MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS EGRÉGIO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS PRE/PH/2012 - RE - P - _________ RECURSO ELEITORAL Nº 134.02.2012.6.13.0304 RECORRENTE: Daniel Luiz Vieira , Presidente da Executiva Municipal do Partido Progressista RECORRIDO: Silveira Ademir Domingos da Silva RELATOR: Juiz Maurício Soares O MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL , por intermédio da PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL , devidamente instado a se manifestar, o faz nos seguintes termos. Trata-se de recurso interposto contra decisão que de feriu a transferência eleitoral do recorrido para o município de Iguatama -MG. O recorrente sustenta, em síntese, que o recorrido não possui residência no município, sobretudo no endereço ofertado. O recorrido aduz nas contrarrazões que reside há vários a nos no município, indicando como prova declaração do Secretário Municipal de Educação de que os filhos do impugnado estudam em escola municipal da localidade. É o relatório. 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS MÉRITO Para o deslinde da demanda instalada nos autos, necessário verificar a existência de vínculo juridicamente relevante do recorrido para com o município de Iguatama - MG, a que corresponde a ZE para a qual pretende a transferência de seu cadastro eleitoral. Para tanto, impende salientar que o conceito de domicílio eleitoral, para fins de inscrição e transferência, extrai -se dos artigos 4º, parágrafo único e 8º da Lei nº 6.996/82, que assim dispõem: Art. 4º - O alistamento se faz mediante a inscrição do eleitor. Parágrafo único - Para efeito de inscrição, domicílio eleitoral é o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar -se-á domicílio qualquer del as. (...) Art. 8º - A transferência do eleitor só será admitida se satisfeitas as seguintes exigências: (...) III - residência mí ni ma de 3 (três) meses no novo domicílio, declarada, sob as penas da lei, pelo próprio eleitor. Por sua vez, o Provimento nº 017/CRE/2011 da CRE/MG, que “Expede instruções para revisão do eleitorado com identificação biométrica em Municípios do Estado de Minas Gerais” estabelece: Art. 4º A comprovação de domicílio poderá ser feita mediante um ou mais documentos dos quais se infira ser o eleitor residente no município ou nele possuir vínculo familiar, profissional, patrimonial ou comunitário a ab onar a residência exigida. (Arts. 64 e 65 da Resolução nº 21.538/2003/TSE c/c Ac. TSE nº 371.C, de 19.9.96). 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS (...) § 4º Ocorrendo a impossibilidade de apresentação de qualquer documento que identifique o domi cílio do eleitor ou subsistindo dúvida quanto à idoneidade do comprovante de domicílio apresentado, declarando o eleitor, sob penas da lei, ter domicílio no município, o Juiz El eitoral decidirá de plano ou deter mi nará as providências necessárias à obtenção da prova, inclusive por meio de verificação no local. A extensão do conceito de domicílio eleitoral, realizada pelo referido Provimento 017/CRE/2011, encontra apoio em diversos precedentes do Tribunal Superior Eleitoral, que em geral definem como sendo o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos , sociais e afetivos. 1 Esta Procuradoria Regional Eleitoral vinha seguindo essa orientação. Ou seja, entendia -se que se provados vínculos políticos, afetivos ou sociais do eleitor com o município, restaria atendido o requisito domiciliar para fins de ins crição ou transferência eleitoral. Contudo, conhecidas e não raras fraudes praticadas em ano eleitoral, com a finalidade de arregimentação de eleitores comprometidos com determinado candidato, e que resulta, muitas vezes, em um fenômeno demográfico no município que acaba por ter mais eleitores que habitantes, como parece ser o caso dos autos, levaram a uma melhor reflexão e mudança de posição sobre o assunto. Oportuno o resgate da definição de domicílio da pessoa natural, segundo o Código Civil que, no artigo 70, estabelece que domicílio é o lugar onde ela estabelece residência com ânimo definitivo. Vê-se que o legislador, para definir o domicílio civil, reuniu dois 1 RESPE nº 23.721/2004, RESPE nº 16.397, RESPE nº 21.829. 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS elementos: um material, ou externo – a residência, e outro psíquico, ou interno – a intenção de permanecer. Domicílio civil, pressupõe, portanto, a relação física (residência ou moradia) da pessoa com o local, além de um outro elemento anímico ou subjetivo, a intenção de ali permanecer. Não se desconhece que legislador civil admitiu a plural idade de domicílios, considerando a possibilidade de o indivíduo possuir mais de uma residência de maneira não eventual (art. 71). Para além disso, pode ser considerado o domicílio da pessoa natural o lugar onde ela exerça suas atividades (art. 72), e, p or fim, pode-se ainda considerar domiciliada a pessoa onde for encontrada, desde que não tenha residência permanente (art. 73). No entanto, para fins eleitorais, especificamente para a inscrição eleitoral, o legislador não edificou a definição de domicíli o sobre os mesmos elementos (residência e ânimo de permanência), tendo se contentado apenas com o primeiro. Assim é que, para fins eleitorais, considera-se domicílio o lugar de residência ou moradia do eleitor (Lei nº 9.096/82, art. 4º). Mas isso não autoriza a inferência de que vínculos de natureza econômica, profissional, política, social ou afetiva possam instar a qualificação jurídica do lugar como domicílio. Isso porque, como parece óbvio, o elemento descritivo ( residência ou moradia ), que é o ponto nuclear da definição formulada pela lei eleitoral, traz ínsita a ideia de relação física entre o lugar e a pessoa. Em outros termos, é necessário, para a configuração de um domicílio eleitoral, que no lugar considerado a pessoa disponha de casa, apartame nto, barracão ou outro tipo de imóvel, próprio, alugado ou cedido em comodato, para onde se recolha, que lhe 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS sirva de abrigo. E, diga -se mais, essa relação física somente haverá de se caracterizar como residência ou moradia se for não eventual . Não obstante a clareza e perfeita delimitação da definição de domicílio conferida pela lei eleitoral, diversos precedentes do TSE, como já apontado, têm emprestado à expressão domicílio eleitoral uma exagerada e desarrazoada amplitude conceitual, ao ponto de abarca r no espectro conceitual de residência ou moradia situações como a de vínculos políticos, afetivos ou de parentesco, econômicos, e outros mais. Com isso se quer dizer que a amplitude conferida ao significado de domicílio eleitoral nos apontados precedente s refoge, evidentemente, às possibilidades semânticas que o texto do artigo 4º da Lei nº 9.096/82 oferece. Não se pretende aqui afirmar que seja a interpretação resultante do método de análise puramente literal ou gramatical do texto a única possível. É certo, como há muito já se afirma, que o sentido ou os sentidos possíveis de um enunciado normativo devem ser revelados a partir de um processo de interpretação que, conforme o caso, haverá de ser mais ou menos complexo, mais ou menos elaborado, podendo ch egar-se à consideração de elementos históricos, de análise sistemática, de integração da norma à realidade (social, política e econômica) e de interdisciplinariedade. É possível que a interpretação, exercitada com apoio em tais elementos, venha a revelar vários sentidos possíveis da norma, caso em que o intérprete deverá manifestar preferência por aquele que melhor se 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS ajuste à pauta axiológica do sistema ou subsistema normativo em que inserida a disposição normativa objeto da interpretação. De ver-se que a demasiada extensão do espectro conceitual de domicílio eleitoral, apontada nos precedentes do TSE, é uma posição que se apresenta em desconformidade evidente com o sentido gramatical do enunciado normativo em exame. Para ser sustentável juridicamente , essa posição jurisprudencial dependeria de muito bem articulada fundamentação, digna de um vigoroso esforço hermenêutico. Entretanto, ao exame das peças do inteiro teor dos julgados referidos não se encontra mais do que lacônicos argumentos, reportados n as notas remissas abaixo. 2 Em suas ponderações, Luiz Lênio Streck, considerou a assertiva de que o sentido gramatical de um enunciado normativo não traduz exatamente o conteúdo da norma, porquanto esse conteúdo só é possível de ver -se revelado a partir de um processo de interpretação. Mas é fora de dúvida que não se pode buscar o sentido da norma absolutamente desconectado do sentido gramatical do texto. Os textos que integram o direito positivo contêm a norma. São textos jurídicos, não textos contábeis ou religiosos. Os enunciados normativos podem não dizer exatamente o que é a norma; podem não esgotar ou mesmo transbordar o seu conteúdo. “Para o Código Eleitoral, domicílio é o lugar em que a pessoa mantém vínculos políticos, sociais e econômicos. A residência é a materialização desses atributos.” Voto do Min. Humberto Gomes de Barros no RESPE 23721. “ (…) o TSE, ao interpretar os arts. 42 e 55 do Código Eleitoral, tem liberalizado a caracterização do domicílio eleitoral e admitido o seu deferimento em lugar distinto daquele em que o eleitor mantém o domicílio civil, desde que demonstrado o vínculo.” Voto do Min. Francisco Peçanha Martins no RESPE 21.829. “O conceito de domicílio eleitoral não se confunde com o de domicílio do direito comum, regido pelo Código Civil. Mais flexível e elástico, identifica-se com a residência e o lugar onde o interessado tem vínculos políticos e sociais.” Voto do Min. Sávio de Figueiredo no RESPE 16.397. 2 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Porém, a compreensão do sentido da norma há que partir de um enunciado normativo e não pode se produzir sem a compree nsão de que entre texto e norma, respectivamente, se estabelece uma relação tal qual aquela que há entre o ente e o ser. Por essa razões, e pedindo venia àqueles que comungam da interpretação conferida pelo c. TSE à norma em questão, está a merecer revisão o entendimento esposado por aquela Corte Superior. Não se pode aceitar como domicílio eleitoral, para fins de inscrição ou transferência eleitoral, qualquer outro vínculo do eleitor com o município que não seja a residência ou a moradia, conforme estabe lece o artigo 4º da Lei nº 9.096/82. Qualquer outra interpretação da norma que admita diferente espécie de vínculo transborda os limites hermenêuticos, indo além da leitura construtiva do direito para contrariar o objeto da interpretação, não podendo ser aceita sob pena de completa desconexão entre a norma e sua aplicação. Ainda assim, levando -se em conta que a simples moradia 3 foi considerada pelo legislador como critério de definição do domicílio eleitoral, é possível que o eleitor possua dois domicílios , podendo legitimamente inscrever -se ou transferir sua inscrição para qualquer um deles. Seria, por exemplo, o caso daqueles que durante a semana trabalham nos grandes centros e lá estabelecem moradia para esse fim, no entanto residem em município independentemente de do inte rior, eventuais onde alterações pretendem em suas permanecer atividades profissionais. Nesses casos estaria estabelecido o vínculo exigido pela lei 3 Segundo Caio Mário da Silva Pereira, moradia e residência se distinguem numa escala de gradação, onde moradia estaria colocada antes de residência e o que definiria essa posição seria a estabilidade na habitação. (Instituições de Direito Civil, v. I, 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 371) 7 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS eleitoral para inscrição ou transferência em qualquer dos municípios. Porém não em meras relações familiares, econômicas ou sociais. Nessa linha de ideias, e tendo em vista que no caso em apreço o recorrente aduz que o recorrido não reside no município de Iguatama MG, impende a análise da prova dos autos. De acordo com o conjunto probat ório, os filhos do recorrido estão matriculados em escolas da municipalidade (fl. 26 e 27). Não obstante tenha vigência no processo eleitoral, como no processo civil, o princípio do livre convencimento motivado 4, não se pode deixar de observar que, ordin ariamente, as provas reputadas apropriadas por instituições bancárias, órgãos públicos (DETRAN, por exemplo), escolas e instituições privadas diversas para a comprovação de residência são faturas de consumo de serviços como energia elétrica, telefonia, águ a. Entretanto, consta dos autos que a fatura de consumo de energia elétrica do imóvel em que o recorrido alega residir está em nome de Newton Gonçalves Barbosa, e não da recorrida ou de seu cônjuge. Dessarte o documento de fl. 24 não é suficiente para fa zer prova da residência do recorrido. Por outro lado, a prova apresentada pelo recorrido, consistentes e declarações do Secretário Municipal sobre a matriculas dos filhos nas escolas locais não é própria para provar sua residência no município para onde pretende transferir sua inscrição eleitoral. De ver -se que na maioria dos pequenos municípios ainda persiste na consciência 4 CPC. Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) 8 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS popular a ideia de que os serviços públicos – saúde, educação, por exemplo – são entregues e recebidos não como a concretização de u m direito constitucional, mas como algo que se supõe ser beneplácito dos governantes. Por isso, a retribuição desse beneplácito, que em regra se expressa no voto, é efeito que decorre de forma irrefletida, acrítica, pelo eleitor, sobretudo por aquelas pess oas mais simples. Tomem-se como exemplo os serviços de educação. Segundo o art.210, parágrafo 2º da Constituição da República, os serviços públicos de educação fundamental devem ser oferecidos prioritariamente pelo Município: “ § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.” Não há nos autos, entretanto, nenhuma prova, sequer uma informação, acerca de uma razão plausível para que o ora recorrido, residente originariamente em Pains -MG , de acordo com o cadastro eleitoral (fl. 17), venha a ter seus filhos matriculados na rede municipal de ensino de Iguatama-MG. A transferência fraudulenta de eleitores, que tanto compromete a legitimidade democrática expressa nas urnas, vem sendo objeto de cobertura pela imprensa 5. São necessárias providências efetivas e concretas “MP e Polícia Federal abrem inquérito para apurar fraude eleitoral em MG. Irregularidades viraram processos administrativos e estão sendo concluídas. Cerca de 200 eleitores de Uberlândia e Araguari estão sendo investigados. Os supostos casos de fraude eleitoral em que cerca de 200 eleitores de Uberlândia e Araguari transferiram o título de eleitor para Indianápolis, no Triângulo Mineiro, serão encaminhados ao Ministério Público e à Polícia Federal nesta sexta-feira (18) para abertura de inquérito. As irregularidades viraram processos administrativos e estão em fase de conclusão.” (Disponível em http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2012. Acesso em 25/06/2012). 5 9 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS contra esse tipo de desmando, sob pena de se verem frustradas as disposições normativas que visam garantir a lisura do pleito eleitoral, que nesses casos se vê irremediavelmente maculado ante s mesmo do início da disputa. Não se pode admitir que a oferta de serviços públicos feita pela municipalidade com o fim de cooptação de apoio, pelo voto de eleitores residentes em outro município, seja eficaz para alterar o domicílio eleitoral. Diante disso, duas alternativas se apresentam a essa Corte de Justiça: seguir e aplicar aquela noção conceitual de domicílio eleitoral cristalizada na jurisprudência ou, ao contrário, problematizá -la, como aqui se propõe, submetendo -a ao crivo de uma reflexão em q ue não podem ser havidos como irrelevantes os dados dessa lamentável realidade política, do ambiente em que o direito deve operar. Se parecer evidente a essa Corte, como parece ao Ministério Público Eleitoral, que ao direito objetivo se propõe, para além d e uma função conformadora, também uma função transformadora das estruturas de dominação social e política, é natural que a inclinação se estabeleça em prol da segunda alternativa aventada. De acordo, portanto, com o conceito de domicílio eleitoral aqui adotado, o recorrido não possui vínculo domiciliar com o município de Iguatama-MG. Ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL , por intermédio da PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL , se manifesta pelo provimento do recurso para que seja indeferida a transferência eleitoral em apreço. 10 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS Belo Horizonte, 19 de julho de 2012. Eduardo Morato Fonseca Procurador Regional Eleitoral 11