A América Latina na dinâmica da guerra global

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A América Latina na dinâmica da guerra global
Ter, 07 de Abril de 2015 13:09
Jorge Beinstein*
Tudo ao mesmo tempo: em meados do mês de Março de 2015 os Estados Unidos deram um
salto qualitativo de claro perfil belicista nas suas acções contra a Venezuela, também
desenvolvem exercícios militares em países limítrofes com a Rússia na chamada operação
"Atlantic Resolve", algumas dessas operações são realizadas a uns 100 quilómetros de São
Petersburgo [1] , além disso intensificam-se informações acerca de uma nova ofensiva do
governo de Kiev contra a região do Donbass [2] , aumenta a circulação de naves de guerra da
NATO no Mar Negro, continuam as velhas guerras imperiais no Iraque e no Afeganistão às
quais acrescentou-se a seguir a ofensiva contra a Síria (passando pela Líbia)... e muito mais...
Evidentemente o Império está lançado numa catastrófica fuga militar para a frente estendendo
suas operações a todos os continentes, encontramo-nos em plena guerra global. Nem os
grandes meios de comunicação, nem os dirigentes internacionais mais importantes registaram
publicamente o facto, todos falam como se vivêssemos em tempos de paz, só em alguns
poucos casos surgem alguns deles a advertir sobre o perigo de guerra mundial ou regional.
Uma excepção recente é a do Papa Francisco quando afirmou que actualmente nos
encontramos perante "uma terceira guerra mundial" que ele descreve como a desenvolver-se
"por partes" ainda que sem designar os contendores e fazendo vagas referências à "cobiça" e
a "interesses espúrios" com a linguagem confusa e jesuítica que o caracteriza [3] .
A cada mês acrescenta-se algum novo indiciar que anuncia a proximidade de uma nova
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recessão global muito mais forte e extensa que a de 2009. O capitalismo, a começar pelo seu
polo imperialista, foi-se convertendo velozmente num sistema de saqueio onde a reprodução
das forças produtivas fica completamente subordinada à lógica do parasitismo. As elites
imperiais e suas lumpen-burguesias satélites "necessitam" super-explorar até ao extermínio
seus recursos naturais e mercados periféricos para sustentar as taxas de lucro do seu
decadente sistema produtivo-financeiro.
As tendências globais rumo à decadência económica exprimem-se de múltiplas maneiras no
dia a dia. Dentre elas, a volatilidade dos preços das matérias-primas, o petróleo por exemplo,
chave mestra da economia mundial, cujo estancamento extractivo (que não conseguiu ser
superado pelo show mediático em torno do "milagroso" petróleo de xisto) combina-se com
desacelerações da procura internacional como ocorre actualmente. A isso somam-se golpes
especulativos e geopolíticos que convertem os mercados em espaços instáveis onde as
manobras de curto prazo impõem a incerteza.
O curto-prazismo especulativo hegemónico engendra pacotes tecnológicos depredadores
como a mineração a céu aberto, a fracturação hidráulica ou a agricultura com base em
transgénicos acompanhados por operações políticas e comunicacionais que degradam,
desarticulam sistemas sociais procurando convertê-los em espaços indefesos diante dos
saqueios.
O optimismo económico da época do auge neoliberal deu lugar ao pessimismo do
"estancamento secular" agora apregoado pelos grandes peritos do sistema [4] . Eles indicam
que a salvação do capitalismo não chegará a partir da economia condenada a sofrer recessões
ou crescimentos insignificantes, o melhor é nem falar demasiado desses tristes temas. Então a
guerra ascende ao primeiro plano, algum massacre protagonizado por tropas regulares ou
mercenários, algum bombardeio, alguma ameaça de ataque na Europa do Leste, Ásia, África
ou América Latina. Os meios de comunicação nos esmagam com essa notícias, contudo
ninguém fala da guerra global.
Tudo acontece como se a dinâmica da guerra se houvesse autonomizado mas empregado um
discurso embrulhado, difícil de entender. Mas assim como os super-poderes dos homens de
negócios dos anos 1990 não eram independentes e sim compartilhados no interior de uma
complexa trama de poderes (políticos, mediáticos, militares, etc) que em termos gerais
costuma-se denominar como "classe dominante", também a aparente autonomia do militar
dificulta-nos ver as redes mafiosas de interesses onde se borram as fronteiras entre os seus
componentes. As elites da era neoliberal sofreram mudanças decisivas, experimentaram
mutações que as converteram em classes completamente degeneradas que, cada vez mais, só
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podem recorrer à força bruta, à lógica da guerra. Não se trata portanto de a componente militar
se autonomizar e sim, antes, de que as elites imperialistas se militarizam. Elas já não seduzem
com ofertas de consumo mais algumas doses de violência, agora só propagam o medo,
ameaçam com as suas armas ou utilizam-nas.
Progressismos latino-americanos
Dentro desse contexto global devemos avaliar os progressismos latino-americanos [5] que se
instalaram na base das crises de governabilidade dos regimes neoliberais.
Os bons preços internacionais das matérias-primas durante a década passada, somados a
políticas de contenção social dos pobres, permitiram-lhes recompor a governabilidade dos
sistemas existentes. Em alguns desses casos desenvolveram-se ampliações ou renovações
das elites capitalistas e em quase todos eles prosperaram as classes médias. Os governos
progressistas iludiram-se supondo que as melhorias económicas lhes permitiram ganhar
politicamente os referidos sectores mas, como era previsível, ocorreu o contrário: as camadas
médias iam para a direita e, enquanto ascendiam, olhavam com desprezo os de baixo e
assumiam como próprios os delírios mais reaccionários das suas burguesias. A explicação é
simples, na medida em que são preservados (e ainda fortalecidos) os fundamentos do sistema
e em que seus núcleos decisivos radicalizam seus elitismo depredador seguindo a rota traçada
pelos Estados Unidos (e "Ocidente" em geral) produz-se um encadeamento de subculturas
neo-fascistas que vão desde acima até abaixo, desde o centro até as burguesias periféricas e
desde estas até suas camadas médias. Na Venezuela, Brasil ou Argentina as classes médias
melhoravam seu nível de vida e ao mesmo tempo despejavam seus votos nos candidatos da
direita velha ou renovada.
Estabeleceu-se um conflito interminável entre governos progressistas que tornavam
governáveis os capitalismos locais e direitas selvagens ansiosas por realizar grandes roubos e
esmagar os pobres. O progressismo, confrontado politicamente com essa direita qualificada de
"irresponsável", cujos fundamentos económicos respeitava, chantageava aqueles na esquerda
que criticavam sua submissão às regras do jogo do capitalismo utilizando o papão reaccionário
("nós ou a besta"), acusando-os de fazerem o jogo da direita. Na realidade o progressismo é
um grande jogo favorável ao sistema e em última análise à direita, sempre em condições de
retornar ao governo graças à moderação, à "astúcia" aparentemente estúpida dos
progressistas que por vezes conseguem cooptar esquerdas claudicantes cuja obsessão em
"não fazer o jogo da direita" (e simultaneamente integrar-se no sistema) é completamente
funcional à reprodução do país burguês e em consequência a essa detestável direita.
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Agora o jogo começa a esgotar-se. Os progressismos governantes, com diferentes ritmos e
variados discursos, acossados pelo arrefecimento económico global e pelo crescente
intervencionismo dos Estados Unidos, vão perdendo espaço político. Em vários casos suas
dificuldades fiscais pressionam-nos a ajustar despesas públicas (e de modo algum a reduzir os
super lucros dos grupos económicos mais concentrados), a aceitar as devastações da
mega-mineração ou a adoptar medidas que facilitam a concentração de rendimentos. No
Brasil, o segundo governo Dilma colocou um neoliberal puro e duro no comando da política
económica, encurralado por uma direita ascendente, uma economia oscilando entre o
estancamento e a recessão e uma intervenção norte-americana cada vez mais activa. No
Uruguai o novo governo de Tabaré Vazquez mostra um rosto claramente conservador e no
Chile a presidência Bachelet não precisa correr demasiado à direita, depois da sua rosada
demagogia eleitoral afirma-se como continuidade do governo anterior e em consequência,
passada a confusão inicial, herdará também a hostilidade de importantes faixas de esquerda e
dos movimentos sociais.
Na Argentina, o núcleo duro agro-mineral exportador-financeiro e os grupos industriais
exportadores mais concentrados estão mais prósperos do nunca enquanto a ingerência
norte-americana amplia-se conduzindo o jogo de títeres políticos rumo a uma ruptura
ultra-direitista. Na Venezuela a eterna transição rumo a um socialismo que nunca acaba de
chegar não conseguiu superar o capitalismo ainda que torne caótico o seu funcionamento,
forjando desse modo o cenário de uma grande tragédia. Por enquanto só a Bolívia parece
salvar-se da avalanche, afirmando-se na maior mutação social da sua história moderna sem
superar o âmbito do subdesenvolvimento capitalista mas recompondo-o integrando as massas
submersas, multiplicando por mil o que havia feito o peronismo na Argentina entre 1945 e 1955
(de qualquer forma isso não a liberta da mudança de contexto regional-global).
Na América Latina assistimos a um processo de crise muito profundo onde convergem
progressismos declinantes com neoliberalismo integralmente degradados, como na Colômbia
ou no México, conformando um panorama comum de perda de legitimidade do poder político,
avanços de grupos económicos saqueadores e activismo imperialista cada vez mais forte.
A este panorama sombrio é necessário incorporar elementos que dão esperança, sem os quais
não poderíamos começar a entender o que está a ocorrer. Por debaixo dos truques políticos,
dos negócios rápidos e das histerias fascistas aparecem os protestos populares multitudinários,
a persistência de esquerdas não cooptadas pelo sistema (para além dos seus perfis mais ou
menos moderados ou radicais), a presença de insurgências incipientes ou poderosas (como na
Colômbia).
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Nem os cantos de sereia progressistas nem a repressão neoliberal puderam fazer desaparecer
ou marginalizar completamente esses fantasmas. Realidade latino-americana que preocupa os
estrategas do Império, que temem o que consideram como sua inevitável arremetida contra a
região possa desencadear o inferno da insurgência continental. Nesse caso o paraíso dos
grandes negócios poderia converter-se num grande atoleiro onde afundaria o conjunto do
sistema.
Geopolítica do Império, integrações e colonizações
A estratégia dos Estados Unidos aparece articulada em torno de três grandes eixos; o
transatlântico e o transpacífico que apontam num gigantesco jogo de pinças contra a
convergência russo-chinesa centro motor da integração euro-asiática. E a seguir o eixo
latino-americano destinado à recolonização da região.
Os Estados Unidos tentam converter a massa continental asiática e sua ampliação
russo-europeia num espaço desarticulado, com grandes zonas caóticas, objecto de saqueio e
super-exploração.
Os recursos naturais, assim como os laborais, desses territórios constituem seu centro de
atenção principal, na elipse estratégica que cobre o Golfo Pérsico e a Bacia do Mar Cáspio
estendendo-se em direcção à Rússia encontram-se 80% da reservas globais de gás e 60% das
de petróleo e na China habitam pouco mais de 230 milhões de operários industriais
(aproximadamente um terço do total mundial).
A América Latina aparece como o pátio traseiro a recolonizar. Ali se encontram, por exemplo,
as reservas petrolíferas da Venezuela (as primeira do mundo, 20% do total global), cerca de
80% das reservas mundiais de lítio (num triângulo territorial compreendido pelo Norte do Chile
e Argentina e pelo Sul da Bolívia) imprescindível na futura indústria do automóvel eléctrico, as
reservas de gás e petróleo de xisto do Sul argentino, fabulosas reservas de água doce do
aquífero guarani entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina.
Uma das ofensivas fortes do Império na década passada foi a tentativa de constituição da
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ALCA, zona de livre comércio e investimentos que significava a anexação económica da região
por parte dos Estados Unidos. O projecto fracassou, a ascensão do progressismo
latino-americano somado à emergência de potências não ocidentais, sobretudo a China, e o
atolamento estado-unidense na sua guerra asiáticas foram factores decisivos que em
diferentes medidas debilitaram a investida imperial.
Mas a partir da chegada de Obama à presidência os Estados Unidos desencadearam uma
ofensiva flexível de reconquista da América Latina: foi posta em marcha uma complexa mescla
de pressões, negociações, desestabilizações e golpes de estado. Os golpes brandos com êxito
em Honduras e no Paraguai, as tentativas de desestabilização no Equador, Argentina, Brasil e
sobretudo na Venezuela (onde vai-se perfilando uma intervenção militar), mas também a
tentativa em curso de extinção negociada da guerrilha colombiana e a domesticação de Cuba
fazem parte dessa estratégia de recolonização.
A mesma é implementada através de uma sucessão de tentativas suaves e duras tendente a
desarticular as resistências estatais e os processos de integração regional (Unasul, Celac,
Alba) e extra-regionais periféricos (BRICS, acordos com a China e a Rússia, etc) assim como a
bloquear, corromper ou dissolver as resistências sociais e as alternativas políticas mais
avançadas, em curso ou potenciais. Tentando levar avante uma dinâmica de desarticulação
mas procurando evitar que a mesma gere rebeliões que se propaguem como um rastilho de
pólvora numa região actualmente muito inter-relacionada.
Sabem muito bem que em muitos países da região a substituição de governos "progressistas"
por outros abertamente pró imperialistas significa a ascensão de camarilhas enlouquecidas que
a curto prazo causariam situações de caos que poderiam desencadear insurgências perigosas.
Alguns estrategas do Império acreditam poder neutralizar esse perigo com o próprio caos,
desenvolvendo "guerras de quarta geração" instalando diferentes formas de violência social
desestruturante combinadas com destruições mediático-culturais e repressões selectivas.
Nesse sentido, o modelo mexicano é para eles (por agora) um paradigma interessante.
Temem por exemplo que um cenário de caos fascista na Venezuela derive numa guerra
popular que os obrigaria a intervir directamente num conflito prolongado, o que somado às
suas guerras asiáticas os conduziria a uma super extensão estratégica ingovernável. É por isso
que consideram imprescindível obter o apaziguamento da guerrilha colombiana, potencial
aliada estratégica de uma possível resistência popular venezuelana.
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O panorama é completado com o processo de integração colonial dos países da chamada
Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Peru e Chile). A isso somam-se os tratados de livre
comércio de maneira individual com países da América Central e outros como o Chile e a
Colômbia e o velho tratado entre EUA, Canadá e México.
Integração colonial e desarticulação, manipulação do caos e fortalecimento de pólos
repressivos, Capriles mais Peña Nieto, Ollanta Humana mais Santos mais bandos
narco-mafiosos... tudo isso dentro de um contexto global de decadência sistémica onde a velha
ordem unipolar declina sem ser substituída por uma nova ordem multipolar. Tentativa de
controle imperialista da América Latina submersa na desordem do capitalismo mundial.
O cérebro do Império não consegue superar as mazelas do seu corpo envelhecido e enfermo,
os delírios reproduzem-se, as fugas para a frente multiplicam-se. Evidentemente
encontramo-nos num momento histórico decisivo.
19/Março/2015
Notas
1. Finian Cunningham, "NATO's Shadow of Nazi Operation Barbarossa", Strategic Culture
Foundation, 13/03/2015
2. Colonel Cassad, "Ukraine: Reprise de la guerre au printemps?", http://lesakerfrancophone.n
et/
le 13 mars 2015
3. "El papa Francisco advirtió que vivimos una tercera guerra mundial combatida 'por partes' ",
http://www.lanacion.com.ar
, 13 de septiembre de 2014
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4. Laurence H Summers, "Reflections on the 'New Secular Stagnation Hypothesis'" y Robert J
Gordon, "The turtle's progress: Secular stagnation meets the headwinds" en "Secular
Stagnation: Facts, Causes, and Cures", CEPR Press, 2014.
5. Utilizo o termo "progressista" no sentido mais amplo, desde governos que se proclamam
socialistas ou pró socialistas como na Venezuela ou Bolívia até outros de corte
neoliberal-progressista como os do Uruguai ou Brasil.
*Doutorado em economia e professor catedrático das universidades de Buenos Aires e
Córdoba, na Argentina, e de Havana, em Cuba. É autor de Capitalismo senil: a grande crise da
economia global,
publicado no
Brasil pela editora Record (2001). Dirige o Instituto de Pesquisa Científica da Universidade da
Bacia do Prata e publica regularmente em
Le Monde Diplomatique
(em castelhano).
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/crise/beinstein_guerra_global_mar15.html
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