(trans)ito: abordagens no estado do espírito santo

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013
Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador - BA
GÊNERO EM (TRANS)ITO:
abordagens no Estado do Espírito Santo
Antonio Cézar de Almeida Portugal1
Resumo: O presente artigo propõe a partir de um mapeamento inicial dos movimentos sociais trans
(transexuais, travestis e transgêneros), uma etnografia política que investiga o movimento chamado
“Transfeminismo” no Estado do Espírito Santo. Ao se discorrer, o texto faz uma conexão entre as teorias dos
“novos movimentos sociais” com uma recente perspectiva do movimento feminista, o “Ecofeminismo
queer”. Com base na interlocução teórica utilizada que dá corpo inteligível ao “Transfemisnismo”, apresento
ASTRAES2, uma organização que desenvolve projetos e promove ações políticas locais.
Palavras-chave: Transfeminismo; etnografia política; movimentos sociais trans; Espírito Santo.
Este artigo propõe, a partir de um mapeamento inicial dos movimentos sociais trans
(travestis, transexuais e transgêneros), investigar o movimento chamado “Transfeminismo” que
apesar de se originar de uma posição social subalternizada, se articula no cenário social a fim de
alcançar autonomia e capacidade de reivindicação pública ao almejar mitigar sua condição de
invisibilidade neste contexto sociopolítico.
Para fins desta discussão, busca-se base teórica nos trabalhos que tratam dos “novos
movimentos sociais” que emergem principalmente a partir dos anos de 1980 no Brasil, e que na
década de 90, amparados por um discurso de empoderamento que se alicerça nas alas de esquerda,
traçando novas estratégias de atuação.
Devido à reduzida produção acadêmica sobre a ação coletiva dos sujeitos trans que
fundamente sua organização política no Brasil, estesse norteiam e apropriam-se de debates e de
reflexões contemporâneas que emergem de novas perspectivas críticas do movimento feminista,
como exemplo o “Ecofeminismo Queer”, a partir do qual se funda a possibilidade de diálogo com
as discussões feministas. O texto ora proposto aponta que o “Transfeminismo” é de grande
importância para o reexame tanto de conceitos quanto da pauta reivindicatória do movimento de
“mulheres”.
Contudo, a utilização de um método que utilize o saber antropológico e político torna-se
profícuo na medida em que esta ferramenta proporcione “mapear” e “identificar” os atores sociais
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Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2012). E-mail:
[email protected].
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Associação de Travestis e Transgêneros do Espírito Santo
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em questão, e, a partir destes, compreender os processos políticos em suas articulações que
provocam rebatimentos nas estruturas sociais – uma etnografia política. O objeto pesquisado é a
ASTRAES (Associação de Travestis e Transgêneros do Espírito Santo), uma organização da
sociedade civil local. O objetivo principal desta etnografia política reside em resgatar a trajetória
histórica da ASTRAES, sua inserção política e sua contribuição em favor das demandas das pessoas
trans no cenário de lutas de movimentos sociais no Espírito Santo.
Debatendo sobre os “novos movimentos sociais”: ensaio crítico
Embasado nas discussões dos estudos dos “novos movimentos sociais” que emergem
principalmente a partir dos anos de 1980 no Brasil e que na década de 90, amparados por um
discurso de empoderamento que se alicerça nas alas de esquerda, definem que os movimentos
sociais contemporâneos emergentes otimizam suas ações e criam novas estratégias de atuação em
prol de impulsionar a conquista de direitos mais amplos.
Muitos destes agrupamentos de minorias políticas são pertencentes à uma categoria social
subalternizada. Para Spivak (2010) esta posição de subalterno é definida por um sujeito inserido nas
“camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados,
da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato
social dominante” (p.12). Uma estratégia utilizada pela modernidade para manutenção desta
posição de subalternidade, direcionada intencionalmente às minorias políticas marginalizadas, é a
diluição de voz política destes sujeitos em uma sociedade de massas populares, neutralizando-o e
desarticulando-o ao máximo de possíveis meios de representação democrática.
Os novos movimentos sociais surgem a partir de um contexto de “crise de um paradigma
tradicional das Ciências Sociais, referente ao tipo de unidade que caracteriza os agentes sociais e as
formas assumidas pelo conflito entre eles” (Laclau, 1986, p. 1). Estes movimentos não se
configuram mais por uma unicidade de interesses e nem subexistem em um sistema linear e
coerente de pertencimento, existe, no entanto, uma pluralidade de práticas articulatórias, sendo os
discursos dinâmicos e cambiáveis. Ainda assim existe a possibilidade de antagonismo nas ações
sociais coletivas em sociedades contemporâneas, pois as capacidades articulatórias podem ser o
produto de uma interação contingente e da conexão em rede de projetos divergentes.
Sendo o processo de globalização dos direitos um entrave nos processos emancipatórios,
assim como Santos (2009) define que comumente “o discurso sobre globalização é a história dos
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vencedores [...]” numa arena de embates, esses movimentos de minorias políticas lutam agora por
vozes políticas próprias e participavas, onde exista um entrelaçamento de discursos para construção
de uma plataforma política contra hegemônica. Essa maior visibilidade se efetiva na medida em que
este sujeito subalternizado articula mecanismos para que seja ouvido, ou seja, a fala não é
representada de modo que o próprio subalterno discute sobre seu posicionamento.
Segundo Gohn (2008), o atual contexto revelou novíssimas formas de organização,
percebendo suas ações coletivas na esfera social que nem são categorizadas como movimentos
sociais, e sim como mobilizações. A pluralidade é a base da autonomização destas mobilizações
sociais, nas quais as formações discursivas são produtos da articulação contingente entre as várias
posições de pertencimento do sujeito. Esta articulação contingente é indeterminada, instável,
imbricável e mutável. Por isso não existe uma identidade social total e cristalizada, e sim
pertencimentos que se articulam em diferentes intensidades e potencialmente atuantes.
Direcionando a discussão para o movimento feminista em suas várias ondas e ao
contextualizar os estágios do movimento a partir da teoria dos “novos movimentos sociais”, o seu
perfil nos Estados Unidos nos anos 70 é caracterizado como radical por ser uma vertente crítica às
estruturas de poder nas quais as mulheres são cerceadas, além das argumentações sobre as
associações das mulheres à - emoção, corpo, reprodução, natureza - categorias inferiorizadas na
cultura ocidental.
No Brasil essas discussões aparecem timidamente nos anos 80, com uma crítica aos estudos
e abordagens marxistas às questões das mulheres. O grande desafio era fazer uma revisão crítica,
passar a interpretar os movimentos sociais utilizando percepções culturalistas e identitárias e inserir
no movimento de esquerda marxista “[...] assuntos de sexismo e racismo em pauta e a esquerda
brasileira titubeava em responder à discriminação social que não se baseava apenas em questões de
classe” (Green, 2003, p. 17). A sexualidade dentro do movimento de esquerda era uma questão de
natureza subsidiária, pois esta categoria era distante dos propósitos da classe trabalhadora e
referente à burguesia, impossibilitando, assim, aos partidários marxistas a terem uma visão de um
mundo com maior complexidade simbólica, reduzindo-o somente a questão econômica. Nesta
dinâmica se fundava a dificuldade de articular alianças com outros movimentos,
uma vez que os movimentos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros têm uma composição multiclassista,
alguns marxistas afirmavam que o movimento poderia, por vezes, defender propostas distanciadas dos
“interesses” da classe trabalhadora e suas organizações. Considerações parecidas foram articuladas também em
relação aos “novos movimentos sociais” de ecologistas, mulheres e outros [...]. (Green, 2003, p. 36)
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Há de se considerar que nos anos 90, com a mudança da conjuntura sociopolítica brasileira,
os movimentos sociais sofrem certa desarticulação. A exemplo do movimento de mulheres, apesar
de se inserirem em muitos espaços políticos e investirem seus esforços em novos espaços, as ações
coletivas de mulheres se espraiam na dinâmica social com o caráter de mobilização social. A década
de 90 no Brasil foi marcada pela privatização de serviços públicos, de institucionalização dos
movimentos, colocando-os e enquadrando-os em moldes legais. Um elemento original neste
contexto são as organizações não-governamentais (ONG´s), como um dos principais meios de
mediação entre a sociedade civil e política.
Contudo pela aproximação dialética entre os estudos feministas com os estudos sobre
sexualidade, caracterizado ambos pela contraposição categórica e hierárquica ao projeto moderno
de gênero e sexualidade, emerge assim o campo analítico dos estudos queer ou Teoria Queer. Os
estudos contemporâneos sobre sexualidade esforçam-se então em desconstruir o sistema de
subalternidade das “identidades”3, onde a constituição de seu significado perpassa pela combinação
da estética com as sanções legais e é marcado socialmente na temporalidade. No entanto o que é
dito normal se funde ao que é normativo – o normal refere-se ao que é esteticamente determinado, e
o normativo ao moralmente determinado.
A partir das discussões desconstrutivistas da noção de identidades rígidas emergentes no
pós-estruturalismo alguns dos autores influenciaram a Teoria queer. Santos (2006) cita Lacan,
propondo uma desestabilização do entendimento linear nos fenômenos sociais ligados a
sexualidade, de forma a potencializar a multiplicidade de sujeitos fluídos nos corpos, colocando
assim em cheque o determinismo das categorias “homem” e “mulher”.
Foucault (1988) em suas análises sobre o regime disciplinar e regulações dos corpos em
determinados espaços, a partir do significado de biopoder, aponta as amplas estratégias dos estados
modernos ocidentais em regular e subjugar os corpos, onde o controle social impõe aos corpos
sexuados a normalização dos desejos nas relações sociais e no campo político-jurídico-científico, ou
seja, uma biopolítica envolta nas ações políticas à população.
Ao analisar os sistemas circundados por esta biopolítica e diluindo estas mobilizações
sociais em um panorama histórico e social de internacionalização industrial, tais mobilizações
sofrem impactos em suas esferas relacionais. O reflexo da explosão do avanço tecnológico na
3
Sobre a significação de “identidades”, compartilho da noção de que reforçaria a exclusão se utilizássemos esta
categoria como essencial, ou seja, como um atributo inerente. No entanto utilizo-a como categoria de pertencimento
e afirmação política.
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modernidade e o desempenho dos grandes aglomerados empresariais em diversos setores do
universo que compõe a biosfera das mulheres – indústria dos cosméticos e da estética, indústria
farmacêutica (hormônios), derivados do petróleo (prótese de silicone em gel), biotecnologia –
provocaram a expansão dos limites fronteiriços das reinvindicações feministas. A partir deste
pressuposto consegue-se configurar e enxergar uma rede de possíveis articulações do movimento
social de mulheres com outros movimentos de diferentes contextos.
Interlocução entre novas perspectivas feministas: o Ecofeminismo queer e Transfeminismo
Nesta possibilidade de construção de um plano de ação de movimentos sociais em rede, o
“Ecofeminismo queer” é uma perspectiva teórica contemporânea que coaduna outras teorias do
segmento pós-estruturalista – o Ecofeminismo como a Teoria Queer – para analisar as construções
de significados, conexões das relações de poder e vínculos conceituais nas estruturas relacionais.
Segundo Gaard (2011) o Ecofeminismo entende que existem várias formas de opressão e, como
partes de uma lógica de dominação, estão intrinsicamente ligadas e se retroalimentam. Partindo do
pressuposto que a imagem dominante ocidental da natureza é feminizada e que as formas de sua
exploração no mundo moderno são opressoras, as mulheres e a natureza assumem escalas
valorativas inferiores em um sistema hierárquico. Como análise crítica mais eficaz é necessário o
diálogo entre o Ecofeminismo e a Teoria Queer, para que possa desmistificar esquemas de opressão
e considerar que a discussão imbricada das duas teorias tem muito a contribuir para o
reconhecimento de uma diversidade sociocultural. Daí a dimensão da diversidade sexual e da
natureza interligadas começa a ser analisada concomitantemente.
Outro argumento que Ecofeminismo queer explica é que opressão não se encapsula nas
práticas homoafetivas, e sim no universo erótico como um todo – a erotofobia. Toda prática sexualafetiva que não tem como objetivo a reprodução é categorizada como desviante. Sendo assim as
práticas eróticas desviantes sofrem sanções que se alimentam de paradigmas ideológicos religiosos,
sociais e de algumas sanções legais, diz Gaard (2011).
O queer4 é uma categoria de análise de desenvolvimento recente e os estudiosos
correspondem as sexualidades queer, identificando estas como as diversas combinações de práticas
erótico-sexuais e de performance de gênero, são reconhecidas na estrutura ideológica como
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Segundo Gaard (2003), queer é todo praticante de erotismo desviante da heteronormatividade. Toda forma de
erotismo sem o objetivo de reprodução humana sexuada.
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perversões anti-natural. As sexualidades queer fazem parte do campo do erótico e se constituem de
forma antagônica na medida em que a heterossexualidade é construída pela negação e
subalternidade do queer. Nesta complexidade simbólica da sexualidade, o dualismo hetero/homo
não dá mais conta de explicar a amplitude de possibilidades dos fenômenos sociais ligados à
sexualidade, então passa a ser analisada como par o heterossexual/queer. Contudo a opressão do
erótico que incide nos sujeitos queer é resultado do reforço mútuo e da combinação entre os
binarismos razão/erótico e heterossexual/queer. A possibilidade destes intercruzamentos são muito
mais produtivos no campo analítico, pois elucidam correspondências simbólicas naturalizadas no
imaginário coletivo, passo possibilitado com as contribuições do Ecofeminismo queer.
A racionalidade neste ponto constrói padrões dicotômicos, que se relacionam positivando e
negativando de acordo com interesses de uma ordem dominante. Nestes casos o relacionamento
antropológico entre o Eu e o Outro, os significados são constituídos de forma contrastante. O Eu se
assume positivamente e se fundamenta em sua negação ou repressão de algo que se representa
como oposto a ele, o Outro. Esses pares dualistas correlacionados são interdependentes, mesmo um
afirmando ser independe do outro, são hierárquicos e se retroalimentam para concretizar sua
existência.
No imaginário hegemônico, os dualismos distintos no valor acabam por significar
conceitualmente o mundo e a anteposta superioridade valorativa do Eu corrobora para a subjugação
do Outro, distorcendo e desvalorizando sua imagem. Tendo em vista este panorama do sistema
relacional de poderes no ecossistema,
[...] a libertação da natureza [...] não será plenamente alcançada sem a libertação das mulheres: vínculos
conceituais, simbólicos, empíricos e históricos entre as mulheres e a natureza, como são construídos na cultura
ocidental, requerem que feministas ambientalistas abordem esforços libertadores conjuntamente [...]. (Gaard,
2011, p. 198)
A dicotomia natural/antinatural, correlacionada à naturalização da procriação, e as
associações simbólicas das mulheres e da sexualidade à procriação, formam uma equação de
correspondência direta entre natural-sexualidade-procriação-mulher. Todo esse aparato ideológico
de intercruzamentos simbólicos é familiar as feministas. O movimento de naturalização da
sexualidade é utilizado tanto para oprimir as mulheres quanto os queer. A exemplo como a
Psicologia ainda encara a transexualidade (referida como transexualismo), segundo o DSM-IV e o
CID esta é uma patologia ou transtorno mental. Existe um movimento de desumanização das
identidades trans por meio do discurso naturalizador. Segundo Butler (2003) o gênero é um campo
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politicamente neutro onde a cultura atua e discursa a partir de uma “natureza sexuada”, e os
trânsitos de gênero são antinaturais e patológicos.
Assim um dos desafios das vertentes contemporâneas do feminismo é incorporar as
discussões sobre transexualidade, na medida em que convergem na proposição de transpor a
“essencialização do ser” através da correspondência direta de “ser mulher” ao sexo biológico.
Portanto a inserção desta discussão levanta debates intensos, pois
[...] não podemos mais falar em “mulher” e sim “mulheres”. Entretanto, com essa polêmica das transexuais
percebemos que, mesmo com a ampliação do termo, o feminismo (ou pelo menos uma parte dele) ainda
considera a marca sexual como definidora de gêneros. [...] Aparentemente, a polêmica reside na idéia de que a
transexual um dia ter sido homem [...] (Melo, 2008, p. 554).
Ou seja, um “homem biológico”. Todavia assumir esse posicionamento político-ideológico
seria incoerente com os questionamentos das discussões feministas ao longo de sua história de
militância.
Categorizo pessoas trans aquele que transita entre os gêneros (transexuais, travestis e
transgêneros). O gênero não é uma identidade fixa ou parte da essencialidade do sujeito social,
assim este é uma performance localizada em
[...] uma estrutura de relações e, portanto, diz respeito a todos, esclarecendo-nos sobre os meandros das
estruturas de poder e os enigmas da subordinação voluntária em geral, além de originar um discurso elucidador
sobre a implantação de outros arranjos hierárquicos na sociedade, ao nos permitir falar sobre outras formas de
sujeição, sejam elas étnicas, raciais, regionais ou as que se instalam entre os impérios e as nações periféricas
(SEGATO, 1998, p. 02).
Na terceira onda feminista, como análise crítica da onda anterior, a perspectiva analítica do
movimento está na desconstrução da mulher como uma única unidade categórica, questionando-se
outras nuances do gênero, como a transexualidade. Neste ponto observa-se o encaixe e a
interlocução entre novas perspectivas dos estudos feministas e estudos queer. O resultado deste
encaixe se expressa no engendramento de uma análise crítica que evidencia, não podendo mais
cristalizar nem encobertar, as especificidades que atravessam o corpo categórico de representação
da “mulher” – classe, etnia, gênero, orientação sexual etc. A resultante revisita o significado do
sentido de gênero contemporâneo, empodera determinados projetos políticos e influencia o
movimento social de pessoas trans – o Feminismo “Trans” ou Transfeminismo5.
5 O Transfeminismo é um conceito relativamente novo onde há a inserção de pessoas trans na pauta feminista, ou
seja, a inserção dos discursos transexuais e transgêneros ao discurso feminista com questões relevante a todas as
“mulheres”. Além disso, esta critica as categorizações de feminilidade e masculinidade pautada no binarismo, pois até
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A partir da qual se funda a possibilidade de diálogo entre os discursos dos transexuais e
transgêneros com as discussões feministas, reconfiguram-se
[...] ações e relações sociais não isentas de conflitos que os autores em rede constroem suas novas plataformas
políticas e significados simbólicos para as lutas, observando-se, por um lado, o direito à diferença, dentro de
determinados limites ideológicos e éticos e, por outro, a unidade possível de ação, não necessariamente
homogênea, mas complementar e solidária. (SCHERER-WARREN, 2009, p.13)
O “Transfeminismo” é de grande importância na contribuição para ressignificação de
conceitos e revisão da pauta reivindicatória do movimento contemporâneo de “mulheres”. Portanto,
a originalidade desta interlocução está em ampliar a capacidade de absorver e articular demandas
sociais e, assim, reconfigurar de forma mais eficaz as estratégias de instrumentalização de ações
políticas concretas na esfera pública com intuito de proporcionar maior visibilidade às pessoas trans
e de fortalecimento político aos movimentos. Uma gestão política inteligível e capaz de questionar a
universalidades no plano da concretude destas ações, incrementada por diferentes pertencimentos
no âmbito de todas as esferas sociais.
Apesar da tentativa de promoção de discussões emancipatórias, ao longo do século o pavor
pelo erótico, renegado como fenômeno social ao universo obscuro, faz com que as sexualidades
“desviantes” continuem sendo oprimidas por discursos científicos6.
Nas primeiras três décadas do século XX, na Argentina, Brasil e outros países da América Latina, eugenistas,
físicos, psiquiatras e juristas engajados em campanhas para “medicalizar” o que se tornou cada vez mais
conhecido como homossexualidade, alegaram que esse assunto não era uma questão meramente moral,
[...] mas algo que também requeria ação de profissionais cujo objetivo era atentar para os riscos dessa
“doença” social e pessoal. (Green, 2003, p. 22).
Haja visto o exaustivo acompanhamento das pessoas trans pelos profissionais da Psicologia,
pois estes são responsáveis pelo laudo de transexualidade, que define a feminilidade daquelas, um
documento obrigatório para liberação da “cirurgia de redesignação sexual”7. Às trans como
cidadãos de direitos, reservam-nas o direito de ter autonomia em suas escolhas, sejam elas pelas
então o feminismo não tinha dado conta de representar às trans. Estas com corpos que não são conforme ao modelo
normativo da sociedade ocidental, são impactadas pelo discurso médico patologizador orientado por protocolos cujo
objetivo é regular e reproduzir o binarismo e a biologização do gênero.
6 Desta forma tais noções enquadram a transexualidade, como integrante do elenco das sexualidades queer, à estes
moldes em um determinado contexto temporal.
7 A “cirurgia de redesignação sexual” é um procedimento cirúrgico pelo qual uma pessoa muda sua a aparência física
e a função de suas características sexuais é mudada para aquelas do gênero/sexo oposto. É parte do tratamento para
a “desordem do transtorno” de identidade para transexuais e transgêneros.
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cirurgias as quais julgarem adequadas, ou até mesmo em optar manter o corpo da forma como se
sentir melhor. Além disso, a modificação corporal na transexualidade não é um ponto crucial para
sua identificação de gênero, até mesmo por que se fosse desta forma estaria reproduzindo a lógica
binária, a qual as análises mais críticas tentam se desvencilhar desta biopolítica ocidental dos
corpos.
É necessário deslocar os entraves deste pensamento político-ideológico para uma discussão
crítica mais profunda sobre políticas públicas e atribuição de gênero/sexualidade à cidadania. Desta
forma
Se uma demanda sobre desigualdades sociais, econômicas ou culturais for tratada somente como questão
de diferença social, sem que se considerem todas as outras condições que a igualdade supõe, poderá
aprisionar os sujeitos de um movimento em grupos ou tribos fechados, com certas condicionalidades. As
demandas devem ser referenciadas pela igualdade de condições – de acesso, uso etc., segundo as
condições históricas concretas de dado momento histórico – e não por condições de naturalidade das
diferenças ou externalidades impostas. (Gohn, 2008, p. 15)
Torna-se legítima toda demanda emergente desde que não seja em detrimento de uma outra
classe, sendo este um princípio de uma sociedade livre e mais igualitária.
Histórias, relatos e impressões subjetivas: uma etnografia política do surgimento e atuação
da ASTRAES na cidade de São Mateus8
A abordagem do movimento trans no Estado do Espírito Santo é uma tarefa inquietante ao
deparar-se com as especulações existentes e as articulações que o movimento apresenta ao longo de
sua história. A fim de melhor entender a rede de elementos que configuram o movimento local,
busquei realizar um trabalho de campo que pretendeu primeiramente reconhecer os atores sociais
relevantes em sua vinculação ao objeto, e dando continuidade ao trabalho foram feitas entrevistas
com o objetivo de compreender, com a análise posterior destas, os aspectos do fenômeno social
trans em São Mateus/ES.
Contudo a partir deste levantamento inicial de mapeamento e identificação da “origem”
deste movimento na localidade, foi de competência de uma prática etnográfica, como mediação
pretendida neste trabalho, buscar reconhecer os sujeitos “incluídos” e “excluídos” do
reconhecimento de direitos. Estes ao serem identificados, pela abordagem antropológica, “[...] na
8 Município do litoral Norte do Espírito Santo (ES).
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realidade social dentro do contexto atual da luta de direitos, passam a existir socialmente, cobrando
sentido para as ações dos diversos agentes” (ALONSO, 2008, p. 24).
Considera-se que existe no fazer etnográfico uma interlocução entre os atores numa rede de
significações onde é considerada a autoridade de quem fala9, e que articulada à teoria antropológica
são propostas reflexões teóricas sobre as estruturas relacionais na práxis política dos sujeitos
existentes. Desta forma, o desdobramento e a relevância de uma etnografia política se reflete na
produção de uma compreensão concreta sobre o sistema de funcionamento sociopolítico inserido
em um “complexo de subjetividades”, capazes de provocar efeitos nas estruturas sociais, na
reflexão sobre os processos políticos e na viabilização de ações políticas10.
Nas aproximações iniciais pretendidas buscamos entender os nexos e as representações
simbólicas das ações nas falas ouvidas. Foram entrevistadas três pessoas trans ligadas ao
movimento – Liliane Anderson, Sophia Simpson e Paula Soares – dentre estas, duas são fundadoras
da ONG ASTRAES (Associação de Travestis e Transgêneros do Espírito Santo) e outra é a atual
tesoureira da instituição.
Conformar o histórico do surgimento deste movimento no âmbito local e suas nuances é
uma tarefa extensa, no entanto, na entrevista levanto questões como: Como e por que o movimento
trans surge em São Mateus/ES? Quem são os protagonistas? Quais as parcerias desenvolvidas que
culminam na fundação desta instituição da sociedade civil? Quais são os aliados ao movimento?
As entrevistas cedidas pelas protagonistas que projetaram a instituição em seu início, e que
atualmente participam ativamente ou como colaboradoras, levantam histórias muito ricas em
detalhes. No relato surgem vários aspectos simbólicos e um complexo de “interesses” ao longo de
cada trajetória de vida apresentada nas entrevistas. Dentre estes aspectos surgem temas como
“movimento artístico”, “reconhecimento social”, “visibilidade social”, rede de solidariedade. Desta
forma o projeto no campo da visibilidade social das trans, somado às parcerias políticas surgidas ao
longo do percurso idealizador do projeto culminaram no engajamento e na formação da ASTRAES.
A história começou a tomar forma na década de 80 com François, a “Dendeca”, na cidade de
Linhares, onde promovia a participação das “meninas”11 nas alas dos blocos carnavalescos,
movimento este que fortalecia a relação social entre as trans e a população local com uma certa
9 Proposição encontrada no artigo ALONSO (2008) que foi inspirada em Malinowski (1935; 1985).
10 Questionamento semelhante pode ser encontrado, a título de informação, no livro de Marcio Gooldman (2006).
11 Nas entrevistas aparece constantemente a palavra “meninas”, utilizada para identificar as transexuais, travestis e
transgêneros.
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tranquilidade. Com essa visibilidade, as trans vinham de quatro municípios do Espírito Santo Linhares, São Mateus, Colatina e Nova Venécia – e se instalaram em São Mateus ao longo do
tempo, pela abertura que se criou a partir das expressões artísticas existente na cidade, e formando
uma rede de solidariedade entre elas. Uma das entrevistadas neste estudo foi aprendiz de François
no ofício da confecção de fantasias para o carnaval. Esta por ser natural de São Mateus, passou a
desempenhar suas habilidades nesta cidade e em seus relatos conta que abriu uma casa que
apresentava shows de transformismo chamada “Asa Branca” em 1986, onde se apresentaram muitos
artistas de âmbito nacional. Sendo assim, a casa ganhou grande repercussão social ao fazer shows e
“copiar o transformismo do Silvio Santos, o transformismo dos programas do Globo de Ouro [...] e
a sociedade aplaudia”, o que incentivou o surgimento de grupos de teatro na cidade12, conforme
relata outra entrevistada. A partir destes shows performativos, que geralmente eram musicais, o que
se expressa é a possibilidade de materialização de um “reconhecimento social”, de um certo status
social.
A discussão sobre reconhecimento dos sujeitos perpassa pela necessidade de fortalecimento
das identidades, o qual lhes proporciona autonomia nas sociedades pluralistas e democráticas.
Portanto uma das dimensões do reconhecimento é a partir da estima social, como discute Honneth
em sua teoria do reconhecimento, no sentido de um prestígio adquirido pela contribuição de algo
concreto na sociedade.
Nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os
diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o
valor das capacidades associadas à sua forma de vida (HONNETH, 2003 apud MENDONÇA, 2007, p. 173).
Um reconhecimento através do trabalho “[...] de tentar ajudar a quem precisa, pra tentar
defender a população de alguma forma [...] tem que fazer a diferença”. Em outra fala registrada esse
reconhecimento social se efetiva no momento em que as apresentações artísticas se deslocaram para
o Teatro Anchieta13, espaço físico cedido pela igreja – foi devido ao “respeito a minha pessoa”.
Embora este reconhecimento se concretize na esfera social, existem limitações que se
expressam nas regulações sociais. É recorrente na fala das trans a analogia dos corpos domesticados
aparecerem no discurso em forma de “postura exemplar”, já que o respeito é conquistado por um
12 Cogita-se entender que na história da cidade de São Mateus a abertura para a expressão artística acontece pelo
fato desta ter sido fundada no entorno de uma região portuária, o Porto de São Mateus banhado pelo Rio Cricaré, o
que possibilitou o contato externo com outras culturas e a diversidade das expressões culturais.
13 Prédio em anexo à Igreja Matriz de São Mateus.
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comportamento de forma mais “branda, por que era mais fácil as pessoas quererem admirar”, sendo,
também, este comportamento um parâmetro para as outras que venham a agregar ao grupo.
Em paralelo, o relato da trajetória social de outra entrevistada, natural do Norte de Minas, e
que acaba por se instalando em Itaúnas14 devido às oportunidades de trabalho que surgiram. Seu
primeiro contato com movimento social foi na década de 90 participando da Associação de
Moradores na localidade. Apesar de não ser da cidade, o que as pessoas nativas do local
consideravam como “forasteiro”, no entanto, esta foi conquistando espaço por participar ativamente
das questões na associação. Assim a população ao observar sua atuação, passa a “admirar” seu
trabalho pelo do engajamento frequente em embates com um fazendeiro local, na época gestor
público de Barra do Sahy, devido ao descaso com que tratava a administração pública de Itaúnas e o
acesso da população local às políticas na área da Saúde. As eventualidades que emergem ao longo
de sua trajetória, convergem em seu contato eventual com uma Professora de Antropologia ligada
ao projeto “Sereias de Copacabana”, o qual surge a oportunidade de se transferir para o Rio de
Janeiro para participar do mesmo.
Como Green (2003) aponta em seu estudo que frequentemente em 1980 e 1990 a história do
ativismo no campo da sexualidade “[...] se formou em torno da AIDS, ligado a educação, prevenção
e assistência [...]”. Seguindo esse parâmetro, surgiu para a entrevistada a possibilidade de contato
com ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), órgão vinculado ao Ministério da
Saúde, onde desenvolveu um trabalho por alguns meses sob supervisão de Richard Guy Parker15.
Desta forma passou a assumir gradativamente uma posição de “representante” do Estado nas esferas
político-sociais, o que até então ainda não havia sido formalizado nenhuma pessoa articulada que
pudesse representar o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) do Estado do
Espírito Santo. O seu engajamento político culminou em sua entrada na ANTRA (Articulação
Nacional das Travestis, Transexuais e Transgêneros do Brasil). Posteriormente em parceria com
Gabriela Leite16 do Grupo DAVIDA, articulou um projeto em Braço do Rio17 com enfoque nas
profissionais do sexo, desempenhando o papel de agentes multiplicadoras na conscientização para
redução da vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis. No desenrolar das articulações
14 Pequena vila pertencente ao Município de Conceição da Barra, litoral Norte do ES.
15 Pós-Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente como colaborador
voluntário exerce a função de Diretor Presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids (ABIA).
16 Atual Presidente e Fundadora da ONG Davida, instituição criada “Janeiro em 1992, que promove a cidadania das
prostitutas. Os principais instrumentos do Grupo Davida são ações na área de educação, saúde, comunicação e cultura,
de nível local e nacional”. Disponível em: http://www.davida.org.br/
17 Distrito do Município de Conceição da Barra, litoral norte do ES.
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surge Bela Feiman S. Silva, naquele momento como Coordenadora do CTA18 de São Mateus,
idealizadora do Projeto Borboleta19, que está funcionando até hoje. Inicialmente o projeto era para
desempenhar ações de intervenção com as profissionais do sexo em casas de prostituição e no
“comércio sexual” nas estradas, mas que em momento oportuno se extendeu para a população
LGBT. Buscando possíveis colaboradores, surge assim um convite para participação no projeto
feito à duas pessoas trans, as mesmas que cederam entrevistas neste estudo, uma pelo histórico de
articulação e engajamento político local e a outra por ter reconhecimento social, por ser
“respeitada” pelo seu trabalho profissional na localidade. Devido à oportunidade de parceria com o
Projeto Borboleta e a necessidade de institucionalizar a mobilização social das trans para poderem
participar dos projetos e conseguir financiamento público para desempenharem seus trabalhos em
conjunto com o CTA, neste contexto que surge no ano de 2002 as ASTRAES.20
Há de se considerar que essa parceria entre mobilização da sociedade civil e Governo, é um
campo conflituoso. Existe uma tensão ideológica contínua e que se renova a cada mudança de
Governo. A possibilidade de maior ou menor atuação da instituição se materializa de acordo com o
direcionamento e interesse da gestão política atual. Atualmente esta disputa de materializa, por
exemplo, a partir da concessão de espaço físico dentro do CTA. Contudo, também existem as
limitações financeiras por depender de verbas direcionadas aos projetos públicos e por ser um
planejamento vinculado ao PAM21 Municipal, plano este apresentado pelo Gestor de Saúde e
aprovado pelos conselhos de saúde locais. Em um relato levanta-se essa questão:
A instituição ela trouxe, ela trouxe pra área do CTA, que era uma área abandonada, trouxe uma discussão
mais articulada pra dentro do Município. Por que era uma discussão que ficava muito voltada pro Estado
[...] na hora que chegava no município era uma dificuldade muito grande de se articular [...] com o
Secretário de Estado. Tinha uma dificuldade muito grande, mas quando o Secretário sabia que o orçamento
dele não poderia dar conta [...].
Um dos aspectos interessantes a se destacar são as parcerias que surgem com outros
movimentos atuantes na localidade. Relevante entender as motivações destas parcerias e os
18 Centro de Testagem e Aconselhamento DST/Aids
19 “O Projeto Borboleta iniciou-se em São Mateus-ES, em 2002, como um projeto estratégico junto às profissionais
do sexo, para a redução de sua vulnerabilidade às DST/Aids, sendo resultado da parceria entre Ministério da Saúde,
que financiou o projeto, e Secretaria Municipal de Saúde, responsável pela execução”. Disponível em:
http://www.saude.es.gov.br/download/Boletim_No_13.pdf
20 Relatos de uma das entrevistas.
21Considerações sobre o PAM (Plano de Ações e Metas) pode ser acessado no site: http://www.aids.gov.br/pagina/oque-e-transferencia-fundo-fundo
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desdobramentos da formação desta rede social. Como argumenta Costa (2006), utilizando conceito
de outros autores22, ao definir que estas redes são
processos de interação social não apreensíveis a partir da idéia de grupo social, quando as relações sociais
aparecem altamente complexificadas entre indivíduos de pertencimentos distintos, sobretudo nas
sociedades complexas urbanas. (p.37)
Assim foi desenvolvida uma articulação com movimento negro local, a qual gerou um
projeto com atuação na comunidade quilombola, promovido com parceria entre a Prefeitura da
Cidade e ASTRAES. O projeto finalizou recentemente seu tempo de atuação, com possibilidade de
ser renovado, e o seu objetivo era empoderamento da mulher quilombola através das questões de
saúde e prevenção. A dinâmica utilizada era de encontros periódicos, promovendo debates de
assuntos em torno da sexualidade e do universo da “mulher”, os quais eram levantados de acordo
com a fala em tempo real das mulheres presentes.
A trajetória de ação política da ASTRAES no cenário capixaba apontam ações marcantes. O
Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de DST e Aids, apóia a realização do Projeto
Tulipa (Travestis Unidas Lutando Incansavelmente pela Prevenção da Aids). A capacitação do
projeto na região Sudeste foi organizada pela ASTRAES, e o “objetivo da oficina é capacitar
futuras lideranças para o protagonismo na prevenção das DST e Aids e na garantia dos diretos
humanos [...] Além das capacitações programadas, o projeto também prevê a realização de
articulação das lideranças para trabalho em rede, estabelecimento de parcerias de travestis e
transgêneros com outras redes de organizações sociais e com secretarias municipais e estaduais de
saúde e direitos humanos”23. O evento aconteceu entre 7 e 9 de Setembro de 2006, com seu
encerramento acontecendo junto com a “I Parada do Orgulho GLBT” em Vitória.
Outra ação foi desenvolvida em parceria com o Projeto SOMOS, executado no Espírito
Santo pela ASTRAES e Grupo Plural24. “O Projeto Somos foi idealizado pela ASICAL –
Associação pela Saúde Integral e Cidadania na América Latina e no Caribe; é realizado pela
ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros em parceria com o Programa
22 Conf. Bott (1976) e Mitchell (1969)
23 Disponível em: http://www.aids.gov.br/noticia/projeto-tulipa-capacita-travestis-e-transgeneros
24 Surgido em 2004, atualmente é um programa de extensão, vinculado ao Departamento de Comunicação social da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que visa articular e projetar ações de pesquisa, estudo e intervenção
sobre a temática da diversidade sexual.
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Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde do Brasil”25. O Projeto SOMOS protagonizou, em
âmbito nacional, uma intervenção com promoção de ações educativas no campo da prevenção do
HIV/Aids, com o desenvolvimento institucional e fortalecimento de organizações da sociedade
civil, que atuam no campo da luta pela cidadania do público LGBT.
Contudo importante pontuar que a ASTRAES promoveu relevantes ações políticas,
imprimindo fortalecimento político no Estado do Espírito Santo.
Considerações finais
Este estudo buscou indicar pontos que deram sentido ao surgimento do movimento trans no
Estado do Espírito Santo. Procurou entender melhor como este movimento se expressa no Estado, a
fim de tecer maior visibilidade ao movimento. Neste sentido, feito o reconhecimento de
protagonistas sociais do respectivo estudo na localidade de São Mateus, onde se deu sua origem, em
seguida foram realizadas entrevistas como o objetivo de analisar os fluxos de ações e interesses que
convergiram na fundação da ONG ASTRAES.
A partir desse contato inicial, foi de grande importância para o desenvolvimento do trabalho
entender que projetos de diferentes interesses e de diferentes trajetórias particulares em negociação
são campos férteis para materialização de ações, e que estes processos de desenvolvimento das
relações se inserem numa rede social em prol de algum objetivo.
Há que se considerar que, não sendo diferente do que foi apresentado nos estudos sobre a
institucionalização dos movimentos sociais a partir da década de 90 no Brasil, o projeto idealizador
da ONG ASTRAES seguiu orientações semelhantes em sua fundação. A possibilidade de alguma
visibilidade das trans se expressou na oportunidade de atuar como gestoras de projetos sociais a
partir da instituição, mesmo com todas as limitações e conflitos inerentes que existem nas arenas
políticas na relação Estado e movimento sociais. As articulações ocorridas ao longo do fazer
político foram oportunidades de instrumentalizar as ações políticas e como estratégia de
fortalecimento político.
O reconhecimento social e uma “identidade” política são partes integrantes de uma
existência social, fazendo-se importante as análises do funcionamento desta rede de ações políticas
e sociais para entender as reproduções existentes e em que contextos estas ações se operam. Estas
25 Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/projeto_somos.pdf
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são questões de um processo complexo, contingente e passível de transformações ao longo de sua
dinâmica.
Ainda há muito a que se acrescentar nas demandas de representação e reconhecimento do
movimento trans. Criar, assim, possibilidades de práticas concretas de uma rede de solidariedade
horizontal, ao qual seja considerado o discurso e as ações produzidas pelos múltiplos sujeitos
coletivos que dão corpo as organizações civis.
Para concluir, talvez um grande passo fosse identificar no Estado essa diversidade de
mobilizações sociais locais, e como desafio examiná-los no sentido de investigação crítica positiva
e de empoderamento dos mesmos. Desta forma, desenhar um mapa destes movimentos para que
sejam articulados em rede como proposta de estratégia emancipatória.
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