Fé, Política e Democracia. Novos desafios Paulo Fernando Carneiro de Andrade As eleições de 2010 no Brasil trouxeram novas e urgentes questões em torno à articulação entre fé e política. Durante um largo período o grande esforço empreendido neste campo foi o de defender a legitimidade, e mesmo necessidade, da relação entre fé e política contra àqueles que, normalmente identificado com as forças mais conservadoras da sociedade, defendiam uma radical separação entre estas duas esferas. Para estes últimos qualquer tentativa de articulação entre Fé e Política resultava em uma instrumentalização da Fé a serviço de uma ideologia política. Fé e Política eram como óleo e água e deviam permanecer não só distintas, mas separadas, para não se contaminarem. Habitualmente justificavam sua posição evocando Lc 20,25: “Pois bem, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” em uma leitura descontextualizada. Nos últimos anos emergiu uma nova posição que culminou nas eleições presidenciais de 2010: agora ninguém parece mais colocar em questão a relevância social da Fé Cristã e a necessidade de articular Fé e Política. Surge, porém, uma outra questão. Esta articulação tem sido algumas vezes feita de modo selvagem, em uma transposição direta, sem mediações, de uma esfera a outra. Sem dúvida a articulação entre Fé e Política é uma necessidade seja para a Fé, seja para a Política, porém nem toda articulação entre Fé e Política é legítima. Diante disto, a nova agenda da Pastoral Social e Política não deve ser mais o debate sobre a necessidade desta articulação, mas sobre o modo como esta relação deve se dar, legitimamente, em uma sociedade democrática, respeitando o que é próprio da Fé e o que é próprio da Política, evitando instrumentalizações nocivas à Fé e à Política. 2 1. O retorno de um Paradigma De Leão XIII até finais dos anos 50 esteve em vigência na Igreja Católica um paradigma relativo às relações entre Fé e Política que pode ser sintetizado nos seguintes pontos: a. embora de modo mais matizado que no paradigma anterior a Leão XIII, nesse paradigma tende-se a não se diferenciar o Estado da Sociedade. O Estado é compreendido como sendo natural, necessário e um bem. O ser humano é compreendido como um ser social por natureza, e o Estado é compreendido como uma estrutura necessária para a realização da vida social. Sua finalidade é a promoção do bem comum, da justiça, da ordem e da felicidade de seus membros. Uma vez que a vida social para a qual os homens foram criados torna necessária para sua manutenção a existência de um governo, a autoridade civil (o governo do Estado) é compreendida como sendo uma exigência que decorre da ordem da criação, devendo por isso ser conseqüentemente afirmado que o fundamento dessa autoridade não se encontra em uma delegação de poder dada pelos membros da sociedade aos governantes, mas em Deus (Leão XIII, Enc. Diuturnum Illud, 5; Enc. Immortale Dei, 4-5). A teoria do pacto social e a perspectiva contratualista são frontalmente rejeitadas, sendo mesmo afirmado que o “pacto que predicam é claramente uma ficção inventada” que “não serve para dar à autoridade política a força, a dignidade e a firmeza que requer a defesa da República e a utilidade comum dos cidadãos. A autoridade só terá esta majestade e fundamento universal se se reconhece que provem de Deus como de fonte Augusta e Santíssima” (Diuturnum Illud 8). Estas afirmativas não significam, entretanto, que para Leão XIII, o governante não possa ser escolhido por diversos meios, inclusive o do voto da maioria (Diuturnum Illud, 6), com a ressalva de que mesmo nesse caso, a maioria estaria apenas designando quem exercerá autoridade, mas não estaria conferindo autoridade ao governante, mantendo-se o princípio de que a origem última do poder encontra-se em Deus, nesse caso, de modo mais próprio, na ordem que Deus dispôs para o criado, onde o princípio de autoridade faz-se natural, necessário e um bem para a humanidade, pois sem ele não poderia esta 3 alcançar o fim natural para o qual foi criada. Note-se que aqui, embora se aceite o princípio da escolha da autoridade civil pelo voto majoritário, não se aceita o princípio fundamental das democracias modernas da soberania popular, ou seja, de que o poder civil tem origem na própria sociedade e se exerce como mandato representativo, dentro de limites estabelecidos por lei. b. nesse paradigma a relação entre Lei e Moral é pensada a partir de alguns princípios: o erro não gera direito, e a Verdade deve ser traduzida em Lei, isto é, a Lei Humana deve ser derivada da Lei Divina e Natural seja transformando-a diretamente em direito positivo, seja tornando específico aquilo que por vezes encontra-se de modo geral ou indeterminado na Lei Natural. c. por sua vez, entende-se por Lei Natural a participação da Lei Eterna (o plano da Criação em Deus) na natureza racional dos homens e por Lei Divina as prescrições reveladas por Deus aos seres humanos. Foi essa perspectiva a levar Leão XIII a se opor vigorosamente ‘a “liberdade religiosa” (O Catolicismo deve ser reconhecido como Religião Oficial por ser a única Verdadeira, Immortale Dei, 11, 32) e a defender limites estreitos para a liberdade de opinião e expressão (Não se pode propagar e defender o erro, Immortale Dei 38, 59). d. Cabe aos governantes garantir que a Lei humana seja conforme a Lei Natural e a Lei Divina. A Lei humana é compreendida nesse contexto como um meio legítimo e necessário de imposição da moralidade pública e individual, sendo o Estado com seu poder coercitivo um instrumento fundamental para se fazer cumprir por todos as exigências da Lei Natural e Divina e assim zelar pelo Bem Comum e pelo Bem de cada indivíduo. Nessa perspectiva, uma Lei Humana baseada em um princípio errôneo pode ser apenas tolerada quando for estritamente necessário para se atingir um bem maior. Assim, por exemplo, podese tolerar a liberdade religiosa em uma região onde o Catolicismo for minoritário, como na Ásia ou África, pois caso contrário a Missão se tornaria grandemente prejudicada (princípio da tese e hipótese). 4 Foi a partir deste paradigma que se constituiu no Brasil a Pastoral do Político na primeira metade do século XX e se instituíram práticas como a Liga Eleitoral Católica. A mudança de paradigma que se dá a partir de João XXIII e do Concílio Vaticano II levará a constituição de novas experiências pastorais, como se verá mais adiante, e gerará reações que desembocarão na rejeição do novo modo pós-Conciliar de articular Fé e Política. Os grupos que se opõe ao novo paradigma e que normalmente se identificam com as práticas políticas mais conservadoras tendem a defender, a partir deste momento, a radical separação entre Fé e Política. Hoje presenciamos, entretanto, o retorno modernizado do paradigma leoniano promovido por parte destes grupos. A modernização ocorre, principalmente, na aceitação do princípio da soberania popular, embora permaneça uma desconfiança em relação a capacidade do povo de escolher o melhor candidato. O povo, principalmente as camadas populares, é acusado de ser vítima fácil de manipuladores e de políticas assistencialistas assim como de votar por interesses econômicos imediatos. Os mais pobres são vistos muitas vezes como ignorantes e mesquinhos, que vedem seu voto por um prato de lentilha, como se a classe média e principalmente as elites econômicas não tivessem presentes no voto seus interesses econômicos e de classe social. O retorno do paradigma leoniano modernizado se faz presente, sobretudo, na concepção de que o Estado deve usar o seu poder coercitivo não apenas para a promoção da Justiça, mas também para a imposição da moralidade individual. Aqui temos novos problemas. O paradigma leoniano era inteiramente legitimo no seu tempo, no seu contexto cultural, político e social. O retorno deste paradigma hoje nos coloca diante de uma posição perversa (não em sentido moral, mas psicanalítico), correspondendo a uma instrumentalização e ideologização da religião, quando alguns valores fundamentais da Fé são apresentados de forma isolada e são manipulados 5 e transformados em arma contra adversários políticos. O paradigma retorna em uma forma caricatural dessusbistancializado de seu conteúdo próprio. 2. Fundamentalismo, Perversão e Ideologização na relação Fé e Política Entende-se aqui por fundamentalismo a pretensão do sujeito ou do grupo social de impor uma Verdade que lhe é própria ao outro, excluindo o estabelecimento de uma relação dialógica e o respeito à alteridade. Para a interpretação do fundamentalismo contemporâneo se fará uso de alguns conceitos oriundos da análise Lacaniana aplicados à Cultura na linha desenvolvida por Slavoj Žižek1. Trata-se de buscar compreender o fundamentalismo a partir das três diferentes posições estruturais que o sujeito pode ocupar na e diante da Ordem Simbólica. A primeira posição2, é caracterizada pela pergunta que o sujeito dirige ao Grande Outro (a Ordem Simbólica): o que sou eu aos olhos do Outro? O que o Outro quer de mim? O sujeito mesmo assume estruturalmente a estatura de uma interrogação, há uma distância e um descolamento, uma incerteza de fundo que recoloca sempre a questão ao Outro: Che Vuoi? Uma questão que nunca encontra a resposta definitiva e permite ao sujeito constituir-se em sua autonomia e alteridade, como sujeito incompleto e desejante, sempre buscando algo que lhe falta, um ser não Da vasta obra de Slavoj Žižek faremos referência aqui, sobretudo, aos livros: The Sublime Object of Ideology, Verso, Nova Iorque, 1989. The Metastases of Enjoyment. Six Essays on Woman and Causality, Verso, Nova Iorque, 1994; The ticklist subject. The absent centre of Political Ontology, Verso, Nova Iorque, 1999; Il Grande Altro. Nazionalismo, godimento, cultura di massa ( Marco Senaldi, org.), Feltrinelli, Milão, 1999, The fragil Absolute-or, why is the Christian legacy worth fighting for?, Verso, Nova Iorque, 2000, Il godimento como fattore político, Raffaello Cortina Editore, Milão, 2001; On belief, Routledge, Nova Iorque, 2001; Tredice volte Lenin. Per sovvertire il fallimento del presente, Feltrinelli, Milão, 2003. Bem vindo ao Deserto do Real, Boitempo, São Paulo, 2003; A Visão em Paralax, Boitempo, São Paulo, 2008; First as Tragedy, Then as Farce, Verso, Nova Iorque, 2009. 2 É importante aqui distinguir entre a posição estrutural do sujeito frente à Ordem Simbólica e a “personalidade” dos indivíduos concretos. Tal distinção deve ser entendida de modo análogo à conhecida distinção entre pessoa e indivíduo no campo da antropologia social (veja-se Mauss, M., Uma categoria do Espírito Humano: a noção de pessoa e a de “eu”, em Mauss, M., Sociologia e Antropologia, Cosac & Naify, São Paulo, 2003, p. 369-397.). O que se afirma nestas páginas sobre as possíveis posições estruturais do sujeito frente à Ordem Simbólica e os discursos e práticas que são constituídos ao se ocuparem tais posições, não permite, sem mais, caracterizar os indivíduos concretos que em um dado momento e em uma certa conjuntura pronunciam estes discursos e têm estas práticas, como personalidades patológicas, acusando-os de serem histéricos, perversos ou psicóticos, caindo em um tipo de falso diagnóstico de cunho pseudopsicológico condenável sob todos os aspectos. Veja-se Dejours, C., A banalização da injustiça social, Fundação Getúlio Vargas Editora, Rio de Janeiro, 1999, p.77-81, de modo especial a nota 12 às p.78-79. 1 6 de certeza, mas de dúvida3. A segunda posição, denominada psicótica, pode ser caracterizada pelo desaparecimento da dimensão da pergunta: uma resposta surge ali onde a pergunta não é nem ao menos colocada. O sujeito é subsumido, invadido pelo Grande Outro. O Outro fala nele, apaga-se a distância e mesmo a distinção entre ele e o Outro e conseqüentemente o sujeito perde sua autonomia. Ao Grande Outro é atribuída uma consistência e uma densidade que o inscreve no registro Real. Nesse caso, a eficácia simbólica cede lugar à eficácia material direta da palavra4. A terceira posição estrutural é aquela que corresponde à perversão. Nela a pergunta é deslocada para o Outro. O sujeito tem a resposta à pergunta que impõe ao Outro. Ele não se reconhece como interpelado pela Ordem Simbólica, nem a interpela com uma questão, mas sim com uma resposta que constrói no Outro a pergunta. O sujeito coloca-se ambivalentemente em dois lugares: coloca-se na posição de ser um instrumento para o gozo do Grande Outro, isto é, reconhece a Lei Simbólica colocando-se em uma posição instrumental frente a ela e, simultaneamente recusa-se a reconhecer a Lei Simbólica, negando sua eficácia simbólica e coloca-se na posição da Lei5. Na esfera religiosa, quando o sujeito coloca-se estruturalmente diante do sagrado em uma das duas posições últimas posições temos o que denominamos de fundamentalismo. A segunda posição, chamada de psicótica, dá lugar a um tipo de fundamentalismo normalmente rotulado, em tom acusatório e desqualificante, de fanatismo. Nele, o sujeito perde a distância do Sagrado, é por ele absorvido. A Palavra o tem prisioneiro, ele mesmo é a palavra, a Mensagem e o mensageiro se confundem. Talvez possa se dizer que esta posição era mais encontrada na prémodernidade. Na terceira posição, chamada de perversa, e que talvez melhor defina o que se tem hoje chamado de fundamentalismo, o sujeito coloca-se simultaneamente como fundador do próprio sagrado e como aquele que deve dar ao outro o que ele sabe que o outro necessita. A parábola do Grande Inquisidor, o conto dentro do conto, que se encontra na obra de F. Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi, exemplifica esta forma de fundamentalismo6. A cena se Žižek, S., The Metastases..., p. 83. Žižek, S., The ticklist subject..., p. 322-323. 5 Žižek, S., The ticklist subject..., p. 322-334. Lacan, J., Kant com Sade, em Escritos, Campo Freudiano Brasileiro e Jorge Zahar Editor, 1998, p.776-803; Julien, P., Psicose, perversão, neurose. A leitura de Jacques Lacan, Companhia de Freud, 2004. 6 Dostoievski, F., Os irmãos Karamázovi,Abril Cultural, 1970, p. 184-194 3 4 7 passa na Sevilha do século XVI. Na manhã seguinte a um espetacular auto de fé no qual foram queimados vivos uma centena de hereges, aparece um homem que caminha docemente, sem se fazer notar, mas que é reconhecido subitamente por todos. Silenciosamente abençoa a multidão que o cerca. Interpelado, cura um cego, ressuscita uma criança. Naquele momento passa o Grande Inquisidor que observa o que ocorre e ordena aos soldados que prendam aquele homem que era neste momento o centro das atenções. À noite, o velho inquisidor vai visitar o prisioneiro no cárcere. Ele o interpela e o censura: “―És tu, és tu?—, Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: —Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderia dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que já disseste outrora. Por que vieste estorvarnos? Porque tu nos estorvas, bem o sabes. Mas o que te acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és e não quero sabê-lo; tu ou tua aparência; mas amanhã, eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira...—”7. Diante do silêncio do prisioneiro, ele se vangloria de ter levado os homens à felicidade, suprimindo-lhes a liberdade. Reprova ao prisioneiro ter recusado, durante a tentação no deserto, para não privar os homens e as mulheres da liberdade, dar à humanidade aquilo que ela verdadeiramente anseia: o pão, a segurança da riqueza material e o governo de alguém que decide pelos seus súditos, livrando-os do peso das escolhas. O homem “— é fraco e covarde —”. O que ele precisa e anseia não é a liberdade. Por isso, ele afirma: “— Corrigimos a tua obra baseando-a no milagre, no mistério, e na autoridade. E os homens regozijaram-se por ser de novo levados como um rebanho e libertados daquele dom funesto que lhes causava tais tormentos. Tínhamos razão para agir assim, dizemo? Não era amar a humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com nossa permissão? Por que então vir entravar nossa obra? —”8. O sujeito nesta posição é movido por um imperativo categórico superegóico: ele deve dar ao outro o que esse busca e não tem, e não poderá ter, se não por meio desse sujeito único que 7 8 Ibidem, p. 187. Grifo nosso. Ibidem, p. 187-192. 8 tem, e só ele tem, o poder de satisfazê-lo. Este sujeito “sabe” que o Outro deseja, necessita, anseia. É a resposta que suscita a pergunta. Pode-se perceber esta mesma posição estrutural em algumas manifestações religiosas de diferentes grupos e credos. Ela estava presente, por exemplo, em certos grupos evangélicos que dão sustentação política ao partido Republicano nos Estados Unidos. A afirmação feita por Tom Delay, que foi líder da maioria republicana na Câmera de Deputados daquele país durante parte do governo Bush, sendo ele mesmo considerado fundamentalista nos meios norte-americanos, expressa esta posição: “Somente o Cristianismo oferece um estilo de vida em relação às realidades que encontramos no mundo – só o cristianismo!”9. Nesse discurso, não há lugar para nenhuma diferença, nem diálogo, nem para o reconhecimento do outro numa perspectiva de alteridade. Apenas o Cristianismo, tal como interpretado por aquele que pronuncia o discurso, pode responder à necessidade do outro. É uma resposta colocada antes da pergunta. Há algo que o sujeito sabe sobre o outro, mesmo que o outro ainda não saiba, e que este sujeito deve dar ao outro, para a própria felicidade deste. Quando se relaciona tal forma de fé fundamentalista com a política, essa se transforma em simples ferramenta para a imposição ao outro da verdade sobre o outro da qual o sujeito fundamentalista é portador. Nesta perspectiva é legitimo todo e qualquer esforço para fazer o eleitor votar naquele candidato que o sujeito perverso “sabe” que é melhor para o povo, mesmo que o povo não consiga reconhecer que é o melhor. Em uma forma secularizada temos o mesmo tipo de estrutura quando um partido político, mesmo sem nenhuma inspiração religiosa, julga-se único interprete do povo ou das aspirações populares. Ou ainda quando líderes políticos se colocam na posição de serem os exclusivos portadores de um conhecimento e competência que os torna os únicos aptos a decidir com sabedoria e justiça as questões de interesse público. Nenhuma crítica pode ser formulada, nenhuma voz discordante pode surgir e, menos ainda, ser acolhida. A única frase, repetida como um mantra, é: “Confiem em mim”. Ao colocar-se na posição de instrumento da Ordem Simbólica e simultaneamente no próprio lugar desta, o sujeito perverso assume como tarefa a imposição de uma particular 9 Cf. Della Cava, R., A direita cristã e o partido republicano, em Religião e Sociedade 23(1):9-34, 2003, p. 10; 9 moralidade individual sobre todos, moralidade da qual ele é, entretanto, normalmente autoexcluído. Jurandir Freire Costa ao analisar em sua obra “O ponto de vista do outro. Figuras da ética na ficção de Graham Greene e Phillip k. Dick”10 o romance de P. Dick, Os olhos do Céu, aponta para o imperativo moral da renuncia a impor aos outros uma particular visão de mundo, tolhendo a liberdade e a individualidade11. Jurandir Freire salienta que a tese de Dick é a de que “as visões privadas do mundo devem ser contidas em sua expressão social, do contrário podem derivar para a demência institucionalizada”12. Note-se que em uma perspectiva fundamentalista a religião passa a ser um instrumento de dominação e não de promoção de liberdade, dignidade e salvação. Neste uso instrumental da religião ela se converte em pura ideologia, no sentido que dá a este conceito S. Žižek13. Para Žižek a ideologia possui mais a função de fantasia social do que de falsa consciência. Neste sentido do mesmo modo que o sujeito sabe que há uma diferença entre suas fantasias e a realidade, ele também reconhece que a ideologia não é simplesmente a realidade. Daí Žižek afirmar “eles sabem o que fazem e, mesmo assim o fazem”14, no sentido do sujeito capturado na trama social que estrutura sua ação segundo uma determinada fantasia ideológica. Neste caso a religião deixa de promover a autonomia do sujeito e é usada como cenário para a construção do objeto ideológico a serviço daqueles que querem impor uma determinada ordem política, social e comportamental a todos. 10 Cf. Freire Costa, J. O ponto de vista do outro. Figuras da ética na ficção de Graham Greene e Phillip k. Dick, Garamond, Rio de Janeiro, 2010. 11 Ibidem, p.162-168. 12 Ibidem, p.162. 13 Veja-se Žižek S. The Sublime Object of Ideology, Verso, Nova Iorque, 1989; idem, Um Mapa da Ideologia, Contraponto, Rio de Janeiro, 1999 (original 1994). Também Freire Costa, J. op. cit, p. 315-371. 14 Žižek S. The Sublime Object of Ideology, p. 33 10 A eficácia de uma ideologia assenta-se na construção de “significantes mestres”. Conforme afirma Jurandir Freire Costa ao analisar este conceito em Žižek: “esse termo designa entidades nominais como Povo, Raça, Nação, Deus, etc., que possuem duas características: a) do ponto de vista do valor, são ideais ou princípios descritos como nobres, elevados, superiores; b) do ponto de vista lógico, são idéias que fundamentam racionalmente crenças e condutas embora ninguem conheça exatamente o que significam.”15 Nas eleições presidenciais de 2010 houve a tentativa, por parte de alguns grupos, de instrumentalizarem o universo religioso extraindo dele alguns significantes mestres e apresentando, sobretudo no segundo turno, a candidata Dilma, hoje eleita Presidente, como o Mal absoluto através da seguinte operação: criação do slogan "Serra é do Bem", logo Dilma é do Mal, ela é o Mal. Para construir tal Significante lançou-se mão do que há de mais obsceno no imaginário social machista brasileiro. Dilma é a mulher fálica, destruidora, voraz, que tem de ser aniquilada: a mulher gera vida / Dilma é abortista, quer a morte das criancinhas; a mulher preserva a vida / Dilma é guerrilheira, assassina; a mulher cuida da casa / Dilma rouba e deixa roubarem; a mulher é dócil / Dilma é mandona, abusada não respeita ninguém, não obedecerá ao Lula. Por fim, Dilma é mulher macho, apóia o homossexualismo (união civil). Mas enquanto mulher, recebe também os atributos negativos ligados no machismo à condição feminina: não tem pensamento próprio, é feia, é um poste, ventríloqua de um homem (Lula). No contexto eleitoral alguns se deixaram alegremente instrumentalizar: para os portadores de uma religião que vinha perdendo a passo acelerado espaço em uma cultura secularizada foi uma oportunidade única de se sentirem mais uma vez no controle do mundo. Instrumentalizada, a religião ofereceu o pior suporte ideológico numa campanha perversa que não engrandeceu a política e a democracia. 15 Freire Costa, J. op. cit, p. 321. 11 3. O Paradigma da Dignitatis Humanae Com João XXIII inicia-se a construção de um novo paradigma em relação à articulação Fé e Política, Igreja e Estado, Religião e Lei, que culminará na Declaração Conciliar Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa de 1965. Já a Encíclica Pacem in Terris de João XXIII (1963) representava um grande avanço ao fazer a recepção católica dos Direitos Humanos em suas quatro dimensões básicas: direitos políticos, civis, sociais e econômicos. Permanecia, entretanto ainda em suspenso a plena aceitação dos fundamentos do Estado Democrático, sobretudo, no tocante às liberdades individuais e legitimidade legal da plena autodeterminação de suas vidas por parte de cada cidadão. Essa mudança foi possível graças ao trabalho teológico do teólogo jesuíta norteamericano John Courtney Murray que havia ao longo das décadas de 1940-50 e no início dos anos 60 desenvolvido um novo paradigma da relação Igreja e Estado que foi assumido pelos Padres Conciliares na Declaração Dignatis Humanae. A argumentação fundamental do paradigma de Murray se desenvolve em torno a quatro pontos (entre os muitos escritos de J. C. Murray sobre o tema, veja-se de modo especial The Problem of Religious Freedom em Theological Studies 25 (Dezembro 1964): 503-575 e On the Structure of the Church-State Problem" em W. Gurian e M. A. Fitzsimons (ed.), The Catholic Church in World Affairs, p. 1132, University of Notre Dame Press, Notre Dame, 1954): a. Murray assume como ponto de partida a distinção entre a ordem espiritual e a temporal. Igreja e Estado têm diferentes finalidades, segundo as duas distintas ordens a que pertencem. Entre as duas distintas ordens existe uma articulação que se encontra na realidade mesma da Igreja: “Sacramento Universal da Salvação”. b. Murray faz também uma importante distinção entre o Estado e a Sociedade. Estado e Sociedade não são co-extensivos. O Estado possui o poder coercitivo 12 e o exerce em benefício da sociedade. O fim da Sociedade Civil é maior e qualitativamente diferente do que o do Estado. Este em um regime democrático possui um papel restrito e delimitado pelos princípios constitucionais. Além disso, segundo o princípio de subsidiariedade consagrado na Doutrina Social da Igreja, a Sociedade-Estado deve ser pensada de sua base para cima. c. A distinção entre Sociedade e Estado permite por sua vez que se distinga o Bem Comum da Ordem Pública. Para Murray, o fim da Sociedade é a construção do Bem Comum, enquanto o do Estado é a promoção da Ordem Pública para que a Sociedade possa chegar ao Bem Comum. Por Ordem Pública, entende Murray, a garantia da justiça, da paz (harmonia social) e da moralidade publica. A moralidade pública difere da moralidade privada e envolve, para Murray, certos padrões mínimos de moralidade que afetam a paz pública e a justiça. A justiça abarca, por sua vez, os Direitos Fundamentais da pessoa humana e, se levarmos em conta o Desenvolvimento da Doutrina sobre o Direito que ocorre na Encíclica Pacem in Terris (João XXIII, 1963), teríamos uma aproximação maior entre o fim do Estado e da Sociedade, uma vez que nesse caso a promoção da ordem pública se aproximaria do entendimento hodierno do Bem Comum. Entretanto, a distinção entre o fim do Estado que é basicamente a garantia da Justiça, ou seja, dos Direitos Fundamentais em suas cinco dimensões: políticos, civis, econômicos, sociais e ecológica, e o fim da Sociedade, que é a construção do Bem Comum é fundamental. Neste contexto deve-se recordar as palavras de Bento XVI na Encíclica Deus Caritas Est: “A justiça é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça?” (DCE 28). Entre o fim do Estado (a justiça, a garantia e a promoção 13 dos Direitos Humanos) e da sociedade (o Bem Comum), existe uma diferença não apenas quantitativa, mas qualitativa, semelhante à diferença entre Verdade (Justiça) e Caridade, tal como o tema é tratado na Encíclica Caritas in Veritate de Bento XVI: o Bem Comum supõe a Justiça, mas a ultrapassa. d. Por fim, Murray enuncia um quarto princípio, que é de certo modo um corolário dos três princípios anteriores: o Estado Democrático Constitucional deve garantir tanta liberdade, pessoal e social, quanto possível, e restringir a liberdade, pessoal e social, apenas naquilo que for necessário para a ordem pública (Justiça). Esse princípio constitui-se em um ponto fundamental da Declaração Dignatis Humanae: “Além disso, uma vez que a sociedade civil tem o direito de se proteger contra os abusos que, sob pretexto de liberdade religiosa, se poderiam verificar, é sobretudo ao poder civil que pertence assegurar esta proteção. Isto, porém, não se deve fazer de modo arbitrário, ou favorecendo injustamente uma parte; mas segundo as normas jurídicas, conformes à ordem objetiva, postuladas pela tutela eficaz dos direitos de todos os cidadãos e sua pacífica harmonia, pelo suficiente cuidado da honesta paz pública que consiste na ordenada convivência sobre a base duma verdadeira justiça, e ainda pela guarda que se deve ter da moralidade pública. Todas estas coisas são parte fundamental do bem comum e pertencem à ordem pública. De resto, deve manter-se o princípio de assegurar a liberdade integral na sociedade, segundo o qual se há de reconhecer ao homem o maior grau possível de liberdade, só restringindo esta quando e na medida em que for necessário.” (DH 7, grifos nosso) Paulo VI na Octogesima Adveniens aprofunda o paradigma da Liberdade Religiosa como paradigma fundamental para se estruturar a relação Fé e Política. Nesta perspectiva, reconhece-se claramente que a relação entre os grandes valores e princípios éticos e as opções concretas que devem ser tomadas em um contexto concreto não é direta e nem unívoca, o que supõe assumir a necessária existência mediações e da contingência de todo processo histórico (“sem dúvida que são muito diversas as situações nas quais, voluntária ou forçosamente, se encontram 14 comprometidos os cristãos, conforme as regiões, conforme os sistemas sócio-políticos e conforme as cultura”, OA 3). Enquanto a Verdade é uma, as opções legítimas, em um dado contexto histórico concreto, são múltiplas e simultaneamente limitadas, e nenhuma opção será em si mesma a concretização total da Verdade (“Nas diferentes situações concretas e tendo presentes as solidariedades vividas por cada um, é necessário reconhecer uma variedade legítima de opções possíveis. Uma mesma fé cristã pode levar a assumir compromissos diferentes” OA, 50). Tais opções (compromissos) são feitas entre aquelas historicamente possíveis em um determinado contexto e não simplesmente como tentativa de, desprezando as mediações, buscar concretizar na história um ideal absoluto, que, nesse caso, transformado em significante mestre, deixa de ser inspiração e referência para ação e transforma-se em ideologia. Papa Paulo VI afirma a legitimidade dessa pluralidade de opções como uma questão de princípio e não apenas como um fato tolerado, mas indesejável. Além disso, segundo a Octogesima Adveniens a ação política, por parte dos cristãos se faz como forma de viver o compromisso cristão, como serviço ao outro, na busca de construir o bem comum e uma sociedade mais justa (OA 23-24 e 46) e não para impor a todos, através do uso do poder coercitivo do Estado, uma particular convicção. Nas palavras da Octogesima Adveniens: “A ação politica - será necessário acentuar que se trata prevalentemente de uma ação e não de uma ideologia? - deve ter como base de sustentação um esquema de sociedade, coerente nos meios concretos que escolhe e na sua inspiração, que deve alimentar-se numa concepção plena da vocação do homem e das suas diferentes expressões sociais. Não compete nem ao Estado, nem sequer aos partidos políticos, que estariam fechados sobre si mesmos, procurar impor uma ideologia, por meios que viessem a redundar em ditadura dos espíritos, a pior de todas. É sim aos grupos culturais e religiosos - salvaguardada a liberdade de adesão que eles pressupõem que assiste o direito de, pelas suas vias próprias e de maneira desinteressada, desenvolverem no corpo social essas convicções supremas acerca da natureza, da origem e do fim do homem e da sociedade. Neste ponto, é oportuno recordar o princípio proclamado no recente Concílio Vaticano II: "A verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força de verdade, que penetra nos espíritos, ao mesmo tempo suave e fortemente [Dignitatis Humanae 1]” (OA 25, grifos nossos). 15 4. O legado da Octogesima Adveniens 4: a concretização do paradigma pós-Conciliar para a Pastoral Política e Social De certo modo as grandes linhas teológicas da Carta Apostólica Octogesima Adveniens encontram-se condensadas no parágrafo quarto que deve se constituir na base fundamental de uma Pastoral Político-Social que seja instituída a partir da eclesiologia Do Concílio vaticano II. Paulo VI afirma: “Perante situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisar, com objetividade, a situação própria do seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre, haurir princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social da Igreja, tal como ela vem sendo elaborada, no decurso da história, e, especialmente, nesta era industrial, a partir da data histórica da mensagem de Leão XIII sobre "a condição dos operários", da qual nós temos a honra e a alegria de celebrar hoje o aniversário. A essas comunidades cristãs incumbe discernir, com a ajuda do Espírito Santo em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade - as opções e os compromissos que convém tomar, para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos. Nesta procura diligente das mudanças a promover, os cristãos deverão, antes de mais nada, renovar a sua confiança na força e na originalidade das exigências evangélicas. O Evangelho, de fato, não está ultrapassado, pela circunstância de ter sido 16 anunciado, escrito e vivido, num contexto sócio-cultural diferente. A sua inspiração, enriquecida pela experiência vivente da tradição cristã, ao longo dos séculos, permanece sempre nova, em ordem à conversão dos homens e ao progresso da vida em sociedade, sem que por isso, se possa chegar a utilizá-la em favor de opções temporais particulares, esquecendo a sua mensagem universal e eterna” [Cf CONC. ΟΕCUM. VATIC. II, Const. Past. Gaudium et Spes, 10: AAS 58 (1966), p. 1033] (Octogesima Adveniens 4) Em primeiro lugar deve-se destacar em Paulo VI a afirmativa de não ser próprio da Missão do Magistério Pontifício propor uma solução única, com validade universal, para as questões políticas e sociais. Não se trata aqui de uma impossibilidade histórica e conjuntural, mas de uma questão de princípio. Segundo Paulo VI, o sujeito que deve discernir e fazer as escolhas sobre as opções e compromissos concretos que devem ser realizados no campo político e social, “para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos”, é a Comunidade Cristã, de cada nação ou região. O processo para se chegar às opções e compromissos concretos é constituído por vários elementos: i. inicialmente devem as Comunidades Cristãs analisar com objetividade a situação de seu país ou região, o que significa que elas devem lançar mão da mediação das ciência sociais e humanas para poderem compreender em profundidade a realidade social, econômica e política própria. ii. Essa realidade analisada deve ser iluminada pelo Evangelho iii. As Comunidades devem também, nesse processo ativo de buscar compreender a realidade e de discernir sobre as opções e compromissos concretos a fazer, haurir (hauriant no texto latino) “princípios de reflexão, 17 normas para julgar e diretrizes para a ação na Doutrina Social da Igreja”. Note-se aqui que não se trata de aplicar à realidade “princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação” que se encontram já estabelecidos na Doutrina Social da Igreja, de modo dedutivo. Trata-se, sim, de nela haurir, isto é, dela extrair, tais princípios, normas e diretrizes, para melhor compreender e julgar a realidade objetivamente analisada, o que implica um papel de reflexão ativa para construir, a partir da Doutrina Social da Igreja, princípios, normas e diretrizes que tenham relação com a realidade analisada e que possam levar ao discernimento sobre as opções concretas a tomar nessa realidade. Observa-se ainda que o documento ressalta o caráter histórico da Doutrina Social da Igreja, sublinhando o seu desenvolvimento ao longo da história, afastando-se de uma compreensão essencialista da mesma. Ainda aqui cabe observar que nas traduções oficiais, inglesa, italiana e espanhola do Documento, dá-se preferência à expressão Ensino Social da Igreja em lugar de Doutrina Social da Igreja para realçar esse caráter histórico e contextual, em uma linha de continuidade com a encíclica Pacem in Terris e o documento conciliar Gaudium et Spes. Note-se ainda que é este processo de haurir e não de aplicar princípios construídos de forma abstrata o que permite evitar a instrumentalização ideológica da Doutrina Social da Igreja, colocando-a a serviço da constituições de Significantes Mestres. iv. Paulo VI afirma nesse contexto, que nesse processo de discernimento sobre as opções e compromissos que devem ser tomados, “para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como 18 necessárias e urgentes, em não poucos casos” as Comunidades Cristãs gozam de ajuda do Espírito Santo. v. Esse processo de discernimento a ser levado a termo pelas Comunidades Cristãs, com auxílio do Espírito Santo, deve necessariamente incluir: comunhão com os Bispos responsáveis, diálogo com outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade. Sublinhe-se que para Paulo VI esse diálogo não é necessário apenas como parte de um método ou de uma estratégia. Assim como se dá em relação à comunhão com os Bispos responsáveis, também o diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade é nesse caso intrinsecamente constitutivo do processo de discernimento, sem o qual as Comunidades Cristãs não podem legitimamente tomar as necessárias opções e compromissos concretos “para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos”. As grandes linhas da antropologia subjacente à Octogesima Adveniens, e de modo particular nesse parágrafo quarto, são: liberdade, igualdade, participação, historicidade. De certo modo essa antropologia já se encontra presente nas encíclicas Mater e Magistra e Pacem in Terris, assim como no Concílio Vaticano II. Trata-se de uma perspectiva antropológica que possui uma compreensão bastante positiva da pessoa humana tal como se tem concretizado ao longo da história da humanidade e de suas potencialidades reais. O acento no caráter históricoconcreto e não sobre normas abstratas, universais que transcendem todas as contingências 19 históricas, marca uma importante diferença entre essa antropologia e a antropologia subjacente ao paradigma anterior. O paradigma eclesiológico no qual o texto se enraíza é o da eclesiologia conciliar, Igreja Povo de Deus, que se encontra na Constituição Dogmática Lumen Gentium. Nesse paradigma se afirma o caráter ministerial de toda a Igreja e a co-responsabilidade de todos os seus membros, assim como se acentua a importância das Igrejas Locais, e da dialética Igreja Universal-Igreja Particular, salientando a Unidade que se constrói na diversidade, que é enriquecedora para o todo (que é mais do que a soma das partes), em lugar de uma unidade que se confunde com uniformidade e que se revela empobrecedora. Nessa perspectiva salienta-se na Octogesima Adveniens o papel fundamental e insubstituível de cada Comunidade Cristã na tarefa de analisar a realidade local e tomar as decisões, através de um processo próprio de discernimento, sobre as opções e compromissos a serem tomados “para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos”. Como afirmado anteriormente são elas o sujeito da análise e do discernimento, assim como da tomada de decisões. É importante notar que em todo o documento Paulo VI se refere às Comunidades Cristãs e aos cristãos (a referência a cristão, ou cristãos, aparece 44 vezes). Apenas uma vez no documento o Papa refere-se aos leigos, e, mesmo assim, em uma citação de uma passagem de sua encíclica anterior Populorum Progressio: “Os leigos devem assumir como sua tarefa própria a renovação da ordem temporal. Se o papel da Hierarquia consiste em ensinar e interpretar autenticamente os princípios morais que hão de ser seguidos neste domínio, pertence aos leigos, pelas suas livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e diretrizes, imbuir de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da sua comunidade de vida” (OA 48, 20 PP ). Na Octogesima Adveniens, Paulo VI, ao afirmar serem as Comunidades Cristãs, como um todo corresponsável (os cristãos), o sujeito do processo de análise e discernimento, assim como da tomada de decisões sobre as opções e compromissos a serem tomados “para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos”, afasta-se de uma eclesiologia que reduz ao laicato a tarefa da atuação no campo social e político e, simultaneamente, o transforma em mero agente incumbido de realizar nesse campo “ordens e diretrizes” emanadas pela Hierarquia. Se “o papel da Hierarquia consiste em ensinar e interpretar autenticamente os princípios morais que hão de ser seguidos neste domínio”, cabe às Comunidades Cristãs buscar as mediações históricas que permitem passar dos princípios às opções e compromissos concretos, em seu contexto, observando simultaneamente o princípio de estar em “comunhão com os bispos responsáveis” e em “diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade” e a necessária pluralidade de opções políticas legitimas que uma mesma fé deve comportar. Em contraposição às duas posições estruturais que marcam duas possíveis formas de fundamentalismo, encontra-se a primeira posição, na qual o sujeito reconhece a Ordem Simbólica sem ser por ela subsumido nem se colocando como instrumento. Em termos religiosos é essa posição que permite manter a distância criatural, preservando, seja o caráter absoluto e totalmente Outro do Sagrado, seja a autonomia humana fundada no dom livre e gratuito da liberdade. Essa posição desdobra-se em uma espiritualidade que reconhecemos como autenticamente cristã, que inclui uma contínua busca de discernir em cada momento da história a vontade do Criador. A pergunta sempre colocada, e à qual se retorna incessantemente, sobre o que Deus quer de nós (Che Vuoi?) neste dado momento, exige sempre um duplo olhar: àquele sobre a Revelação e àquele sobre a realidade na qual se quer discernir a resposta a ser dada à interpelação de Deus. 21 Quando se quer articular a Fé e o agir político torna-se, nessa perspectiva, imprescindível, manter o duplo olhar. De um lado o olhar Teológico sobre as escrituras e a Tradição, na qual e através da qual nos é transmitida a Palavra do Deus Vivo. De outro, o olhar das ciências sociais e humanas que nos permitem compreender de forma mais aprofundada o mundo, rejeitando a tentação de quere impor, por qualquer meio a Verdade a todos. É deste modo que a Igreja pode de fato contribuir para a Evangelização do mundo, colocando-se a serviço da Vida e da Justiça. Dois exemplos de práticas recentes no campo da pastoral social e política derivados deste paradigma encontram-se no engajamento da Igreja nas campanhas pela aprovação da Lei contra a corrupção eleitoral e da Lei da Ficha Limpa. Nestas campanhas as pastorais, os organismos eclesiais e a própria CNBB, mantendo uma atitude de diálogo permanente articularam-se com diversas forças vivas da sociedade lutando para aprovar duas Leis importantes para o aprimoramento da Democracia no País. Outro exemplo pode ser encontrado em algumas cartilhas eleitorais como o documento “Eleições 2010: o chão e o horizonte” produzido pelo Conselho nacional dos/as Leigos/as do Brasil, Comissão Justiça e Paz, Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara, Ibrades e Pastorais sociais da CNBB. O documento segue o método Ver, Julgar e Agir, propondo uma análise da realidade política, uma reflexão bíblica e um conjuntos de valores hauridos da Doutrina Social da Igreja, apresentando ao final algumas propostas políticas de caráter abrangente, não conduzindo o eleitor a uma única opção partidária. Cabe ao eleitor fazer suas opções concretas, dentro das possibilidades reais, escolhendo os candidatos aos diversos cargos, segundo julgue-os mais aptos para a realização de um projeto político que possa convergir com as análises, valores e propostas apresentadas no Documento, mesmo sabendo que esta convergência será sempre parcial.