Todos aqueles que não se alistaram em guerras santas tem como

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Texto de Alain de Botton em "As consolações da filosofia" (editora Rocco)
com citações de filósofos estóicos. Tradução de Eneida Santos. As notas ao
final são minhas.
Os estóicos lançavam mão de uma imagem para evocar nossa condição de
criaturas fortuitamente capazes de efetuar mudanças, apesar de sujeitas às
necessidades extremas. Somos como cães amarrados a uma carroça que, a
qualquer instante, pode se colocar em movimento. O comprimento de nossa
trela é suficiente para nos permitir uma certa liberdade de movimento, mas
não nos concede a autonomia necessária para vagarmos a nosso bel-prazer.
A metáfora foi formulada pelos filósofos estóicos Zenão de Cício (fundados
da escola estóica) e Crisipo e relatada pelo sacerdote romano Hipólito:
“Quando um cão atrelado a uma carroça quiser acompanhá-la, ele é puxado
por ela e avança, fazendo com que seu gesto espontâneo coincida com a
necessidade. Mas se o cão decidir não se mexer, o movimento da carroça o
obrigará a segui-la, de qualquer maneira. O mesmo acontece com os
homens: mesmo que não queiram, eles são forçados a obedecer o que o
destino lhes reservou.”
Naturalmente, um cão é livre para ir onde bem entender. Mas, como sugere
a metáfora de Zenão e Crisipo, se seus movimentos estão tolhidos é melhor
trotar para acompanhar a carroça do que ser arrastado e estrangulado por
ela. Embora o primeiro impulso do animal talvez seja o de lutar contra a
guinada repentina do veículo que o obriga a tomar uma direção imprevista,
seu sofrimento só dura enquanto durar sua resistência.
Assim Sêneca se posicionou sobre o assunto [1]:
“Ao lutar contra o laço, o animal o aperta mais... qualquer cabresto
apertado irá machucar menos o animal se ele se mover com ele do que se
lutar contra ele. Somente a capacidade de resistência e a submissão à
necessidade proporcionam o alívio para o que é esmagador.”
Para reduzir a violência de nossa insubordinação contra acontecimentos que
tomam rumos opostos ao que desejávamos, devemos refletir que também
nós temos um cabresto em volta do pescoço. O sábio aprenderá a
identificar de imediato o que é necessário e o seguirá, em vez de deixar-se
exaurir em protesto. Quando um homem sábio é informado de que sua
mala se perdeu em trânsito, ele precisará de poucos segundos para
resignar-se. Sêneca relatou de que forma o fundador do estoicismo se
comportou quando soube que havia perdido todos os seus pertences:
“Ao ser avisado sobre um naufrágio e ser alertado para o fato de que sua
bagagem havia afundado, Zenão comentou: ‘A Fortuna [2] me desafia a ser
um filósofo menos sobrecarregado.’”
Isso pode soar como uma receita para a passividade e a placidez, um
incentivo à resignação diante das frustrações que poderiam ter sido
vencidas. Mas a argumentação de Sêneca é mais sutil. Existe o mesmo grau
de irracionalidade em se aceitar como necessário algo que não é necessário
e em se rebelar contra algo que é necessário. Podemos, com a mesma
facilidade, cometer o mesmo erro, ao aceitarmos o desnecessário e
negarmos o possível, e negarmos o necessário e desejarmos o impossível.
Cabe à capacidade de raciocínio estabelecer a distinção.
Não importa que semelhanças possam existir entre nós e um cão atrelado,
nós possuímos uma vantagem crucial: podemos raciocinar e o cão, não. O
animal sequer percebe de imediato que foi amarrado a uma trela e nem
entende a relação entre as guinadas da carroça e a dor que sente no
pescoço. Ele se sentirá confuso com as mudanças de direção e será difícil
para ele calcular a trajetória da carroça, portanto sofrerá puxões constantes
e dolorosos. Mas a razão nos capacita a teorizar com precisão sobre a rota
de nossa carroça e isto nos oferece uma oportunidade, única entre os seres
vivos, de aumentar nosso senso de liberdade ao assegurar uma boa folga
entre nós e a necessidade [3]. A razão nos permite determinar quando
nossos desejos estão em conflito irrevogável com a realidade e nos desafia
a não sentir revolta ou amargura, e sim a nos submetermos de bom grado
às necessidades. Talvez sejamos impotentes para alterar determinados
acontecimentos, mas permanecemos livres para escolher que atitude tomar
em relação a eles, e em nossa aceitação espontânea da necessidade
encontramos uma liberdade característica.
***
[1] Este trecho faz parte do capítulo intitulado “consolação para a
frustração”, baseado no pensamento do Sêneca. Como este livro também
deu origem a um documentário da BBC, é possível ver o capítulo inteiro –
incluindo a metáfora do cão, onde a carroça é sutilmente substituída por
uma bicicleta pilotada pelo próprio Alain – no vídeo abaixo (e suas
seqüências):
[vídeo]
[2] Os estóicos freqüentemente faziam referências aos deuses não em um
sentido religioso, mas no sentido dos arquétipos e conceitos universais que
estes representavam. Epicteto ficou conhecido por “antecipar” o
monoteísmo ao chamar a Zeus de Deus dos deuses. Zenão e Sêneca se
referiam a Fortuna como uma referência ao destino, a sorte, aos
acontecimentos da vida e da natureza sobre os quais não tínhamos controle
algum.
[3] A melhor maneira de assegurar esta “folga” é exatamente avaliar de
forma racional as nossas necessidades: que na maior parte das vezes,
poderemos nos contentar com pouco, e a felicidade freqüentemente reside
nas coisas simples, que infelizmente negligenciamos o real valor na maior
parte da vida. No capítulo sobre Epicuro, intitulado “consolação para quando
não se tem dinheiro suficiente”, Alain fala exatamente sobre isso. Sim, o
livre é altamente recomendado e de simples leitura...
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