III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA GÊNERO EM (TRANS)ITO: abordagens no Estado do Espírito Santo Antonio Cézar de Almeida Portugal1 Resumo: O presente artigo propõe a partir de um mapeamento inicial dos movimentos sociais trans (transexuais, travestis e transgêneros), uma etnografia política que investiga o movimento chamado “Transfeminismo” no Estado do Espírito Santo. Ao se discorrer, o texto faz uma conexão entre as teorias dos “novos movimentos sociais” com uma recente perspectiva do movimento feminista, o “Ecofeminismo queer”. Com base na interlocução teórica utilizada que dá corpo inteligível ao “Transfemisnismo”, apresento ASTRAES2, uma organização que desenvolve projetos e promove ações políticas locais. Palavras-chave: Transfeminismo; etnografia política; movimentos sociais trans; Espírito Santo. Este artigo propõe, a partir de um mapeamento inicial dos movimentos sociais trans (travestis, transexuais e transgêneros), investigar o movimento chamado “Transfeminismo” que apesar de se originar de uma posição social subalternizada, se articula no cenário social a fim de alcançar autonomia e capacidade de reivindicação pública ao almejar mitigar sua condição de invisibilidade neste contexto sociopolítico. Para fins desta discussão, busca-se base teórica nos trabalhos que tratam dos “novos movimentos sociais” que emergem principalmente a partir dos anos de 1980 no Brasil, e que na década de 90, amparados por um discurso de empoderamento que se alicerça nas alas de esquerda, traçando novas estratégias de atuação. Devido à reduzida produção acadêmica sobre a ação coletiva dos sujeitos trans que fundamente sua organização política no Brasil, estesse norteiam e apropriam-se de debates e de reflexões contemporâneas que emergem de novas perspectivas críticas do movimento feminista, como exemplo o “Ecofeminismo Queer”, a partir do qual se funda a possibilidade de diálogo com as discussões feministas. O texto ora proposto aponta que o “Transfeminismo” é de grande importância para o reexame tanto de conceitos quanto da pauta reivindicatória do movimento de “mulheres”. Contudo, a utilização de um método que utilize o saber antropológico e político torna-se profícuo na medida em que esta ferramenta proporcione “mapear” e “identificar” os atores sociais 1 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (2012). E-mail: [email protected]. 2 Associação de Travestis e Transgêneros do Espírito Santo 1 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA em questão, e, a partir destes, compreender os processos políticos em suas articulações que provocam rebatimentos nas estruturas sociais – uma etnografia política. O objeto pesquisado é a ASTRAES (Associação de Travestis e Transgêneros do Espírito Santo), uma organização da sociedade civil local. O objetivo principal desta etnografia política reside em resgatar a trajetória histórica da ASTRAES, sua inserção política e sua contribuição em favor das demandas das pessoas trans no cenário de lutas de movimentos sociais no Espírito Santo. Debatendo sobre os “novos movimentos sociais”: ensaio crítico Embasado nas discussões dos estudos dos “novos movimentos sociais” que emergem principalmente a partir dos anos de 1980 no Brasil e que na década de 90, amparados por um discurso de empoderamento que se alicerça nas alas de esquerda, definem que os movimentos sociais contemporâneos emergentes otimizam suas ações e criam novas estratégias de atuação em prol de impulsionar a conquista de direitos mais amplos. Muitos destes agrupamentos de minorias políticas são pertencentes à uma categoria social subalternizada. Para Spivak (2010) esta posição de subalterno é definida por um sujeito inserido nas “camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (p.12). Uma estratégia utilizada pela modernidade para manutenção desta posição de subalternidade, direcionada intencionalmente às minorias políticas marginalizadas, é a diluição de voz política destes sujeitos em uma sociedade de massas populares, neutralizando-o e desarticulando-o ao máximo de possíveis meios de representação democrática. Os novos movimentos sociais surgem a partir de um contexto de “crise de um paradigma tradicional das Ciências Sociais, referente ao tipo de unidade que caracteriza os agentes sociais e as formas assumidas pelo conflito entre eles” (Laclau, 1986, p. 1). Estes movimentos não se configuram mais por uma unicidade de interesses e nem subexistem em um sistema linear e coerente de pertencimento, existe, no entanto, uma pluralidade de práticas articulatórias, sendo os discursos dinâmicos e cambiáveis. Ainda assim existe a possibilidade de antagonismo nas ações sociais coletivas em sociedades contemporâneas, pois as capacidades articulatórias podem ser o produto de uma interação contingente e da conexão em rede de projetos divergentes. Sendo o processo de globalização dos direitos um entrave nos processos emancipatórios, assim como Santos (2009) define que comumente “o discurso sobre globalização é a história dos 2 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA vencedores [...]” numa arena de embates, esses movimentos de minorias políticas lutam agora por vozes políticas próprias e participavas, onde exista um entrelaçamento de discursos para construção de uma plataforma política contra hegemônica. Essa maior visibilidade se efetiva na medida em que este sujeito subalternizado articula mecanismos para que seja ouvido, ou seja, a fala não é representada de modo que o próprio subalterno discute sobre seu posicionamento. Segundo Gohn (2008), o atual contexto revelou novíssimas formas de organização, percebendo suas ações coletivas na esfera social que nem são categorizadas como movimentos sociais, e sim como mobilizações. A pluralidade é a base da autonomização destas mobilizações sociais, nas quais as formações discursivas são produtos da articulação contingente entre as várias posições de pertencimento do sujeito. Esta articulação contingente é indeterminada, instável, imbricável e mutável. Por isso não existe uma identidade social total e cristalizada, e sim pertencimentos que se articulam em diferentes intensidades e potencialmente atuantes. Direcionando a discussão para o movimento feminista em suas várias ondas e ao contextualizar os estágios do movimento a partir da teoria dos “novos movimentos sociais”, o seu perfil nos Estados Unidos nos anos 70 é caracterizado como radical por ser uma vertente crítica às estruturas de poder nas quais as mulheres são cerceadas, além das argumentações sobre as associações das mulheres à - emoção, corpo, reprodução, natureza - categorias inferiorizadas na cultura ocidental. No Brasil essas discussões aparecem timidamente nos anos 80, com uma crítica aos estudos e abordagens marxistas às questões das mulheres. O grande desafio era fazer uma revisão crítica, passar a interpretar os movimentos sociais utilizando percepções culturalistas e identitárias e inserir no movimento de esquerda marxista “[...] assuntos de sexismo e racismo em pauta e a esquerda brasileira titubeava em responder à discriminação social que não se baseava apenas em questões de classe” (Green, 2003, p. 17). A sexualidade dentro do movimento de esquerda era uma questão de natureza subsidiária, pois esta categoria era distante dos propósitos da classe trabalhadora e referente à burguesia, impossibilitando, assim, aos partidários marxistas a terem uma visão de um mundo com maior complexidade simbólica, reduzindo-o somente a questão econômica. Nesta dinâmica se fundava a dificuldade de articular alianças com outros movimentos, uma vez que os movimentos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros têm uma composição multiclassista, alguns marxistas afirmavam que o movimento poderia, por vezes, defender propostas distanciadas dos “interesses” da classe trabalhadora e suas organizações. Considerações parecidas foram articuladas também em relação aos “novos movimentos sociais” de ecologistas, mulheres e outros [...]. (Green, 2003, p. 36) 3 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Há de se considerar que nos anos 90, com a mudança da conjuntura sociopolítica brasileira, os movimentos sociais sofrem certa desarticulação. A exemplo do movimento de mulheres, apesar de se inserirem em muitos espaços políticos e investirem seus esforços em novos espaços, as ações coletivas de mulheres se espraiam na dinâmica social com o caráter de mobilização social. A década de 90 no Brasil foi marcada pela privatização de serviços públicos, de institucionalização dos movimentos, colocando-os e enquadrando-os em moldes legais. Um elemento original neste contexto são as organizações não-governamentais (ONG´s), como um dos principais meios de mediação entre a sociedade civil e política. Contudo pela aproximação dialética entre os estudos feministas com os estudos sobre sexualidade, caracterizado ambos pela contraposição categórica e hierárquica ao projeto moderno de gênero e sexualidade, emerge assim o campo analítico dos estudos queer ou Teoria Queer. Os estudos contemporâneos sobre sexualidade esforçam-se então em desconstruir o sistema de subalternidade das “identidades”3, onde a constituição de seu significado perpassa pela combinação da estética com as sanções legais e é marcado socialmente na temporalidade. No entanto o que é dito normal se funde ao que é normativo – o normal refere-se ao que é esteticamente determinado, e o normativo ao moralmente determinado. A partir das discussões desconstrutivistas da noção de identidades rígidas emergentes no pós-estruturalismo alguns dos autores influenciaram a Teoria queer. Santos (2006) cita Lacan, propondo uma desestabilização do entendimento linear nos fenômenos sociais ligados a sexualidade, de forma a potencializar a multiplicidade de sujeitos fluídos nos corpos, colocando assim em cheque o determinismo das categorias “homem” e “mulher”. Foucault (1988) em suas análises sobre o regime disciplinar e regulações dos corpos em determinados espaços, a partir do significado de biopoder, aponta as amplas estratégias dos estados modernos ocidentais em regular e subjugar os corpos, onde o controle social impõe aos corpos sexuados a normalização dos desejos nas relações sociais e no campo político-jurídico-científico, ou seja, uma biopolítica envolta nas ações políticas à população. Ao analisar os sistemas circundados por esta biopolítica e diluindo estas mobilizações sociais em um panorama histórico e social de internacionalização industrial, tais mobilizações sofrem impactos em suas esferas relacionais. O reflexo da explosão do avanço tecnológico na 3 Sobre a significação de “identidades”, compartilho da noção de que reforçaria a exclusão se utilizássemos esta categoria como essencial, ou seja, como um atributo inerente. No entanto utilizo-a como categoria de pertencimento e afirmação política. 4 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA modernidade e o desempenho dos grandes aglomerados empresariais em diversos setores do universo que compõe a biosfera das mulheres – indústria dos cosméticos e da estética, indústria farmacêutica (hormônios), derivados do petróleo (prótese de silicone em gel), biotecnologia – provocaram a expansão dos limites fronteiriços das reinvindicações feministas. A partir deste pressuposto consegue-se configurar e enxergar uma rede de possíveis articulações do movimento social de mulheres com outros movimentos de diferentes contextos. Interlocução entre novas perspectivas feministas: o Ecofeminismo queer e Transfeminismo Nesta possibilidade de construção de um plano de ação de movimentos sociais em rede, o “Ecofeminismo queer” é uma perspectiva teórica contemporânea que coaduna outras teorias do segmento pós-estruturalista – o Ecofeminismo como a Teoria Queer – para analisar as construções de significados, conexões das relações de poder e vínculos conceituais nas estruturas relacionais. Segundo Gaard (2011) o Ecofeminismo entende que existem várias formas de opressão e, como partes de uma lógica de dominação, estão intrinsicamente ligadas e se retroalimentam. Partindo do pressuposto que a imagem dominante ocidental da natureza é feminizada e que as formas de sua exploração no mundo moderno são opressoras, as mulheres e a natureza assumem escalas valorativas inferiores em um sistema hierárquico. Como análise crítica mais eficaz é necessário o diálogo entre o Ecofeminismo e a Teoria Queer, para que possa desmistificar esquemas de opressão e considerar que a discussão imbricada das duas teorias tem muito a contribuir para o reconhecimento de uma diversidade sociocultural. Daí a dimensão da diversidade sexual e da natureza interligadas começa a ser analisada concomitantemente. Outro argumento que Ecofeminismo queer explica é que opressão não se encapsula nas práticas homoafetivas, e sim no universo erótico como um todo – a erotofobia. Toda prática sexualafetiva que não tem como objetivo a reprodução é categorizada como desviante. Sendo assim as práticas eróticas desviantes sofrem sanções que se alimentam de paradigmas ideológicos religiosos, sociais e de algumas sanções legais, diz Gaard (2011). O queer4 é uma categoria de análise de desenvolvimento recente e os estudiosos correspondem as sexualidades queer, identificando estas como as diversas combinações de práticas erótico-sexuais e de performance de gênero, são reconhecidas na estrutura ideológica como 4 Segundo Gaard (2003), queer é todo praticante de erotismo desviante da heteronormatividade. Toda forma de erotismo sem o objetivo de reprodução humana sexuada. 5 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA perversões anti-natural. As sexualidades queer fazem parte do campo do erótico e se constituem de forma antagônica na medida em que a heterossexualidade é construída pela negação e subalternidade do queer. Nesta complexidade simbólica da sexualidade, o dualismo hetero/homo não dá mais conta de explicar a amplitude de possibilidades dos fenômenos sociais ligados à sexualidade, então passa a ser analisada como par o heterossexual/queer. Contudo a opressão do erótico que incide nos sujeitos queer é resultado do reforço mútuo e da combinação entre os binarismos razão/erótico e heterossexual/queer. A possibilidade destes intercruzamentos são muito mais produtivos no campo analítico, pois elucidam correspondências simbólicas naturalizadas no imaginário coletivo, passo possibilitado com as contribuições do Ecofeminismo queer. A racionalidade neste ponto constrói padrões dicotômicos, que se relacionam positivando e negativando de acordo com interesses de uma ordem dominante. Nestes casos o relacionamento antropológico entre o Eu e o Outro, os significados são constituídos de forma contrastante. O Eu se assume positivamente e se fundamenta em sua negação ou repressão de algo que se representa como oposto a ele, o Outro. Esses pares dualistas correlacionados são interdependentes, mesmo um afirmando ser independe do outro, são hierárquicos e se retroalimentam para concretizar sua existência. No imaginário hegemônico, os dualismos distintos no valor acabam por significar conceitualmente o mundo e a anteposta superioridade valorativa do Eu corrobora para a subjugação do Outro, distorcendo e desvalorizando sua imagem. Tendo em vista este panorama do sistema relacional de poderes no ecossistema, [...] a libertação da natureza [...] não será plenamente alcançada sem a libertação das mulheres: vínculos conceituais, simbólicos, empíricos e históricos entre as mulheres e a natureza, como são construídos na cultura ocidental, requerem que feministas ambientalistas abordem esforços libertadores conjuntamente [...]. (Gaard, 2011, p. 198) A dicotomia natural/antinatural, correlacionada à naturalização da procriação, e as associações simbólicas das mulheres e da sexualidade à procriação, formam uma equação de correspondência direta entre natural-sexualidade-procriação-mulher. Todo esse aparato ideológico de intercruzamentos simbólicos é familiar as feministas. O movimento de naturalização da sexualidade é utilizado tanto para oprimir as mulheres quanto os queer. A exemplo como a Psicologia ainda encara a transexualidade (referida como transexualismo), segundo o DSM-IV e o CID esta é uma patologia ou transtorno mental. Existe um movimento de desumanização das identidades trans por meio do discurso naturalizador. Segundo Butler (2003) o gênero é um campo 6 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA politicamente neutro onde a cultura atua e discursa a partir de uma “natureza sexuada”, e os trânsitos de gênero são antinaturais e patológicos. Assim um dos desafios das vertentes contemporâneas do feminismo é incorporar as discussões sobre transexualidade, na medida em que convergem na proposição de transpor a “essencialização do ser” através da correspondência direta de “ser mulher” ao sexo biológico. Portanto a inserção desta discussão levanta debates intensos, pois [...] não podemos mais falar em “mulher” e sim “mulheres”. Entretanto, com essa polêmica das transexuais percebemos que, mesmo com a ampliação do termo, o feminismo (ou pelo menos uma parte dele) ainda considera a marca sexual como definidora de gêneros. [...] Aparentemente, a polêmica reside na idéia de que a transexual um dia ter sido homem [...] (Melo, 2008, p. 554). Ou seja, um “homem biológico”. Todavia assumir esse posicionamento político-ideológico seria incoerente com os questionamentos das discussões feministas ao longo de sua história de militância. Categorizo pessoas trans aquele que transita entre os gêneros (transexuais, travestis e transgêneros). O gênero não é uma identidade fixa ou parte da essencialidade do sujeito social, assim este é uma performance localizada em [...] uma estrutura de relações e, portanto, diz respeito a todos, esclarecendo-nos sobre os meandros das estruturas de poder e os enigmas da subordinação voluntária em geral, além de originar um discurso elucidador sobre a implantação de outros arranjos hierárquicos na sociedade, ao nos permitir falar sobre outras formas de sujeição, sejam elas étnicas, raciais, regionais ou as que se instalam entre os impérios e as nações periféricas (SEGATO, 1998, p. 02). Na terceira onda feminista, como análise crítica da onda anterior, a perspectiva analítica do movimento está na desconstrução da mulher como uma única unidade categórica, questionando-se outras nuances do gênero, como a transexualidade. Neste ponto observa-se o encaixe e a interlocução entre novas perspectivas dos estudos feministas e estudos queer. O resultado deste encaixe se expressa no engendramento de uma análise crítica que evidencia, não podendo mais cristalizar nem encobertar, as especificidades que atravessam o corpo categórico de representação da “mulher” – classe, etnia, gênero, orientação sexual etc. A resultante revisita o significado do sentido de gênero contemporâneo, empodera determinados projetos políticos e influencia o movimento social de pessoas trans – o Feminismo “Trans” ou Transfeminismo5. 5 O Transfeminismo é um conceito relativamente novo onde há a inserção de pessoas trans na pauta feminista, ou seja, a inserção dos discursos transexuais e transgêneros ao discurso feminista com questões relevante a todas as “mulheres”. Além disso, esta critica as categorizações de feminilidade e masculinidade pautada no binarismo, pois até 7 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A partir da qual se funda a possibilidade de diálogo entre os discursos dos transexuais e transgêneros com as discussões feministas, reconfiguram-se [...] ações e relações sociais não isentas de conflitos que os autores em rede constroem suas novas plataformas políticas e significados simbólicos para as lutas, observando-se, por um lado, o direito à diferença, dentro de determinados limites ideológicos e éticos e, por outro, a unidade possível de ação, não necessariamente homogênea, mas complementar e solidária. (SCHERER-WARREN, 2009, p.13) O “Transfeminismo” é de grande importância na contribuição para ressignificação de conceitos e revisão da pauta reivindicatória do movimento contemporâneo de “mulheres”. Portanto, a originalidade desta interlocução está em ampliar a capacidade de absorver e articular demandas sociais e, assim, reconfigurar de forma mais eficaz as estratégias de instrumentalização de ações políticas concretas na esfera pública com intuito de proporcionar maior visibilidade às pessoas trans e de fortalecimento político aos movimentos. Uma gestão política inteligível e capaz de questionar a universalidades no plano da concretude destas ações, incrementada por diferentes pertencimentos no âmbito de todas as esferas sociais. Apesar da tentativa de promoção de discussões emancipatórias, ao longo do século o pavor pelo erótico, renegado como fenômeno social ao universo obscuro, faz com que as sexualidades “desviantes” continuem sendo oprimidas por discursos científicos6. Nas primeiras três décadas do século XX, na Argentina, Brasil e outros países da América Latina, eugenistas, físicos, psiquiatras e juristas engajados em campanhas para “medicalizar” o que se tornou cada vez mais conhecido como homossexualidade, alegaram que esse assunto não era uma questão meramente moral, [...] mas algo que também requeria ação de profissionais cujo objetivo era atentar para os riscos dessa “doença” social e pessoal. (Green, 2003, p. 22). Haja visto o exaustivo acompanhamento das pessoas trans pelos profissionais da Psicologia, pois estes são responsáveis pelo laudo de transexualidade, que define a feminilidade daquelas, um documento obrigatório para liberação da “cirurgia de redesignação sexual”7. Às trans como cidadãos de direitos, reservam-nas o direito de ter autonomia em suas escolhas, sejam elas pelas então o feminismo não tinha dado conta de representar às trans. Estas com corpos que não são conforme ao modelo normativo da sociedade ocidental, são impactadas pelo discurso médico patologizador orientado por protocolos cujo objetivo é regular e reproduzir o binarismo e a biologização do gênero. 6 Desta forma tais noções enquadram a transexualidade, como integrante do elenco das sexualidades queer, à estes moldes em um determinado contexto temporal. 7 A “cirurgia de redesignação sexual” é um procedimento cirúrgico pelo qual uma pessoa muda sua a aparência física e a função de suas características sexuais é mudada para aquelas do gênero/sexo oposto. É parte do tratamento para a “desordem do transtorno” de identidade para transexuais e transgêneros. 8 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA cirurgias as quais julgarem adequadas, ou até mesmo em optar manter o corpo da forma como se sentir melhor. Além disso, a modificação corporal na transexualidade não é um ponto crucial para sua identificação de gênero, até mesmo por que se fosse desta forma estaria reproduzindo a lógica binária, a qual as análises mais críticas tentam se desvencilhar desta biopolítica ocidental dos corpos. É necessário deslocar os entraves deste pensamento político-ideológico para uma discussão crítica mais profunda sobre políticas públicas e atribuição de gênero/sexualidade à cidadania. Desta forma Se uma demanda sobre desigualdades sociais, econômicas ou culturais for tratada somente como questão de diferença social, sem que se considerem todas as outras condições que a igualdade supõe, poderá aprisionar os sujeitos de um movimento em grupos ou tribos fechados, com certas condicionalidades. As demandas devem ser referenciadas pela igualdade de condições – de acesso, uso etc., segundo as condições históricas concretas de dado momento histórico – e não por condições de naturalidade das diferenças ou externalidades impostas. (Gohn, 2008, p. 15) Torna-se legítima toda demanda emergente desde que não seja em detrimento de uma outra classe, sendo este um princípio de uma sociedade livre e mais igualitária. Histórias, relatos e impressões subjetivas: uma etnografia política do surgimento e atuação da ASTRAES na cidade de São Mateus8 A abordagem do movimento trans no Estado do Espírito Santo é uma tarefa inquietante ao deparar-se com as especulações existentes e as articulações que o movimento apresenta ao longo de sua história. A fim de melhor entender a rede de elementos que configuram o movimento local, busquei realizar um trabalho de campo que pretendeu primeiramente reconhecer os atores sociais relevantes em sua vinculação ao objeto, e dando continuidade ao trabalho foram feitas entrevistas com o objetivo de compreender, com a análise posterior destas, os aspectos do fenômeno social trans em São Mateus/ES. Contudo a partir deste levantamento inicial de mapeamento e identificação da “origem” deste movimento na localidade, foi de competência de uma prática etnográfica, como mediação pretendida neste trabalho, buscar reconhecer os sujeitos “incluídos” e “excluídos” do reconhecimento de direitos. Estes ao serem identificados, pela abordagem antropológica, “[...] na 8 Município do litoral Norte do Espírito Santo (ES). 9 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA realidade social dentro do contexto atual da luta de direitos, passam a existir socialmente, cobrando sentido para as ações dos diversos agentes” (ALONSO, 2008, p. 24). Considera-se que existe no fazer etnográfico uma interlocução entre os atores numa rede de significações onde é considerada a autoridade de quem fala9, e que articulada à teoria antropológica são propostas reflexões teóricas sobre as estruturas relacionais na práxis política dos sujeitos existentes. Desta forma, o desdobramento e a relevância de uma etnografia política se reflete na produção de uma compreensão concreta sobre o sistema de funcionamento sociopolítico inserido em um “complexo de subjetividades”, capazes de provocar efeitos nas estruturas sociais, na reflexão sobre os processos políticos e na viabilização de ações políticas10. Nas aproximações iniciais pretendidas buscamos entender os nexos e as representações simbólicas das ações nas falas ouvidas. Foram entrevistadas três pessoas trans ligadas ao movimento – Liliane Anderson, Sophia Simpson e Paula Soares – dentre estas, duas são fundadoras da ONG ASTRAES (Associação de Travestis e Transgêneros do Espírito Santo) e outra é a atual tesoureira da instituição. Conformar o histórico do surgimento deste movimento no âmbito local e suas nuances é uma tarefa extensa, no entanto, na entrevista levanto questões como: Como e por que o movimento trans surge em São Mateus/ES? Quem são os protagonistas? Quais as parcerias desenvolvidas que culminam na fundação desta instituição da sociedade civil? Quais são os aliados ao movimento? As entrevistas cedidas pelas protagonistas que projetaram a instituição em seu início, e que atualmente participam ativamente ou como colaboradoras, levantam histórias muito ricas em detalhes. No relato surgem vários aspectos simbólicos e um complexo de “interesses” ao longo de cada trajetória de vida apresentada nas entrevistas. Dentre estes aspectos surgem temas como “movimento artístico”, “reconhecimento social”, “visibilidade social”, rede de solidariedade. Desta forma o projeto no campo da visibilidade social das trans, somado às parcerias políticas surgidas ao longo do percurso idealizador do projeto culminaram no engajamento e na formação da ASTRAES. A história começou a tomar forma na década de 80 com François, a “Dendeca”, na cidade de Linhares, onde promovia a participação das “meninas”11 nas alas dos blocos carnavalescos, movimento este que fortalecia a relação social entre as trans e a população local com uma certa 9 Proposição encontrada no artigo ALONSO (2008) que foi inspirada em Malinowski (1935; 1985). 10 Questionamento semelhante pode ser encontrado, a título de informação, no livro de Marcio Gooldman (2006). 11 Nas entrevistas aparece constantemente a palavra “meninas”, utilizada para identificar as transexuais, travestis e transgêneros. 10 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA tranquilidade. Com essa visibilidade, as trans vinham de quatro municípios do Espírito Santo Linhares, São Mateus, Colatina e Nova Venécia – e se instalaram em São Mateus ao longo do tempo, pela abertura que se criou a partir das expressões artísticas existente na cidade, e formando uma rede de solidariedade entre elas. Uma das entrevistadas neste estudo foi aprendiz de François no ofício da confecção de fantasias para o carnaval. Esta por ser natural de São Mateus, passou a desempenhar suas habilidades nesta cidade e em seus relatos conta que abriu uma casa que apresentava shows de transformismo chamada “Asa Branca” em 1986, onde se apresentaram muitos artistas de âmbito nacional. Sendo assim, a casa ganhou grande repercussão social ao fazer shows e “copiar o transformismo do Silvio Santos, o transformismo dos programas do Globo de Ouro [...] e a sociedade aplaudia”, o que incentivou o surgimento de grupos de teatro na cidade12, conforme relata outra entrevistada. A partir destes shows performativos, que geralmente eram musicais, o que se expressa é a possibilidade de materialização de um “reconhecimento social”, de um certo status social. A discussão sobre reconhecimento dos sujeitos perpassa pela necessidade de fortalecimento das identidades, o qual lhes proporciona autonomia nas sociedades pluralistas e democráticas. Portanto uma das dimensões do reconhecimento é a partir da estima social, como discute Honneth em sua teoria do reconhecimento, no sentido de um prestígio adquirido pela contribuição de algo concreto na sociedade. Nas sociedades modernas, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às finalidades gerais, o valor das capacidades associadas à sua forma de vida (HONNETH, 2003 apud MENDONÇA, 2007, p. 173). Um reconhecimento através do trabalho “[...] de tentar ajudar a quem precisa, pra tentar defender a população de alguma forma [...] tem que fazer a diferença”. Em outra fala registrada esse reconhecimento social se efetiva no momento em que as apresentações artísticas se deslocaram para o Teatro Anchieta13, espaço físico cedido pela igreja – foi devido ao “respeito a minha pessoa”. Embora este reconhecimento se concretize na esfera social, existem limitações que se expressam nas regulações sociais. É recorrente na fala das trans a analogia dos corpos domesticados aparecerem no discurso em forma de “postura exemplar”, já que o respeito é conquistado por um 12 Cogita-se entender que na história da cidade de São Mateus a abertura para a expressão artística acontece pelo fato desta ter sido fundada no entorno de uma região portuária, o Porto de São Mateus banhado pelo Rio Cricaré, o que possibilitou o contato externo com outras culturas e a diversidade das expressões culturais. 13 Prédio em anexo à Igreja Matriz de São Mateus. 11 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA comportamento de forma mais “branda, por que era mais fácil as pessoas quererem admirar”, sendo, também, este comportamento um parâmetro para as outras que venham a agregar ao grupo. Em paralelo, o relato da trajetória social de outra entrevistada, natural do Norte de Minas, e que acaba por se instalando em Itaúnas14 devido às oportunidades de trabalho que surgiram. Seu primeiro contato com movimento social foi na década de 90 participando da Associação de Moradores na localidade. Apesar de não ser da cidade, o que as pessoas nativas do local consideravam como “forasteiro”, no entanto, esta foi conquistando espaço por participar ativamente das questões na associação. Assim a população ao observar sua atuação, passa a “admirar” seu trabalho pelo do engajamento frequente em embates com um fazendeiro local, na época gestor público de Barra do Sahy, devido ao descaso com que tratava a administração pública de Itaúnas e o acesso da população local às políticas na área da Saúde. As eventualidades que emergem ao longo de sua trajetória, convergem em seu contato eventual com uma Professora de Antropologia ligada ao projeto “Sereias de Copacabana”, o qual surge a oportunidade de se transferir para o Rio de Janeiro para participar do mesmo. Como Green (2003) aponta em seu estudo que frequentemente em 1980 e 1990 a história do ativismo no campo da sexualidade “[...] se formou em torno da AIDS, ligado a educação, prevenção e assistência [...]”. Seguindo esse parâmetro, surgiu para a entrevistada a possibilidade de contato com ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, onde desenvolveu um trabalho por alguns meses sob supervisão de Richard Guy Parker15. Desta forma passou a assumir gradativamente uma posição de “representante” do Estado nas esferas político-sociais, o que até então ainda não havia sido formalizado nenhuma pessoa articulada que pudesse representar o movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) do Estado do Espírito Santo. O seu engajamento político culminou em sua entrada na ANTRA (Articulação Nacional das Travestis, Transexuais e Transgêneros do Brasil). Posteriormente em parceria com Gabriela Leite16 do Grupo DAVIDA, articulou um projeto em Braço do Rio17 com enfoque nas profissionais do sexo, desempenhando o papel de agentes multiplicadoras na conscientização para redução da vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis. No desenrolar das articulações 14 Pequena vila pertencente ao Município de Conceição da Barra, litoral Norte do ES. 15 Pós-Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente como colaborador voluntário exerce a função de Diretor Presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids (ABIA). 16 Atual Presidente e Fundadora da ONG Davida, instituição criada “Janeiro em 1992, que promove a cidadania das prostitutas. Os principais instrumentos do Grupo Davida são ações na área de educação, saúde, comunicação e cultura, de nível local e nacional”. Disponível em: http://www.davida.org.br/ 17 Distrito do Município de Conceição da Barra, litoral norte do ES. 12 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA surge Bela Feiman S. Silva, naquele momento como Coordenadora do CTA18 de São Mateus, idealizadora do Projeto Borboleta19, que está funcionando até hoje. Inicialmente o projeto era para desempenhar ações de intervenção com as profissionais do sexo em casas de prostituição e no “comércio sexual” nas estradas, mas que em momento oportuno se extendeu para a população LGBT. Buscando possíveis colaboradores, surge assim um convite para participação no projeto feito à duas pessoas trans, as mesmas que cederam entrevistas neste estudo, uma pelo histórico de articulação e engajamento político local e a outra por ter reconhecimento social, por ser “respeitada” pelo seu trabalho profissional na localidade. Devido à oportunidade de parceria com o Projeto Borboleta e a necessidade de institucionalizar a mobilização social das trans para poderem participar dos projetos e conseguir financiamento público para desempenharem seus trabalhos em conjunto com o CTA, neste contexto que surge no ano de 2002 as ASTRAES.20 Há de se considerar que essa parceria entre mobilização da sociedade civil e Governo, é um campo conflituoso. Existe uma tensão ideológica contínua e que se renova a cada mudança de Governo. A possibilidade de maior ou menor atuação da instituição se materializa de acordo com o direcionamento e interesse da gestão política atual. Atualmente esta disputa de materializa, por exemplo, a partir da concessão de espaço físico dentro do CTA. Contudo, também existem as limitações financeiras por depender de verbas direcionadas aos projetos públicos e por ser um planejamento vinculado ao PAM21 Municipal, plano este apresentado pelo Gestor de Saúde e aprovado pelos conselhos de saúde locais. Em um relato levanta-se essa questão: A instituição ela trouxe, ela trouxe pra área do CTA, que era uma área abandonada, trouxe uma discussão mais articulada pra dentro do Município. Por que era uma discussão que ficava muito voltada pro Estado [...] na hora que chegava no município era uma dificuldade muito grande de se articular [...] com o Secretário de Estado. Tinha uma dificuldade muito grande, mas quando o Secretário sabia que o orçamento dele não poderia dar conta [...]. Um dos aspectos interessantes a se destacar são as parcerias que surgem com outros movimentos atuantes na localidade. Relevante entender as motivações destas parcerias e os 18 Centro de Testagem e Aconselhamento DST/Aids 19 “O Projeto Borboleta iniciou-se em São Mateus-ES, em 2002, como um projeto estratégico junto às profissionais do sexo, para a redução de sua vulnerabilidade às DST/Aids, sendo resultado da parceria entre Ministério da Saúde, que financiou o projeto, e Secretaria Municipal de Saúde, responsável pela execução”. Disponível em: http://www.saude.es.gov.br/download/Boletim_No_13.pdf 20 Relatos de uma das entrevistas. 21Considerações sobre o PAM (Plano de Ações e Metas) pode ser acessado no site: http://www.aids.gov.br/pagina/oque-e-transferencia-fundo-fundo 13 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA desdobramentos da formação desta rede social. Como argumenta Costa (2006), utilizando conceito de outros autores22, ao definir que estas redes são processos de interação social não apreensíveis a partir da idéia de grupo social, quando as relações sociais aparecem altamente complexificadas entre indivíduos de pertencimentos distintos, sobretudo nas sociedades complexas urbanas. (p.37) Assim foi desenvolvida uma articulação com movimento negro local, a qual gerou um projeto com atuação na comunidade quilombola, promovido com parceria entre a Prefeitura da Cidade e ASTRAES. O projeto finalizou recentemente seu tempo de atuação, com possibilidade de ser renovado, e o seu objetivo era empoderamento da mulher quilombola através das questões de saúde e prevenção. A dinâmica utilizada era de encontros periódicos, promovendo debates de assuntos em torno da sexualidade e do universo da “mulher”, os quais eram levantados de acordo com a fala em tempo real das mulheres presentes. A trajetória de ação política da ASTRAES no cenário capixaba apontam ações marcantes. O Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de DST e Aids, apóia a realização do Projeto Tulipa (Travestis Unidas Lutando Incansavelmente pela Prevenção da Aids). A capacitação do projeto na região Sudeste foi organizada pela ASTRAES, e o “objetivo da oficina é capacitar futuras lideranças para o protagonismo na prevenção das DST e Aids e na garantia dos diretos humanos [...] Além das capacitações programadas, o projeto também prevê a realização de articulação das lideranças para trabalho em rede, estabelecimento de parcerias de travestis e transgêneros com outras redes de organizações sociais e com secretarias municipais e estaduais de saúde e direitos humanos”23. O evento aconteceu entre 7 e 9 de Setembro de 2006, com seu encerramento acontecendo junto com a “I Parada do Orgulho GLBT” em Vitória. Outra ação foi desenvolvida em parceria com o Projeto SOMOS, executado no Espírito Santo pela ASTRAES e Grupo Plural24. “O Projeto Somos foi idealizado pela ASICAL – Associação pela Saúde Integral e Cidadania na América Latina e no Caribe; é realizado pela ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros em parceria com o Programa 22 Conf. Bott (1976) e Mitchell (1969) 23 Disponível em: http://www.aids.gov.br/noticia/projeto-tulipa-capacita-travestis-e-transgeneros 24 Surgido em 2004, atualmente é um programa de extensão, vinculado ao Departamento de Comunicação social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que visa articular e projetar ações de pesquisa, estudo e intervenção sobre a temática da diversidade sexual. 14 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde do Brasil”25. O Projeto SOMOS protagonizou, em âmbito nacional, uma intervenção com promoção de ações educativas no campo da prevenção do HIV/Aids, com o desenvolvimento institucional e fortalecimento de organizações da sociedade civil, que atuam no campo da luta pela cidadania do público LGBT. Contudo importante pontuar que a ASTRAES promoveu relevantes ações políticas, imprimindo fortalecimento político no Estado do Espírito Santo. Considerações finais Este estudo buscou indicar pontos que deram sentido ao surgimento do movimento trans no Estado do Espírito Santo. Procurou entender melhor como este movimento se expressa no Estado, a fim de tecer maior visibilidade ao movimento. Neste sentido, feito o reconhecimento de protagonistas sociais do respectivo estudo na localidade de São Mateus, onde se deu sua origem, em seguida foram realizadas entrevistas como o objetivo de analisar os fluxos de ações e interesses que convergiram na fundação da ONG ASTRAES. A partir desse contato inicial, foi de grande importância para o desenvolvimento do trabalho entender que projetos de diferentes interesses e de diferentes trajetórias particulares em negociação são campos férteis para materialização de ações, e que estes processos de desenvolvimento das relações se inserem numa rede social em prol de algum objetivo. Há que se considerar que, não sendo diferente do que foi apresentado nos estudos sobre a institucionalização dos movimentos sociais a partir da década de 90 no Brasil, o projeto idealizador da ONG ASTRAES seguiu orientações semelhantes em sua fundação. A possibilidade de alguma visibilidade das trans se expressou na oportunidade de atuar como gestoras de projetos sociais a partir da instituição, mesmo com todas as limitações e conflitos inerentes que existem nas arenas políticas na relação Estado e movimento sociais. As articulações ocorridas ao longo do fazer político foram oportunidades de instrumentalizar as ações políticas e como estratégia de fortalecimento político. O reconhecimento social e uma “identidade” política são partes integrantes de uma existência social, fazendo-se importante as análises do funcionamento desta rede de ações políticas e sociais para entender as reproduções existentes e em que contextos estas ações se operam. Estas 25 Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/projeto_somos.pdf 15 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA são questões de um processo complexo, contingente e passível de transformações ao longo de sua dinâmica. Ainda há muito a que se acrescentar nas demandas de representação e reconhecimento do movimento trans. Criar, assim, possibilidades de práticas concretas de uma rede de solidariedade horizontal, ao qual seja considerado o discurso e as ações produzidas pelos múltiplos sujeitos coletivos que dão corpo as organizações civis. Para concluir, talvez um grande passo fosse identificar no Estado essa diversidade de mobilizações sociais locais, e como desafio examiná-los no sentido de investigação crítica positiva e de empoderamento dos mesmos. Desta forma, desenhar um mapa destes movimentos para que sejam articulados em rede como proposta de estratégia emancipatória. Referências ALONSO, Sara. O Fazer Etnográfico: políticas, mediações e definição de grupos. In: XI Congresso de Antropologia da FAAEE. Barcelona: Edição Donostia, Ankulegi Antropologia Elkartea, 2008, p. 15-35. BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento DST, AIDS e Hepatites Virais. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/noticia/projeto-tulipa-capacita-travestis-e-transgeneros>. Acesso em: 01 de abril, 2013. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COSTA, Sandra Regina Soares. Universo Sonoro Popular: um estudo da carreira de músico nas camadas populares. 2006. 223 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. ERNESTO, Laclau. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Edição n. 2, v. 1, Out. 1986, p. 01-09. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 19 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. GAARD, Greta Clair. Rumo ao ecofeminismo queer. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis: Edição n. 1, v. 19, Jan./Abr. 2011, p. 197-223. GOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. GOLDMAN, Marcio. Como funciona a Democracia. Uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 367 f., 2006. 16 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA GREEN, James N.. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América Latina. In: Cadernos AEL – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas: Edição n. 18/19, v. 10, 2003, p. 13-43. LACLAU, Ernesto. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. In: Revista Brasileira de Estudos Sociais, n. 2, v. 1, Out. 1986. Disponível em: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_02/rbcs02_04.htm>. Acesso em: 6/7/2008 MELO, Érica. Feminismo: velho e novos dilemas. Uma contribuição de Joan Scott. In: Cadernos Pagu. Campinas: Edição n. 31, Jul./Dez. 2008, p. 553-564. MENDONÇA, Ricardo Fabrino. Reconhecimento em debate: os modelos de Honneth e Fraser em sua relação com o legado Habermasiano. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba: Edição n. 0, v. 29, Nov. 2007, p. 169-185. OVERING, Joanna. Elogio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma comunidade amazônica. In: Mana. Rio de Janeiro: Edição n. 1, v. 5, Abr. 1999, p. 81-107. RODRIGUES, Léo Peixoto. Estruturalismo, pós-Marxismo e elementos da Teoria do discurso de Ernesto Laclau. . In: I Encontro Internacional de Ciências Sociais/III Encontro de Ciências Sociais do Sul: Democracia, desenvolvimento, identidade. Pelotas: 2008 SANTOS, Ana Cristina. Estudos Queer: Identidades, contextos e acção colectiva. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. Edição n. 76, 2006, p. 03-15. SCHERER-WARREN, Ilse. Ações coletivas, movimentos e redes sociais na contemporaneidade. In: XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, 2009, Rio de Janeiro. Movimentos sociais e póscolonialismo na América Latina. SECRETARIA DA SAÚDE DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Boletim epidemiológico DST/AIDS - Espírito Santo. N. 13, 2004, p. 14. Disponível em: <http://www.saude.es.gov.br/download/Boletim_No_13.pdf>. Acesso em: 01 de abril, 2013. SEGATO, Rita Laura. Os percursos do gênero na Antropologia e para além dela. In: Série Antropologia – DANI/ICS/UNB. Brasília: n. 236, 1998, p. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. Ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. 17