A globalização de Raul Prebisch

Propaganda
Ricupero, Rubens. “A globalização de Raul Prebisch”. São Paulo: Folha de São Paulo, 01 de setembro
de 2001. Jel: B, F
A globalização de Raul Prebisch
Rubens Ricupero
"Tive de começar minha vida profissional como economista em uma recessãomundial de grande
magnitude e agora, tarde na vida, sou testemunha de outracrise do capitalismo." Prebisch, cujo centenário
comemoramos neste ano,dizia essas palavras em julho de 82, na primeira de série de conferências
daUnctad que levam seu nome. Pouco depois, o México detonaria a crise da dívidaexterna que se
alastraria por toda a América Latina. As receitas da economia neoclássica aprendidas na faculdade de
nada serviram aojovem economista, nomeado diretor do banco central argentino no auge da
GrandeDepressão dos anos 30. A Argentina tinha sido o país latino-americano mais bemintegrado à
economia mundial da primeira globalização, entre 1880 e 1920. Avenda de carne ao Reino Unido, que
por sua vez fornecia os capitais para ainfra-estrutura de ferrovias e frigoríficos necessários à exportação,
criara simbiose perfeita, que enriqueceu a elite estancieira, criou a primeirasociedade de classe média do
continente e fez de Buenos Aires a capital da"belle époque" da América Latina. Ensina a frase evangélica
que todo aquele que for exaltado será humilhado. Tendosubido mais, a Argentina teve queda pior quando
a Primeira Guerra Mundial e ascrises do período de entre-guerras levaram os ingleses a dar preferências a
seus "Dominions". Salvo a fase fugaz da Segunda Guerra, o país nunca maisde recuperou, nem mesmo na
atual neoglobalização. Essa, ao contrário da anterior, manipula a liberalização comercial de forma
seletiva. Ela é total ouquase (com as desonrosas exceções de praxe, como o aço, os têxteis e confecções,
os calçados etc. etc.) no setor industrial e de serviços, em que os ricos imperam sobranceiros. Já na
agropecuária, domínio da competitividade argentina, a liberalização é parcimoniosa, pois os abastados
continuam a largamente praticar o protecionismo agrícola. A evidência de que as teorias convencionais
eram impotentes contra a depressão obrigou Prebisch a rever suas idéias, conforme acontecia com
Keynes. Sua intuição básica foi que existia relação assimétrica entre o centro industrializado e a periferia
fornecedora de matérias-primas e que o progresso técnico propagava-se muito lentamente do primeiro em
direção à segunda. A fim de romper o nexo de desigualdade, era preciso industrializar os países
periféricos, substituindo a importação de produtos simples, capazes de ser produzidos localmente. De
início, o governo daria proteção às indústrias nascentes, até que elas se tornassem competitivas para
exportar. Reproduzia-se, assim, o caminho percorrido no passado por todas as nações ricas e já então
seguido pelo Brasil e outros desde a crise dos 30 e a Segunda Guerra Mundial. Longe de ter inventado a
substituição de importações, o que fez Prebisch foi dar-lhe fundamentação teórica.Após ter encontrado no
tipo de inserção do país na economia mundial a chave daexplicação para o seu drama, era natural que o
ex-diretor do banco centralbuscasse campo de aplicação mais amplo para sua teoria. A "globalização
dePrebisch" começou com seu trânsito da Argentina para a América Latina. Comosecretário-executivo da
Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e oCaribe), ele iria revolucionar a estratégia latinoamericana de desenvolvimento.O desdobramento lógico seguinte era ampliar a esfera de ação ao
sistemainternacional, pois só neste se poderia obter a solução dos problemas daperiferia. Tornou-se,
portanto, o fundador da Unctad, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, da
qual foi o primeirosecretário-geral, de 1964 a 1969.Tentou ali estabelecer a "nova ordem econômica
internacional",mediante negociações entre ricos e pobres. Os primeiros deveriam estabilizar opreço das
matérias-primas exportadas pelos periféricos e abrir os mercados aesses, por meio de preferências, para
suas manufaturas simples. Desse modo, ossubdesenvolvidos adquiririam pelo comércio, não pela ajuda,
os recursos parapagar pela importação de bens de capital e tecnologia de economias avançadas.Tratava-se
de esquema viável, baseado não na caridade, mas no interesse mútuo ena interdependência.Não funcionou
porque o mercantilismo protecionista dos ricos não lhes permitiuaceitar transferir aos pobres as indústrias
decadentes intensivas emmão-de-obra. Em época de confronto ideológico do qual foram expressão tanto
osgolpes militares inaugurados pelo brasileiro de 64 como a exacerbação da Guerrado Vietnã, o conflito
suplantou a cooperação e o poder falou mais alto que asolidariedade. Não era do interesse dos poderosos
de ontem, como continua a nãoser dos de hoje, introduzir as profundas mudanças requeridas para que a
novaordem fosse a "globalização de Prebisch", e não a variante perversacontra a qual protestaram os
manifestantes de Gênova e Seattle. "DonRaul" voltou ao lar de onde havia partido e lá morreu em 1986,
sem ver suaAmérica Latina emergir da crise da dívida externa dos 80.Se vivo fosse hoje, teria de
acrescentar à longa relação de colapsos econômicose sociais aos quais assistiu outra crise global do
capitalismo, bem como nova e dolorosa crise da dívida para a Argentina e o continente. Em 82, dizia ele
quese enfrentava não só a crise do capitalismo mas a das ideologias, de todas as teorias convencionais
incapazes de interpretar corretamente o presente porque ignoravam a estrutura social, a excessiva
concentração da renda, as distorções oriundas do consumismo irresponsável das elites. Lembrava que a
Grande Depressão tinha iniciado na América Latina "um movimento de emancipação intelectual
consistente em lançar um olhar crítico às teorias dos centros, não em atitude de arrogância intelectual pois elas possuem grandes méritos-, mas no entendimento de que elas mereciam um estudo crítico".
Lamentava o reaparecimento das teorias neoclássicas que no passado haviam guiado nosso
desenvolvimento na linha dos interesses hegemônicos dos centros e no dos grupos dominantes da
periferia, sem qualquer consideração pelas grandes massas da população e pela equidade.São palavras
proféticas. Prebisch aconselhava seus colaboradores a ler menos as teorias mal digeridas dos centros e a
pensar mais, a partir do que podiam observar da realidade latino-americana. Se a crise atual nos levar a
nova fasede emancipação mental, ao menos terá servido para alguma coisa.
Download