e segurança, multiplicaram-se as sentenças e reduziram-se as exigências probatórias. Essa sutil manobra jurídica para um controle mais rigoroso sobre o comportamento sexual dos adultos foi praticamente ignorada fora da imprensa gay. Por todo um século, nenhum meio para despertar uma histeria erótica foi mais eficiente que conclamar as pessoas para proteger as crianças. A atual onda de terror erótico penetrou mais fundo nas áreas que de certa forma confinam, ainda que apenas simbolicamente, com a sexualidade dos jovens. O lema da campanha pela revogação das já referidas leis de Dade era “Salvem Nossas Crianças” – de um suposto aliciamento homossexual. Em fevereiro de 1977, pouco antes da votação de Dade, uma preocupação súbita com o tema da “pornografia infantil” sacudiu a mídia nacional. Em maio, o Chicago Tribune publicou durante quatro dias uma sombria série com manchetes garrafais que pretendia denunciar um grupo de delinqüentes organizados para atrair e recrutar meninos para a prostituição e pornografia.16 Em todo o país, os jornais publicaram histórias semelhantes, com a duvidosa credibilidade do National Enquirer. No fim de maio, estava em curso um inquérito parlamentar. Algumas semanas depois, o governo federal promulgou uma extensa lei contra a “pornografia infantil” e muitos estados a acompanharam, aprovando suas próprias leis. Essas leis restabeleceram restrições a materiais de tema sexual que tinham sido abrandadas por uma das importantes decisões da Suprema Corte. Por exemplo, a Corte estabeleceu que nem a nudez nem o ato sexual em si eram obscenos. Mas as leis sobre pornografia infantil definem como obscena qualquer representação de menores nus ou entregues à Chigago is Center of National Child Porno Ring: The Child Predators; Child Sex: Square in New Town Tells it All; U.S. Orders Hearings On Child Pornography: Rodino Calls Sex Racket an “Outrage” “Hunt Six Men, Twenty Boys in Crackdown, Chicago Tribune, 16 de maio de 1977; Dentist Seized in Child Sex Raid: Carey to Open Probe; How Ruses Lure Victms to Child Pornographers, Chicago Tribune, 17 de maio de 1977; Child Pornographers Thrive on Legal Confusion; U.S. Raids Hit Porn Sellers, Chicago Tribune, 18 de maio de 1977. 16 10 Gayle S. Rubin prática sexual. Isso significa que fotografias de crianças nuas em livros-texto de antropologia e muitos dos filmes etnográficos exibidos nas escolas são tecnicamente ilegais em muitos estados. Na verdade, os monitores podem sofrer uma acusação adicional de felonia por mostrar essas imagens a alunos com menos de 18 anos. Embora a Suprema Corte tenha determinado ser um direito constitucional possuir material obsceno para uso particular, algumas leis contra pornografia infantil proíbem mesmo a posse privada de qualquer material sexual que envolva menores. As leis geradas pelo pânico da pornografia infantil são mal elaboradas e mal direcionadas. Elas implicam alterações de longo alcance na legislação sobre o comportamento sexual e revogam importantes liberdades sexuais civis. Mas poucos perceberam quando elas assolaram o Congresso e as Assembléias estaduais. Com exceção da North American Man/Boy Love Association e da American Civil Liberties Union, ninguém ensaiou um protesto.17 Um novo e ainda mais duro projeto de lei federal contra a pornografia infantil acaba de chegar ao Senado. Ela revoga a exigência, feita aos promotores, de provar que a suposta pornografia infantil estava sendo distribuída para ser comercializada. Se o projeto for transformado em lei, uma pessoa que simplesmente possua a fotografia de seu namorado(a) de dezessete anos despido, pode ir para a cadeia e cumprir quinze anos de pena e pagar uma multa de 100.000 dólares. O projeto foi aprovado na Câmara por 400 votos a 1.18 Para mais informações sobre o “pavor da pornografia infantil”, ver CALIFIA, Pat. The Great Kiddy Porn Scare of ´77 and Its Aftermath. Advocate, 16 de outubro de 1980; e A Thorny Issue Splits a Movement. Advocate, 30 de outubro de 1980; MITZEL. The Boston Sex Scandal. Boston, Glad Day Books, 1980; RUBIN, Gayle. Sexual Politics, the New Right, and the Sexual Fringe. In: TSANG, Daniel. (ed.) The Age Taboo. Boston, Alyson Publications, 1981. Sobre a questão dos relacionamentos entre gerações diferentes, ver também MOODY, Roger. Indecent Assault. Londres, Word is Out Press, 1980; O´CARROLL, Tom. Paedophilia: The Radical Case. Londres, Peter Owen, 1980; TSANG, D. The Age Taboo. Op. cit.; e WILSON, Paul. The Man They Called A Monster. New South Wales, Cassell Australia, 1981. 18 House Passes Though Bill on Child Porn. San Francisco Chronicle, 15 de novembro de 1983, p.14. 17 11 Pensando sobre sexo A caso da fotógrafa de arte Jacqueline Livingston mostra bem o clima criado pelo pânico da pornografia infantil. Professora assistente de fotografia da Universidade de Cornell, Livingston foi demitida em 1978 por ter exposto fotografias de pessoas do sexo masculino nuas, inclusive a de seu filho de sete anos se masturbando. As revistas Ms. Magazine, Chrysalis e Art News se recusaram a publicar anúncios dos pôsteres de Livingston mostrando homens nus. A certa altura, a Kodak confiscou alguns de seus filmes e, por muitos meses, Livingston viveu sob a ameaça de sofrer um processo com base nas leis contra a pornografia infantil. O Departamento de Serviço Social de Tompkins investigou se ela era capaz de exercer convenientemente a maternidade. Os pôsteres de Livingston foram comprados pelo Museum of Modern Art, o Metropolitan, e por outros grandes museus. Mas ela pagou um preço muito alto – teve que suportar a perseguição e a ansiedade – por seu esforço para registrar em filme o nu masculino, sem censura, em diferentes idades.19 É fácil reconhecer numa pessoa como Livinston uma vítima das campanhas contra a pornografia infantil. É mais difícil para a maioria das pessoas simpatizar com os homens que gostam de meninos. Como os comunistas e os homossexuais na década de 1950, eles são tão estigmatizados que é difícil achar quem defenda suas liberdades civis, sem falar em sua orientação erótica. Conseqüentemente, a polícia abusou deles o quanto quis. As polícias locais, o FBI e zelosos inspetores dos correios se juntaram para criar um gigantesco aparato com o único objetivo de limpar a comunidade de homens que amam jovens de menor idade. Dentro de uns vinte anos, quando a poeira tiver baixado, será mais fácil mostrar que esses homens foram vítimas de uma imerecida caça às bruxas. Muitas pessoas se sentirão constrangidas por sua colaboração com essa perseguição, mas será tarde demais para fazer alguma coisa de bom para esses homens que passaram suas vidas na prisão. STAMBOLIAN, George. Creating the New Man: A Conversation with Jacqueline Livingston. Christopher Street, maio de 1980; Jacqueline Livingston. Clothed With the Sun, vol. 3, nº 1, maio de 1983. 19 12 Gayle S. Rubin A desgraça dos homens que amam meninos afeta pouca gente, mas o outro legado duradouro da revogação de leis de Dade afeta quase todo mundo. O sucesso da campanha anti-gay alimentou um ódio duradouro da direita americana, e foi o estopim que deu origem a um amplo movimento para estreitar os limites do comportamento sexual aceitável. O fato de a ideologia da direita associar sexo fora do âmbito familiar a comunismo e debilidade política não é uma coisa nova. No período macartista, Alfred Kinsey e seu Instituto para Pesquisas sobre Sexo foram atacados por debilitar o ânimo moral dos americanos, tornando-os mais vulneráveis à influência do comunismo. Em 1954, depois de inquéritos parlamentares e campanhas de difamação pela imprensa, a subvenção de Rockefeller ao instituto de pesquisa de Kinsey foi cortada.20 Por volta de 1969, a extrema direita descobriu o Sex Information and Education Council of the United States (SIECUS). Em livros e panfletos como The Sex Education Racket: Pornography in the School e SIECUS: Corrupter of Youth, a direita acusou o SIECUS e a educação sexual de serem uma estratégia comunista para destruir a família e debilitar o ânimo da nação.21 Outro panfleto, Pavlov´s Children (They may be Yours), afirma que a UNESCO está de conluio com o SIECUS para solapar os tabus religiosos, promover a aceitação de relações sexuais anormais, degradar os padrões morais absolutos e para “destruir a coesão racial” pela exposição de pessoas brancas (principalmente as mulheres brancas) aos supostos padrões sexuais “mais baixos” dos negros.22 A Nova Direita e a ideologia neoconservadora atualizaram esses temas e apostam na estratégia de associar comportamento sexual “imoral” ao suposto declínio do poder da nação americana. 20 GEBHARD, Paul H. The Institute. In: WEINBERG, Martin S. (ed.) Sex Research: Studies from the Kinsey Institute. Nova York, Oxford University Press, 1976. 21 COURTNEY, Phoebe. The Sex Education Racket: Pornography in the Schools (An Exposé). Nova Orleans, Free Men Speak, 1969; DRAKE, Dr. Gordon V. SIECUS: Corrupter of Youth. Tulsa, Oklahoma, Chistian Crusade Publications, 1969. 22 Pavlov´s Children (They May Be Yours). Impact Publishers, Los Angeles, Califórnia, 1969. 13 Pensando sobre sexo Em 1977, Norman Podhoretz escreveu um ensaio acusando os homossexuais pela suposta incapacidade dos Estados Unidos de enfrentar os russos.23 Com isso, estabelecia-se uma clara relação entre “a luta anti-gay no âmbito nacional e as lutas anticomunistas na política externa”.24 A oposição da ala direita à educação sexual, ao homossexualismo, à pornografia, ao aborto e ao sexo antes do casamento passou da zona mais periférica para o centro da arena política a partir de 1977, quando os estrategistas da direita e os fundamentalistas religiosos descobriram que as massas eram muito receptivas a esses temas. A reação sexual teve um papel importante no sucesso eleitoral da direita em 1980.25 Organizações como Moral Majority and Citizens for Decency conquistaram multidões de adeptos, vultosos recursos financeiros e uma inimaginável força política. A Emenda de Igualdade de Direitos foi derrotada, criaramse novas restrições legais contra o aborto e cortaram-se verbas para programas como o de Planejamento Familiar e educação sexual. Promulgaram-se leis e regulamentos para dificultar o acesso das adolescentes ao aborto e a preservativos. O retrocesso sexual foi explorado em ataques bem-sucedidos ao Programa de Estudos Femininos da California State University em Long Beach. A iniciativa mais ambiciosa da direita em termos de legislação foi a FPA (Lei de Proteção à Família), apresentada ao Congresso em 1979. Essa lei constitui um amplo ataque ao feminismo, aos PODHORETZ, Norman. The Culture of Appeasement. Harper´s, outubro de 1977. Alan e SANDERS, Jerry. Resurgent Cold War Ideology: The Case of the Committee on the Present Danger. In: FAGEN, Richard. (ed.) Capitalism and the State in U.S.- Latin American Relations. Stanford, Stanford University Press, 1979. 25 BRESLIN, Jimmy. The Moral Majority in Your Motel Room. San Francisco Chronicle, 22 de janeiro de 1981, p.41; GORDON, Linda e HUNTER, Allen. Sex, Familiy, and the New Right. Radical America, inverno 1977-8; GREGORY-LEWIS, Sasha. The Neo-Right Political Apparatus. Advocate, 8 de fevereiro de 1977; Right Wing Finds New Organizing Tactic. Advocate, 23 de junho de 1977; Unravelling the Anti-Gay Network. Advocate, 7 de setembro de 1977; KOPKIND, Andrew. America´s New Right. New Times, 30 de setembro de 1977; PETCHESKY, Rosalind Pollack. Anti-abortion, Anti-feminism, and the Rise of the New Right. Feminist Studies, vol. 7, nº 2, verão de 1981. 23 24 WOLFE, 14 Gayle S. Rubin homossexuais e às famílias não convencionais e à privacidade sexual dos adolescentes.26 Muito provavelmente a FPA não vai ser aprovada, mas os parlamentares conservadores continuam a implementar o seu programa de forma mais gradual. Talvez o símbolo mais evidente dos tempos é o Adolescent Family Life Program. Também conhecido como Programa de Castidade dos Adolescentes, ele recebe 15 milhões de dólares de subvenção federal para desestimular os adolescentes a ter relações sexuais, para convencê-los a não usar anticoncepcionais quando fazem sexo e evitar o aborto em caso de gravidez. Nos últimos anos, houve inúmeros conflitos localizados em relação a direitos dos gays, educação sexual, direito de aborto, livrarias para adultos e currículo da escola pública. Não há indícios de que o retrocesso sexual tenha acabado, e nem ao menos de que já atingiu o seu ponto máximo. A menos que haja uma mudança radical, é muito provável que nos próximos anos assistamos a uma exacerbação dessa tendência. Períodos como a década de 1880 na Inglaterra e a de 1950 nos Estados Unidos reformulam as relações de sexualidade. As lutas travadas deixam um resíduo expresso em leis, práticas sociais e ideologias que afetam a forma como se vivencia a sexualidade, muito tempo depois de os conflitos se terem encerrado. Tudo indica que o período atual é mais um divisor de águas na política do sexo. O legado da década de 1980 terá um impacto num futuro distante. É absolutamente necessário, portanto, entender o que está acontecendo e o que está em jogo para tomar decisões fundamentadas sobre que política apoiar e que política combater. É difícil tomar essas decisões na falta de um coerente e inteligente corpus de pensamento radical sobre sexo. Infelizmente, as análises políticas progressistas da sexualidade ainda são muito incipientes. Muito do material do movimento feminista contribuiu para a confusão que envolve o assunto. É necessário urgentemente desenvolver pontos de vista radicais sobre a sexualidade. Paradoxalmente, houve uma verdadeira irrupção de escritos políticos e eruditos muito interessantes sobre sexo nesses anos sombrios. Na década de 1950, iniciou-se e desenvolveu-se o ainda 26 Brown, Rhonda. Blueprint for a Moral America. Nation, 23 de maio de 1981. 15 Pensando sobre sexo incipiente movimento pelos direitos dos gays, ao mesmo tempo em que os bares sofriam batidas policiais e se promulgavam leis antigays. Nos últimos seis anos, desenvolveram-se novas comunidades eróticas, alianças e análises políticas em meio à repressão. Neste ensaio, proponho elementos de um quadro descritivo e conceitual para refletir sobre sexo e política. Espero contribuir para a urgente tarefa de criar uma criteriosa, humana e genuinamente libertária reflexão sobre a sexualidade. II - Reflexões sobre sexo “Sabe, Tim”, disse Phillip de repente, “o que você diz não é razoável. Suponha que eu admita que o homossexualismo é justificável em determinados casos e com algumas restrições. Mas aí temos um problema: até onde vai a justificação e onde começa a degeneração? A sociedade deve condenar para proteger. Permita-se um lugar de respeito mesmo a um homossexual intelectual e cai a primeira barreira. Então vem a seguinte, depois outra, até que o sádico, o flagelador, os malucos criminosos vão reivindicar o seu lugar, e a sociedade deixa de existir. Então eu pergunto novamente: qual a linha que separa uma coisa da outra? Onde começa a degeneração senão no começo da liberdade individual nesses assuntos?” (Trecho de uma discussão entre dois homens gays tentando decidir se podiam se amar, de um romance publicado em 1950.27) Uma teoria radical do sexo deve identificar, descrever, explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual. Essa teoria requer instrumentos conceituais refinados que possam apreender o tema e colocá-lo em pauta. Deve apresentar ricas descrições da sexualidade tal como ela existe na sociedade e na história. Ela exige uma linguagem crítica convincente que possa comunicar a barbaridade da perseguição sexual. Vários traços duradouros do pensamento sobre o sexo inibem o desenvolvimento de uma teoria como essa. Essas idéias permeiam de tal forma a cultura ocidental que raramente são 27 Barr, James. Quatrefoil. Nova York, Greenberg, 1950, p.310. 16 Gayle S. Rubin questionadas. Assim, elas terminam por ressurgir em contextos políticos diferentes, valendo-se de outro estilo para se exprimir, mas reproduzindo suas premissas básicas. Um desses axiomas é o essencialismo sexual – a idéia de que o sexo é uma força natural que existe antes da vida social e molda as instituições. O essencialismo sexual baseia-se na sabedoria popular das sociedades ocidentais, que considera o sexo eternamente imutável, associal e não histórico. Dominado por mais de um século pela medicina, pela psiquiatria e pela psicologia, o estudo acadêmico do sexo reproduziu o essencialismo. Esses campos de estudo classificam o sexo como propriedade de indivíduos. Certamente ele está em seus hormônios e em suas psiques. Ele pode ser considerado como fisiológico ou psicológico. Mas dentro dessas categorias etnocientíficas, a sexualidade não tem história nem determinantes sociais importantes. Nos últimos cinco anos, uma sofisticada cultura histórica e teórica desafiou o essencialismo sexual de forma explícita e também implícita. A história gay, especialmente o trabalho de Jeffrey Weeks, liderou esse ataque mostrando que o homossexualismo tal como o conhecemos é um complexo institucional relativamente moderno.28 Muitos historiadores chegaram a considerar as formas institucionais contemporâneas de heterossexualismo como ainda mais recentes.29 Uma das pessoas que muito contribuíram para essa nova cultura é Judith Walkowitz, cuja pesquisa demonstrou o quanto a prostituição sofreu transformações por volta da virada do século XIX para o século XX. Ela apresenta descrições minuciosas de como a interação de forças sociais como a ideologia, o medo, a agitação política, a reforma 28 Quem primeiro formulou essa idéia foi MCINTOSH, Mary. The Homosexual Role. Social Problems, vol. 16, nº 2, outono de 1968; a idéia foi desenvolvida em WEEKS, Jeffrey. Coming Out: Homosexual Politics in Britain from the Nineteenth Century to the Present, Nova York, Quartet, 1977, e Sex, Politics and Society… Op. cit.; ver também D´EMILIO, J. Sexual Politics, Sexual Communities... Op. cit.; e RUBIN, Gayle. Introduction. In: VIVIEN, Renée. A Woman Appeared to Me. Weatherby Lake, Mo., Naiad Press, 1979. 29 HANSEN, Bert. The Historical Construction of Homosexuality. Radical History Review, nº 20, primavera/verão 1979. 17 Pensando sobre sexo jurídica, e a clínica médica podem mudar a estrutura do comportamento sexual e suas conseqüências.30 A História da Sexualidade, de Michel Foucault, foi o texto mais influente e mais emblemático desse novo conhecimento sobre sexo. Foucault critica a forma tradicional de entender a sexualidade como um desejo natural libidinal de livrar-se das peias sociais. Ele afirma que os desejos não são entidades biológicas pré-existentes, mas são constituídos no curso de práticas sociais específicas, determinadas historicamente. Ele ressalta mais os aspectos geradores da organização social do sexo que seus elementos repressivos, mostrando que novas sexualidades estão sempre sendo produzidas. Ele identifica uma maior descontinuidade entre sistemas de sexualidade baseados em parentesco e formas mais modernas.31 O novo conhecimento sobre o comportamento sexual dotou o sexo de uma história e criou uma alternativa construtivista ao essencialismo sexual. Subjacente ao conjunto desse trabalho há o pressuposto de que a sexualidade se constitui na sociedade e na história, não sendo biologicamente determinada.32 Isso significa que a sexualidade humana não pode ser compreendida em termos puramente biológicos. Organismos humanos com cérebros humanos são necessários para culturas humanas, mas nenhum exame do corpo ou de suas partes pode explicar a natureza e variedade dos sistemas sociais humanos. A fome do estômago não dá nenhuma pista para as complexidades da culinária. O corpo, o cérebro, a genitália, e a capacidade de linguagem são todos necessários para a sexualidade humana. Mas eles não determinam seu conteúdo, suas experiências, ou suas formas institucionais. Além disso, nunca nos deparamos com o corpo sem as mediações que as culturas lhe acrescentam. Parafraseando Lévi-Strauss, WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society… Op. cit.; e Male Vice and Female Virture… op. cit. 31 FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality. Nova York, Pantheon, 1978. 32 Encontra-se uma discussão muito útil desses temas em PADGUG, Robert. Sexual Matters: On Conceptualizing Sexuality in History. Radical History Review, nº 20, primavera/verão 1979. 30 18 Gayle S. Rubin minha posição sobre a relação entre a biologia e a sexualidade é um “kantismo sem uma libido transcendental.”33 É impossível pensar com um mínimo de clareza sobre a política racial e de gênero enquanto os consideramos antes como entidades biológicas que como construto sociais. Da mesma forma, a sexualidade é refratária à análise política enquanto for concebida basicamente como um fenômeno biológico ou um aspecto da psicologia individual. A sexualidade é um produto humano tanto quanto as dietas, os meios de transporte, as regras de etiqueta, formas de trabalho, tipos de divertimentos, processos de produção e formas de opressão. Quando entendemos o sexo em termos de análise social e compreensão histórica, torna-se possível uma política sexual mais realista. Pode-se pensar então a política sexual em termos de fenômenos como populações, regiões, modelos de povoamento, migração, conflitos urbanos, epidemiologia e técnicas de repressão policial. Estas são categorias de pensamento mais fecundas que as mais tradicionais, como pecado, doença, neurose, patologia, decadência, corrupção ou o declínio e queda de impérios. Examinando minuciosamente as relações entre as populações eróticas estigmatizadas e as forças sociais que as regulam, trabalhos como os de Allan Bérubé, John d’Emilio, Jeffrey Weeks e Judith Walkowitz contêm categorias implícitas de análise e crítica política. Não obstante, a perspectiva construtivista mostrou uma certa fraqueza política. Isso ficou mais evidente nas interpretações errôneas da posição de Foucault. Devido à ênfase que dava às formas como se produz a sexualidade, Foucault se tornou vulnerável a interpretações que negam ou minimizam a realidade da repressão sexual num sentido mais político. Foucault deixa bastante claro que não nega a existência da repressão sexual, inscrevendo-a numa dinâmica mais ampla.34 A sexualidade nas sociedades ocidentais foi estruturada dentro de um contexto social extremamente punitivo, e foi LÉVI-STRAUSS, Claude. A Confrontation. New Left Review, nº 62, julho/agosto 1970. Nessa conversa, Lévi-Strauss chama sua posição de “um kantismo sem um sujeito transcendental.” 34 FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op. cit., p.11. 33 19 Pensando sobre sexo submetida a controles formais e informais bastante efetivos. Cumpre reconhecer o fenômeno repressivo sem nos reportarmos às hipóteses essencialistas da linguagem da libido. É importante focalizar as práticas sexuais repressivas, ainda que as situando numa outra totalidade e no contexto de uma terminologia mais precisa.35 Boa parte do pensamento radical sobre sexo se insere no modelo de instintos e de suas restrições. Idéias de opressão sexual encontravam-se no bojo dessa forma mais biológica de entender a sexualidade. É sempre mais fácil voltar a uma noção de uma libido natural submetida a uma repressão inumana que reformular conceitos de injustiça sexual num quadro mais construtivista. Mas é essencial que façamos isto. Precisamos de uma crítica radical dos arranjos sexuais que tenham a elegância conceitual de Foucault e a paixão evocativa de Reich. O novo conhecimento sobre sexo trouxe a idéia, bem-vinda, de que os termos sexuais devem ficar limitados aos seus devidos contextos sociais e históricos, e um prudente ceticismo em relação a generalizações temerárias. Mas é importante ser capaz de indicar grupos de comportamento erótico e tendências gerais no âmbito do discurso erótico. Além do essencialismo sexual, existem pelo menos cinco outras formações ideológicas cuja influência sobre o pensamento sexual é tão forte que deixar de discuti-las é resignarse a continuar enredado em suas teias. Estamos falando da negatividade sexual, das falácias da escala deslocada, da classificação hierárquica dos atos sexuais, da teoria do dominó do perigo sexual e da falta de um conceito de variação sexual benigna. Desses cinco, o mais importante é a negatividade do sexo. As culturas ocidentais em geral consideram o sexo uma força perigosa, destrutiva e negativa.36 Boa parte da tradição cristã, seguindo São Paulo, sustenta que o sexo é em essência pecaminoso. Ele pode ser redimido se praticado no casamento para a procriação e se não se der uma atenção muito grande ao aspecto do prazer. Essa forma de encarar o sexo está implícita na idéia de que a genitália é uma parte 35 Ver a discussão em WEEKS, J. Sex, Politics and Society… Op. cit. p.9. p.22. 36 ID., IB., 20 Gayle S. Rubin do corpo intrinsecamente inferior, muito mais baixa e menos sagrada que a mente, a “alma”, o “coração”, ou mesmo a parte superior do sistema digestivo (o status dos órgãos excretores é bem próximo do da genitália).37 Essas idéias atualmente adquiriram vida própria e já não dependem da religião para continuar a existir. Essa cultura sempre encara o sexo com desconfiança. Ela analisa e julga quase todas as práticas sexuais em termos de sua pior expressão. O sexo é culpado até prova em contrário. Praticamente todo comportamento erótico é considerado mau, a menos que se estabeleça uma razão específica que o inocente. As desculpas mais aceitáveis são o casamento, a reprodução e o amor. Em alguns casos, a curiosidade científica, a experiência estética ou uma relação íntima duradoura podem servir. Mas o exercício da aptidão, da inteligência, da curiosidade ou criatividade eróticas exigem pretextos que não se exigem para outros prazeres, como a apreciação da comida, da ficção ou da astronomia. O que chamamos de falácia da escala deslocada é um corolário da negatividade do sexo. Susan Sontag certa vez comentou que uma vez que o cristianismo “considerou o comportamento sexual como a raiz da virtude, todas as coisas a ele relacionadas se tornaram um caso especial em nossa cultura.”38 A legislação relativa a sexo incorporou a crença religiosa de que o sexo herético é um pecado especialmente hediondo, que merece a mais rigorosa punição. Ao longo de quase toda a história da Europa e da América a simples penetração anal, praticada de comum acordo pelos parceiros, era motivo para execução. Em alguns estados americanos, a sodomia ainda acarreta sentenças de vinte anos de prisão. Fora do âmbito da lei, o sexo também é uma Ver, por exemplo, Pope Praises Couples for Self-Control, San Francisco Chronicle, 13 de outubro de 1980, p.5; Pope Says Sexual Arousal Isn´t a Sin If It´s Ethical, San Francisco Chronicle, 6 de novembro de 1980, p.33; Pope Condemns “Carnal Lust” As Abuse of Human Freedom”, San Francisco Chronicle, 15 de janeiro de 1981, p.2; Pope Again Hits Abortion, Birth Control, San Francisco Chronicle, 16 de janeiro de 1981, p.13; e Sexuality, Not Sex in Heaven, San Francisco Chronicle, 3 de dezembro de 1981, p.50. Ver também, mais adiante, nota 62. 38 SONTAG, Susan. Styles of Radical Will. Nova York, Farrar, Straus & Giroux, 1969, p.46. 37 21 Pensando sobre sexo categoria que inspira uma certa suspeita. Pequenas diferenças na forma de encará-lo e praticá-lo são sempre consideradas como ameaças universais. Embora as pessoas possam se mostrar intolerantes, estúpidas ou ousadas no que diz respeito ao que constitui uma dieta adequada, as diferenças no cardápio raramente provocam o tipo de ódio, preocupação e pavor que normalmente acompanham as diferenças no gosto erótico. Os atos sexuais são sobrecarregados com um excesso de significados. As sociedades ocidentais modernas avaliam os atos sexuais de acordo com um sistema hierárquico de valor sexual. Os casais heterossexuais, ligados pelo casamento, estão sozinhos no topo da pirâmide erótica. Muito mais embaixo, nessa escala, estão os casais heterossexuais monogâmicos não casados, seguidos pela maioria dos outros heterossexuais. O sexo solitário oscila ambiguamente. O terrível estigma do século XIX sobre a masturbação continua em formas mais brandas e alteradas, como a idéia de que a masturbação é um substituto inferior para o encontro de parceiros. Casais estáveis, de lésbicas e de gays estão próximos da respeitabilidade, mas lésbicas de bares e homossexuais promíscuos estão pouco acima dos grupos que ficam na parte mais baixa da pirâmide. As castas sexuais mais desprezadas atualmente são os transexuais, os travestis, os fetichistas, os sadomasoquistas, os trabalhadores do sexo como prostitutas e modelos pornôs e, abaixo de todas os outros, aqueles cujo erotismo ultrapassa as fronteiras das gerações. Os indivíduos cujo comportamento os situa na escala mais alta dessa hierarquia são recompensados com o reconhecimento de sua saúde mental, respeitabilidade, legitimidade, mobilidade social e física, apoio institucional e benefícios materiais. À medida que se vai descendo na escala dos comportamentos sexuais ou ocupações, os indivíduos que os praticam tendem a ser considerados doentes mentais e criminosos, têm sua mobilidade social e física cerceada, sofrem sanções econômicas e carecem de apoio institucional. O estigma extremo e punitivo mantém alguns comportamentos sexuais num status bem baixo, e isso constitui uma sanção bastante efetiva contra aqueles que os adotam. A intensidade desse estigma tem raízes nas tradições religiosas do 22 Gayle S. Rubin ocidente. A maioria de seus conteúdos contemporâneos, porém, deriva de opróbrio médico e psiquiátrico. Os velhos tabus religiosos baseavam-se inicialmente nas formas de parentesco da organização social. Eles visavam a impedir uniões indesejáveis e garantir um modelo de parentesco adequado. As leis sexuais extraídas dos textos bíblicos visavam a evitar que se estabelecessem relações inadequadas: com parentes consangüíneos (incesto), com pessoa de mesmo gênero (homossexualismo), com animais (bestialidade). Quando a medicina e a psiquiatria adquiriram amplos poderes sobre a sexualidade, elas se preocuparam menos com cônjuges inadequados que com formas inadequadas de desejo. Se os tabus do incesto eram o traço mais característico dos sistemas de parentesco da organização social, a mudança para uma ênfase nos tabus contra a masturbação era mais adequada aos sistemas mais novos, organizados em torno das qualidades da experiência erótica.39 A medicina e a psiquiatria multiplicaram as categorias de má conduta sexual. A seção sobre distúrbios psicossexuais no Diagnostic and Statistical Manual of Mental and Physical Disorders (DSM) [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] da American Psychiatric Association (APA) é um mapa bastante confiável da atual hierarquia moral das atividades sexuais. A lista da APA é muito mais acurada que a tradicional condenação da prostituição, sodomia e adultério. A edição mais recente, DSMIII, tirou o homossexualismo da lista dos distúrbios mentais, ao cabo de uma longa luta política. Mas fetichismo, sadismo, masoquismo, transexualismo, travestismo, exibicionismo, voyeurismo e pedofilia estão firmemente estabelecidos como disfunções psicológicas.40 Ainda se escrevem livros sobre a gênese, a etiologia, o tratamento e a cura dessas várias “patologias”. A condenação psiquiátrica de comportamentos sexuais se vale de conceitos de inferioridade emocional e mental e não de categorias de pecado sexual. Práticas sexuais que gozam de um 39 Ver FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., pp.106-7. PSYCHIATRIC ASSOCIATION Diagnostic an Statistical Manual of Mental and Physical Disorders. 3ª ed. Washington DC, American Psychiatric Association. 40 AMERICAN 23 Pensando sobre sexo baixo status são tachadas de doenças mentais ou sintomas de um desajuste de personalidade. Além disso, os termos psicológicos combinam dificuldades de funcionamento psicodinâmico com formas de conduta erótica. Eles tratam como equivalentes o masoquismo sexual e os padrões de personalidade autodestrutiva, o sadismo sexual e a agressão emocional, o homoerotismo e a imaturidade. Essas confusões terminológicas tornaram-se poderosos estereótipos que são aplicados indiscriminadamente a indivíduos com base em sua orientação sexual. A cultura popular é permeada de idéias de que a variação erótica é perigosa, insalubre, depravada e constitui uma ameaça contra tudo, desde as criancinhas até a segurança nacional. A ideologia sexual popular é um cozido malsão feito de idéias de pecado sexual, inferioridade psicológica, anticomunismo, histeria de massas, acusações de bruxaria e xenofobia. Os meios de comunicação de massa alimentam essas posições com uma propaganda incessante. Eu consideraria esse sistema de estigma erótico como a última forma socialmente respeitável de preconceito, se as velhas formas não mostrassem tamanha vitalidade, e se as novas não se tornassem cada dia mais conspícuas. Todas essas hierarquias de valor sexual – religioso, psiquiátrico e popular – funcionam de forma muito semelhante às dos sistemas ideológicos do racismo, etnocentrismo, e chauvinismo religioso. Eles racionalizam o bem-estar dos sexualmente privilegiados e o infortúnio da ralé sexual. A figura 1 representa uma versão geral do sistema de valores sexual. Segundo esse sistema, a sexualidade “boa”, “normal” e “natural” deveria ser, em termos ideais, heterossexual, conjugal, monogâmica, reprodutiva e não comercial. Deveria ocorrer num casal, no contexto de uma relação afetiva, entre pessoas da mesma geração e dentro de casa. Deve excluir a pornografia, objetos de fetiche, brinquedos sexuais de qualquer espécie, e papéis que não os de homem e mulher. Qualquer forma de sexo que viole essas regras é “má”, “anormal” ou “não natural”. O mau sexo é homossexual, fora do casamento, promíscuo, não visa à reprodução ou é comercial. Ele pode ser masturbatório ou acontecer em orgias, 24 Gayle S. Rubin pode ser ocasional, praticado entre pessoas de gerações diferentes, pode ocorrer “em público”, no mato ou em saunas. Ele pode fazer uso de pornografia, objetos de fetiche, brinquedos sexuais ou papéis não convencionais (ver Figura 1). Os grupo dos eleitos: Sexualidade Boa, Normal, Natural, Abençoada Heterossexual Conjugal Monogâmica Procriadora Não comercial Entre casais Num relacionamento Mesma geração Em particular Sem pornografia Só os corpos Pasteurizada [No círculo menor] Heterossexual No casamento Monogâmica P/ procriação Não paga Casal Num relacionamento Inter-gerações Em casa Sem pornografia [No círculo maior] Homossexual Em pecado Promíscua Não-procriativa Por dinheiro Sozinho ou em grupo Ocasional Mesma geração No parque Pornografia 25 Pensando sobre sexo Só os corpos Pasteurizada Com acessórios Sadomasoquista Os excluídos: Sexualidade Má, Anormal, Não natural, Condenável Homossexual Fora do casamento Promíscua Não-procriativa Comercial Sozinho ou em grupo Ocasional Entre gerações Em público Pornografia Com acessórios Sadomasoquista FIGURA 1. A hierarquia sexual: os eleitos versus os excluídos A Figura 2 apresenta um outro aspecto da hierarquia sexual: a necessidade de traçar e manter uma linha imaginária entre o bom e o mau sexo. A maioria dos discursos sobre sexo, seja ele religioso, psiquiátrico, popular ou político, reconhece apenas uma pequena porção do potencial sexual humano como sendo puro, seguro, saudável, maduro, legal ou politicamente correto. A “linha” separa este tipo de sexo de todos os outros comportamentos eróticos, que são vistos como obra do demônio, perigosos, psicopatológicos, infantis ou politicamente incorretos. Discute-se então “onde traçar a linha” e como determinar que outras atividades podem entrar no círculo dos que são aceitáveis.* Nota de 1992. Em todo este ensaio tratei o comportamento transgênero e os indivíduos em termos de sistema sexual e não em termos de sistema de gênero, * 26 Gayle S. Rubin Todos esses modelos adotam um teoria do dominó do perigo sexual. A linha parece se colocar entre a ordem e o caos sexual. Ela expressa o receio de que, permitindo-se que algo ultrapasse essa “zona desmilitarizada”, a barreira contra o sexo pavoroso se rompa e uma coisa terrível passe por ela. A maioria dos sistemas que enunciam juízos de valor sobre sexo – religiosos, psicológicos, feministas ou socialistas – procura decidir sobre em que lado da linha fica um determinado ato. Só se atribui complexidade moral aos atos que se situam do lado bom da linha. Por exemplo, os encontros heterossexuais podem ser sublimes ou desagradáveis, livres ou à força, benéficos ou destrutivos, românticos ou mercenários. Desde que não viole outras regras, reconhece-se que o heterossexualismo pode apresentar toda a gama da experiência humana. Em contrapartida, todos os atos do lado mau da linha são considerados absolutamente repulsivos e faltos de todo matiz emocional. Quanto mais se distanciam da linha, mais eles são descritos como uma experiência absolutamente má. Sexo “bom”: Normal, Natural, Saudável, Abençoado Heterossexual No casamento “A Linha” Monogâmico Para reprodução Em casa embora os travestis e os transexuais claramente ultrapassem as fronteiras de gênero. Fiz isso porque as pessoas que saem dos limites de seu gênero são estigmatizadas, importunadas, perseguidas e tratadas normalmente como “desviantes” e pervertidas. Mas isto é um exemplo de como meu sistema classificatório não dá conta de todas as complexidades existentes. A apresentação esquemática das hierarquias sexuais da Figura 1 e 2 foi simplificada para fins de demonstração. Embora a demonstração continue válida, as verdadeiras relações de poder no âmbito da variação sexual são muito mais complexas. 27 Pensando sobre sexo Área mais controversa Casal heterossexual não casado Heterossexuais promíscuos Masturbação Casais estáveis de homossexuais masculinos e femininos Lésbicas de bares Gays promíscuos de saunas e parques. Sexo “mau”: Anormal, Não natural, Doentio, Pecaminoso, “Avançado” Travestis Transexuais Fetichistas Sadomasoquistas Por dinheiro Entre gerações Melhor - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Pior linha. Figura 2. A hierarquia sexual: a disputa sobre onde traçar a Como resultado das lutas travadas na última década, alguns comportamentos sexuais que se encontravam fora do limite da respeitabilidade estão começando a se tornar mais aceitos. Casais não casados que vivem juntos, masturbação e algumas formas de homossexualismo tendem a se tornar respeitáveis (Figura 2). A maior parte dos tipos de homossexualismo encontra-se ainda do lado mau da linha. Mas quando se trata parceiros monogâmicos, a sociedade está começando a reconhecer que a relação comporta toda a gama de interações humanas. O homossexualismo 28 Gayle S. Rubin promíscuo, o sadomasoquismo, o fetichismo, o transexualismo e encontros entre pessoas de gerações diferentes ainda são considerados como horrores desregrados, que não comportam afeição, amor, livre escolha, ternura ou transcendência. Esse tipo de moral sexual é mais próximo das ideologias racistas que da verdadeira ética. Ele atribui virtudes aos privilegiados e o vício aos desfavorecidos. Uma moral democrática deveria julgar os atos sexuais pela forma como os parceiros tratam um ao outro, pelo grau de respeito mútuo, pela presença ou ausência de coerção e pela quantidade e qualidade dos prazeres que eles propiciam. O fato de o ato sexual ser gay ou não, aos pares ou em grupo, sem roupa ou com roupas íntimas, comercial ou não, com ou sem vídeo, não deveria ser objeto de preocupações éticas. É difícil desenvolver uma ética sexual pluralista sem uma concepção de variação sexual benigna. A variação é uma propriedade fundamental de toda vida, do mais simples organismo biológico às mais complexas organizações sociais humanas. Não obstante espera-se que a sexualidade se conforme a um padrão único. Uma das idéias mais arraigadas a respeito de sexo é que só existe uma forma de praticá-lo, e que todo mundo devia se guiar pelo padrão. A maioria das pessoas acha difícil entender que o que quer que gostem de fazer, em termos sexuais, pode ser totalmente repulsivo para uma outra pessoa, e que o que as repugna pode constituir um prazer indizível para uma outra pessoa, em algum lugar do mundo. Uma pessoa não precisa gostar de praticar ou praticar um determinado tipo de ato sexual para reconhecer que os outros podem fazê-lo e que essa diferença não indica uma falta de gosto, de sanidade mental ou de inteligência, de um ou de outro lado. A maioria das pessoas comete o erro de tomar suas preferências sexuais por um sistema universal que funciona, ou deveria funcionar, para todo mundo. Essa idéia de uma sexualidade ideal única caracteriza a maioria dos sistemas de pensamento sobre sexo. Para a religião, o ideal é um casamento com fins de procriação. Para a psicologia, é um heterossexualismo maduro. Embora seu conteúdo varie, o modelo de um padrão sexual único é continuamente retomado em 29 Pensando sobre sexo outras estruturas teóricas, inclusive no feminismo e no socialismo. É tão questionável insistir que todas as pessoas deviam ser lésbicas, não monogâmicas ou pervertidas, como acreditar que todos deveriam ser heterossexuais, casados, ou “certinhos” – embora esta última corrente de opinião seja respaldada por uma força muito mais coercitiva que a primeira. Os progressistas se envergonhariam de se revelar chauvinistas culturais em outras áreas, mas o fazem normalmente em relação às diferenças sexuais. Nós aprendemos a reconhecer culturas diferentes como expressões únicas da criatividade humana e não como hábitos inferiores ou desagradáveis de selvagens. Da mesma forma, precisamos de um entendimento antropológico das diferentes culturas sexuais. A pesquisa sexual empírica é um campo que deve incorporar um conceito positivo de variação sexual. Alfred Kinsey acercou-se do estudo do sexo com a mesma curiosidade desenvolta com que se dedicou ao estudo de uma espécie de vespa. Sua imparcialidade científica deu ao seu trabalho uma neutralidade pouco comum que enfureceu os moralistas e provocou uma imensa controvérsia. 41 Entre os seguidores de Kinsey, John Gagnon e William Simon foram pioneiros na aplicação de critérios sociológicos à diversidade sexual.42 Mesmo a velha sexologia tem algo de aproveitável. Embora seu trabalho esteja eivado de intragáveis crenças eugênicas, Havelock Ellis era um observador agudo e dotado de grande empatia. Seu monumental Estudos de Psicologia do Sexo é exuberante de particularidades e minudências.43 Muitos escritos políticos sobre a sexualidade revelam completa ignorância a respeito da sexologia clássica e da moderna KINSEY, Alfred; POMEROY, Wardell e MARTIN, Clyde. Sexual Behavior in the Human Male. Filadélfia, W.B. Saunders, 1948; KINSEY, Alfred; POMEROY, Wardell e MARTIN, Clyde e GEBHARD, Paul Sexual Behavior in the Human Female. Filadélfia, W.B. Saunders, 1953. 42 GAGNON, John e SIMON, William. Sexual Deviance. Nova York, Harper & Row, 1967; The Sexual Scene, Chicago, Transaction Books, Aldine, 1970; Gagnon, John. Human Sexualities. Glenview, Illinois, Scott, Foresman, 1977. 43 ELLIS, Havelock. Studies in the Psychology of Sex (dois volumes). Nova York, Random House, 1936. 41 30 Gayle S. Rubin pesquisa sobre sexo. Isto talvez se explique pelo fato de que poucas faculdades e universidades se preocupam em ensinar sexualidade humana, e também pelo estigma que marca mesmo a pesquisa acadêmica sobre sexo. Nem a sexologia nem a pesquisa sobre sexo ficaram imunes ao sistema de valores dominante referente a sexo. Ambas têm pressupostos e informações que não deveriam ser aceitos de forma acrítica. Mas a sexologia e a pesquisa sobre sexo apresentam grande profusão de detalhes, uma promissora serenidade e uma grande capacidade para tratar a diversidade sexual antes como algo que existe que como algo que deva ser abolido. Esses campos de estudo podem propiciar uma base empírica para uma teoria radical da sexualidade mais profícua que a combinação de psicanálise e princípios elementares de feminismo, a que tantos textos recorrem.* Nota de 1992. A pretensão desta seção não era invocar autoridade científica, nem cobrar objetividade científica da sexologia, e muito menos privilegiar modelos biológicos como “instrumentos para pesquisa social” (VALVERDE, Mariana. Beyond Gender Dangers and Private Pleasures: Theory and Ethics in the Sex Debates. Feminist Studies, vol. 15, nº 2, verão de 1989, pp. 237-54). Era apresentar a idéia de que a sexologia poderia ser um rico filão a ser explorado para análises da sexualidade, embora nunca me tenha ocorrido que aqueles que o fazem pudessem deixar de submeter os textos de sexologia a um rigoroso exame. Eu queria dizer que os estudos de sexologia eram muito mais relevantes que as intermináveis releituras de Freud e de Lacan em que se baseou boa parte do pensamento feminista sobre sexo. Eu achava então, e ainda acho, que muito das análises feministas sobre sexo derivam, a priori, de princípios elementares do feminismo mesclados com psicanálise. Essas topografias são um pouco como os mapas mundi da Europa de antes de 1492. Elas se ressentem da falta de dados empíricos. Não acredito em “fatos” não mediados por estruturas culturais de interpretação. Acredito, porém, que as teorias da ciência social que não reconhecem, não assimilam e não explicam as informações relevantes são meros exercícios calistênicos. Com exceção da matemática, a maioria das teorias baseia-se numa série de dados selecionados, e o feminismo psicanalítico não pode ser uma exceção. Para uma história feminista exemplar da sexologia americana do século XX, ver IRVINE, Janice. Disorders of Desire. Filadélfia, Temple University Press, 1990. * 31 Pensando sobre sexo III - Transformação sexual Tal como definida pelo direito civil e canônico, a sodomia era uma categoria de atos proibidos; os que praticavam esses atos eram apenas os sujeitos jurídicos dos mesmos. O homossexual do século XIX se tornou um personagem, um passado, uma anamnésia e uma infância, além de ser um modo de vida e uma morfologia, com uma anatomia pouco discreta e uma fisiologia misteriosa... O sodomita foi uma aberração temporária; o homossexual agora era uma espécie. (Michel Foucault44) Apesar de guardarem muitas relações de continuidade com formas ancestrais, os arranjos sexuais modernos têm um caráter distinto que os distanciam dos modelos pré-existentes. Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, a industrialização e a urbanização transformaram as populações rurais e camponesas numa nova força de trabalho para o setor industrial e de serviços. Elas geraram novas formas de organização do Estado, reorganizaram as relações familiares, alteraram os papéis de gênero, tornaram possíveis novas formas de identidade, produziram novas formas de desigualdade social e criaram novas modalidades de conflito ideológico e social. Deram origem também a um novo sistema sexual caracterizado por diferentes pessoas sexuais, populações, estratificação, e conflito político. Os escritos do século XIX sobre sexologia indicam o surgimento de um processo de formação e fixação de novas espécies eróticas. Independentemente da estranheza de suas explicações, os primeiros sexologistas estavam assistindo ao surgimento de novos tipos de pessoas eróticas e à formação de suas primeiras e rudimentares comunidades. O moderno sistema sexual contém uma série dessas populações, estratificadas pela ação de uma hierarquia ideológica e social. Diferenças em valores sociais criam atritos entre esses grupos, que se engajam em lutas políticas para modificar ou manter seu lugar no ranking. A política sexual contemporânea devia ser reformulada em função do processo de 44 FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., p.43. 32 Gayle S. Rubin desenvolvimento, ainda em curso, desse sistema, em função também de suas relações sociais, das ideologias que o interpretam e dos tipos específicos de conflito a que dá origem. O homossexualismo é o melhor exemplo desse processo de especiação erótica. O comportamento homossexual está sempre presente entre os seres humanos. Mas em diferentes sociedades e épocas ele pode ser estimulado ou punido, exigido ou proibido, pode ser uma experiência passageira ou algo para toda a vida. Em algumas sociedades da Nova Guiné, por exemplo, as atividades homossexuais são obrigatórias para os homens. Os atos homossexuais são considerados uma coisa extremamente masculina, os papéis se baseiam na idade e os parceiros são determinados a partir das relações de parentesco.45 Embora os homens se entreguem a atividades homossexuais e pedófilas, eles não são nem homossexuais nem pederastas. Tampouco o sodomita do século XVI era homossexual. Em 1631, Mervyn Touchet, conde de Castlehaven, foi julgado e executado por sodomia. Fica claro, lendo-se as peças do processo, que o conde não se via como alguém que fosse um tipo especial de pessoa sexual. Embora do ponto de vista do século XX Lorde Castlehaven evidentemente sofresse de problemas psicossexuais que exigiam os cuidados de um analista, do ponto de vista do século XVII ele contrariara deliberadamente a lei de Deus e as leis da Inglaterra, o que demandava os modestos serviços de um carrasco.46 HERDT, Gilbert. Guardians of the Flutes. Nova York, McGraw-Hill, 1981; KELLY, Raymond. Witchcraft and Sexual Relations. In: BROWN, Paula e BUCHBINDER, Georgeda. (eds.) Man and Woman in the New Guinea Highlands. Washington, DC, American Anthropological Association, 1976; RUBIN, Gayle. Coconuts: Aspects of Male/Female Relationships in New Guinea. manuscrito inédito, 1974; resenha de Guardians of the Flutes. Advocate, 23 de dezembro, 1982; VAN BAAL, J. Dema. The Hague, Nijhoff, 1966; WILLIAMS, F.E. Papuans of Trans-Fly. Oxford, Clarendon, 1936. 46 BINGHAM, Caroline. Seventeenth-Century Attitudes Toward Deviant Sex. Journal of Interdisciplinary History, primavera de 1971, p.465. 45 33 Pensando sobre sexo O conde não saia saltitando, com seu casaco mais apertado, para ir encontrar-se com seus companheiros sodomitas na taverna gay mais próxima. Ele ficava em seu solar e sodomizava seus servos. A autoconsciência gay, bares de gays, a percepção da existência de um grupo com características comuns e mesmo o termo homossexual não faziam parte do universo do conde. O homem solteiro da Nova Guiné e o nobre sodomita têm apenas uma leve aproximação com um gay, que pode migrar da região rural do Colorado para San Francisco para viver num bairro gay, trabalhar num negócio gay e participar de uma experiência complexa que compreende uma identidade autoconsciente, solidariedade de grupo, uma literatura, uma imprensa, e um alto nível de atividade política. Nas sociedades ocidentais industriais modernas, o homossexualismo adquiriu muito da estrutura institucional de um grupo étnico.47 O deslocamento do homoerotismo para essas comunidades quase étnicas, concentradas, sexualmente constituídas é, em certa medida, conseqüência dos movimentos de populações provocados pela industrialização. Como os trabalhadores estavam migrando para trabalhar nas cidades, havia maiores oportunidades para a formação de comunidades organizadas por vontade própria. Homens e mulheres com tendências homossexuais, que se encontrariam vulneráveis e isolados em aldeias pré-industriais, começaram a se congregar em pequenos redutos nas cidades grandes. A maioria das grandes cidades da Europa ocidental e dos Estados Unidos tinha áreas em que os homens podiam vagar à procura de outros homens. As comunidades lésbicas parecem ter-se aglutinado mais lentamente e em escala menor. Não obstante, na década de 1890 havia vários cafés em Paris, perto da Place Pigalle, que atendiam a uma clientela lésbica, e é provável que existissem lugares semelhantes em outras grandes capitais da Europa ocidental. Áreas como essa adquiriram má reputação, o que alertou outros indivíduos interessados para sua existência e localização. MURRAY, Stephen O. The Institutional Elaboration of a Quasi-Ethnic Community. International Review of Modern Sociology, julho/dezembro de 1979. 47 34 Gayle S. Rubin Nos Estados Unidos, havia territórios lésbicos e gays bem estabelecidos em Nova York, Chicago, San Francisco e Los Angeles na década de 1950. Migrações sexualmente motivadas para lugares como Greenwich Village se tornaram um fenômeno sociológico de proporções consideráveis. No final da década de 1970, a migração sexual se dava numa escala tão grande que começou a ter um efeito notável na política urbana dos Estados Unidos, sendo San Francisco o exemplo mais notório e mais conspícuo.48 A prostituição sofreu uma metamorfose semelhante. Ela começou mudar: de trabalho temporário, passou a ser uma ocupação permanente, em decorrência da agitação, da reforma jurídica e da perseguição policial do século XIX. As prostitutas, que em geral pertenciam à classe trabalhadora, foram ficando cada vez mais isoladas enquanto membros de um grupo proscrito.49 Prostitutas e outros trabalhadores do sexo diferem de homossexuais e de outras minorias sexuais. O trabalho sexual é uma profissão, enquanto que um desvio sexual é uma preferência erótica. Não obstante, eles partilham algumas características de organização social. Como os homossexuais, as prostitutas são um grupo sexual estigmatizado com base na atividade sexual. Em toda parte, as prostitutas e os gays são as principais vítimas da polícia.50 50 Como os gays, as prostitutas ocupam territórios urbanos bem delimitados e lutam com a polícia para defender e manter esses territórios. A perseguição, pela Justiça, dos homossexuais e das prostitutas, é justificada por uma ideologia que os classifica como pessoas perigosas, inferiores e indesejáveis que não devem ser deixadas em paz. 48 Para uma análise mais acurada desses processos, ver: BÉRUBÉ, A. Behind the Spectre of San Francisco. Op. cit., Marching to a Different Drummer. Op. cit.; D´EMILIO, J. Gay Politics, Gay Community… Op. cit.; Sexual Politics, Sexual Communities… Op. cit.; FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit.; HANSEN, B. The Historical Construction of Homosexuality. Op. cit.; KATZ, J. Gay American History. Op. cit.; WEEKS, J. Coming Out… Op. cit.; e Sex, Politics and Society. Op. cit. 49 W ALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society. Op. cit. agentes das delegacias de costumes também perturbam todos os negócios relacionados a sexo, sejam bares ou saunas gays, livrarias para adultos e produtores e distribuidores de arte comercial erótica, ou clubes de swing. 50 Os 35 Pensando sobre sexo Além de organizar homossexuais e prostitutas em aglomerados populacionais localizados, a “modernização do sexo” gerou um sistema de contínua etnogênese sexual. Outras populações de dissidentes eróticos – que têm as assim chamadas “perversões” ou “parafilias” – também começam a se aglutinar. As sexualidades continuam se afastando do Manual Diagnóstico e Estatístico para entrar nas páginas da história social. Atualmente, muitos outros grupos estão tentando repetir o sucesso dos homossexuais. Bissexuais, sadomasoquistas, indivíduos que preferem relações com pessoas de outra geração, transexuais e travestis encontram-se em diferentes estágios de formação de comunidades próprias e de aquisição de identidade. As perversões não proliferam no mesmo ritmo que sua luta para conseguir espaço social, pequenos negócios, recursos políticos e um pouco de alívio das punições por heresia sexual. IV - Estratificação sexual Toda uma sub-raça nasceu, diferente – apesar de certos laços de parentesco – dos libertinos do passado. Do fim do século XVIII até o nosso, seus indivíduos circularam pelos poros da sociedade; eles sempre eram perseguidos, mas nem sempre pela Justiça; eram sempre presos, mas nem sempre em cárceres; eram vítimas, doentes talvez, mas escandalosas e perigosas, presas de um estranho mal que também tinha o nome de vício e às vezes de crime. Eram crianças mais espertas do que se podia esperar de sua idade, menininhas precoces, escolares ambíguos, criados e preceptores duvidosos, maridos cruéis ou maníacos, colecionadores solitários, passeadores com impulsos bizarros; eles freqüentavam as casas de correção, as colônias penais, os tribunais e os asilos; eles levavam sua infâmia aos médicos e sua doença aos juízes. Era a numerosa família de pervertidos que mantinha boas relações com os delinqüentes e tinha afinidades com os loucos. (Michel Foucault 51) 51 FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., p.40. 36 Gayle S. Rubin A transformação industrial da Europa ocidental e da América do Norte trouxe novas formas de estratificação social. As desigualdades de classe que dela derivaram são bem conhecidas e foram exaustivamente exploradas por um século de estudos. A construção de modernos sistemas de discriminação racial e a injustiça étnica foram bem documentadas e bem analisadas. O pensamento feminista analisou a organização predominante da opressão de gênero. Mas embora grupos eróticos específicos, como militantes homossexuais e trabalhadores do sexo, tenham se mobilizado contra os maus-tratos que sofriam, não houve uma tentativa semelhante para situar variedades específicas de perseguição sexual dentro de um sistema mais geral de estratificação sexual. Não obstante, esse sistema existe, e em sua forma contemporânea é uma conseqüência da industrialização do Ocidente. A legislação referente a sexo é o mais implacável instrumento de estratificação social e de perseguição erótica. O Estado intervém rotineiramente no comportamento sexual, em um nível que não seria tolerado em outras áreas da vida social. A maioria das pessoas não tem consciência do alcance da legislação sobre sexo, da quantidade e características do comportamento sexual ilegal, e do caráter punitivo das sanções legais. Embora os órgãos federais possam agir em casos de obscenidade e prostituição, a maioria das leis relativas a sexo são promulgadas em nível estadual e municipal, e cabe à polícia local, em larga medida, fazer com que sejam cumpridas. Assim, as leis variam de forma extraordinária de lugar para lugar. Além disso, a aplicação das leis relativas a sexo varia de forma impressionante de acordo com o clima político local. Minha discussão da legislação sexual não se aplica a leis contra a coerção sexual, à agressão sexual ou ao estupro. Ela diz respeito à miríade de proibições relativas ao sexo consensual e aos atos que só são considerados crimes em função da idade das pessoas envolvidas, como por exemplo o estupro por presunção de violência. A legislação sobre sexo é dura. As penas pela violação de suas regras são, em toda parte, desproporcionais a qualquer dano social ou individual. Um único ato de sexo consensual mas ilícito, como colocar os lábios na genitália de um parceiro excitado, é punido em 37 Pensando sobre sexo muitos estados com mais severidade do que estupro, espancamento ou assassinato. Cada beijo genital como esse, cada carícia lúbrica, é um crime classificado de forma diferente. Portanto, é muito fácil cometer vários tipos de felonia no curso de uma única noite de paixão ilegal. Uma vez que alguém é acusado de algum crime sexual, se praticar pela segunda vez o mesmo ato é enquadrado com reincidente, e nesse caso as penas são ainda mais severas. Em alguns estados, alguns indivíduos foram qualificados de reincidentes por terem tido relações homossexuais em duas ocasiões diferentes. Quando uma atividade erótica é proscrita pela legislação sexual, todo o poder do Estado é mobilizado para garantir o respeito aos valores corporificados nessas leis. As leis relativas a sexo são aprovadas com uma facilidade notável, uma vez que os legisladores temem ser brandos com o vício. Uma vez inscritas nos livros, é extremamente difícil revogá-las. A legislação sobre sexo não reflete de forma perfeita as avaliações morais predominantes do comportamento sexual. A variação sexual em si é vigiada de forma explícita por profissionais de saúde mental, pela ideologia popular e pela prática social extralegal. Alguns dos comportamentos sexuais mais odiados, como o fetichismo e o sadomasoquismo, não são tão regulamentados pela justiça criminal quanto outras práticas relativamente menos estigmatizadas como o homossexualismo. Áreas do comportamento sexual entram no campo de ação da lei quando se tornam objeto de preocupação social e de agitação política. Cada susto em relação ao sexo e cada campanha de moralização deixa uma novo estrato de regulamentos como uma espécie de resíduo fóssil de sua passagem. O sedimento jurídico é mais denso – e a legislação sexual é mais vigorosa – em áreas relacionadas a obscenidade, dinheiro, menores e homossexualismo. As leis contra a obscenidade impõem um poderoso veto contra a representação direta de atividades eróticas. A ênfase que atualmente se dá à forma como a sexualidade se tornou o foco da atenção social não deve ser usada indevidamente para invalidar a crítica a essa proibição. Uma coisa é criar um discurso sexual na forma de psicanálise, ou no curso de uma cruzada moral. Outra muito diferente é representar graficamente atos sexuais ou 38 Gayle S. Rubin genitália. A primeira é muito mais aceitável socialmente do que a outra. O discurso sexual é obrigado à reticência, ao eufemismo e à referência indireta. A questão da liberdade de falar sobre sexo é uma exceção às proteções da Primeira Emenda, que nem ao menos se considera aplicável a asserções puramente sexuais. As leis contra a obscenidade também fazem parte de um grupo de estatutos que torna quase todo comércio sexual ilegal. A legislação sexual estabelece uma rigorosa proibição contra a mistura de sexo e dinheiro, exceto no casamento. Além das disposições contra a obscenidade, outras leis que interferem no comércio sexual são as leis contra a prostituição, a regulamentação sobre bebidas alcoólicas, e as disposições sobre a localização e funcionamento de estabelecimentos “para adultos”. A indústria do sexo e a economia gay conseguiram contornar um pouco essa legislação, mas esse processo não foi fácil nem simples. O caráter essencialmente fora da lei do empreendimento comercial dedicado ao sexo fá-lo marginal, subdesenvolvido, distorcido. O negócio do sexo só pode operar nos brechas deixadas pela lei. Isso leva a que o nível dos investimentos se mantenha baixo e desvia a atividade comercial para o objetivo de se manter fora das grades, em vez de concentrar-se na distribuição de bens e prestação de serviços. Isso também torna os trabalhadores do sexo mais vulneráveis à exploração e a más condições de trabalho. Se o comércio do sexo fosse legal, os trabalhadores do sexo teriam mais chances de organizar-se e lutar por melhor remuneração, melhores condições de trabalho, mais autonomia e menos estigma. Independentemente do que se pense sobre as limitações do comércio capitalista, uma exclusão tão extrema do processo de mercado dificilmente seria aceitável em qualquer outro ramo de atividade. Imagine, por exemplo, que fosse ilegal pagar em dinheiro atendimento médico, informação farmacológica e aconselhamento psicológico. A prática médica se faria em condições muito mais precárias se médicos, enfermeiras, farmacêuticos e terapeutas pudessem ser metidos na cadeia por decisão da “patrulha médica” local. Mas essa é, essencialmente, a situação de prostitutas, trabalhadores do sexo e empresários sexuais. 39 Pensando sobre sexo O próprio Marx considerava o mercado capitalista uma força revolucionária, embora limitada. Ele afirmava que o capitalismo era progressista na medida em que eliminava as superstições e preconceitos pré-capitalistas e os grilhões dos modos de vida tradicionais. “Daí a grande influência civilizadora do capital, a criação de um estágio da sociedade comparado com o qual todos os anteriores se nos afiguram como mero progresso local e idolatria da natureza.”52 Impedir o sexo de levar a efeito os progressos da economia de mercado dificilmente levará a uma economia socialista. A lei é especialmente implacável ao estabelecer uma fronteira entre a “inocência” da infância e a sexualidade “adulta”. Em vez de reconhecer a sexualidade dos jovens e tentar dar-lhe suporte de forma prudente e responsável, nossa cultura nega e pune o interesse e atividade erótica de qualquer pessoa que não atingiu a maioridade. O volume de disposições legais destinadas a proteger os jovens de um exercício prematuro da sexualidade é espantoso. O principal mecanismo para garantir a separação das gerações sexuais são as leis de maioridade. Essas leis não fazem distinção entre o estupro mais brutal e o mais terno dos romances. Uma pessoa de 20 anos acusada de ter mantido relações sexuais com outra de 17 sofrerá uma pesada pena em quase todos os estados americanos, independentemente da natureza do relacionamento.53 Os menores tampouco podem ter acesso à sexualidade dos adultos por outras vias. Eles são proibidos de ler livros, assistir a filmes ou a programas de televisão nos quais a sexualidade é representada de forma “realista” demais. Os jovens podem assistir a terríveis cenas de violência, mas é ilegal ver representações explícitas da genitália. Os jovens sexualmente ativos muitas vezes são encarcerados em casas de correção, ou punidos por sua “precocidade”. Karl Marx. In: MCLELLAN, David. (ed.) The Grundisse. Nova York, Harper & Row, 1971, p.94. 53NORTON, Clark. Sex in América. Inquiry, 5 de outubro de 1981. Esse artigo é uma síntese magistral de boa parte da legislação sexual em vigor e deveria ser lido por todos os que se interessam por sexo. 52 40 Gayle S. Rubin Os adultos que se desviam demais dos padrões convencionais de comportamento sexual normalmente são afastados das crianças, mesmo tratando-se de seus filhos. As leis de custódia permitem que o Estado roube os filhos de qualquer pessoa cujas atividades eróticas pareçam questionáveis a um juiz da vara de família. Inúmeras lésbicas, gays, prostitutas, adeptos do sexo grupal, trabalhadores do sexo e mulheres “promíscuas” foram declarados incapazes de exercer de forma adequada a maternidade ou paternidade, em função dessa sua condição. Os trabalhadores da educação são estreitamente vigiados, para detectar ocasionais sinais de desvio de comportamento. Em muitos estados americanos, as leis determinam que os professores presos por crimes sexuais percam seus empregos e suas credenciais. Em alguns casos, um professor pode ser demitido simplesmente porque seu estilo de vida não convencional chegou ao conhecimento dos funcionários da escola. A depravação é uma das poucas justificativas legais para a anulação da licença para lecionar.54 Quanto mais influência uma pessoa tem sobre a geração seguinte, mais rigoroso é o controle de sua conduta e de suas opiniões. O poder de coerção da lei garante a transmissão dos valores sexuais conservadores através desses controles que se exercem sobre pais e educadores. O único comportamento sexual adulto legal em todos os estados é a introdução do pênis na vagina, no âmbito do casamento. A situação legal de adultos que fazem sexo consensual tem melhorado em pouco mais da metade dos estados. A maioria dos estados impõe severas penas contra sodomia consensual, contato homossexual próximo da sodomia, adultério, sedução e incesto entre adultos. As leis sobre sodomia variam muito. Em alguns estados, elas se aplicam tanto a parceiros homossexuais como a heterossexuais, independentemente de serem ou não casados. Em alguns estados, a Justiça determina que casais casados têm o direito de praticar sodomia em particular. Em outros, só a sodomia homossexual é ilegal. Algumas leis sobre sodomia proíbem o sexo anal e o contato oral-genital. Há estados em que se fala de 54 BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp.165-7. 41 Pensando sobre sexo sodomia apenas em relação à penetração anal, e o sexo oral é tratado à parte. 55 Leis como essas criminalizam o comportamento sexual escolhido livremente e buscado avidamente. A ideologia a elas subjacente reflete as hierarquias de valores acima referidas. Isto é, alguns atos sexuais são considerados tão intrinsecamente vis que não se pode permitir que ninguém, em hipótese alguma, os pratique. O fato de que indivíduos concordem com eles e mesmo que os prefiram é considerado mais uma prova de depravação. Esse sistema de legislação sexual é semelhante ao racismo legalizado. A proibição, pelo Estado, de contato sexual entre pessoas do mesmo sexo, de penetração anal e de sexo oral faz dos homossexuais um grupo criminoso sem as prerrogativas da plena cidadania. Com essas leis, processar é perseguir. Mesmo quando elas não são aplicadas estritamente, como em geral acontece, os membros das comunidades sexuais criminalizadas ficam vulneráveis diante da possibilidade de detenção arbitrária, ou de períodos em que eles se tornam objeto de ondas de pânico social. Quando estas acontecem, as leis estão a postos e a ação da polícia é rápida. Mesmo a aplicação esporádica serve para lembrar aos indivíduos que eles são membros de uma população subalterna. A prisão ocasional por sodomia, por comportamento lascivo, por tentar aliciar clientes (as prostitutas) ou por sexo oral mantém todo mundo assustado, nervoso e cauteloso. O Estado também resguarda a hierarquia através de normas burocráticas. A polícia de imigração ainda proíbe a entrada de homossexuais (e outros “desviantes” sexuais) nos Estados Unidos. Os regulamentos militares impedem que os homossexuais integrem as Forças Armadas.* O fato de os gays não poderem se casar BESSERA, S. S; JEWEL, Nancy M.; MATTHEWS, Melody West e GATOV, Elizabeth R. (eds.) Sex Codes of Califórnia. Public Education and Research Committee of California, 1973, pp.163-8. Essa edição mais antiga do Sex Code of California é anterior à lei sobre o consentimento de adultos, de 1976, por isso dá uma visão melhor das leis sobre sodomia. * Nota de 1992. Para uma excelente história das relações entre os gays e o exército americano, ver BÉRUBÉ, Allan. Coming Out Under Fire: The History of Gay Men and Women in World War II. Nova York, The Free Press, 1990. 55 42 Gayle S. Rubin legalmente significa que eles não podem gozar dos mesmos direitos que os heterossexuais, em muitos campos, como herança, tributação, proteção às testemunhas, e aquisição de direito de cidadania para parceiros estrangeiros. Estes são apenas alguns exemplos de como o Estado reflete e mantém as relações sociais ligadas à sexualidade. A Justiça reforça as estruturas de poder, códigos de comportamento e formas de preconceito. Em seu pior aspecto, a legislação sobre sexo é simplesmente um apartheid sexual. Embora o aparato legal do sexo esteja um tanto vacilante, a maior parte do controle social do dia-a-dia é extralegal. Impõem-se sanções sociais menos formais, mas bastante efetivas, aos membros dos grupos sexuais “inferiores”. Em seu excelente estudo etnográfico da vida gay na década de 1960, Esther Newton observou que a população homossexual dividia-se no que ela chamava de “abertos” e “encobertos”. “Os abertos vivem toda a sua vida profissional dentro do contexto da comunidade [gay]; os encobertos vivem toda a sua vida nãoprofissional naquele contexto”.56 À época do estudo de Newton, a comunidade gay oferecia muito menos empregos do que agora, e o mundo do trabalho não gay era quase absolutamente intolerante com o homossexualismo. Havia alguns indivíduos afortunados que podiam ser abertamente gays e ganhar salários dignos. Mas a grande maioria dos homossexuais tinha que escolher entre uma pobreza honesta e a tensão de manter uma identidade falsa. Embora essa situação tenha mudado bastante, ainda há uma feroz discriminação contra os gays. Para o grosso da população gay, assumir o homossexualismo no trabalho é praticamente impossível. Em geral, quanto mais importante e elevado o cargo, menos a sociedade tolera um desvio erótico aberto. É difícil para os gays achar emprego onde não tenham que fingir, e é dupla ou triplamente difícil para indivíduos que têm preferências eróticas mais exóticas. Os sadomasoquistas deixam suas roupas-fetiche em casa, e sabem que devem buscar esconder ao máximo sua NEWTON, Esther. Mother Camp: Female Impersonators in America. Englewood Cliffs, Nova Jersey, Prentice-Hall, 1972, p.21, grifo do original. 56 43 Pensando sobre sexo verdadeira identidade. Um pedófilo que fosse descoberto seria expulso do trabalho. É um grande fardo ser obrigado a viver uma vida com tal grau de dissimulação. Mesmo aqueles que se contentam com uma vida clandestina correm o risco de ser acidentalmente descobertos. Indivíduos não convencionais do ponto de vista erótico correm o risco de ficar sem emprego ou de não poder seguir a carreira que escolheram. Funcionários públicos ou qualquer um que ocupe uma posição de certa importância são especialmente vulneráveis. Um escândalo sexual é o método mais eficiente de expulsar alguém de seu emprego ou destruir uma carreira política. O fato de que se espera que pessoas com cargos importantes se conformem aos mais estritos padrões de comportamento erótico desestimula os pervertidos de todos os tipos a procurar ocupá-los. Ao contrário, os dissidentes eróticos se encaminham para funções que têm menos impacto nas mais importantes atividades sociais e na opinião pública. A expansão da economia gay na última década criou algumas alternativas de emprego e um certo alívio da discriminação contra homossexuais no mercado de trabalho. Mas a maioria dos empregos da economia gay é de baixa qualificação e paga salários baixos. Os gays são garçons, ajudantes em casas de sauna e discjóqueis, mas não diretores de banco ou executivos de empresa. Muitos dos migrantes sexuais que afluem para lugares como San Francisco descem na escala social. Eles enfrentam uma grande concorrência na disputa pelos cargos. A afluência de migrantes sexuais fornece uma reserva de mão-de-obra barata e explorável para os negócios da cidade, tanto gays como não gays. As famílias exercem um papel crucial na tarefa de assegurar a conformidade aos padrões sexuais convencionais. Há uma grande pressão social para que se negue aos dissidentes sexuais os confortos e os recursos proporcionados pela família. A ideologia popular sustenta que as famílias não devem produzir nem acolher o inconformismo erótico. Muitas famílias reagem tentando recuperar, punir ou banir os membros que não se conformam aos padrões sexuais vigentes. Muitos migrantes sexuais foram expulsos de casa por suas famílias, e muitos outros estão fugindo da ameaça 44 Gayle S. Rubin da institucionalização. Qualquer grupo aleatório de homossexuais, trabalhadores do sexo ou pervertidos de vários tipos pode nos contar histórias estarrecedoras de rejeição e de maus tratos por parte de famílias horrorizadas. O Natal é a grande festa da família nos Estados Unidos, sendo portanto um momento de grande tensão na comunidade gay. Metade dos moradores dessas comunidades vai visitar as suas famílias de origem; muitos dos que permanecem nos guetos gays não podem fazer o mesmo, e revivem toda a sua raiva e sua amargura. Além das punições econômicas e da tensão nas relações familiares, o estigma da dissidência erótica cria áreas de atrito em outros níveis da vida cotidiana. O público em geral ajuda a punir a discrepância erótica quando, seguindo os valores que lhes foram ensinados, os locadores se recusam a alugar suas casas, os vizinhos chamam a polícia, arruaceiros promovem pancadarias. As ideologias da inferioridade erótica e do perigo sexual diminuem a força dos pervertidos sexuais e dos trabalhadores do sexo em lutas sociais de todo tipo. Eles têm menos proteção contra comportamentos inescrupulosos ou criminosos, menos acesso à proteção da polícia, e têm menos chances de recorrer à Justiça. Suas relações com instituições e burocracias – hospitais, polícia, magistrados, bancos, funcionários públicos – são mais difíceis. Sexo é um vetor de opressão. O sistema de opressão sexual atravessa outros modos de desigualdade social, separando indivíduos e grupos segundo sua própria dinâmica intrínseca. Ele não pode ser reduzido a classe, raça, etnia ou gênero, nem pode ser entendido nesses termos. Riqueza, pele branca, gênero masculino e privilégios étnicos atenuam os efeitos da estratificação sexual. Um pervertido branco e rico em geral é menos afetado que uma pervertida pobre e negra. Mas mesmo os mais privilegiados não ficam imunes à opressão sexual. Algumas das conseqüências do sistema de hierarquia sexual são meros aborrecimentos. Outras são muito graves. Em suas manifestações mais sérias, o sistema sexual é um pesadelo kafkiano no qual as infelizes vítimas se transformam em hordas de gado humano cuja identificação, vigilância, detenção, tratamento, encarceramento e punição criam empregos e auto- 45 Pensando sobre sexo satisfação para milhares de agentes das delegacias de costumes, funcionários da carceragem, psiquiatras e assistentes sociais.57 V - Conflitos Sexuais O pânico moral cristaliza os medos e ansiedades amplamente difundidos, e em geral tenta enfrentá-los sem procurar as verdadeiras causas dos problemas e as condições de que são reflexo, mas projetando-as sobre “Folk Devils” [demônios populares] de determinado grupo social (sempre o “imoral” ou “degenerado”). A sexualidade teve um papel muito importante nesse tipo de pânico, e os desviantes sexuais sempre foram, em toda parte, os eternos bodes expiatórios.(Jeffrey Weeks58) O sistema sexual não é uma estrutura monolítica e onipresente. Travam-se incessantes batalhas quanto a definições, avaliações, acordos, privilégios e custos do comportamento sexual. A luta política sexual assume formas bastante específicas. A ideologia sexual tem um papel fundamental na experiência sexual. Em conseqüência, as definições e avaliações do comportamento sexual são objeto de acerba disputa. Os confrontos entre o movimento de liberação gay, em seus primórdios, e o establishment psiquiátrico são o melhor exemplo desse tipo de luta, mas há constantes escaramuças. Acontecem batalhas recorrentes entre o principais produtores da ideologia sexual – as igrejas, a família, os psiquiatras e psicanalistas e a mídia – e os grupos cuja experiência eles rotulam, distorcem e ameaçam. As leis que regulam o comportamento sexual são outro campo de batalha. Há mais de um século, Lysander Spooner dissecou o 57 D´Emilio traz uma excelente discussão da opressão dos gays na década de 1950, cobrindo muitas das áreas que mencionei. As dinâmicas que ele descreve, porém, funcionam também, em formas modificadas, em relação a outros grupos eróticos, e em outros períodos. O modelo específico da opressão contra os gays precisa ser generalizado para se aplicar, com as devidas modificações, a outros grupos sexuais. D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., pp.40-53. 58 WEEKS, J. Sex, Politics and Society… Op. cit., p.14. 46 Gayle S. Rubin sistema de coerção moral sancionado pelo Estado, num texto inspirado principalmente pelas campanhas contra o alcoolismo. Em Vices Are Not Crimes: A Vindication of Moral Liberty [Vícios Não São Crimes: Uma Defesa da Liberdade Moral], Spooner afirmou que o governo devia proteger os cidadãos contra o crime, mas que era insensato, injusto e tirânico legislar contra o vício. Ele discute racionalizações que ainda se ouvem em defesa do moralismo traduzido em leis – como a de que os “vícios” (Spooner refere-se à bebida, mas aqui caberia também homossexualismo, prostituição ou uso de drogas como diversão) levam a crimes, devendo portanto ser evitados; que aqueles que se entregam ao “vício” são non compus mentis, devendo, portanto, ser protegidos da autodestruição pela destruição perpetrada pelo Estado; e que as crianças devem ser resguardadas contra conhecimentos supostamente nocivos.59 Esse discurso sobre crimes sem vítimas não mudou muito. A luta jurídica em torno da legislação sobre sexo vai continuar até que se consigam garantias de liberdades básicas de ação e expressão sexual. Isso exige a revogação de todas as leis sexuais exceto as poucas que se aplicam à coerção real, não sendo meramente estatutárias; e isso implica a abolição de delegacias de costumes, cuja função é fazer cumprir a legislação moral. Além das guerras jurídicas e guerras em torno de definições, existem formas menos evidentes de conflito político sexual que chamamos de territoriais ou de fronteiras. Os processos pelos quais as minorias eróticas formam comunidades e a existência de forças que se lhe opõem levam a lutas que têm por objeto a natureza e os limites das zonas sexuais. A sexualidade dissidente é mais rara e mais estreitamente vigiada nas cidades pequenas e na zona rural. Conseqüentemente, a vida metropolitana atrai os jovens pervertidos. A migração sexual cria aglomerados de parceiros, amigos e sócios. Ela permite que os indivíduos criem uma rede de relações adultas, semelhantes a relações de família, nas quais vivem. Mas os migrantes sexuais têm que superar muitas barreiras. SPOONER, Lysander. Vices Are Not Crimes: A Vindication of Moral Liberty. Cupertino, Cal., Tanstaafl Press, 1977. 59 47 Pensando sobre sexo Segundo a mídia mais influente e o preconceito popular, os mundos sexuais marginais são tristes e perigosos. Descrevem-nos como pobres, feios e habitados por psicopatas e criminosos. Os novos imigrantes devem estar suficientemente motivados para resistir ao impacto de imagens tão desanimadoras. As tentativas de neutralizar essa contrapropaganda por meio de informações mais fidedignas em geral são obstruídas pela censura, e há uma luta ideológica incessante em torno de que representações das comunidades sexuais devem entrar na mídia. Restringem-se também informações sobre como fazer para encontrar os mundos sexuais e para neles viver. Os guias também são escassos e deficientes. No passado, boatos, mexericos e propaganda negativa eram as formas disponíveis para localizar comunidades eróticas semi-clandestinas. No fim da década de 1960 e começo da década de 1970 tornaram-se acessíveis informações mais confiáveis. Novos grupos como a Maioria Moral desejam reconstruir as muralhas ideológicas em volta dos submundos sexuais e dificultar ao máximo o movimento de entrada e de saída nessas comunidades. A migração custa caro. Os custos do transporte, as despesas com o deslocamento e a necessidade de encontrar um novo emprego e moradia são dificuldades econômicas que os migrantes sexuais precisam enfrentar. Essas são as barreiras mais difíceis para os jovens, que em geral têm um desejo ardente de mudar-se. Não obstante, há acessos para as comunidades eróticas que abrem picadas no matagal da propaganda e oferecem um certo amparo econômico no caminho. Nível superior de educação pode ser um caminho para os jovens de famílias abastadas. Apesar de sérias limitações, a informação sobre comportamento sexual em muitos colégios e universidades é muito melhor que em outros lugares, e a maioria dos colégios e universidades abrigam pequenas redes eróticas de todos os tipos. Para os rapazes mais pobres, o exército é a maneira mais fácil de livrar-se do ambiente aversivo em que se encontram. As proibições militares contra o homossexualismo tornam esse caminho perigoso. Embora jovens homossexuais constantemente procurem o exército para fugir de situações intoleráveis em suas 48 Gayle S. Rubin cidades de origem e para se aproximarem de comunidades gays funcionais, eles correm o risco de ser descobertos, de corte marcial e de dispensa desonrosa. Uma vez nas cidades, as populações eróticas tendem a se aglutinar e a ocupar um território regular e visível. Igrejas e outras forças moralizadoras constantemente pressionam as autoridades locais para conter essas áreas, torná-las menos visíveis ou expulsar seus habitantes da cidade. Há batidas periódicas em que as delegacias de costumes se encarniçam contra as populações sob sua jurisdição. Os grupos de gays, prostitutas e às vezes travestis são concentrados e numerosos o bastante para travar intensas batalhas com os policiais por determinadas ruas, parques e alamedas. Essas guerras de fronteiras raramente são decisivas, mas resultam em muitas baixas. Durante boa parte do século XX, os submundos sexuais foram marginais e pobres, seus moradores submetidos a stress e exploração. O sucesso espetacular dos empresários gays na criação de uma economia gay diversificada mudou a qualidade de vida no interior do gueto gay. É sem precedentes o nível de conforto material e de organização social alcançado pela comunidade gay nos últimos quinze anos. Mas é importante lembrar o que aconteceu com milagres semelhantes. O crescimento da população negra em Nova York no início do século XX levou a um renascimento do Harlem, mas esse período de criatividade foi sufocado pela Depressão. A relativa prosperidade e florescimento cultural do gueto gay talvez seja igualmente frágil. Como os negros que fugiram do sul para o leste metropolitano, os homossexuais podem simplesmente ter trocado os problemas rurais por problemas urbanos. O pioneiros gays ocuparam áreas que ficavam no centro das cidades mas que estavam degradadas. Assim, ele se estabeleceram próximo a regiões pobres. Os gays, principalmente os de baixa renda, terminam por concorrer com outros grupos de renda igualmente baixa pela escassa oferta de moradias baratas e razoáveis. Em San Francisco, a disputa por moradias baratas exacerbou o racismo e a homofobia, e é uma das razões por que se vê tanta violência nas ruas contra homossexuais. Em vez de se 49 Pensando sobre sexo encontrarem isolados e passarem despercebidos como na área rural, os gays da cidade agora são numerosos e alvos muito visíveis para as frustrações urbanas. Em San Francisco, a construção desenfreada de arranha-céus no centro da cidade e os condomínios caros estão acabando com as moradias acessíveis. Construções milionárias estão criando uma pressão sobre todos os moradores. Inquilinos gays pobres são visíveis nas áreas de moradores de baixa renda; empreiteiros multimilionários não. O espectro da “invasão homossexual” é um bode expiatório conveniente que desvia a atenção dos bancos, dos departamentos de obras, do establishment político e das grandes empreiteiras. Em San Francisco, o bem-estar da comunidade gay é obstado pela alta política imobiliária urbana. No centro comercial da cidade, a expansão afeta toda a área do submundo erótico. Em San Francisco e em Nova York, as construções de alto investimento e a revitalização urbana interferiram nas principais áreas de prostituição, pornografia e bares leather. Os empreiteiros estão com olho gordo no Times Square, no Tenderloin e no que sobrou de North Beach e South of Market. A ideologia anti-sexo, a lei contra a obscenidade, as normas sobre prostituição e sobre bebidas alcoólicas estão todas sendo usadas para expulsar os negócios “sujos” para o público adulto, os trabalhadores do sexo e os adeptos do leather. Dentro de dez anos, a niveladora já terá passado pela maioria dessas áreas, tornando-as adequadas para a construção de centros de convenções, hotéis internacionais, sedes de empresas e residências para ricos. O tipo mais importante de conflito sexual é o que Jeffrey Weeks chamou de “pânico moral”. Episódios de pânico moral são os “momentos políticos” do sexo, nos quais opiniões difusas são orientadas no sentido de uma ação política e daí para a mudança social.60 A histeria da escravidão branca da década de 1880, as campanhas contra os homossexuais da década de 1950 e o pânico da pornografia infantil do final da década de 1970 foram pânicos morais típicos. 60 Adotei essa terminologia da utilíssima discussão que se encontra em WEEKS, J. Sex, Politics and Society... Op. cit., pp.14-15. 50 Gayle S. Rubin Como a sexualidade é muito mistificada nas sociedades ocidentais, as lutas que se travam em torno desse tema se dão de uma forma oblíqua, visando a alvos falsos, e são conduzidas por ódios orientados na direção errada; além disso, são extremamente simbólicas. As atividades sexuais sempre funcionam como símbolos para os medos e apreensões sociais e pessoais com os quais não têm relação. Durante um período de pânico moral, esses medos se prendem a alguma prática sexual ou a um segmento desafortunado da população. A mídia se enche de indignação, o público age como uma turba irada, aciona-se a polícia, e o Estado promulga novas leis e regulamentos. Passado o furor, algum grupo erótico inocente terá sido dizimado, e o Estado terá estendido seu poder a novas áreas do comportamento sexual. O sistema de estratificação sexual fornece vítimas fáceis que não têm forças para se defender, e um aparato pré-existente para controlar seus movimentos e restringir suas liberdades. O estigma contra os dissidentes sexuais os torna moralmente indefesos. Todo pânico moral tem conseqüências em dois níveis. A população alvo é a que mais sofre, mas todos são afetados pelas mudanças sociais e jurídicas. Os pânicos morais raramente atenuam algum problema real, porque investem contra quimeras e símbolos. Eles recorrem a uma estrutura discursiva pré-existente que inventa vítimas para justificar o fato de tratarem “vícios” como crimes. Racionaliza-se a criminalização de comportamentos inócuos como homossexualismo, prostituição, obscenidade ou o uso de drogas para fins de divertimento, apresentando-os como ameaças à saúde e à segurança, aos homens e às mulheres, à segurança nacional, à família ou à própria civilização. Mesmo quando se sabe que a prática não é nociva, considera-se que deve ser banida porque “leva” a algo muito pior (outra manifestação da teoria do dominó).61 Construíram-se grandes e imponentes edifícios com base nesses Ver SPOONER, L. Vices Are Not Crimes… Op. cit., pp.25-29. O discurso feminista contra a pornografia encaixa-se perfeitamente na tradição de justificar as tentativas de controle moral afirmando que assim se protegem mulheres e crianças da violência. 61 51 Pensando sobre sexo fantasmas. Em geral, a eclosão de um pânico moral é precedida de uma intensificação dos ataques a bodes expiatórios. É sempre arriscado profetizar. Não é preciso, porém, muita capacidade de previsão para detectar potenciais pânicos morais em duas tendências atuais: os ataques contra sadomasoquistas da parte de um segmento do movimento feminista e o uso cada vez maior da AIDS, por parte da direita, para incitar uma homofobia violenta. A ideologia feminista contra a pornografia sempre continha uma condenação velada, e às vezes aberta, ao sadomasoquismo. As imagens de pessoas trepando ou se chupando, que constituem o grosso do material pornográfico, podem ser chocantes para pessoas que não estão familiarizadas com elas. Mas é difícil demonstrar que elas são violentas. As primeiras mostras de imagens contra a pornografia usavam exemplos cuidadosamente selecionados de cenas de sadomasoquismo para inculcar uma análise superficial. Fora de seu contexto, essas imagens são sempre chocantes. A força desse impacto era usada cruelmente para assustar o público e fazêlo aceitar o ponto de vista contra a pornografia. Grande parte da propaganda contra a pornografia insinua que o sadomasoquismo é a “verdade” subjacente e fundamental para a qual tende toda a pornografia. Considera-se que a pornografia leva ao sadomasoquismo pornográfico; este, por sua vez, leva ao estupro. Essa é uma história que recupera a idéia de que são os pervertidos sexuais que cometem crimes, não as pessoas normais. Não há indícios de que os leitores da literatura pornográfica sadomasoquista ou que os praticantes do sadomasoquismo cometam um grande número de crimes sexuais. A literatura antipornográfica acusa uma minoria sexual impopular e seu material de leitura de problemas que ela não cria. O uso de imagens de sadomasoquismo no discurso antipornográfico excita os ânimos. Ele leva a acreditar que a forma de tornar o mundo um lugar seguro para as mulheres é eliminar o sadomasoquismo. O uso de imagens de sadomasoquismo no filme Not a Love Story era o equivalente moral de usar imagens de negros estuprando mulheres brancas, ou de judeus velhos, a baba a 52 Gayle S. Rubin escorrer-lhes da boca, agarrando jovens árabes, para provocar a histeria racista ou anti-semita. O discurso feminista tem uma lamentável tendência a ressurgir em contextos reacionários. Por exemplo, em 1980 e 1981 o papa João Paulo II fez uma série de pronunciamentos reafirmando seu compromisso com uma visão mais conservadora, mais próxima do pensamento do apóstolo Paulo, da sexualidade humana. Ao condenar o divórcio, o aborto, a prática de coabitar por algum tempo antes de casar, a pornografia, a prostituição, o controle da natalidade, o hedonismo desenfreado e a luxúria, o papa usou, em larga medida, a retórica feminista sobre a objetificação sexual. Num estilo que lembrava o da polemista feminista lésbica Julia Penelope, Sua Santidade explicou que “encarar uma pessoa com luxúria faz dessa pessoa um objeto sexual e não um ser humano a quem se deve respeito”.62 A direita rejeita a pornografia e já adotou elementos do discurso feminista contra a pornografia. O discurso contra a pornografia sadomasoquista desenvolvido no movimento feminista pode muito bem funcionar como instrumento para uma caça às bruxas. Ele apresenta uma população indefesa, pronta para servir de alvo. Ele apresenta motivos para a recriminalização de materiais sexuais que ficaram fora do alcance das leis atuais contra a obscenidade. Seria por demais fácil aprovar leis contra a arte masoquista semelhantes às que existem contra a pornografia infantil. O objetivo confesso dessas leis seria reduzir a violência pela eliminação da chamada pornografia violenta. Uma intensa campanha contra a ameaça leather também pode levar à aprovação de leis que criminalizem comportamentos sadomasoquistas que atualmente não são ilegais. O resultado final desse pânico moral seria legalizar a violência contra uma comunidade de pervertidos inofensivos. É pouco provável que essa caça às bruxas traga alguma 62 Pope´s Talk on Sexual Spontaneity, San Francisco Chronicle, 13 de novembro de 1980, p.8; ver também, acima, nota 37. Julia Penelope afirma que “não precisamos de nada que se autodenomine puramente sexual” e que “a fantasia, enquanto um aspecto da sexualidade, pode ser uma ´necessidade´ falocêntrica da qual não estamos livres...” PENELOPE, Julia. And Now For the Really Hard Questions. Sinister Wisdom, nº 15, outono de 1980, p.103. 53 Pensando sobre sexo contribuição apreciável para a redução da violência contra as mulheres. Ainda mais provável é um pânico da AIDS. Quando o medo de uma doença incurável se mistura ao terror sexual, o resultado é bastante explosivo. Um século atrás, tentativas para erradicar a sífilis levaram, na Inglaterra, à aprovação das Leis sobre Doenças Contagiosas. Essas leis baseavam-se em teorias médicas errôneas e em nada contribuíram para evitar a propagação da doença. Mas elas infelicitaram a vida de centenas de mulheres que foram encarceradas, submetidas a exame vaginal obrigatório e estigmatizadas, pelo resto da vida, como prostitutas.63 Aconteça o que acontecer, a AIDS trará conseqüências duradouras para o sexo em geral e para a homossexualidade em particular. A doença terá um impacto muito grande nas opções feitas pelos gays. A migração para os santuários gays diminuirá, por medo da doença. Aqueles que já vivem nos guetos vão evitar situações que os exponham a riscos. A economia gay e o aparato político que a ampara talvez se revelem muito frágeis. O medo da AIDS já afetou a ideologia sexual. Exatamente quando os homossexuais estavam conseguindo resultados positivos em sua luta para livrar-se do estigma da doença mental, eles se vêem metaforicamente associados à imagem da degradação física fatal. A síndrome, suas características específicas e forma de transmissão estão sendo usadas para fortalecer velhos medos de que a atividade sexual, o homossexualismo e a promiscuidade levem à doença e à morte. A AIDS é uma tragédia pessoal para os que contraem a síndrome e uma calamidade para a comunidade gay. Os homófobos se comprouveram em voltar essa tragédia contra suas vítimas. Um colunista afirmou que a AIDS sempre existiu, que as proibições bíblicas da sodomia visavam a proteger da AIDS, e que portanto a AIDS é uma punição adequada para a violação dos códigos levíticos. Usando o medo da infecção como justificativa, a ala direita local tentou impedir a realização do rodeio gay de Reno, no estado de Ver principalmente WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society… Op. cit., e WEEKS, J. Sex, Politics and Society... Op. cit. 63 54 Gayle S. Rubin Nevada. Um número recente da Moral Majority Report mostrou uma foto de uma família branca “típica” usando máscaras cirúrgicas. Na manchete se lia: “AIDS: A DOENÇA HOMOSSEXUAL AMEAÇA AS FAMÍLIAS AMERICANAS.”64 Há pouco tempo, Phyllis Schlafly publicou um folheto afirmando que aprovação da Emenda de Igualdade de Direitos nos impediria de nos proteger, “em termos legais, da AIDS e de outras doenças de homossexuais”.65 A literatura da direita atual propõe o fechamento de saunas gays, a decretação de uma lei proibindo os homossexuais de trabalharem com manipulação de alimentos e a proibição, pelo Estado, da doação de sangue pelos gays. Essas medidas exigiriam que o governo identificasse todos os homossexuais e lhes impusesse distintivos legais e sociais facilmente reconhecíveis. Já é muito ruim que a comunidade gay tenha que enfrentar a infelicidade de ter sido o primeiro segmento da população em que a doença se disseminou e se fez notar. Pior é ter que enfrentar, além disso, as conseqüências sociais. Mesmo antes do pavor da AIDS, a Grécia aprovou uma lei que autoriza a polícia a prender suspeitos de serem homossexuais e submetê-los a um exame para detectar doenças sexualmente transmissíveis. Muito provavelmente, até que se conheçam os processos de transmissão, haverá de surgir todo tipo de proposta para erradicação da doença recorrendo-se à punição da comunidade gay e ao ataque a suas instituições. Quando se desconhecia a causa da legionelose, a doença dos legionários, ninguém propôs submeter a quarentena os membros da Legião Americana ou fechar seus locais de reunião. As Leis das Doenças Contagiosas da Inglaterra pouco fizeram para erradicar a sífilis, mas causaram muito sofrimento às mulheres que por elas foram atingidas. A história do pânico que acompanhou as novas epidemias, e as baixas sofridas por seus bodes expiatórios, deviam fazer que todo mundo parasse para considerar com extrema 64 Moral Majority Report, julho de 1983. Agradeço a Allan Bérubé por me chamar a atenção para essa foto. 65 apud BUSH, Larry. Capitol Report. Advocate, 8 de dezembro de 1983, p.60. 55 Pensando sobre sexo desconfiança quaisquer tentativas de justificar medidas políticas baseadas na AIDS.* VI Os limites do feminismo Sabemos que na maioria esmagadora dos casos, o crime sexual está ligado à pornografia. Sabemos que os que praticam crimes sexuais são claramente influenciados por ela. Creio que, se pudermos eliminar a distribuição desse tipo de material entre crianças impressionáveis, haveremos de reduzir consideravelmente nossa assustadora taxa de crimes sexuais. (J. Edgar Hoover66 ) Na falta de uma teoria radical do sexo mais articulada, muitos progressistas procuraram uma orientação no feminismo. Mas a relação entre o feminismo e o sexo é complexa. Uma vez que a sexualidade é um elo das relações entre gêneros, muito da opressão das mulheres é gerada e mediada pela sexualidade, e constituída no interior desta. O feminismo sempre teve um interesse vital em sexo. Mas houve duas correntes de pensamento feminista sobre esse assunto. Uma tendência criticava as restrições ao comportamento sexual das mulheres e condenava o alto custo imposto às mulheres por serem sexualmente ativas. Essa tradição do pensamento sexual Nota de 1922. A literatura sobre a AIDS e suas seqüelas sociais multiplicou-se desde a publicação deste ensaio. Alguns dos textos importantes são AIDS: CRIMP, Douglas. Cultural Analysis, Cultural Ativism. Cambridge, Mass., MIT Press, 1988; CRIMP, Douglas e ROLSTON, Adam. AIDS DEMOGRAPHICS. Seattle, Bay Press, 1990; FEE, Elizabeth e FOX, Daniel M. AIDS: The Burdens of History. Berkeley, University of California Press, 1988; e AIDS: The Making of a Chronicle Disease. Berkeley, University of California Press, 1992; PATTON, Cindy. Sex and Germs: The Politics of AIDS. Boston, South End Press, 1985; e Inventing AIDS. Nova York, Routledge, 1990; WATNEY, Simon. Policing Desire: Pornography, AIDS, and the Media. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1987; CARTER, Erica e WATNEY, Simon. Taking Liberties: AIDS and Cultural Politics. Londres, Serpent´s Tail, 1989; BOFFIN, Tessa e GUPTA, Sunil. Ecstatic Antibodies. Rivers Oram Press, 1990; e KINSELLA, James. Covering the Plague: AIDS and the American Media. New Brunswick, Rutgers University Press, 1989. 66 apud HYDE, H. Montgomery. A History of Pornography. Nova York, Dell, 1965, p.31. * 56 Gayle S. Rubin feminista lutava por uma liberação sexual feminina que funcionasse para as mulheres da mesma forma que para os homens. A segunda tendência considerava que a liberação sexual era, essencialmente, uma extensão do privilégio dos homens. Essa tradição é afim do discurso conservador, anti-sexual. Com o advento do movimento contra a pornografia, ela conseguiu uma hegemonia temporária na análise feminista. O movimento contra a pornografia e seus textos foram a expressão mais ampla desse discurso.67 Além disso, os que defendiam esse ponto de vista condenaram praticamente toda expressão sexual variante como anti-feminista. Dentro desse quadro, o lesbianismo monogâmico no âmbito de relações íntimas duradouras e que excluem o desempenho de papéis polarizados substituiu o heterossexualismo procriador no topo da hierarquia de valores. O heterossexualismo foi rebaixado para uma posição intermediária. Afora essa mudança, tudo o mais parece mais ou menos familiar. As posições mais baixas são ocupadas pelos grupos e comportamentos de sempre: prostituição, transexualismo, sadomasoquismo e relações entre pessoas de gerações diferentes.68 A maioria dos comportamentos do homossexual masculino, todo sexo ocasional, promiscuidade e lesbianismo em que existam papéis não convencionais ou que excluam a monogamia também são condenados.69 Mesmo a fantasia sexual durante a masturbação é considerada um resquício falocêntrico.70 67Ver, por exemplo, LEDERER, Laura. (ed.) Take Back the Night. Nova York, William Morrow, 1980; DWORKIN, Andrea. Pornography, Nova York, Perigee, 1981. O Newspage, do grupo Women Against Violence in Pornography and Media, de San Francisco, e o Newsreport, do grupo Women Against Pornography, de Nova York, são fontes excelentes. 68 BARRY, Kathleen. Female Sexual Slavery. Englewood Cliffs, Nova Jersey, Prentice-Hall, 1979; Raymond, Janice. The Transsexual Empire, Boston, Beacon, 1979; BARRY, Kathleen. Sadomasochism: The New Blacklash to Feminism. Trivia, nº 1, outono de 1982; LINDEN, Robin Ruth; PAGANO, Darlene R.; RUSSEL, Diana E.H. e STARR, Susan Leigh. (eds.) Against Sadomasochism. East Palo Alto, Cal., Frog in the Well, 1982; e Rush, Florence. The Best Kept Secret, Nova York, McGraw-Hill, 1980. 69 GEARHART, Sally. An Open Letter to the Voters in District 5 and San Francisco´s Gay Community, 1979; Rich, Adrienne. On Lies, Secrets, and Silence. Nova York, 57 Pensando sobre sexo Esse discurso sobre a sexualidade é menos uma sexologia que uma demonologia. Ele apresenta a maioria dos comportamentos sexuais em seu pior aspecto possível. Suas descrições do comportamento erótico sempre usam o pior exemplo disponível como se ele fosse representativo. Ele apresenta a pornografia mais repugnante, as formas de prostituição mais exploradas e as menos aceitáveis ou as mais chocantes manifestações da variação sexual. Essa tática de convencimento falseia a sexualidade humana em todas as suas formas. O panorama da sexualidade humana que se descortina a partir dessa literatura é invariavelmente feio. Além disso, essa tática de convencimento contra a pornografia é um exercício da atribuição de todos os males a bodes expiatórios. Ela critica os atos de amor não rotineiros em vez de criticar os atos rotineiros de opressão, exploração ou violência. Essa demonologia/sexologia canaliza para indivíduos, práticas e comunidades inocentes a legítima revolta das mulheres contra a falta de segurança pessoal. A propaganda contra a pornografia afirma que o sexismo tem origem dentro da indústria do sexo e em seguida contamina todo o resto da sociedade. Do ponto de vista sociológico, isso é um contra-senso. Não se pode dizer que a indústria do sexo seja uma utopia feminista. Ela reflete o sexismo que existe na sociedade como um todo. Precisamos analisar e combater as manifestações de desigualdade de gênero característica da indústria do sexo. Mas isto não é o mesmo que procurar eliminar o sexo comercial. W.W. Northon, 1979, p.225. (“Por outro lado, existe uma cultura patriarcal homossexual, uma cultura criada por homens homossexuais, que reflete esses estereótipos masculinos como a dominação e a submissão como modos de relacionamento, e a separação de sexo do envolvimento emocional – uma cultura permeada pelo profundo ódio contra as mulheres. A cultura masculina ´gay´ ofereceu às lésbicas a imitação dos papéis estereotipados de ´sapatão´ e ´lady´, ´ativo´ e ´passivo´, ‘caçar´, sadomasoquismo e o mundo violento e autodestrutivo dos bares ´gays´.”); PASTERNACK, Judith. The Strangest Bedfellows: Lesbian Feminism and the Sexual Revolution. WomanNews, outubro de 1983; RICH, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence. In: SNITOW, Ann; STANSELL, Christine e THOMPSON, Sharon. (eds.) Powers of Desire: The Politics of Sexuality. Nova York, Monthly Review Press, 1983. 70 PENELOPE, Julia. And Now For the Really Hard Questions. Op. cit. 58 Gayle S. Rubin Da mesma forma, as minorias eróticas, como as sadomasoquistas e os transexuais por exemplo, têm tanta tendência a apresentar atitudes sexistas quanto quaisquer outros grupos sociais. Mas afirmar que eles são intrinsecamente anti-feministas é pura fantasia. Boa parte da literatura feminista atual atribui a opressão das mulheres às representações realistas de sexo, à prostituição, à educação sexual, ao sadomasoquismo, ao homossexualismo masculino e transexualismo. E onde ficam a família, a religião, a educação, a mídia, o Estado, a psiquiatria, a discriminação no mercado de trabalho e a falta de paridade salarial? Em última análise, o chamado discurso feminista recria uma moral sexual muito conservadora. Por mais de um século, travaram-se lutas para determinar o quanto de vergonha, dor e sofrimento se deveria impingir à atividade sexual. A tradição conservadora combateu a pornografia, a prostituição, o homossexualismo, todas as variantes eróticas, a educação sexual, a pesquisa sobre sexo, a aborto e os anticoncepcionais. A tradição oposta, pró-sexo, contou com indivíduos como Havelock Ellis, Magnus Hirschfeld, Alfred Kinsey e Victoria Woodhull, e também com o movimento pela educação sexual, com organizações de prostitutas e homossexuais militantes, com o movimento pelos direitos de reprodução e com organizações como a Sexual Reform League da década de 1960. Esse grupo bastante diversificado de reformadores sexuais, educadores e militantes sexuais misturaram registros sobre temas feministas e sexuais. Mas certamente eles estão mais próximos do espírito do feminismo moderno que os cruzados morais, o movimento pela pureza social e as organizações de combate ao vício. Não obstante, a demonologia sexual feminista atual em geral eleva os cruzados contra o vício a posições de honra, ao mesmo tempo em que condena a tradição mais libertária como sendo anti-feminista. Num ensaio que dá bem uma mostra dessas tendências, Sheila Jeffreys critica Havelock Ellis, Edward Carpenter, Alexandra Kolontai, “que crêem na alegria do sexo de todas as facções políticas possíveis”, e o congresso de 1929 da World 59 Pensando sobre sexo League for Sex Reform, por “por ter contribuído, em larga medida, para a derrota do feminismo militante.”71* O movimento contra a pornografia e seus avatares pretendem falar por todo o feminismo. Felizmente, eles não falam. A liberação sexual foi e continua sendo um objetivo feminista. O movimento das mulheres pode ter produzido alguns dos mais retrógrados pensamentos sobre sexo deste lado do Vaticano. Mas ele produziu também uma estimulante, inovadora e articulada defesa do prazer sexual e da justiça erótica. Esse feminismo “pró-sexo” foi liderado por lésbicas cuja sexualidade não se conforma aos padrões de pureza (principalmente lésbicas sadomasoquistas e lésbicas tipo sapatão e lady), por heterossexuais que não fazem apologia de sua opção sexual e por mulheres que se alinham mais com o feminismo radical clássico que com as celebrações revisionistas da feminilidade atualmente tão comuns.72 Embora as forças contra a JEFFREYS, Sheila. The Spinster and Her Enemies: Sexuality and the Last Wave of Feminism. Scarlet Woman, nº 13, parte 2, julho de 1981, p.26; encontra-se uma formulação mais desenvolvida dessa tendência em PASTERNACK, J. The Strangest Bedfellows... Op. cit. * Nota de 1992. Essas tendências agora estão muito mais articuladas. Alguns dos textos-chave são JEFFREYS, Sheila. The Spinster and Her Enemies: Feminism and Sexuality 1880-1930. Londres, Pandora Press, 1985; Anti-Climax. Londres, The Women´s Press, 1990; COVENEY, Lal; JACKSON, Margaret; JEFFREYS, Sheila; KAY, Leslie e MAHONY, Pat. The Sexuality Papers: Male Sexuality and the Social Control of Women. Londres, Hutchinson, 1984; e LEIHOLDT, Dorchen e RAYMOND, Janice G. The Sexual Liberals and the Attack on Feminism. Nova York, Pergamon, 1990. 72 CALIFIA, Pat. Feminism vs. Sex: A New Conservative Wave. Advocate, 21 de fevereiro, 1980; Among Us, Against Us – The New Puritans. Advocate, 17 de abril de 1980; The Great Kiddy… Op. cit.; A Thorny Issue Splits a Movement… Op. cit.; Sapphistry. Tallahassee, Florida, Naiad, 1980; What Is Gay Liberation. Advocate, 25 de junho de 1981; Feminism and Sadomasochism. Co-Evolution Quarterly, nº 33, primavera de 1981; Response to Dorchen Leidholdt. New Women´s Times, outubro de 1982; Public Sex. Advocate, 30 de setembro, 1982; Doing It Together: Gay Men, Lesbians, and Sex. Advocate, 7 de julho de 1983; Gender-Bending. Advocate, 5 de setembro de 1983; The Sex Industry. Advocate, 13 de outubro de 1983; ENGLISH, Deirdre; HOLLIBAUGH, Amber e RUBIN, Gayle. Talking Sex. Socialist Review, julho-agosto de 1981; Sex Issue. Heresies, nº 12, 1981; HOLLIBAUGH, Amber. The Erotophobic Voice of Women: Building a Movement for the Nineteenth Century. New York Native, 26 de setembro/9 de outubro, 1983; HOLZ, 71 60 Gayle S. Rubin pornografia tenham tentado expulsar do movimento as vozes discordantes, o fato é que o pensamento feminista continua profundamente polarizado.73 Onde quer que haja polarização, há uma lamentável tendência a pensar que a verdade está em algum ponto mediano. Ellen Willis comentou sarcasticamente que “a tendência do feminismo é achar que as mulheres são iguais aos homens, e a dos chauvinistas, que as mulheres são inferiores. A verdade está em algum ponto entre as duas posições.”74O mais recente avanço nas guerras sexuais feministas é o surgimento de um “meio” que procura evitar os perigos do fascismo antipornográfico, de um lado, e um suposto libertarismo do “vale tudo”, de outro.75 Embora seja difícil criticar um ponto de vista ainda não totalmente consolidado, gostaria de chamar a atenção para alguns problemas preliminares.* Maxine. Porn: Turn On or Put Down, Some Thoughts on Sexuality. Processed World, nº 7, primavera de 1983; O’DAIR, Barbara. Sex, Love, and Desire: Feminists Struggle Over the Portrayal of Sex. Alternative Media, primavera de 1983; ORLANDO, Lisa. Bad Girls and “Good” Politics. Village Voice, Literary Supplement, dezembro de 1982; RUSS, Joanna. Being Against Pornography. Thirteenth Moon, vol. VI, nos. 1 e 2, 1982; SAMOIS. What Color is Your Handkerchief, Berkeley, Samois, 1979; SAMOIS. Coming to Power, Boston, Alyson, 1982; SUNDAHL, Deborah. Stripping For a Living. Advocate, 13 de outubro de 1983; WECHSLER, Nancy. Interview with Pat Califia and Gayle Rubin. parte 1, Gay Community News, Book Review, 18 de julho de 1981, e parte II, Gay Community News, 15 de agosto de 1981; WILLIS, Ellen. Beginning to See the Light. Nova York, Knopf, 1981. Para uma excelente síntese da história das mudanças ideológicas do feminismo que afetaram os debates sexuais, ver ECHOLS, Alice. Cultural Feminism: Feminist Capitalism and the Anti-Pornography Movement. Social Text, nº 7, primavera e verão de 1983. 73 ORLANDO, Lisa. Lust at Last Spandex! Invades the Academy. Gay Community News, 15 de maio de 1982; WILLIS, Ellen. Who Is a Feminist? An Open Letter to Robin Morgan. Village Voice, Literary Supplement, dezembro de 1982. 74WILLIS, Ellen. Beginning to See the Light… Op. cit., p.146. Agradeço a Jeanne Bergman por me chamar a atenção para esta citação. 75Ver, por exemplo, BENJAMIN, Jessica. Master and Slave: The Fantasy of Erotic Domination. In: SNITOW, A. et alii (eds.) Powers of Desire... Op. cit., p.297; e RICH, B. Ruby. resenha de Powers of Desire. These Times, 16-22 de novembro de 1983. *Nota de 1992. A denominação “feminismo libertário” ou “libertarismo sexual continua a ser aplicada às radicais sexo-feministas. A denominação é errônea e enganosa. É verdade que o Libertarian Party é contra o controle, pelo Estado, do 61 Pensando sobre sexo Essa posição intermediária que está surgindo baseia-se numa caracterização falseada dos pólos do debate, que considera ambos os lados como igualmente extremistas. Segundo B. Ruby Rich, “o desejo de uma linguagem da sexualidade levou as feministas a territórios (pornografia, sadomasoquismo) por demais estreitos ou determinados para propiciarem uma discussão proveitosa. O debate descambou para a briga.”76 De fato, as lutas entre a Women Against Pornography (WAP) e as sadomasoquistas lésbicas pareciam conflitos de gangues. Mas o principal responsável por isso é o movimento contra a pornografia, e sua recusa a estabelecer uma discussão sóbria. As lésbicas sadomasoquistas foram obrigadas a comportamento sexual consensual. Concordamos quanto ao caráter pernicioso da atuação do Estado nessa área, e considero a proposta libertária de revogação de boa parte da legislação sobre sexo superior às propostas de quaisquer outras facções políticas. Mas a concordância fica por aí. As radicais sexo-feministas baseiam-se em conceitos de desigualdades sistêmicas e socialmente estruturadas e em poderes diferenciais. Nesta análise, a regulamentação do sexo pelo Estado é parte de um sistema mais complexo de opressão que ela reflete, reforça e influencia. O Estado também desenvolve suas próprias estruturas de interesses, poderes e recursos na regulamentação do sexo. Como explicamos neste ensaio e em outros textos, o conceito de consentimento tem papel diferente, na legislação sobre sexo, do que tem no contrato social ou num acordo salarial. O caráter, a extensão e a importância da intervenção e regulamentação do sexo por parte do Estado devem ser analisados no contexto, e não podem ser equiparados grosseiramente a análises derivadas da teoria econômica. Determinadas liberdades básicas que são ponto pacífico em outros setores da vida não existem no campo do sexo. As que existem não permitem o acesso, em condições de igualdade, às diferentes populações sexuais e são aplicadas de forma desigual a várias atividades sexuais. As pessoas não são chamadas de “libertárias” por lutar pelas liberdades básicas e por igualdade jurídica para grupos étnicos ou raciais; não vejo nenhuma razão para negar a certos grupos sexuais mesmo os parcos benefícios das sociedades capitalistas liberais. Duvido que alguém quisesse chamar Marx de liberal ou libertário, mas ele considerava o capitalismo um sistema social revolucionário, embora limitado. “Daí a grande influência civilizadora do capital, a criação de um estágio da sociedade comparado com o qual todos os anteriores se nos afiguram como mero progresso local...” (MARX, Karl. The Grundisse, Nova York, Harper Torchbooks, 1971, pp.9495). Deixar de apoiar as liberdades sexuais democráticas não vai levar ao socialismo; só contribui para manter algo mais próximo do feudalismo. 76 RICH, B. R. resenha de Powers of Desire. Op. cit., p.76. 62 Gayle S. Rubin lutar para manter seu grupo no movimento e para defender-se de calúnias. Nenhuma porta-voz autorizada das sadomasoquistas lésbicas postulou uma supremacia S/M, nem defendeu a idéia de que todos devem ser sadomasoquistas. Além de se ocuparem da própria defesa, as lésbicas sadomasoquistas exigiram que se levasse em conta a diversidade sexual e que se fizesse uma discussão mais aberta da sexualidade.77 Tentar encontrar um meio termo entre a WAP e Samois é como dizer que a verdade sobre a homossexualidade está entre as posições da Maioria Moral e as do movimento gay. Na vida política, é fácil demais marginalizar os radicais e tentar ganhar adesões a uma posição moderada tachando os outros de extremistas. Durante anos, os liberais fizeram isso com os comunistas. Os radicais sexuais abriram os debates sobre sexo. É uma vergonha negar sua contribuição, falsear suas posições e acentuar o estigma que pesa sobre eles. Ao contrário das feministas culturais, que querem simplesmente expulsar os dissidentes sexuais, os moderados sexuais pretendem defender os direitos políticos dos nãoconformistas eróticos. Não obstante, essa defesa de direitos políticos está ligada a um sistema de condescendência ideológica.* O debate tem dois pontos principais. O primeiro é a alegação de que os dissidentes sexuais não prestaram atenção bastante ao significado, às fontes ou à construção histórica de sua sexualidade. Essa ênfase no significado parece funcionar como funcionou a questão da etiologia nas discussões sobre a homossexualidade. Isto é, a homossexualidade, o sadomasoquismo, a prostituição ou o amor por meninos são considerados como misteriosos e SAMOIS. What Color Is... Op. cit.; e Coming To Power… Op. cit.; Califia, Pat. Feminism and Sadomasochism... Op. cit.; e Sapphistry... Op. cit. * Nota de 1992. Um exemplo recente de condescendência ideológica é o seguinte: “Os sadomasoquistas não são inteiramente ‘desprovidos de valores’, mas eles se mostraram refratários a quaisquer valores que limitassem sua liberdade e que fossem além do mero julgamento por parte de um terceiro; e nisto eles revelam sua incompreensão das exigências da vida em comum.” Fonte: Identity Politics: Lesbian Feminism and the Limits of Community, Filadélfia, Temple University Press, 1989, p.133. 77 63 Pensando sobre sexo problemáticos, diferentemente do que acontece com sexualidades mais respeitáveis. A busca de uma causa é a busca de algo que poderia mudar as coisas de tal forma que esses erotismos “problemáticos” simplesmente deixariam de existir. Os militantes sexuais responderam a essas formulações que, embora a questão da etiologia ou da causa tenha um interesse intelectual, não é um item prioritário de seu programa político e que, além disso, privilegiar esse tipo de questão constitui um retrocesso político. O segundo ponto da posição “moderada” se concentra em questões de consentimento. Os sexuais radicais de todos os tipos reivindicaram a legitimação social e jurídica do comportamento sexual consensual. As feministas os criticaram por abusar de artifícios em questões como “os limites do consentimento” e “restrições estruturais” ao consentimento.78 Embora existam problemas graves no discurso político do consentimento, e embora haja restrições estruturais à escolha sexual, essa crítica foi usada sistematicamente de forma incorreta nos debates sobre sexo. Ela não leva em conta o conteúdo semântico muito específico que o consentimento tem na legislação e na prática sexual. Como disse anteriormente, boa parte da legislação sobre sexo não faz a distinção entre comportamento consensual e sob coação. Somente a lei sobre o estupro faz essa distinção. A lei do estupro baseia-se no pressuposto, em minha opinião correto, de que a atividade heterossexual pode ser escolhida livremente ou imposta pela força. As pessoas têm o direito de se entregar a práticas heterossexuais desde que isso não contrarie outras determinações legais e desde que isso seja agradável para ambas as partes. Não é isso que acontece na maioria dos outros atos sexuais. As leis sobre a sodomia, como disse acima, baseiam-se na idéia de que os atos proibidos são “um abominável e detestável crime contra a natureza.” A criminalidade é intrínseca aos próprios atos, independentemente dos desejos dos participantes. “Ao contrário do que acontece com o estupro, a sodomia ou um outro ato sexual não 78ORLANDO, Lisa. Power Plays: Coming To Terms Whith Lesbian S/M. Village Voice, 26 de julho de 1983; WILSON, Elizabeth. The Context of “Between Pleasure and Danger”: The Barnard Conference on Sexuality. Feminist Review, nº 13, primavera de 1983, principalmente pp.35-41. 64 Gayle S. Rubin natural ou pervertido pode ocorrer entre duas pessoas de comum acordo e, independentemente de quem é o agressor, os dois devem ser processados.”79 Antes da aprovação, na Califórnia, do estatuto sobre o consentimento entre adultos, em 1976, amantes lésbicas podiam ser processadas por praticar cópula oral. Se ambas as parceiras fossem legalmente responsáveis, ambas recebiam a mesma punição.80 As leis sobre o incesto entre adultos funcionam da mesma forma. Ao contrário do que supõe a mitologia popular, essas leis têm pouco a ver com a proteção de crianças contra a agressão sexual da parte de parentes próximos. Essas leis proíbem o casamento ou a relação sexual entre adultos que são parentes próximos. Os processos são raros, mas dois vieram a público recentemente. Em 1979, um fuzileiro naval de 19 anos veio a conhecer sua mãe, de 42 anos, de quem fora separado desde o nascimento. Eles se apaixonaram e se casaram. Os dois foram processados e considerados culpados de incesto, o que, pelas leis da Virgínia, pode levar a até dez anos de cadeia. Durante o julgamento o fuzileiro afirmou: “Eu a amo muito. Acho que duas pessoas que se amam deviam poder viver juntas.”81 Em outro caso, um irmão e uma irmã que tinham sido criados separados se conheceram e decidiram casar-se. Eles foram presos e acusados de incesto. A pena foi suspensa, sob a condição de não voltarem a viver juntos como marido e mulher. Se eles não tivessem aceitado, teriam que cumprir vinte anos de prisão.82 Num famoso caso de sadomasoquismo, um homem foi declarado culpado de agressão grave por ter chicoteado uma pessoa numa sessão de sadomasoquismo. Nenhuma vítima prestou queixa. As sessões tinham sido filmadas e ele foi acusado com base no Taylor v. State, 214 Md. 156, 165, 133 A. 2d 414, 418. Essa citação é de uma opinião dissidente, mas consta da lei vigente. 80BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp 163-5. Ver nota 55 acima. 81Marine and Mom Guilty of Incest. San Francisco Chronicle, 16 de novembro de 1979, p.16. 82NORTON, C. Sex in América. Op. cit., p.18. 79 65 Pensando sobre sexo filme. O homem recorreu da decisão judicial argumentando que participara de um encontro sexual consensual e que não agredira ninguém. O tribunal não aceitou o recurso, afirmando que uma pessoa não pode consentir em ser agredida “exceto numa situação que normalmente envolve contato físico ou pancadas que são normais em esportes como futebol, boxe ou lutas em geral.”83 O tribunal acrescentou que “o consentimento de uma pessoa sem capacidade jurídica para tal, como no caso de uma criança ou de um louco, é inválido” e que “Todo mundo sabe que uma pessoa normal e em pleno gozo de suas faculdades mentais não consente livremente em ser submetida a agressões que lhe causem grandes danos físicos.”84 Assim, qualquer um que consinta em ser chicoteado deve ser considerado non compos mentis e legalmente incapaz de consentimento. No sexo sadomasoquista em geral se usa muito menos força que na média dos jogos de futebol, e os danos físicos que dele resultam são muito menores que os provocados pela maioria dos esportes. Mas para os tribunais os jogadores de futebol são normais, e os masoquistas não. As leis sobre sodomia, as leis sobre incesto entre adultos e as interpretações jurídicas como as que comentamos acima interferem no comportamento consensual e punem legalmente. No que tange à lei, o consentimento é um privilégio de que gozam apenas aqueles que se situam nos patamares mais altos da hierarquia dos comportamento sexuais aceitos. Os que pertencem a um status sexual mais baixo, não gozam desse direito. Além disso, sanções econômicas, pressões da família, estigma erótico, discriminação social, ideologia negativa e escassez de informações sobre o comportamento erótico – tudo isso torna mais difícil, para as pessoas, a opção por comportamentos sexuais não convencionais. Não há dúvida de que existem certas restrições de caráter estrutural que impedem a livre escolha sexual, mas elas não atuam no sentido de coagir alguém a se tornar um pervertido. Ao contrário, elas atuam no sentido de obrigar a todos à normalidade. 83People 84 v. Samuels, 250 Cal. App. 2d 501, 513, 58 Cal. Rptr. 439, 447 (1967). People v. Samuels, 250 Cal. App. 2d em 513-514, 58 Cal. Rptr. At 447. 66 Gayle S. Rubin A “teoria da lavagem cerebral” explica a diversidade erótica partindo do pressuposto de que alguns atos sexuais são tão repulsivos que ninguém desejaria praticá-los. Portanto – continua o raciocínio – se alguém os pratica deve ter sido forçado ou enganado. Mesmo a teoria sexual construtivista foi obrigada a explicar por que indivíduos racionais têm um comportamento sexual não convencional. Outro ponto de vista ainda não totalmente estruturado usa as idéias de Foucault e de Weeks para concluir que as “perversões” são um aspecto detestável da construção da sexualidade moderna.85 Há ainda outra versão da idéia de que os dissidentes sexuais são vítimas de sutis maquinações do sistema social. Weeks e Foucault não aceitariam essas interpretações, uma vez que suas teorias consideram toda sexualidade como construída, tanto a convencional como a não convencional. A psicologia é o último recurso daqueles que se recusam a admitir que os dissidentes sexuais são tão conscientes e livres quanto quaisquer outros grupos de pessoas que praticam sexo. Se os que praticam formas não convencionais de sexo não estão sendo vítimas das manipulações do sistema social, então talvez a causa de suas escolhas incompreensíveis devam ser procuradas numa infância infeliz, numa socialização imperfeita ou numa falha na formação da identidade. Em seu ensaio sobre a dominação erótica, Jessica Benjamin recorre à psicanálise e à filosofia para explicar por que o que ela chama de “sadomasoquismo” é algo alienado, distorcido, insatisfatório, sem vigor, sem próposito, e uma tentativa de “compensar um primeiro esforço de diferenciação frustrado.”86 Esse ensaio não usa os meios mais comuns de depreciar o erotismo dissidente, mas lhe atribui uma inferioridade psicofilosófica. Um crítico chegou a afirmar que a tese de Benjamin mostra que o 85 VALVERDE, Mariana. Feminism Meets Fist-Fucking: Getting Lost in Lesbian S & M. Body Politic, fevereiro de 1980; WILSON, P. The Man They Called A Monster. Op. cit., p.38. 86 BENJAMIN, J. Master and Slave… Op. cit., p.292, mas ver também pp.286, 291-7. 67 Pensando sobre sexo sadomasoquismo não passa de “uma repetição obsessiva da luta infantil pelo poder.”87 A atitude de quem defende os direitos políticos dos pervertidos mas que procura entender sua sexualidade “alienada” é certamente preferível aos banhos de sangue no estilo WAP. Mas, em sua maioria, os moderados sexuais ainda não conseguiram vencer o mal-estar que lhes causam as opções sexuais diferentes das suas. Não se pode redimir o chauvinismo erótico travestindo-o numa teoria marxista construtivista ou valendo-se de uma psicologia barata e retrógrada. Qualquer que seja a posição feminista em relação sexo – direita, esquerda ou centro – que termine por se impor sobre as demais, a existência de uma discussão tão rica constitui uma prova de que o movimento feminista sempre haverá de ser uma fonte de reflexões interessantes sobre o assunto. Não obstante, discordo da idéia de que o feminismo é ou deveria ser o espaço privilegiado para uma teoria da sexualidade. O feminismo é uma teoria da opressão de gênero. Concluir que isso a faz uma teoria da opressão sexual é mostrar-se incapaz de fazer a distinção entre gênero, de um lado, e desejo erótico, de outro. Em inglês a palavra sex tem dois significados muito diferentes. Ela significa gênero e identidade de gênero, como em “the female sex” [o sexo feminino] ou “the male sex” [o sexo masculino]. Mas o termo refere-se também a atividade sexual, sensualidade, relações sexuais e excitação, como na frase “to have sex” [fazer sexo]. Essa mistura semântica reflete o pressuposto cultural de que a sexualidade pode ser reduzida à relação sexual e que é uma função das relações entre mulheres e homens. A fusão cultural de gênero com sexualidade deu origem à idéia de se pode derivar uma teoria da sexualidade de uma teoria do gênero. Num ensaio anterior, “The Traffic in Women”, usei o conceito de um sistema de sexo/gênero definido como “uma série de acordos pelos quais a sociedade transforma a sexualidade biológica em EHRENREICH, Barbara. What Is This Thing Called Sex. Nation, 24 de setembro de 1983, p.247. 87 68 Gayle S. Rubin produtos da atividade humana.”88 Cheguei a afirmar que “O sexo tal como o conhecemos – identidade de gênero, desejo e fantasia sexual, conceitos de infância – é ele próprio um produto social.”89 Naquele ensaio eu não fazia a distinção entre sensualidade e gênero, considerando a ambos como modalidades do mesmo processo social subjacente. “The Traffic in Women” foi inspirado pela literatura sobre sistemas sociais de organização baseados no parentesco. Àquela época, parecia-me que gênero e desejo confundiam-se sistematicamente nessas formações sociais. No que se refere às relações entre sexo e gênero nas organizações tribais, essa observação pode, ou não, ser válida. Mas com certeza não é uma formulação adequada à sexualidade nas sociedades industriais do ocidente. Como observou Foucault, um sistema de sexualidade se originou das primeiras formas de parentesco e adquiriu grande autonomia. A partir do século XVIII, principalmente, as sociedades ocidentais criaram e desenvolveram um novo aparato que se sobrepôs ao que existia antes e que, sem suplantá-lo completamente, contribuiu para diminuir sua importância. Estou falando do desenvolvimento da sexualidade... No primeiro [parentesco], o que importa é a relação entre os parceiros e determinadas normas; a segunda [sexualidade] preocupa-se com as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres e a natureza das impressões.90 O desenvolvimento de um sistema sexual teve lugar num contexto de relações de gênero. Parte da moderna ideologia considera que a sensualidade é o território do homem, e a pureza, o das mulheres. Não é por acaso que a pornografia e as perversões foram consideradas como parte do domínio masculino. Na indústria do sexo, as mulheres foram excluídas de boa parte do 88 RUBIN, Gayle. The Traffic in Women. In: REITER, Rayna R. (ed.) Toward an Anthropology of Women. Nova York, Monthly Review Press, 1975, p.159. 89 ID., IB., p.166. 90 FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op. cit., p.106. 69 Pensando sobre sexo consumo e da produção, sendo permitido que participassem principalmente como trabalhadoras. Para participar das “perversões”, as mulheres tinham que superar sérias limitações em sua mobilidade social, em seus recursos econômicos, e em suas liberdades sexuais. O gênero afeta o funcionamento do sistema sexual, e o sistema sexual tem manifestações específicas de gênero. Mas embora sexo e gênero estejam relacionados, eles não são a mesma coisa e constituem a base de dois diferentes campos de prática social. Diferentemente do que afirmei em “The Traffic in Women”, agora afirmo que é essencial separar, em termos analíticos, gênero e sexualidade, para pensar de forma mais acurada em sua existência social separada. Isso vai contra o espírito de boa parte do pensamento feminista contemporâneo, que considera a sexualidade como algo que decorre do gênero. Por exemplo, a ideologia feminista lésbica analisou a opressão das lésbicas principalmente em termos da opressão das mulheres. Contudo, as lésbicas também são oprimidas enquanto praticantes de uma modalidade sexual não convencional e enquanto pervertidas, em decorrência da estratificação sexual, e não de gênero. Embora seja doloroso para muitas lésbicas pensar sobre isso, a verdade é que elas partilharam muitos traços sociológicos e sofreram muitas das punições sociais impostas aos gays, sadomasoquistas, travestis e prostitutas. Catherine MacKinnon fez a mais categórica tentativa de incorporar a sexualidade ao âmbito do pensamento feminista. Segundo MacKinnon, A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo... a configuração, a orientação e a expressão da sexualidade organiza a sociedade em dois sexos, homens e mulheres.91 91 MACKINNON, Catherine. Feminism, Marxism, Method and the State: An Agenda for Theory. Signs, vol. 7, nº 3, primavera de 1982, pp.515-16. 70 Gayle S. Rubin Por sua vez, a estratégia de análise baseia-se numa decisão de “usar sexo e gênero de forma relativamente intercambiável.”92 É essa mescla das definições que eu pretendo contestar.* Há uma analogia reveladora na história da diferenciação do pensamento feminista contemporâneo em relação ao marxismo. O marxismo é provavelmente o mais simples e o mais poderoso sistema conceitual que existe para analisar a desigualdade social. Mas as tentativas de fazer do marxismo o único sistema de análise das desigualdades sociais fracassaram. O marxismo é mais efetivo nos setores da vida social para os quais ele foi desenvolvido originalmente – as relações de classe sob o capitalismo. Nos primórdios do movimento contemporâneo das mulheres, deu-se um conflito sobre a questão da aplicabilidade do marxismo à estratificação de gênero. Como a teoria marxista é um instrumento relativamente poderoso, ela de fato detecta aspectos importantes e interessantes de opressão de gênero. Ela funciona melhor para os aspectos de gênero mais estreitamente relacionados às questões de classe e de organização do trabalho. Os temas mais específicos da estrutura social de gênero estão fora do alcance da análise marxista. A relação entre o feminismo e uma teoria radical da opressão sexual é semelhante. Os instrumentos conceituais do feminismo foram desenvolvidos para identificar e analisar hierarquias baseadas em gênero. Na medida em que estas coincidem com as estratificações eróticas, a teoria feminista tem um certo poder de elucidação. Mas à medida que os temas se afastam de gênero e se aproximam da sexualidade, a análise feminista vai se tornando mais equívoca e muitas vezes irrelevante. O pensamento feminista simplesmente carece de ângulos de visão que abranjam por completo a organização da sexualidade. O critério de relevância no pensamento feminista não lhe permite ver ou avaliar relações de poder cruciais no campo da sexualidade. 92 ID. Feminism, Marxism, Method and the State: An Agenda for Theory. Signs, vol. 8, nº 4, verão de 1983, p.635. * Nota de 1992. A obra de MacKinnon continua a crescer: Toward a Feminist Theory of the State, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1989; Feminism Unmodified Discourses on Life and Law, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1987. 71 Pensando sobre sexo Em longo prazo, a crítica feminista da hierarquia de gênero pode se incorporar a uma teria radical do sexo, e a crítica da opressão sexual pode enriquecer o feminismo. Mas é preciso desenvolver uma teoria autônoma e uma política específica da sexualidade. É um erro substituir o marxismo pelo feminismo como a última palavra em teoria social. O feminismo, tanto como o marxismo, não pode oferecer uma análise definitiva e completa de toda desigualdade social. Tampouco o feminismo é a teoria residual que pode dar conta de tudo aquilo de que Marx não se ocupou. Essas ferramentas críticas foram desenvolvidas para lidar com áreas específicas da atividade social. Outras áreas da vida social, suas formas se poder e seus modos específicos de opressão exigem seus próprios instrumentos conceituais. Neste ensaio, defendi um pluralismo teórico e sexual. VII - Conclusão ...esses prazeres físicos...(Colette93) que chamamos levianamente de Assim como o gênero, a sexualidade é política. É organizada em sistemas de poder, que recompensam e estimulam alguns indivíduos e atividades, enquanto punem e reprimem outros. Como a organização capitalista do trabalho e sua distribuição de recompensas e poderes, o sistema sexual moderno foi objeto de luta política desde que surgiu e se desenvolveu. Mas se as disputas entre trabalho e capital são mistificadas, os conflitos sexuais são completamente camuflados. A reforma jurídica que ocorreu no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX foi uma resposta ao surgimento do sistema erótico moderno. Durante aquele período, formaram-se novas comunidades eróticas. Tornou-se mais fácil que em qualquer outra época ser um homossexual masculino ou uma lésbica. A arte 93 COLETTE. The Ripening Seed. traduzido e citado em ALDERFER, Hannah; JAKER, Beth e NELSON, Marybeth. Diary of a Conference on Sexuality. Nova York, Faculty Press, 1982, p.72. 72 Gayle S. Rubin erótica de massa se tornou acessível, aumentaram as possibilidades para o comércio sexual. Formaram-se as primeiras organizações de defesa dos direitos homossexuais, e formularam-se as primeiras análises da opressão sexual.94 A repressão da década de 1950 foi, em certa medida, um retrocesso para a expansão das comunidades e das possibilidades sexuais que se verificou durante a Segunda Guerra Mundial.95 Na década de 1950 surgiram as organizações de defesa dos direitos gays, publicaram-se os relatórios Kinsey, e a literatura lésbica floresceu. A década de 1950 foi um período de formação e ao mesmo tempo de repressão. A atual contra-ofensiva da direita sexual é, em parte, uma reação à liberação sexual da década de 1960 e do início da década de 1970. Além disso, ela acarretou uma coalizão unificada e autoconsciente dos radicais sexuais. Em certo sentido, o que está acontecendo agora é o surgimento de um novo movimento sexual, preocupado com novos temas e em busca de uma nova base teórica. As lutas sexuais que se travaram nas ruas foram em parte responsáveis por um novo foco na sexualidade. Mais uma vez, o sistema sexual está mudando e estamos vendo muitos sintomas dessa mudança. Na cultura ocidental, o sexo é encarado com excessiva seriedade. Uma pessoa não é considerada imoral, não é mandada para prisão e não é expulsa da própria família por gostar de pratos apimentados. Mas um indivíduo pode sofrer tudo isso e ainda mais por ter fixação erótica em sapatos. Afinal de contas, que importância social pode ter o fato de uma pessoa gostar de se masturbar diante de um sapato? Pode não ser uma coisa consensual mas, assim como não pedimos autorização aos sapatos para calçá-los, não me parece necessário conseguir autorização para usá-los sexualmente. LAURITSEN, John e THORSTAD, David. The Early Homosexual Rights Movement in Germany, Nova York, Times Change Press, 1974. 95 D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., BÉRUBÉ, A. Behind the Spectre of San Francisco. Op. cit.; e Marching to a Different… Op. cit. 94 73 Pensando sobre sexo Se por um lado o sexo é visto com excessiva seriedade, a perseguição sexual não é vista com seriedade bastante. Maltratamse de forma sistemática indivíduos e comunidades com base no gosto ou no comportamento erótico. Há sérias punições contra aqueles que pertencem às várias castas profissionais sexuais. Negase a sexualidade dos jovens e sempre se trata a sexualidade adulta como uma espécie de lixo nuclear, e a representação realista do sexo se faz em meio a um charco de circunlóquios jurídicos e sociais. Grupos específicos sofrem o impacto do atual sistema de poder erótico, mas sua perseguição sustenta um sistema que afeta todo mundo. A década de 1980 já fora uma época de grande sofrimento sexual. Foi também uma época de efervescência e de novas perspectivas. Cabe a todos nós procurar evitar mais ações bárbaras e estimular a criatividade erótica. Aqueles que se consideram progressistas devem analisar as próprias preocupações, atualizar sua educação sexual e tomar conhecimento da existência e do funcionamento da hierarquia sexual. É tempo de reconhecer as dimensões políticas da vida erótica. Agradecimentos É sempre com grande prazer que, no curso de um trabalho, chego ao momento de agradecer àqueles que contribuíram para a sua elaboração. Muitas das minhas idéias sobre a formação de comunidades sexuais me ocorreram pela primeira vez durante um curso ministrado por Charles Tilly sobre “A Urbanização da Europa de 1500 a 1900.” Poucos cursos foram capazes de despertar tanto entusiasmo, de trazer tanto estímulo e riqueza conceitual como esse de Charles Tilly. Daniel Tsang me alertou para a importância dos acontecimentos de 1977 e me ensinou a prestar atenção à legislação sobre sexo. Pat Califia fez que eu aprofundasse minha análise da variedade sexual humana e me ensinou a respeitar o difamado campo da pesquisa e da educação sexual. Jeff Escoffier partilhou sua grande compreensão e conhecimento da história e da sociologia gay, e eu aproveitei, de modo especial, seu conhecimento da economia gay. O trabalho de Allan Bérubé, ainda em curso, sobre a 74 Gayle S. Rubin história gay me permitiu refletir com maior clareza sobre a dinâmica da opressão sexual. As conversas com Ellen Dubois, Amber Hollibaugh, Mary Ryan, Judy Stacey, Kay Trimberger, Rayna Rapp e Martha Vicinus influenciaram minhas reflexões. Sou muito grata a Cynthia Astuto por seus pareceres e pesquisas na área jurídica, e a David Sachs, extraordinário livreiro, por me apresentar os folhetos da extrema-direita sobre sexo. Sou grata a Allan Bérubé, Ralph Bruno, Estelle Freedman, Kent Gerard, Barbara Kerr, Michael Shively, Carole Vance, Bill Walker e Judy Walkowitz por referências várias e informações factuais. Não tenho como agradecer às pessoas que leram e comentaram as várias versões deste trabalho: Jeanne Bergman, Sally Binford, Lynn Eden, Laura Engelstein, Jeff Escoffier, Carole Vance e Ellen Willis. Além de editar o texto, Mark Leger desempenhou funções heróicas de secretariado, preparando os originais. Marybeth Nelson auxiliou bastante nos problemas gráficos que surgiram de última hora. Agradeço especialmente a dois amigos cuja atenção aliviou um pouco a tensão do ato de escrever. E.S. me deu apoio logístico e me orientou nos momentos em que sofri brancos homéricos no trabalho de redação. As muitas atenções de Cynthia Astuto e seu apoio incansável me permitiram continuar trabalhando num ritmo absurdo por muitas semanas. Nenhuma dessas pessoas deve ser responsabilizada por minhas opiniões, mas sou grata a todas elas pela inspiração, informação e ajuda. Uma nota sobre as definições Em todo este ensaio, usei termos como homossexual, trabalhador do sexo e pervertido. Uso “homossexual” referindo-me tanto a homens como a mulheres. Quando quero ser mais precisa, uso termos como “lésbica” ou “homossexual masculino”. O termo “trabalhador(a) do sexo” pretende ser mais abrangente que “prostituta”, para englobar os muitos trabalhos da indústria do sexo. Ele inclui dançarinas eróticas, strippers, modelos pornô, mulheres nuas que falam com clientes através de um circuito telefônico interno e que podem ser vistas, mas não tocadas, 75 Pensando sobre sexo profissionais do tele-sexo e vários outros empregados do negócio do sexo como recepcionistas, zeladoras e encarregadas de atrair o público em altos brados. Obviamente, o termo também se aplica às prostitutas, michês e “modelos masculinos”. Eu uso o termo “pervertido” para designar todas as orientações sexuais estigmatizadas. Ele costumava se aplicar também ao homossexualismo masculino e feminino, mas, como estes se tornaram menos infamantes, agora se aplica cada vez mais a outros “desvios”. Termos como “pervertido”, e “desviantes” em geral são usados com uma conotação de reprovação, repulsa e desagrado. Uso esses termos em sentido denotativo, sem nenhuma intenção de desaprovação de minha parte. Pós-escrito Terminei de escrever “Thinking Sex” no início da primavera de 1984. Para esta nova impressão, corrigi erros tipográficos, fiz algumas pequenas mudanças editoriais e acrescentei várias notas de pé de página. O ensaio continua praticamente o mesmo, mas o trabalho de repassá-lo de ponta a ponta aumentou minha percepção da extensão das mudanças que ocorreram nos contextos social, político e intelectual da sexualidade nos oito anos desde que ele foi escrito. Além disso, o ritmo dessa mudança parece estar se acelerando vertiginosa e exponencialmente. Há apenas quatro meses escrevi um longo posfácio para acompanhar uma outra reimpressão de “Thinking Sex” [KAUFFMAN, Linda. (ed.) American Feminist Thought, 1982-1992. Oxford, Basil Blackwell, no prelo]. Nesse posfácio mostrei como se deram algumas mudanças na política e no pensamento sexual, desde que o ensaio foi publicado. Não preciso retomá-las aqui. Não obstante, desde que enviei o posfácio, em meados de fevereiro, aconteceram vários avanços que ilustram o que está em jogo nos conflitos relacionados a sexo, e a forma vertiginosamente rápida como ocorrem. Três áreas em que se desenvolve a atividade crítica são: a expressão de idéias antipornográficas em lei, a crescente criminalização da representação e da prática sadomasoquista, e 76 Gayle S. Rubin número assustador de espancamentos de gays que aconteceu nas eleições norte-americanas de 1992. No final de fevereiro, a Suprema Corte do Canadá apoiou a legislação sobre obscenidade numa decisão (Butler v. Her Majesty the Queen) que redefiniu a obscenidade seguindo a linha defendida, desde o final da década de 1970, pelas feministas que lutam contra a pornografia.96 1 A justiça canadense adotou uma linguagem semelhante às definições dos assim chamados “regulamentos dos direitos civis antipornográficos” MackKinnon/Dworkin. No Canadá, a definição jurídica de obscenidade agora se baseia, em parte, na descrição de comportamentos sexuais considerados “desumanos e degradantes”. Essa definição foi rejeitada pela Suprema Corte dos Estados Unidos por contrariar a Primeira Emenda. O Canadá não tem nada equivalente à Carta de Direitos, e tem menos proteções legais para o direito de expressão política. Embora a situação jurídica do Canadá seja diferente da dos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, cada dia mais dominada pelos direitistas, pode se deixar influenciar pela decisão canadense da próxima vez que for reexaminar os termos da lei referentes ao mesmo assunto. A lógica do Projeto de lei 1521 (Lei de Indenização a Vítimas de Pornografia) baseia-se nos mesmos pressupostos errôneos da decisão Butler. O projeto passou na Comissão Jurídica do Senado no final de junho e agora vai a plenário. Além disso, a decisão Butler, ao que parece, foi facilitada pela lenta acumulação de precedentes jurídicos em casos de menor importância. Nos Estados Unidos, os ativistas contra a pornografia e os procuradores estão buscando construir um corpus semelhante de precedentes a partir de casos que à primeira vista pouco têm a ver com a lei contra a obscenidade. Feministas que lutam contra a censura e advogados defensores dos direitos civis devem estar atentos a uma certa linguagem que trata a pornografia como algo intrinsecamente “nocivo” e “anti-mulher” em casos como o de 96 LEVIN, Tamar. Canada Court Says Pornography Harms Women and Can Be Barred. New York Times, 28 de fevereiro de 1992, p.1; LANDSBERG, Michele. Canada: Antipornography Break-through in the Law. Ms., maio/junho de 1992, pp.14-15. 77 Pensando sobre sexo assédio sexual, por exemplo (a pornografia, como as latas de CocaCola ou grande número de outros objetos, pode de fato ser usada para o assédio sexual; mas é muitíssimo mais fácil considerar a pornografia como nociva, independentemente do contexto, que fazer o mesmo em relação a objetos menos demonizados). Muitos ativistas gays do Canadá advertiram que as novas definições de obscenidade iriam ser usadas de forma parcial contra as mídias gay e lésbica. A Glad Day Books, a livraria gay e lésbica de Toronto, sofreu durante uma década a intervenção da polícia, e confiscos na alfândega impediram a circulação de muitas publicações gays e lésbicas no Canadá. Estimulada pelas definições Butler, a polícia invadiu a Glad Day em 30 de abril e acusou o gerente da livraria de violar a lei contra a obscenidade por vender Bad Attitude, uma revista erótica lésbica americana que mostrava cenas de bondage e penetração. Em 4 de maio o proprietário e a empresa também foram acusados de obscenidade.97 2 Essa nova definição de obscenidade torna os materiais pornográficos sadomasoquistas totalmente ilegais no Canadá, uma vez que estes se aproximam da categoria de pornografia “desumana e degradante”.98 3 Além disso, os materiais sadomasoquistas dos homossexuais masculinos parecem ter contribuído de forma decisiva para que a Justiça adotasse os novos critérios de classificação da obscenidade. Um artigo de jornal elogiando a decisão da justiça canadense traz uma afirmação perturbadora, feita por uma das procuradoras vitoriosas. O artigo diz que ela atribui o sucesso de seu pleito ao fato de ter mostrado aos juízes “filmes gays violentos e degradantes. Argumentamos que os homens violentados nesses filmes estavam sendo tratados como mulheres – e os juízes entenderam assim. De outro modo os homens não conseguem se colocar em nosso lugar.”99 4 Se essa 97 SYMS, Shawn e W OFFORD, Carrie. Obscenity Crackdown: Using obscenity laws, U.S. customs begins new tactic of seizing gay magazines; Toronto police raid a gay bookstore. Gay Community News, 22 de maio - 4 de junho de 1992, pp.1,7. 98 DIAZ, Kathryn E. The porn debates reignite. Gay Community News, 6-19 de junho de 1992, pp.3,5. 99 LANDSBERG, M. Canada: Antipornography… Op. cit., p.15, grifo meu. 78 Gayle S. Rubin informação é correta, as feministas fizeram valer o seu ponto de vista usando filmes de homossexuais masculinos sadomasoquistas para incitar a previsível intolerância que o filme despertaria entre homens heterossexuais. Por muitos anos, as feministas que lutavam contra a pornografia exploraram a ignorância e intolerância em relação ao sadomasoquismo, na falta de provas convincentes; explorando a ignorância e a intolerância contra o homossexualismo masculino, elas foram ainda mais fundo na irresponsabilidade política e no oportunismo. Isso é especialmente preocupante, considerando-se que acontece na esteira de uma recente decisão da justiça da Inglaterra e no contexto da ampla campanha anti-gay das eleições americanas de 1992. Na Inglaterra, em 1990, quinze homens foram acusados de vários delitos por se terem entregado a práticas homossexuais sadomasoquistas. Muitos foram condenados, alguns receberam penas de até quatro anos e meio. Nenhum dos participantes fez nenhuma denúncia nem prestou queixa; os homens foram presos depois que a polícia apreendeu as fitas de vídeo, gravadas em casa, que documentavam suas práticas.100 5 Os acusados recorreram da sentença. No final de fevereiro, o tribunal de apelação confirmou as sentenças, argumentando que “a questão do consentimento é irrelevante”, confirmando na prática que atividades sadomasoquistas são ilegais na Inglaterra.101 6 Embora essa decisão se baseie em leis antigas, esse tipo de processo, até então, era extremamente raro. O fato de tantos homossexuais terem sido condenados a penas de prisão tão longas por práticas sexuais consensuais entre adultos é muito mau sinal. jailed for “degrading” sex acts. The Guardian, dezembro de 1990; W OCKNER, Rex. SM Crackdown in London. Bay Area Reporter, 24 de janeiro de 1991, p.16; London S/M Gays Fight Opression. Bay Area Reporter, 21 de fevereiro de 1991, p.20; Taking Liberties. Marxism Today, março de 1991, p.16; FELDWEBEL, T.A. Two Steps Backward. DungeonMaster 43, p.3; SM Gays – SM and the Law. DungeonMaster 43, 4. 101WOODS, Chris. SM sex was a crime, court rules. Capital Gay, 21 de fevereiro de 1992; HAMILTON, Angus. Criminalizing gay sex. The Pink Paper, 23 de fevereiro, 1992, p.9; S & M is illegal in England. Growing Pains, maio de 1992, pp.1-2. 100Sado-masochists 79 Pensando sobre sexo Nos Estados Unidos, a homofobia se tornou uma das mais importantes táticas políticas neste ano de eleições. Em fevereiro, as eleições primárias para a presidência ainda estavam começando a esquentar. À medida que avançava o processo eleitoral, o National Endowment for the Arts – NEA [Fundo Nacional das Artes], a emissora pública dos EUA (PBS), os representantes da homossexualidade, e a própria homossexualidade se tinham tornado os principais alvos da campanha. Fizeram-se críticas às verbas destinadas ao PBS, e o presidente da NEA foi demitido (por acreditar na Constituição e na Carta de Direitos). Do palavreado neo-nazista de Patrick Buchanan à ênfase eufêmica nos “valores da família” de Dan Quayle, ataques abertos ou velados ao homossexualismo foram táticas largamente usadas na campanha eleitoral de 1992.102 7 No Oregon, a organização de direita Oregon Citizens Alliance (OCA) está tentando fazer aprovar dois projetos de emenda à Constituição que iriam definir, em termos legais, o homossexualismo, o sadomasoquismo, a pedofilia, o bestialismo e a necrofilia como “anormais, imorais, não naturais e perversos”. Se aprovada, a nova legislação iria impedir que esses grupos usassem 102Buchanan´s New Anti-Bush Ad Shows Gay Scenes From PBS. San Francisco Chronicle, 27 de fevereiro de 1992, p.A-2; YOACHUM, Susan. Buchanan Calls AIDS “Retribution”. San Francisco Chronicle, 28 de fevereiro de 1992, p.1; KOLBERT, Elizabeth. Bitter G.O.P. Air War Reflects Competitiveness of Georgia Race. New York Times, 28 de fevereiro de 1992, p.A-9; Hitler´s ‘Courage’ Etc. San Francisco Examiner, 8 de março de 1992, p.A-12; Schmitz, DAWN. Riggs, Buchanan battle for public TV. Gay Community News, 5-18 de abril de 1992, p.5; ROBERTS, Jerry. Quayle Blames Riots on Decline of Family Values. San Francisco Chronicle, 20 de maio de 1992, p.1; IRVING, Carl. Quayle: Marriage is a key to ending poverty. San Francisco Examiner, 20 de maio de 1992, p.A-14; GINSBURG, Marsha e HATFIELD, Larry D. “Murphy Brown” furor grows. San Francisco Examiner, 20 de maio de 1992, p.1; ROBERTS, Jerry. Uproar Over Comments By Quayle. San Francisco Chronicle, 21 de maio de 1992, p.1; RAINE, George. Quayle planned attack on “Murphy”. San Francisco Examiner, 21 de maio de 1992, p.A-1; Bush Links BigCity Woes To Collapse of the Family. San Francisco Chronicle, 10 de março de 1992, p.A-4; OSBORN, Torie e SMITH, David M. Are Gays Being Made ‘92´s Hate Symbol?. San Francisco Chronicle, 9 de março de 1992, p.A-21; HERSCHER, Elaine. Gays Under Fire in Presidential Race. San Francisco Chronicle, 26 de junho de 1992, p.1. 80 Gayle S. Rubin os serviços públicos, que gozassem da proteção dos direitos civis garantida às minorias sexuais e proibiria que uma visão positiva desses comportamentos fosse ensinada em qualquer escola, colégio ou universidade financiada pelo Estado. Ainda que a OCA afirme que seu projeto não iria mudar o direito penal ou aumentar as penas contra esses comportamentos, em muitos aspectos ele nos lembra a legislação nacional-socialista. Se aprovados, os projetos da OCA iriam privar as minorias sexuais de direitos iguais de cidadania, torná-las “inferiores” nos termos da lei e das políticas públicas, e fazer que se ensinasse nas instituições públicas de ensino que elas são inferiores; a aprovação levaria também a que se proibisse a divulgação de opiniões ou de provas que contradissessem essa inferioridade expressa pela lei.103 8 Estou me preparando agora para enviar este pós-escrito no começo de julho. Ainda faltam quatro meses para as eleições de 1992. Sabe-se lá que histerias e que medos serão provocados, que hostilidades e antagonismos serão incitados, a que baixos níveis o processo político chegará para manter o poder, a riqueza e os privilégios tão concentrados quanto possível. Quem pode dizer quantas pessoas inocentes serão presas, banidas, importunadas, financeiramente destruídas ou agredidas fisicamente? Quem saberia dizer por que pessoas sabidamente progressistas e bemintencionadas continuam a se omitir na luta contra políticas retrógradas com conseqüências sérias devastadoras? A essa altura eles deviam estar mais bem avisados. Sintonizem seus aparelhos no próximo ano para mais um emocionante episódio. Gayle Rubin San Francisco, 4 de julho de 1992. 103As informações sobre esses projetos baseiam-se em folhetos publicados pelo Right to Privacy PAC e pela Campanha por um Oregon Livre do Ódio, de Portland, Oregon. 81