Ginástica artística competitiva: filosofia dos

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Artigo Original
Ginástica artística competitiva: filosofia dos técnicos
Competitive artistic gymnastics: coaches’ philosophy
Ginástica artística competitiva
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Artigo Original
Ginástica artística competitiva: filosofia dos técnicos
Competitive artistic gymnastics: coaches’ philosophy
Ginástica artística competitiva
Profa. Dra. Myrian Nunomura; Prof. Ms. Paulo Carrara;
Profa. Ms. Michele Carbinatto;
Escola de Educação Física e Esporte
Universidade de São Paulo
Equipe Universitária de Estudos da Ginástica – EUNEGI
Av. Prof. Mello Moraes, 65 Butantã
05508-900 SP/Capital
e-mail: [email protected]
Apoio: Fapesp
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Resumo: O presente estudo é um recorte do projeto original intitulado
“Diagnóstico do Processo de Formação Esportiva da Ginástica Artística no
Brasil”. Um dos temas de discussão é a filosofia dos técnicos que orientam as
categorias de base e que formam os potenciais ginastas para as seleções
nacionais. Entrevistamos 46 técnicos de 29 instituições esportivas do Brasil.
Para a coleta dos depoimentos utilizamos a entrevista semi-estruturada e, para
o tratamento dos dados, a análise de conteúdo proposta por Bardin (2004).
Constatamos que a base filosófica é inconsistente e que, em muitas
instituições, esta se confunde com os próprios objetivos do programa de
treinamento.
Palavras-chave: Ginástica. Esportes. Filosofia.
Abstract: The current study is a piece from the original project entitled
“Diagnosis of the Developing Program of Artistic Gymnastics in Brazil”. Among
others issues, the coach’s philosophy of the developing gymnasts who may be
representative of the national team was discussed. We interviewed 46 coaches
from 29 sports institutions in Brazil. As data collection we used a semistructured interview and for data treatment we adopted the content analysis
method of Bardin (2004). We have found out that there is an inconsistent
philosophical basis, and in many institutions this has been mixed up with the
objectives of the training program.
Key Words: Gymnastics. Sports. Philosophy.
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Introdução
Há poucos questionamentos quando tratamos o Esporte como um
fenômeno social e mundial. Crianças, jovens, adultos, idosos, homens e
mulheres apreciam o Esporte, seja na posição de praticante ou de espectador.
Porém, parece-nos que o esporte de alto rendimento é aquele que prende mais
a atenção das pessoas e da mídia.
O esporte competitivo ainda carece de investigações que apóiem a
atuação dos profissionais, sobretudo o processo de formação esportiva.
Fato é que, não raras vezes, encontramos técnicos que foram atletas de
alto nível e que reproduzem condutas, comportamentos e métodos de
treinamento que eles vivenciaram, ainda que sejam questionáveis e duvidosos
ao olhar da ciência.
Não é nossa intenção discutir a formação esportiva em toda a sua
amplitude e todas as variáveis que interferem nesse processo. Focamos, pois,
sobre a Ginástica Artística (GA) em virtude de nossa experiência e interesse,
pela crescente visibilidade da modalidade na mídia, e pela participação cada
vez mais expressiva de nossos atletas em eventos internacionais.
Assim, ao longo de dois anos foi desenvolvido o projeto intitulado
“Diagnóstico do Processo de Formação Esportiva da Ginástica Artística no
Brasil”, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP). Entrevistamos 46 técnicos que atuam nas categorias de base
da GA e 163 ginastas em 29 instituições. Entre os diversos temas tratados
nesse projeto, destacamos aqui a análise e a discussão da filosofia dos
técnicos que norteia seus objetivos e métodos de trabalho.
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Filosofia do Esporte Contemporâneo
Segundo Haines (1989) é difícil definir o significado do Esporte e dos
motivos que levam as pessoas à prática esportiva, pois os adeptos e as
modalidades são particulares e as razões da participação são diversas. A
autora cita que, na sociedade ocidental, as pessoas são encorajadas a
alcançar a excelência nas suas realizações, em todos os âmbitos da vida, e
que este objetivo não se restringe somente ao Esporte.
Mas, como o talento varia muito entre os indivíduos, estes terão níveis de
desempenho distintos e pouquíssimos atingirão o máximo de sua excelência.
Assim, a excelência é uma referência objetiva de comparação entre as
performances ou produtos.
Haines (1989) ressalta a mudança de valores na sociedade nas últimas
décadas. Na década de 1950 havia grande ênfase sobre a disciplina, a
obediência, a subordinação e sobre o “ajustamento ao molde”. Atualmente, as
pessoas estão mais preocupadas com o prazer e a vida agradável e a
valorização da independência, da criatividade e dos sentimentos de autovalorização e de auto-identidade. E, essas mudanças refletiram, sensivelmente,
sobre o sistema esportivo.
A formação esportiva é um processo que envolve inúmeras decisões,
mudanças constantes, integração do conhecimento de áreas distintas, entre
outros aspectos. Mas, a essência de todo programa esportivo deve estar sobre
o ser humano em formação e desenvolvimento, independentemente de seu
talento e objetivo no esporte.
Em respeito ao desenvolvimento da filosofia de trabalho do técnico,
Haines (1989, p.6) cita três itens que merecem atenção especial, quais sejam:
5
- como o técnico se vê perante a sociedade e, especificamente, como técnico;
- quais conhecimentos são necessários ao cidadão e, especificamente, no
papel de técnico;
- quais são os valores cultivados pelo técnico enquanto cidadão e,
especialmente, técnico.
A autora ressalta a importância de uma base filosófica bem consistente
no programa esportivo pois a filosofia explica os objetivos gerais e as metas do
programa e sobretudo por se tratar de processo de longo prazo.
Reynolds (2005) ressalta que para desenvolver a filosofia de trabalho, o
técnico pode se pautar nos seguintes pontos-chave: conhecer a si próprio, seus
pontos fortes e fracos e aspectos que necessita aprimorar; conhecer seus
princípios e os obstáculos que deverá enfrentar; conhecer seus atletas, sua
personalidade, habilidades e metas, e os motivos pelos quais eles optaram em
atuar no Esporte.
Entre as considerações no desenvolvimento da filosofia do programa,
Haines (1989) cita as tendências e os valores da sociedade; a filosofia da
instituição a qual está vinculada; a filosofia pessoal do técnico; a qualidade do
relacionamento entre técnico e atleta; as ações que os atletas realizarão; o
estilo do técnico e o ambiente social no qual está inserido.
É importante considerar também que as instituições e programas variam
na sua concepção filosófica, nos valores, no planejamento, no sucesso da
instrumentalização, na criatividade e na capacidade em modificar e em
transformar.
E Haines (1989) ressalta que o técnico deve ser flexível e estar aberto
às novas tendências, o que não significa negligenciar valores e idéias devido
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aos preconceitos. Sua filosofia deve estar baseada na sua formação e
educação, e não apenas na cultura e nos preconceitos pessoais, corroborando
com a visão de Reynolds (2005).
De acordo com Candeias (1998), o perfil que se espera de um bom
treinador/profissional para crianças e jovens poderia ser resumido em quatro
itens:
(i) Formação específica: Formação pedagógica e técnica, em processo de
educação continuada, de forma obrigatória e regular, cuja evolução será
relacionada aos resultados pedagógicos e técnicos;
(ii) Respeito por valores éticos e profissionais: Atuação consciente, em serviço
da educação e não para fins de promoção profissional; assumir conseqüências
de sua má conduta profissional; não transportar os problemas pessoais para o
treino e de incompatibilidade com os praticantes; transmitir segurança, asseio,
organização e sentido de justiça;
(iii) Vocação para lidar com crianças: Ser um educador, formar e intervir; ser
paciente; ser firme, mas sem utilizar meios de coerção; respeitar;
(iv) Capacidade de comunicação: Com as crianças, utilizar linguagem
apropriada e esclarecedora; com a família, expor sua filosofia de trabalho,
objetivos, métodos, intenções em relação às competições, o que espera dos
pais, esclarecer sobre eventuais dificuldades e riscos do treino; com os
dirigentes, não ser condescendente em caso de prejuízos às crianças.
Em respeito à atitude do treinador, Campbell (1998) destaca sua
obrigatoriedade ética e moral de nunca abusar de sua posição, pois o poder é
inerente a ela. A autora cita a responsabilidade de todos aqueles envolvidos
com o treino de crianças e jovens, quais sejam: examinar seus valores e refletir
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sobre suas atitudes em relação aos abusos, saber identificá-los e auxiliar
aqueles que sejam objetos de abuso; e tomar as medidas cabíveis quando
ocorrer abusos.
O desenvolvimento humano é um processo decorrente da regulação entre
o indivíduo e o ambiente. Assim, os valores que animam nossos pensamentos
e comportamentos emergem de situações concretas de um contexto e,
somente a partir da análise deste contexto em que estão os valores é que
podemos perceber como influenciar o processo de educação e de treino
(ARAUJO, 2005).
De acordo com Sarmento (2005), a prática esportiva é um processo de
valores, ética e desenvolvimento, os quais são determinados por variáveis que
ultrapassam o “espetáculo esportivo”.
A busca pela excelência no esporte tem levado muitos técnicos e atletas a
utilizarem formas anti-éticas, seja para superar marcas ou vencer o oponente.
Esta situação preocupa, sobremaneira, os educadores que buscam levantar
debates acerca dos rumos do esporte (SEKINE; HATA, 2004).
Lumpkin e Cuneen (2001) criticam o esporte contemporâneo e afirmam
que o sistema está repleto de indivíduos que parecem ter perdido o sentido do
valor humano, o respeito por outros e o significado de flair play. Quando a
mídia apresenta exemplos de comportamentos delinqüentes nos diversos
níveis de prática do esporte, acaba colaborando com esse cenário.
Comportamentos não éticos não se esgotam entre os atletas e os técnicos nas
quadras, campos ou piscinas, mas invadem outros aspectos do esporte como o
uso de drogas e o processo de recrutamento. Suspensões por violência,
zombaria, pancadarias, agressões são situações comuns no esporte atual.
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Alguns técnicos e atletas justificam que esses comportamentos são estratégias
necessárias para manter os financiamentos e patrocínios, para ganhar
reconhecimento e recompensas e, principalmente, vencer. Ou seja, esses e
outros motivos contribuem para que a abordagem do esporte passe a ser
“ganhar a todo custo”, independente do nível de prática, e que se distanciam
cada vez mais de uma abordagem humanista.
Lumpkin e Cuneen (2001) citam outros autores que concordam com a
idéia de que os benefícios da prática esportiva como ensinar valores positivos,
condutas éticas e auto-disciplina seja um mito. Autores relatam, também, que
quanto mais tempo os indivíduos se envolverem no esporte competitivo, mais
seus valores morais e comportamentos éticos enfraquecem. Os atletas são
condicionados a aceitar o fato de que burlar regras para obter vantagens é
plausível, pois, os comportamentos desviantes não serão punidos. O que os
técnicos e atletas não reconhecem é que a maneira com que eles lidam com a
violência, o racismo, a discriminação no esporte indica o valor das pessoas.
Lumpkin e Cuneen (2001) definem a filosofia como a busca da verdade. A
filosofia pessoal geralmente muda com o tempo à medida que é moldada pelas
experiências. Cada um aprende e desenvolve sua moralidade através de um
processo influenciado pelo ambiente, e constrói as atitudes pessoais, crenças e
valores que são baseados na moralidade. O conhecimento do moral, o senso
moral e a ação moral são componentes que levam à construção do bom
caráter. No esporte, o comportamento individual é baseado nos valores que
cada um acredita que sejam verdadeiros. Desta forma, alguns valorizam o fair
play de acordo com as regras do jogo, outros acreditam que vencer a todo
custo é mais importante. Assim, é crucial que os técnicos questionem a si e a
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seus atletas antes de estabelecerem sua filosofia e que a compartilhe com os
atletas e os pais. De acordo com Baker (1999) apud Lumpkin e Cuneen (2001),
a integridade na orientação esportiva deveria incluir uma articulação clara e a
promulgação da própria filosofia. Os autores sugerem algumas sugestões, em
formato de questões, para iniciar um processo reflexivo crítico e desenvolver a
filosofia pessoal no esporte, quais sejam:
(1) em que se baseiam meus valores?
É importante examinar suas atitudes, crenças e valores, para compreender
porque agimos da forma como agimos. Cada indivíduo é influenciado pelo
ambiente e é crucial investigar como outras pessoas e as situações específicas
têm influenciado o valor de cada um.
(2) o que eu valorizo no esporte?
As razões pelas quais as pessoas participam no esporte são inúmeras. Para
alguns, o valor do esporte depende do nível da competição ou das
recompensas
envolvidas.
Outros
justificam
que
o
esporte
ensina
comportamentos e valores que transpõem a vida esportiva. Outros se
envolvem em ações imorais como violência e trapaça. Cada ação e cada
comportamento indicam os valores que atribuímos ao esporte.
(3) eu valorizo as regras do esporte?
Atletas, técnicos, administradores, oficiais, espectadores agem de forma que
manifestam “o quanto” eles valorizam ou não as regras do esporte.
Freqüentemente, aqueles que podem influenciar os resultados violam,
repetidamente, as regras.
(4) como meus valores afetam os outros?
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No esporte, é visível o quanto as pessoas valorizam o bem estar de outras.
Algumas vezes, os oponentes são tratados como objetos. Quando os
oponentes são vistos como inimigos, ao invés de serem valorizados como
desafios, geralmente ocorrem situações danosas.
(5) quais valores são manifestados pelos outros no meu esporte?
Alguns técnicos e atletas valorizam a honestidade, a beneficência, o fair play, a
cooperação entre outras virtudes. Outros valorizam o “ganhar a todo custo”, e
não consideram as regras.
Na verdade, os autores não pretendem levantar debate sobre o que seja
certo ou errado, mas que cada um analise, criticamente, os valores do esporte.
A partir de então, os autores sugerem cinco passos para guiar o processo de
desenvolvimento da filosofia pessoal, quais sejam:
(i) examinar as teorias filosóficas distintas que procuram oferecer fundamentos
para compreender como cada pessoa define a verdade e como essa
interpretação afeta seus valores no esporte.
(ii) estar atento para as metas que são mais importantes no esporte em relação
aos resultados visados. Não somos lembrados apenas por nossas conquistas
mas, também, por nosso desempenho nos jogos.
(iii)
conhecer
os
independentemente
comportamentos
valores
dos
serão
estabelecidos
valores
admitidos,
individuais
para
de
recompensados
o
esporte,
cada
ou
um,
proibidos
pois,
alguns
pelas
organizações, patrocinadores e fãs. Cada pessoa deve refletir e decidir se
cumprirá as regras ou se portará de maneira não ética.
(iv) determinar os comportamentos que o caracterizarão, pois o esporte oferece
muitas oportunidades de demonstrar seus valores morais. Há inúmeras
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chances de decidir entre o bem e o mal, de demonstrar virtudes ou
comportamentos imorais.
(v) estar seguro de que seus comportamentos estão consistentes e
concordantes com seus valores, pois, no esporte, há várias chances de
demonstrar raciocínio moral maduro que conduzem às decisões éticas. As
tentações para atuar de forma não ética podem ser superadas através da
certeza de que a transgressão às regras será punida e que aqueles que agem
conforme o espírito das regras será recompensado.
Os autores concluem que o desenvolvimento de uma filosofia pessoal no
esporte pode auxiliar a responder a muitos dilemas éticos. Através do
raciocínio moral cada um pode decidir como reagir perante as dificuldades. Os
valores são altamente influenciados pela experiência, fatores situacionais e
outros indivíduos. Geralmente, as pessoas envolvidas no esporte são situadas
como o centro das atenções, ou seja, seus comportamentos estão em
evidência. Em especial, no alto nível do esporte, atletas e técnicos são vistos
como modelos, os quais, baseados em seus comportamentos, poderão ser
idolatrados ou ridicularizados.
De acordo com McCallister, Blinde e Weiss (2000), há aproximadamente
35 milhões de crianças e jovens entre seis e 16 anos de idade que estão
envolvidas em atividades esportivas. O fato mostra, sem dúvida, que o esporte
tem papel proeminente na infância e na adolescência. E, esses períodos são
críticos para o aprendizado de valores socialmente apropriados e habilidades
para a vida, os quais fornecem a base para a vida adulta. Assim, a participação
de crianças e de jovens no esporte deve ser cuidadosamente monitorada.
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É comum associar o esporte aos aspectos positivos de socialização entre
crianças e adolescentes, além de estabelecer valores e comportamentos.
Contrariamente, apesar de diversas habilidades positivas advirem da
prática esportiva, a participação no esporte pode resultar em estresse e tensão
excessivos, nível baixo de raciocínio moral, ênfase na vitória, baixa autoestima, trapaceio, interiorização das normas de adultos, desconsideração do
oponente e falta de respeito por outros.
As crianças e os jovens aprendem muito do ambiente de convívio social
e, em particular, a postura dos técnicos tem impacto expressivo sobre os
valores e as habilidades para a vida futura dos praticantes. Assim, muito do
que as crianças e os jovens aprendem depende do ambiente que o técnico
constrói e de suas condutas.
A filosofia dos técnicos e sua habilidade em implementá-la é crucial e
influencia o tipo de aprendizagem predominante no contexto esportivo.
A natureza das interações entre técnicos e atletas e as características
positivas/negativas dessas experiências também têm impacto sobre a
possibilidade do indivíduo continuar seu envolvimento no esporte ou não.
Estudo conduzido por McCallister, Blinde e Weiss (2000), que envolveu
22 técnicos de baseball e softball reportou que, apesar destes terem
consciência da importância do contexto educacional do esporte e do ensino de
valores e de habilidades para a vida, a maioria não se sente preparada para
estruturar um ambiente de ensino que favoreça esses resultados desejáveis.
Surpreendentemente, alguns desses técnicos acreditam que esses valores e
habilidades surgem automaticamente através da participação no esporte.
Muitos dos comportamentos e das ações exibidos pelos técnicos são aqueles
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que não gostaríamos que fossem seguidos pelas crianças e jovens. Outro
aspecto levantado nesse estudo foi a inconsistência entre a filosofia e o
comportamento do técnico, pois este é, sem dúvidas, o melhor indicador de sua
filosofia. O mesmo estudo revelou que a grande maioria dos técnicos teve
experiência no esporte organizado e que este passado esportivo o expôs a
uma variedade de técnicos os quais influenciaram sua abordagem atual. As
evidências comprovam o impacto dos técnicos sobre a formação dos atletas,
sobretudo quando estes assumem posições na organização esportiva.
Outro aspecto interessante do mesmo estudo foi o fato de muitos técnicos
serem extremamente competitivos, cuja qualidade eles citaram, repetidamente,
como aquela aprendida através de sua vivência no esporte.
McCallister, Blinde e Weiss (2000) também citaram a influência da
pressão que os pais exercem sobre os técnicos e que, muitas vezes,
contrapõem-se aos objetivos da participação dos jovens no esporte. De acordo
com os autores, muitos pais enfatizam a vitória e os melhores atletas, em
detrimento da aprendizagem e da formação de seus filhos. Por fim, os autores
apontam para a influência do próprio modelo esportivo moderno que promove a
“vitória” e “ser o melhor”.
Muitos técnicos parecem bem intencionados sobre a qualidade da
participação no esporte. Entretanto, muitas vezes, estes se deparam com a
própria
formação
profissional
insuficiente
e/ou
inadequada,
com
as
experiências pouco construtivas e que não contribuíram para auxiliar a definir
uma base filosófica consistente. As pressões externas também dificultam a
implementação de uma filosofia ideal. Conseqüentemente, McCallister, Blinde e
Weiss (2000) concluem que para realçar os valores dos programas esportivos
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para os jovens é preciso ter muita atenção para a seleção, monitoramento e
desenvolvimento profissional do técnico que atua, sobretudo, no esporte infantil
e juvenil.
De acordo com Salgado (1999), o treinador precisa ter consciência do
impacto de sua ação, tanto sobre a formação esportiva como na formação
pessoal. A prática esportiva contribui para a formação social, pois ensina
valores, normas e condutas perante outros, a compartilhar decisões, liderar e
ser liderado, a aceitação de si e do grupo, a aprender o valor do fracasso e da
vitória, o espírito competitivo, o esportivismo e a auto-confiança, o respeito aos
direitos e deveres, entre outros. Tais competências psicológicas e sociais
contribuirão, também, para outros setores da vida. Mas, quando o esporte
presta-se a satisfazer as ambições do treinador e não àquelas necessidades e
interesses dos praticantes, todos esses atributos podem ter um viés negativo
para a formação atlética e pessoal.
Em respeito ao técnico, Gonçalves (1999) aponta a importância de se
adotar uma concepção filosófica e persistir em valores e princípios, conduta
pedagógica apropriada para o desenvolvimento dos praticantes, com
finalidades educativas bem definidas, da qualidade de suas experiências, da
postura ética, do espírito esportivo e fair play, e da ênfase sobre a socialização.
O desenvolvimento pessoal é um processo complexo de apropriação e de
transformação de certos valores disponíveis no próprio ambiente, repleto de
condições de conflito. Assim, o técnico deve possibilitar ao atleta a vivência
constante de um conjunto de valores que o torne mais adaptável à sociedade
e, simultaneamente, melhore o seu desempenho esportivo (ARAÚJO, 2005).
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Procedimentos Metodológicos
Optamos pela abordagem de pesquisa qualitativa para compreender o
contexto da GA competitiva do Brasil, sem intenção de generalizar, mas de
identificar a filosofia de trabalho daqueles que vivem este cotidiano.
Utilizamos a entrevista semi-estruturada para a coleta de dados que,
segundo Bruyne, Herman e Schoutheete (s/d), permite identificar opiniões
sobre os fatos e a evolução dos fenômenos através do conteúdo expresso
implícita ou explicitamente. Apesar de haver questões pré-formuladas, as
variações são permitidas durante a sua aplicação, caso o investigador julgue
necessárias (THOMAS; NELSON, 2002).
Consultamos as Federações para listar as entidades filiadas cujos
ginastas participavam dos torneios oficiais estaduais e nacionais das categorias
de base a saber: pré-infantil, infantil, infanto-juvenil e juvenil.
A participação dos sujeitos foi de caráter espontâneo, e todas as
entrevistas realizadas no local de treinamento.
Visitamos 29 instituições esportivas do Estado de São Paulo e cidades
do Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre, devido à representatividade
numérica e qualitativa destas localidades no contexto nacional da GA.
Entrevistamos 46 técnicos, sendo 34 do setor feminino e 12 do setor
masculino. Apoiados em um roteiro, os técnicos foram entrevistados,
individualmente, e seus depoimentos registrados em miniDV. Solicitamos que
os técnicos reportassem sobre a base filosófica de seu trabalho.
Para o tratamento dos dados, optamos pela análise de conteúdo de
Bardin (2004) que ocorreu em três etapas: 1. Pré-Análise: que é a transcrição
das entrevistas e a leitura flutuante do texto, o primeiro contato com o material,
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em que é possível formular alguns temas para discussão e hipóteses que
julgamos necessários. 2. Exploração do Material: a codificação dos dados,
definição das categorias, e a identificação da unidade de registro (estabelecido
como tema e não freqüência) e a unidade de contexto (segmentos do texto ou
da mensagem que refletem o significado das unidades de registros). 3.
Inferência: refere-se aos pólos de análise sobre os quais ocorre a análise de
conteúdo, ou seja, em que pontos nós podemos nos concentrar para realizar
uma análise.
Optamos pela diferenciação por gênero para posterior comparação
devido à similaridade do conteúdo dos depoimentos. Não procedemos à
distinção dos técnicos por categoria pois, na maioria das instituições, estes são
responsáveis por mais de uma categoria competitiva.
Resultados e Discussão
Feminino
[Inserir Tabela 1]
Sobre a base filosófica dos técnicos, podemos observar uma
concentração significativa dos depoimentos sobre a educação em geral, o
prazer e a satisfação e os fatores sócio-afetivos.
Os técnicos mencionam, pontualmente, a formação pessoal, o
desenvolvimento
do
respeito,
da
disciplina,
da
perseverança,
da
responsabilidade, e de hábitos saudáveis, os quais eles acreditam que sejam
importantes não apenas no esporte, mas para a vida toda. Eles citam que as
derrotas, os sacrifícios, as frustrações e os desafios vivenciados no cotidiano
da GA contribuem para a formação pessoal (COELHO, 1988; ARAÚJO, 2005).
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Muitos técnicos lidam com crianças provenientes de famílias menos
favorecidas e, assim, citam a importância de tratar sobre questões do cotidiano
como hábitos de higiene e de saúde no ginásio.
A prática esportiva demanda muita disciplina e responsabilidade e, à
medida que o nível de prática se eleva, estas se tornam essenciais: cuidados
com a alimentação e tempo de repouso e sono, cumprimento de horários, entre
outros. Na opinião de muitos técnicos, acabam criando certo esteriótipo dos
atletas e, no caso da GA, seria a disciplina.
A educação formal também foi mencionada, e os técnicos percebem que
ginásio e escola se somam na formação pessoal das crianças e dos jovens.
O prazer e a satisfação na prática esportiva também foi enfatizado pelos
técnicos. É interessante observar a preocupação deles para que a prática
esportiva não seja “um sofrimento” (T8) ou algo imposto, mas que seja opção
da criança e participe por vontade própria e pelo prazer, visando à satisfação
pessoal e não para atender interesses e anseios de outros. Mas, será que em
meio a certas pressões e cobranças identificadas nos temas anteriores, os
técnicos são capazes de relevar este aspecto, ou seja, de posicionar a criança
e o jovem no centro desse processo de formação esportiva (BENTO, 1989).
O vínculo social e afetivo que se estabelece entre as crianças também é
reforçado pelos técnicos. Conforme relato de muitos atletas, o ginásio é como
uma família e, muitas vezes, os laços são mais fortes do que com os
companheiros da escola ou parentes. Os técnicos citam que o estímulo da
amizade e do companheirismo entre as crianças desenvolve valores humanos
importantes para seu convívio na sociedade em geral. O relato coincide com os
objetivos primórdios do esporte (DOUGE, 1999).
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Um depoimento interessante de dois técnicos (T2 e T26) é o de não
desvalorizar ou descartar o que a criança traz de casa ou de suas experiências
e eles procuram eliminar “o que é ruim”, mas que valorizam a individualidade:
“cada um forma a sua ... a sua cartilha” (T26). Acreditamos que os técnicos
tendem a respeitar, também, os valores, o ritmo e as limitações das crianças,
pois estes são influenciados pela história de vida dos indivíduos.
Masculino
[Inserir Tabela 2]
As categorias também coincidem com aquelas do setor feminino, e
revelam certa uniformidade dos depoimentos no tema em questão.
A educação tem relação com a formação pessoal, o respeito, a
disciplina, a perseverança, a coragem e a valorização do ser humano, e são
apontados pelos técnicos como aqueles mais desenvolvidos. Eles citam que a
educação formal também é valorizada e deve ser equilibrada com o esporte.
Os fatores sócio-afetivos relatados pelos técnicos se referem à amizade
e ao vínculo de respeito mútuo entre técnicos e atletas.
O prazer e a satisfação não foram tão enfatizados como no setor
feminino, mas aqueles que citaram este aspecto percebem que a vontade
própria e a sensação de realização são importantes na formação pessoal,
conforme reforça Relvas (2005).
As novas categorias que emergiram com certa expressão foram:
assistencialismo, exclusividade e abdicações. A primeira refere-se à melhoria
das condições sócio-econômicas que o esporte pode proporcionar através de
bolsas de estudo e renda mensal. A segunda faz referência às privações que o
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envolvimento no esporte competitivo exige, como restrições de tempo para
atividades típicas da idade como brincar na infância e demais atividades de
lazer e de convívio social. Percebemos um certo pesar por parte dos técnicos,
levando nos a entender que o esporte é exigente e não há muita saída para
aqueles que querem atingir o alto rendimento, ou seja, as abdicações de uma
vida normal são quase que inevitáveis.
Considerações Finais
Conforme levantamos no referencial teórico, a crítica sobre o esporte
contemporâneo é de que o sistema está repleto de indivíduos que parecem ter
perdido o sentido do valor humano, o respeito por outros e o significado de fair
play. E que alguns técnicos e atletas justificam seus comportamentos e
estratégias pelas necessidades de manter os financiamentos e patrocínios,
para ganhar reconhecimento e recompensas e, principalmente, vencer. E,
esses e outros motivos contribuem para que a abordagem do esporte passe a
ser “ganhar a todo custo”, independente do nível de prática (HAINES, 1991;
LUMPKIN; CUNEEN, 2001; REYNOLDS, 2005).
A filosofia pessoal geralmente muda com o tempo, pois é moldada pelas
experiências. Cada um aprende e desenvolve sua moralidade através de um
processo influenciado pelo ambiente, e constrói as atitudes pessoais, crenças e
valores que são baseados na moralidade. O conhecimento do moral, o senso
moral e a ação moral são componentes que levam ao bom caráter. No esporte,
o comportamento individual é baseado nos valores que cada um acredita
serem verdadeiros. Assim, é importante que os técnicos questionem a si e a
seus atletas antes de estabelecerem sua filosofia e que a compartilhe com os
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atletas e os pais. De acordo com Baker (1999) apud Lumpkin e Cuneen (2001),
a integridade na orientação esportiva deveria incluir uma articulação clara e a
promulgação da própria filosofia.
Ter uma base de princípios e valores no esporte se faz mais necessária
ainda quando lidamos com crianças e jovens, pois é um momento crítico para
receber estímulos do ambiente e a fase mais moldável do indivíduo (BEE,
1997; NEWCOMBE, 1999). A partir de então, há certas mudanças, mas a base
de sua personalidade e condutas foi estabelecida nestas fases iniciais da vida.
Então, advém a importância dos técnicos da GA que lidam,
especialmente, com crianças e jovens de fundamentarem sua filosofia de
trabalho, conhecer a si próprio, seus valores e crenças e estar ciente das
dificuldades e obstáculos que irá encontrar, a fim de estabelecer um pano de
fundo para as suas ações (REYNOLDS, 2005).
Percebemos, em geral, certa insegurança dos técnicos quando no
momento do questionamento sobre a filosofia de seu trabalho. Não queremos
inferir que não o tivessem, mas acreditamos que muitos não chegaram a
pensar sobre a filosofia do programa na mesma intensidade em que planejam
as atividades de ensino. Não pensamos que seja descaso, mas a própria
sociedade não valoriza este aspecto. Mesmo as instituições de ensino formal,
as escolas, não raras vezes também confundem a filosofia de trabalho com as
abordagens de ensino ou objetivos do ensino ou em casos mais críticos, com
as próprias disciplinas curriculares.
Ao longo da nossa formação profissional, poucas vezes somos incitados
a refletir sobre nossos valores, princípios éticos, moral, opiniões e crenças e as
influências de experiências anteriores que vivenciamos, as quais se configuram
21
na base para o estabelecimento de nossa filosofia de trabalho (HAINES, 1991;
REYNOLDS, 2005).
A partir dos dados levantados pudemos constatar que não há uma
filosofia de trabalho consistente, pois em muitas instituições ela se confunde
com os próprios objetivos do programa.
Provavelmente, durante a formação dos técnicos, pouco se discutiu a
respeito de filosofia. Portanto, não podemos crucificá-los, mas incentivá-los a
refletir e a mudar aqueles aspectos que julgar necessários, quem sabe, a
filosofia de trabalho e alguns valores éticos e morais. Mas, sem gerar conflitos
com as instituições empregadoras, pois percebemos pelos relatos de que estas
não têm essa preocupação.
Independente da postura das instituições, os técnicos não devem perder
o foco sobre as necessidades e interesses dos praticantes e sobre seus
valores e princípios. Este equilíbrio é importante para que suas ações não se
percam em meio a tantos desvios que os objetivos do esporte podem seguir na
sociedade atual.
Assim, em meio a tantos outros desafios que os nossos técnicos já
enfrentam, lançamos mais este, ou seja, de estabelecer uma base filosófica de
trabalho que harmonize com os interesses de todos aqueles que estão
envolvidos neste cenário.
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