44 transTudo o que você sabe está errado

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trans
Tudo o que você sabe está errado
44
Mulher trans,
pesquisadora
em Teoria Queer
na Universidade
da Integração
Internacional
da Lusofonia
Afro-Brasileira
e transfeminista
texto Gabriela Loureiro e Helena Vieira
design fernanda didini e rafael quick
foto julia rodrigues
V
46
sobre o tema na imprensa),
respeito ao tipo de atração, que pode
de para o tema, por outro cresce a
ria terceiro gênero nos documen-
ma de xingamentos e ataques. Não é por acaso
Valentim não quer saber
ser por pessoas do mesmo sexo, do
polêmica: a palavra “gênero” virou
tos oficiais e as cotas de emprego
que essa é a primeira pergunta feita a respeito de
de classificações homem x
sexo oposto, os dois ou nenhum (ve-
sinônimo de maldição para grupos
e de educação para o grupo. As hi-
um ser humano, e também uma das mais impor-
mulher ou gay x hétero. E
ja quadro na pág. XX). Ou seja, uma
religiosos conservadores. No Brasil,
jras são uma prova de que gênero
tantes. Mesmo quando não se fala abertamente
ele não está sozinho: segun-
pessoa transexual não é necessaria-
nunca se falou tanto no assunto co-
tem muito mais a ver com a socie-
sobre isso, é como se só existissem dois grupos
do pesquisa do instituto nor-
mente homossexual. Na verdade,
mo nos últimos meses, depois que
dade na qual vivemos do que com
de pessoas: o dos homens e o das mulheres. Ao
o Plano Nacional de Educação en-
nossa identidade em si. E trazem à
nascer, você é automaticamente colocado num
dos dois, baseado nos seus órgãos genitais. Se
te-americano YouGov, 46%
transgênero é um termo que abriga
dos jovens entre 18 e 24 anos
todos que não se identificam com o
trou em votação e o termo “gênero”
tona o debate: só há uma forma de
se definem heterossexuais, e
gênero atribuído a eles no nascimen-
foi banido do texto após discussões
ser homem ou mulher? Ou há uma
tiver um pênis é menino, se tiver uma vagina,
outros 6% se dizem homosse-
to e também quem não se identifica
acaloradas no Congresso.
multiplicidade de masculinidades
menina. Dali em diante, sentirá a pressão para
e feminilidades possíveis?
se conformar com as características designadas
xuais. Isso significa que 48%
com gênero de forma alguma, que é
das pessoas estão fora desse es-
neutro, fluido. Como Valentim. “Não
Corpos binários
pectro. É que a identidade de gê-
nasci no corpo errado, a sociedade é
nero é um pouco mais complexa
que tem uma leitura errada dele”, diz.
do que nos ensinaram: diz respeito
“É menino ou menina?” costu-
a você. Meninos gostam de azul, jogam videoga-
Durante milhares de anos, as hijras
ma ser a primeira pergunta depois
me e são agressivos, enquanto meninas gostam
— o terceiro gênero, composto por
do anúncio de uma gravidez. Se a
de rosa, brincam de boneca e são naturalmente
Bruce Jenner era um jogador
transgêneros, eunucos e interse-
criança não se adaptar ao que é es-
passivas e emotivas. Duas categorias para toda a
sobre quem somos, mas é regulada
de futebol universitário quando
xos — foram líderes espirituais e
perado do comportamento de uma
raça humana. Será o bastante? De acordo com os
por instituições sociais e por nossa
seu treinador o convenceu a tentar
políticos que celebravam casamen-
menina ou menino, é provável que
estudos de gênero, um campo de pesquisa acadê-
Valentim* nasceu em Colorado, no
interior do Paraná, há 16 anos. Des-
necessidade de categorizar indiví-
o atletismo. Depois de muito trei-
tos, abençoavam crianças e ocupa-
passe o resto da sua vida ouvindo a
mica que surgiu dos estudos feministas e pós-es-
duos e suas atividades.
namento, competiu pelos Estados
vam posições de prestígio na jus-
mesma pergunta — só que em for-
truturalistas dos anos 1960, a resposta é não.
O conceito de transgênero ainda
Unidos nos Jogos Olímpicos de
tiça indiana. Elas
de pequeno, seu comportamento fugia do padrão
é muito complexo para a maioria
1976, quando ganhou a medalha de
estão
esperado para um menino: gostava de brincar de
das pessoas, que não entendem o
ouro na prova de decatlo. O último
em textos sagra-
bonecas, preferia andar com garotas e às vezes
que isso tem a ver com identidade.
atleta a levar o título, quatro anos
dos do hinduísmo,
vestia as roupas de suas tias. Não pegou muito
Muitos acreditam que transexuais
antes, era um soviético. Em meio
como
bem na família. Era comum Valentim ouvir coisas
são apenas pessoas que nasceram
à Guerra Fria, Jenner foi aclamado
bharata e o Kama
como “vira homem” e “viadinho” durante a infân-
no corpo errado, um homem preso
como o grande herói norte-ameri-
Sutra. Foi assim
cia. O assédio machucava, mas, ao mesmo tempo,
presentes
o
Maha-
no corpo de uma mulher ou vice-ver-
cano. Foi convidado a dar palestras
até que a Grã-Bre-
deixava-o confuso. Como ele poderia ser gay se
sa. Outros acham que para ser con-
motivacionais para inspirar seus
tanha
também se sentia atraído por meninas? Como só
siderado transgênero é preciso ter
compatriotas durante o conflito.
a Índia e adotou
tinha referências de homo e heterossexualidade,
feito cirurgia de mudança de sexo.
Mas o maior símbolo vivo do sonho
uma lei, em 1897,
Valentim acabou se definindo como gay. Até que
Quando se fala em transexualidade
norte-americano era só uma ence-
que
a modelo transgênera Andreja Pejic veio ao Brasil
há uma imensa confusão entre iden-
nação. Jenner, na verdade, sempre
que ser hijra era
para um desfile e foi entrevistada por uma rede de
tidade de gênero e orientação se-
foi uma mulher presa no corpo de
um crime. Desde
TV aberta. Na época, ela se apresentava como um
xual. É comum pensar que mulheres
um homem — no caso, o de um
então elas foram
menino andrógino. A identificação foi imediata,
trans e travestis são “tão gays que vi-
atleta famoso no mundo inteiro.
marginalizadas e
e Andreja tornou-se sua grande referência. Valen-
raram mulher” — o que, obviamen-
Apenas recentemente ele anunciou
obrigadas a men-
tim começou a pesquisar sobre a modelo na inter-
te, não é verdade. Sexo biológico é
que é transexual e, na capa da edi-
digar ou se pros-
net e conheceu a página Travesti Reflexiva, no Fa-
diferente de gênero e orientação se-
ção de julho da revista Vanity Fair,
tituir para sobrevi-
cebook. Foi quando entendeu o que é gênero e a
xual. O primeiro é referente ao órgão
declarou: “Me chame de Caitlyn”.
ver — só voltaram
diferença entre este e a orientação sexual. Entrou
sexual do corpo humano. O gênero
Em várias partes do mundo, tran-
a conquistar seus
em contato com outras pessoas trans nas redes
é a identidade do que é considerado
sexuais ganham espaço na mídia,
direitos no ano
sociais e descobriu sua identidade: não binário e
feminino ou masculino, que não é
como a modelo brasileira Lea T e
passado, quando
bissexual. Assim como a cantora Miley Cyrus e
universal e pode variar ao longo do
a ex-BBB Ariadna. Se por um lado
o governo indiano
a atriz Kristen Stewart (que têm falado bastante
tempo. Já a orientação sexual diz
isso ajuda a aumentar a visibilida-
instituiu a catego-
*Nome fictício para proteger a identidade do personagem
ABC do gênero
As palavras usadas nas discussões sobre gênero podem ser
incompreensíveis. Em caso de dúvida, recorra a este glossário:
colonizou
estabelecia
AssexuaDO
Pessoa que não sente atração
sexual por ninguém nem
vontade de fazer sexo
Cisgênero
Pessoa que se identifica com
o gênero designado a ela no
nascimento. Exemplo: nasceu
com vagina, foi designada
mulher e assim se identifica
Cissexismo
Ideias e discursos segundo os
quais o gênero é definido pelo
corpo, não pela identidade
Crossdresser
Pessoa que usa roupas associadas ao gênero diferente
daquele designado a ela na
hora do nascimento
Drag queen e drag king
Artista performático(a) que se
veste com roupas femininas
(queen) ou masculinas (king)
para apresentações, independentemente do gênero
Homofobia
Repulsa e preconceito contra
pessoas homossexuais
Intersexual
Pessoa que nasceu com genitália ambígua, antigamente
chamada de hermafrodita
(essa palavra não se aplica à
espécie humana)
NB
Não binária, ou seja, neutra
— não se identifica com o
gênero masculino nem
com o feminino
Pansexual
Aquele que sente atração
sexual por pessoas, independentemente do gênero
Queer
Originalmente era uma
ofensa, já que em inglês significa “estranho”, mas passou
a ser um termo de afirmação
política de todos os “dissidentes” — isto é, aqueles que
não se encaixam na categoria
“heterossexual e cisgênero”
Transgênero /
transexual
Pessoa que não se identifica
com o gênero determinado
no nascimento. Exemplo: foi
designada como homem, mas
se identifica como mulher
Transfobia
Preconceito e discriminação
contra pessoas trans, aversão
Travesti
Definição em disputa. É
sinônimo de transexual, mas
marginalizado. Ou um terceiro gênero. O termo é usado
como afirmação política em
razão do estigma enfrentado
pelos travestis no país
As desvantagens
de ser invisível
Como é a discriminação de pessoas trans
nos EUA, onde há pesquisa sobre o tema:
pessoas que não se reconhecem
próprio pai. Ele não foi o único. Em
proteção aos cidadãos — família,
em nenhum extremo (veja o dicio-
2014, 326 pessoas foram assassina-
hospitais, prisões e escolas — foram
das no Brasil por não se encaixarem
consolidadas como mecanismos de controle.
nessas regras, segundo relatório
Mas o filósofo não acreditava que o poder de
do Grupo Gay da Bahia (GGB). É
coerção tinha uma só origem, como o Estado,
Alex era um menino de 8 anos da
um número 4% maior do que o re-
e sim que surgia de diversas fontes: são os mi-
Ainda
periferia do Rio de Janeiro que gos-
gistrado no ano anterior. Entre as
cropoderes que transformam as condutas das
nário na página anterior).
Gênero e disciplina
48
ligamos
tava de dança do ventre e de lavar
vítimas, 134 gays, 134 travestis, 14
pessoas. Uma das formas de exercer poder é por
gênero ao se-
louça. Seu pai, Alex André Moraes
lésbicas, 3 bissexuais, 7 amantes de
meio de discursos. Assim, as piadas, o modo co-
xo biológico e
Soeiro, de 34 anos, não aprovava o
travestis e 7 heterossexuais confun-
mo nos referimos a alguém e até os xingamentos
nos acostumamos
jeito afeminado da criança e tentava
didos com homossexuais. A men-
contribuem para normalizar alguns comporta-
a pensar que isso é na-
corrigi-lo. As surras eram recorren-
sagem que essas estatísticas sobre
mentos e estigmatizar outros — exemplo: usar a
tural. No âmbito da pato-
tes e tinham como objetivo ensi-
violência contra a população LGBT
expressão “que gay!” quando alguém demonstra
logia , os indivíduos que fu-
nar o filho a andar como homem.
passa é clara: se você desobedecer
seus sentimentos ou a palavra “viado” ou “traves-
giam dessa naturalidade foram
Como o pequeno não chorava en-
às regras de gênero vai sofrer uma
ti” como xingamento. Judith utiliza essa premis-
chamados de “transexuais” — ou seja, desvian-
quanto apanhava, o pai batia ainda
punição física e pode até morrer. É
sa do discurso para tentar dissolver a dicotomia
tes. Recentemente, com os estudos de gênero,
mais. Um dia, a criança se recusou
o poder coercitivo de gênero como
sexo versus gênero. Para ela, vivemos numa or-
começaram a pensar que essa designação inicial
a cortar o cabelo para ir à escola e
forma de policiar as pessoas, de
dem compulsória que exige coerência total entre
e tida como “natural” é também arbitrária. Não
o pai resolveu acabar com
sexo, gênero e desejo sexual, que são obrigatoria-
há uma naturalidade exclusiva na relação gêne-
aquela desobediência. De
mente heterossexuais. A autora sugere, então, a
ro-genital. O que existe é uma identidade, uma
tanto apanhar, o fígado de
contestação das expressões de gênero, já que a
forma de se reconhecer. Ela pode ser um senti-
Alex foi perfurado e ele so-
identidade é formada com base na repetição de
mento de pertencimento, no caso da pessoa cis-
freu uma hemorragia in-
atos performativos, ou seja, atitudes e gestos que
gênero (aquela que se reconhece com o gênero
terna. Chegou ao hospital
que lhe foi atribuído ao nascer), ou uma identi-
morto, com hematomas
ficação diferente, no caso da trans, que pode se
pelo corpo todo e sinais
reconhecer com o gênero oposto, com nenhum
de desnutrição. Alex pa-
gênero ou com uma experiência de si que esca-
gou com a vida o preço de
pa ao sistema binário homem/mulher. Mas nem
não se adequar às normas
toda pessoa que não se reconhece como cisgê-
de gênero impostas pe-
nero é trans, já que existem nuances e variações
la sociedade e aplicadas
de pertencimento. É o caso da “queer”, classe de
de forma implacável pelo
Aos 8 anos,
Alex morreu
por não se
adequar
às normas
de gêneros
57%
foram rejeitados
ou abandonados
pela família
Entre
0,25%
e 1%
da população
norte-americana
se declara
transgênera
69%
já ficaram
desabrigados
70%
30%
Violência
sofreram
física ou sexual da polícia
3 em cada 4
transgêneros sofrem abuso
sexual na escola
45%
das pessoas
trans tentaram o
suicídio antes de
completar 24 anos
Fontes: Fundação Americana para Prevenção de Suicídio. Instituto Williams (Ucla)
constroem o que é feminino e masculino.
Fora dos livros
Vergonha
nacional
Por mais que a diferenciação de gêneros pareça
natural, ela não é. Boa parte dessa explicação está
no papel da medicina na Europa no final do século
18. Com a Revolução Industrial, a população europeia começou a se concentrar em áreas urbanas,
migrando do campo para as cidades. A concentração de pessoas de diferentes regiões num mesmo
acordo com Judith Butler, uma
lugar provocou surtos e doenças, que alavancaram
das mais respeitadas filósofas
a importância e o desenvolvimento da medicina.
de gênero da atualidade.
Áreas como psiquiatria, sexologia e psicanálise
Judith parte das premis-
viram nisso a oportunidade de categorizar doen-
sas do filósofo francês Michel
ças para atrair mais pacientes aos consultórios.
Foucault para explicar como
Assim, os especialistas substituíram os padres
as regras de gênero são per-
no papel de guardiões das práticas sexuais e de-
formáticas e não passam de
terminaram os comportamentos aceitáveis e os
fenômenos repetidos para
patológicos. Tudo que não tinha fins reprodutivos
simular uma ideia de natura-
foi considerado degeneração: homossexualidade,
lidade. Foucault disse que a
transexualidade, masturbação, prostituição. Ainda
disciplina é um instrumento
hoje, a transexualidade é considerada um trans-
de dominação e controle
torno mental pela medicina, como era a homos-
para domesticar comporta-
sexualidade até os anos 1970. “Os critérios ditos
mentos divergentes. Com
biológicos (anatomia, hormônios, cromossomos,
o Iluminismo, várias ins-
glândulas) são contraditórios, às vezes incoeren-
tituições de assistência e
tes. É só ver como os endocrinologistas forçam
O Brasil é o país mais violento para pessoas
trans, segundo a ONG TransGender Europe:
1.731
pessoas trans
foram mortas entre
2008 e 2015
1.350
dos assassinatos
aconteceram
na América Latina
Brasil
689 foram no
*As pesquisas
foram feitas com
dados de assassinatos reportados à
polícia. Não se sabe
quantos assassinatos aconteceram
até agora no total
no restante da
América
Latina,
60%
dos assassinatos
de pessoas trans*
49
Mais ou menos no mesmo período, cientis-
são descartáveis,
desconstrução
claro, mas é interessante questionar
principalmente jovens, que ainda
entre homens e mulheres com base no conhe-
qual é o interesse por trás dessas
estão em período de descoberta e
cimento da época, que era fortemente marcado
pesquisas e suas influências históri-
querem trocar experiências sobre
pelas políticas de gênero — ou seja, a dominação
cas. A produção de categorias biná-
corpo e identidade. “Ninguém con-
do feminino pelo masculino. Não é por acaso
rias e estáveis consolida relações de
trata travesti, e às vezes nem sequer
que a primeira figura de um esqueleto feminino
poder entre elas: homem sobre mu-
estudo elas têm, mas precisam de
só apareceu em um livro em 1759, com o objeti-
lher, heterossexual sobre homosse-
um emprego cada vez mais cedo pa-
vo de deixar evidente a diferença entre homens
xual etc. O binário é uma projeção
ra ajudar ou sustentar a família, cus-
(fortes e com o crânio maior que o feminino) e
arbitrária do “dimorfismo” corpo-
tear o mínimo que puder para fugir
mulheres (muito mais frágeis). Pouco mais de
ral, ou seja, a ideia de que existem
do iminente futuro de prostituição”,
um século mais tarde, o biólogo escocês Patrick
dois organismos distintos na espé-
disse Liége a GALILEU. Segundo a
Geddes usou a fisiologia celular para explicar
cie humana, um com pênis, outro
Associação Nacional das Travestis
que mulheres são mais passivas e conservado-
com vagina. Mas essa taxonomia
(Antra), 90% das travestis e tran-
ras do que os homens, que seriam mais ativos
biológica é falha, pois ela é incapaz
sexuais brasileiras se prostituem. Há
e passionais. Segundo Thomas Laqueur, conhe-
de dar conta dos corpos intersexos,
quem pense que essa é uma escolha
cido sexólogo norte-americano, não há dúvidas
aqueles que nascem com pênis e
quando, na verdade, a comunidade
de que a criação de teorias
vagina, ou com genitália ambígua/
TT (Travestis e Transexuais) sofre
sem embasamento so-
indefinida. Enquadrar as pessoas
imensa discriminação no mercado
bre diferenças entre
em gêneros, desejos e categorias
de trabalho — o que resta é a prosti-
os sexos influenciou
estáveis é também uma forma de
tuição e empregos como atendentes
o progresso cientí-
castração. Quando nos limitamos
de telemarketing ou cabeleireiras.
fico, bem como as
a isso, reduzimos e aniquilamos as
Bernardo Mota foi designado
interpretações
dos
possibilidades múltiplas de vivência
menina quando nasceu, mas desde
experimentos. Ainda
do prazer e do desejo. E, claro, mar-
pequeno fugia dos papéis ditos femi-
ginalizamos os desviantes.
ninos ao jogar bola e empinar pipa.
Vida de desviante
Expressão
A forma como nos comportamos é influenciada
pelo que sempre foi
considerado “feminino”
e “masculino”, mas essas
características são mais
fluidas do que parecem
In
te
rs
ex
a
o
Va
Expressão
movimentos
Orientação
coração
Andrógino
Sexo
Nem mesmo os órgãos
sexuais do ser humano,
extensivamente estudados pela biologia, são
tão binários assim
e
Qu
de casa mesmo sem ninguém tê-lo
em segredo um tratamento hormo-
mandado embora. Sofreu crises de-
nal. Cresceu com a mãe e a irmã,
pressivas por ser ridicularizado e, de-
com quem dividia as brincadeiras
samparado, tentou suicídio. Rompeu
sem estereótipos de gênero. Tem
relações com a família e mudou-se
dificuldades para sobreviver em
de Brasília, onde seus pais moram
um ambiente tão hostil e escasso
até hoje, para Uberlândia, uma das
de possibilidades como a periferia
poucas cidades do Brasil que dispo-
carioca. Por isso, criou um grupo no
nibilizavam acompanhamento para
Facebook chamado Cismitério, que
transição hormonal. Assim que che-
reúne milhares de pessoas trans,
gou à cidade, esse ambulatório foi
o
insultos verbais. Sentiu-se expulso
favela no Rio de Janeiro e iniciou
in
xual de 19 anos que mora em uma
Orientação sexual
Nascer com determinado
órgão sexual e identificar-se com certo gênero
não define por quem
nos sentimos atraídos
ul
ram reprimi-lo, foi alvo de piadas e
Heterossexual
Ho
er
sc
Liége Martins é uma jovem transe-
a
Identidade
cérebro
Quando se descobriu trans, contou
à família e foi massacrado: tenta-
gin
Sexo
genitais
Ma
Rodrigo Zanini,
22 anos, não é modelo.
Trabalha com moda,
é homossexual e se veste
de forma andrógina:
seu visual é feminino,
mas ele procura mesclar
com roupas masculinas
Identidade de gênero
Ainda hoje persiste a ideia
de que só podemos ser
“homem” ou “mulher”.
Mas essas são apenas
duas categorias, e há
uma variação enorme
entre elas, que pode ser
entendida como “queer”
l / tc
ua E
ex l /
s s ua
Bi sex
n
Pa
tas começaram a definir as principais diferenças
i
no
neira. Nem todos
r
ni
determinada ma-
ricas queer da França.
á
mi
se comportam de
Universidade de Lille II e uma das principais teó-
n
Fe
mens e mulheres
GALILEU Marie-Hélène Bourcier, professora da
i
Mulher
origem biológica da heterossexualidade”, disse a
B
Pênis
plicar por que ho-
l
que garantem ex-
suas mães. E não estamos preocupados com a
ua
mente científicos
nios como os fetos estão grudados ao ventre de
ex
estudos suposta-
transexualidade estão impregnadas de hormô-
ss
hoje transbordam
estrogênio que não existe. Essas explicações de
mo
um antagonismo hormonal entre testosterona e
Ho
50
Sexo, gênero, sexualidade e identidade são coisas diferentes
e podem variar num espectro bastante amplo. Entenda:
Fonte: It’s Pronounced Metrosexual.com Ícone: LVIS / The Noun Project
me
m
como lidamos
Não existe uma forma correta de ajudar pessoas trans* na família, no grupo de
suspenso, o que o fez se
hormonizar por conta
própria, com base
em informações
encontradas na
internet e com
medicamentos
clandestinos.
Ativista trans bissexual e membro
do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrata), Mota tem
sofrido para conseguir uma
vaga no mercado de trabalho. “Desde que saí de
casa fiz entrevistas para
todo tipo de emprego,
levava meu currículo com
meu nome social e passava
em todas as fases, até mostrar
meus documentos, onde consta o nome de regis-
Davi nasceu menina,
mas aos 7 anos molhou
todas as suas roupas
cor-de-rosa para não ter
de usá-las. Hoje é bem
andrógino e gosta de
pessoas, não importa
se homens ou mulheres
tro. A vaga desaparecia. Passei por no mínimo dez
entrevistas em que fui dispensado quando souberam que sou transgênero”, conta.
O que aconteceu com Bernardo no mercado
de trabalho e na família é chamado de transfobia — aversão à transexualidade e preconceito.
Infelizmente, no Brasil não há legislação que a
e o tratamento de acordo com sua identidade
pessoal. Outro projeto de lei, o PL 8.032/2014,
da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), prevê
a aplicação da Lei Maria da Penha às pessoas
transexuais que se identifiquem como mulheres.
É possível citar também outros avanços, como
a alteração de nome conforme o gênero sem a
obrigação de cirurgia de transgenitalização, burocracia imposta anteriormente, e a publicação
52
da Resolução 12/2015 do Conselho Nacional de
Combate à Discriminação e Promoções dos
conforme a mudança, causando grande cons-
rios e sistemas de informação de
trangimento”, diz Wilker Cerqueira, cientista
escolas e universidades, além da
jurídico especializado em direitos humanos.
utilização de banheiros, vestiários e
No final do século 19, o biólogo Patrick
uniformes, segundo a identidade de
Geddes disse que “o que foi decidido entre
gênero. Ainda assim, sem um de-
protozoários pré-históricos não pode ser anu-
bate amplo sobre discriminação de
lado por leis do Parlamento”. Será mesmo que
gênero, o tabu continua impedindo
o ser humano, única espécie conhecida capaz
que esses avanços saiam do papel
de criar o fogo e desenvolver tecnologias de
no Brasil. “O grande problema nes-
exploração espacial, é escravo de protozoá-
se processo é que as instituições
rios? Ou de definições biológicas e religiosas
educacionais pouco investem na
de anos atrás, focadas na diferença e não na
educação e orientação sobre o real
semelhança? Se a espécie humana tem um
objetivo do nome social. Tal afirma-
cérebro altamente desenvolvido, com capaci-
ção é corroborada com os diversos
dades como raciocínio abstrato, linguagem e
casos
que
introspecção, não faz muito sentido continuar
e
tentando decifrar o código dos comportamen-
em
tos sexuais com base em pesquisas de la-
sistir que só existe preto e branco,
legislação específica que reconheça a identidade
nhece a identidade de gênero como um direito
social em documentos, formulá-
pessoas funcionam na média. Ou in-
indivíduos trans é precária no país. Não existe
deputada Érika Kokay (PT/DF). O projeto reco-
rados para atender e orientar outros alunos
boratório que tentam explicar como as
preconceito. Em geral, a situação de direitos de
federal Jean Willys (PSOL/RJ) em parceria com a
instituições educacionais não estavam prepa-
reconhecimento do uso de nome
servidores de
pode tomar nenhuma medida judicial contra o
ra isso: a Lei João Nery, de autoria do deputado
Direitos LGBT, que determinou o
professores
criminalize, o que significa que Bernardo não
de gênero, apesar de haver um projeto de lei pa-
amigos ou na relação amorosa, mas algumas dicas podem ajudá-lo a ser mais empático:
e não nuances de tudo. Se é ape-
Autora das
fotos desta
matéria, Julia
Rodrigues
criou o
#mamilolivre,
projeto que
promove a
discussão
sobre
igualdade
de gênero
nas um gene a cada 100 mil
que diferencia homens de
mulheres, por que ainda
focamos as diferenças?
A natureza humana
pode ser muito mais
fluida e flexível do
que nos acostumamos a
pensar.
Não abandone.
Pode ser difícil de
entender o que é
transgênero no início,
mas acredite: a transição para
a pessoa trans* é muito mais.
Respeite-a incondicionalmente
1
Se você não entende as
necessidades dela, busque informações a respeito e, se possível, procure profissionais aliados à causa
2
Pergunte como a
pessoa prefere ser
chamada — ou seja, seu
nome social — e quais
pronomes usar (por exemplo
“seu” ou “sua”, “ele” ou “ela”).
E passe a se referir a ela assim
3
Não faça suposições sobre a orientação sexual
da pessoa trans*. Gênero diz respeito a identidade; orientação sexual trata-se de
por quem a pessoa se sente atraída
4
Jamais pergunte se ela
fez cirurgia de mudança
de sexo. É indelicado.
Se a pessoa se sentir
confortável, falará a respeito.
Entenda que terapia de hormônios
e cirurgia não são algo necessário para a transição de todos
5
Apoie iniciativas de
inclusão, como banheiro
neutro, escolha de
nome em documentos
oficiais, escolha de tipo de uniforme etc. E passe as informações
que aprendeu adiante, quando
o assunto for transexualidade
6
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