Desafios à Gestão Pública Contemporânea Esta Jornada Internacional de Gestão Pública foi concebida como um espaço de atualização com o estado da arte em gestão pública e de compartilhamento de experiências e inovações. Para os servidores públicos brasileiros, é uma oportunidade de reflexão e avaliação da nossa trajetória, comparada à dos demais países. Embora exercendo funções na condução da política de gestão pública, aqui no governo brasileiro, pretendo abordar os desafios à gestão pública na perspectiva iberoamericana, falando na condição de presidente deste importante organismo multilateral que é o CLAD - Centro Latino-americano de Administração para o Desenvolvimento. Não há como abordar cada uma das experiências dos 19 países membros do CLAD, e nem seria apropriado fazê-lo, mas com certeza há muito que divulgar e discutir sobre as tendências, avanços e limitações que se podem inferir da trajetória coletiva que temos percorrido. O acompanhamento dessa trajetória é parte das atribuições do CLAD na cooperação internacional em gestão pública e vou me deter nesse assunto, aqui, hoje. O CLAD é uma organização de referência no cenário iberoamericano, atuando na disseminação de inovações, fomento da pesquisa e do debate em questões de ponta na área de gestão pública e promoção do intercâmbio e cooperação técnica nessa área. 1 A sua atuação se dá no âmbito de um conjunto diversificado de países, que, todavia, compartilham uma herança cultural e histórica e se defrontam com inúmeros desafios da gestão pública no contexto contemporâneo. Se entendemos como desejável que se caminhe em direção a alguma convergência dessas políticas e a certos objetivos comuns, é importante ressaltar que há peculiaridades de natureza sócio-econômica e política entre estes países e que talvez se situem em momentos diferentes de trajetórias de consolidação das suas políticas de gestão,. Acreditamos que uma premissa básica em relação ao papel e aos desafios da gestão pública no contexto dos países da América Latina seja a o nosso propósito compartilhado de construir um estado capaz de viabilizar o desenvolvimento, não somente em termos econômicos, como também sociais, políticos e ambientais. Ao lado disso, cumpre registrar que o campo da gestão pública se movimenta pelo intercâmbio de experiências e inovações. Diferentemente do setor privado, nada temos a esconder e não estamos competindo, mas lutando, cada um no seu contexto nacional, pela excelência da administração pública. Trata-se de prestar bons serviços aos cidadãos e do apoio mútuo na solução de problemas, tomada de decisões e implementação de projetos e inovações. O CLAD produziu o documento “Gestão pública iberoamericana para o século XXI”, aprovado em 2010, que traz um balanço da gestão pública no continente. Este documento mostra que desde os anos 80 vivemos um período de grande efervescência nessa área. 2 De forma geral, o que se verificou foi a assimilação dos temas, conceitos, modelos e instrumentos forjados em várias experiências internacionais de transformações da burocracia, com a incorporação de importantes ingredientes locais. Acompanhando esta trajetória, o CLAD tem se empenhado na formulação de uma visão atualizada das questões de gestão pública, em sintonia com a experiência mundial, mas atenta às características próprias da realidade iberoamericana. Este esforço levou também à produção de cinco cartas, que resultaram do processo em construção coletiva, ainda em curso, de uma doutrina de gestão pública para a realidade ibero-americana. Vale observar que não se pretende uma elaboração puramente teórica ou conceitual, mas a produção de conhecimento de cunho prescritivo, aplicado a problemas e questões relevantes, prementes e devidamente contextualizado em nossa realidade. Constatamos, com satisfação, que já percorremos uma trajetória significativa, com o acúmulo de experiências e de conhecimento sobre o tema. Gostaria de me estender um pouco na abordagem dessa trajetória em nossos países, focalizando avanços e problemas, tomando como referência este primeiro decênio do século XXI. Podemos identificar cinco áreas que ganharam importância nas agendas de gestão pública dos países da América 3 Latina, neste período: A primeira refere-se à democratização da gestão pública A ampliação da democracia é fenômeno notável em nossa região, que decorre da superação do ciclo de regimes autoritários, mas apresenta características inovadoras, como a pressão da sociedade por maior controle sobre os governos, em sintonia com o que acontece no resto do mundo. Importantes avanços resultam da aplicação dos instrumentos de governo eletrônico e das leis de transparência, que permitem o acesso do cidadão a informações públicas em níveis antes impensáveis. Além disso, o crescimento do associativismo, impulsionado pelos movimentos sociais e as experiências governamentais de planejamento local e de orçamento participativo, são interessantes ensaios de novos modelos de gestão participativa. Cumpre mencionar ainda as demandas sociais, apoiadas em organizações do Terceiro Setor que levantam os temas de inclusão e equidade, etnia e outros, com repercussão sobre a administração pública. A “Carta Iberoamericana de Participação Cidadã na Gestão Pública”, aprovada em 2009, aponta para a necessidade de encarar a participação como direito, voltado para influir sobre o processo de formulação e implementação das políticas públicas e sobre a prestação de serviços ao cidadão. As experiências de criação de conselhos com 4 representação setorial ou regional e de atuação de associações de usuários de serviços públicos são manifestações vitais desta nova era de democracia em processo de consolidação. As cartas de serviços, com base nas quais a administração pública se compromete com padrões de desempenho e metas, são também mecanismos em consolidação para construir uma institucionalidade que abrigue e promova a participação e a transparência. Há certamente limites e dificuldades e podemos destacar a necessidade de avançar na estruturação mais ampla e ordenada das instâncias e mecanismos de participação. Os desafios da abertura das informações em conteúdo relevante e formatos acessíveis são também temas que deverão merecer nossa atenção nos próximos anos. A profissionalização da função pública é uma segunda área de importância em nossas agendas A profissionalização da função pública avançou com a expansão dos concursos e processos de seleção públicos. Ao mesmo tempo, os governos estão contratando pessoas mais qualificadas em escolaridade e capacidade técnica. A “Carta Iberoamericana da Função Pública”, de 2003, 5 expressou um compromisso dos governos com a profissionalização da administração pública, impulsionando a construção de burocracias capacitadas, dotadas de autonomia e competência profissional para atuar com a independência necessária para refrear o patrimonialismo, de forma compatível com a democracia e o respeito aos mecanismos de decisão política dos governos. Esta diretriz, inscrita em documento do CLAD, contribuiu para o resgate do tema dos recursos humanos e da profissionalização na agenda das reformas, num momento em que haviam sido relegadas ao segundo plano, no contexto das primeiras reações à crise fiscal dos estados. Outro documento do CLAD, de 2006, o “Código Iberoamericano de Bom Governo”, acrescentou a ênfase na responsabilização, transparência e exigência de padrões de conduta ética pelo alto escalão governamental. No período recente, aumentou a preocupação da opinião pública com a responsabilização dos dirigentes públicos e o clamor pelo controle sobre a corrupção. A profissionalização da função pública inclui a criação de um ambiente meritocrático, no qual além do recrutamento é igualmente importante a capacitação e a responsabilização do servidor público pelo seu trabalho. Diversas inovações têm se disseminado nessa direção, particularmente os incentivos, individuais e coletivos, na forma de mecanismos de avaliação e reconhecimento do desempenho, a premiação de melhores práticas e o fortalecimento da cultura do serviço público. Sabemos que há uma rica diversidade de projetos e 6 iniciativas em política de recursos humanos, mas ainda se faz necessário aperfeiçoar estes mecanismos e ampliar a sua abrangência, em especial para atingir também os servidores da ponta, que atuam diretamente no atendimento ao público e na implementação das políticas públicas. Eles são muitas vezes um elo esquecido das reformas administrativas. Uma terceira área que ganhou grande importância em nossas agendas de gestão diz respeito às novas tecnologias de gestão As tecnologias de informação e em especial a disseminação das redes e o surgimento da internet como espaço onipresente de interações sociais, abre enormes potencialidades a serem exploradas para a transformação da administração pública. A “Carta Iberoamericana de Governo Eletrônico”, de 2007, situa a incorporação destas novas tecnologias como instrumento para empoderar o cidadão em seus relacionamentos com a administração pública. Estas tecnologias não devem ser encaradas como simples ferramentas utilitárias, mas como vetores da mudança nas relações com o cidadão, facilitando a sua participação na gestão pública e contribuindo para que elas se desenvolvam com maior eficiência, eficácia e transparência. Dessa forma, as políticas de governo eletrônico são também construtoras da cidadania e em perspectiva mais ampla, do horizonte estratégico da sociedade da informação e do conhecimento, inclusiva, centrada nas pessoas e orientada para o desenvolvimento. 7 Os avanços nesta área têm sido promissores. A aplicação da tecnologia da informação está se revelando um poderoso indutor da racionalização das atividades administrativas. Isso tem ocorrido, sobretudo, nas áreas orçamentária e financeira, melhorando a gestão das contas públicas, que é requisito importante para produzir políticas públicas com mais qualidade. A informatização de processos é promissor caminho para a revisão de estruturas, revertendo as características de centralismo, hierarquização e formalismo processual que têm sido um problema persistente das administrações públicas de nossos países. Os denominados serviços de governo eletrônico são a frente com maiores realizações, abrindo novos canais e formatos de relacionamento com o cidadão. Os centros de atendimento integrado têm sido a mais amplamente disseminada inovação nessa área, unificando serviços em um mesmo espaço físico com informatização e agilização de procedimentos. Os portais integrados de serviços na internet são um equivalente virtual dos centros de atendimento e também têm alcançado expressiva disseminação na América Latina. O governo eletrônico contempla ainda ferramentas e sistemas para o monitoramento de programas e políticas, possibilitando a aferição sistemática de metas e indicadores e sua divulgação para a sociedade. Seus potenciais de aplicação para a promoção da transparência parecem ilimitados e são uma importante fronteira de inovações a serem experimentadas. Apesar dos avanços, o governo eletrônico ainda se depara 8 com certas limitações: a administração pública é resistente às implicações organizacionais da comunicação eletrônica, que se presta aos formatos de rede, à exploração de relações transversais e integração entre órgãos, setores e áreas da administração pública. A fragmentação administrativa acarreta a convivência entre vários sistemas e bancos de dados, que representa uma pesada herança a ser enfrentada com as políticas de interoperabilidade. Além disso, os condicionamentos da estrutura social trazem para a área do governo eletrônico o problema da exclusão digital, que precisa ser enfrentado como política de construção de cidadania. A reorganização da gestão pública para a obtenção de resultados, como quarta área, é um dos temas centrais da administração pública contemporânea. Trata-se de buscar resultados definidos na esfera política e, portanto, revestidos de legitimidade e encarados como prioritários. Este conceito é uma superação do gerencialismo porque não se preocupa somente com o desempenho, mas com resultados das políticas públicas e da ação de governo. No caso da América Latina, como já mencionamos, estes resultados devem contemplar o desenvolvimento sustentável em suas múltiplas dimensões, respeitando as características nacionais de cada país. Os avanços na gestão voltada para melhoria da qualidade 9 dos serviços prestados à população se verificaram na expansão da utilização de metas e indicadores nos programas e políticas públicas. Esse avanço melhora o monitoramento e o controle das ações de governo. Além disso, amplia a transparência e facilita a participação da sociedade, através de seus representantes, em conselhos e instâncias de controle social. O desenvolvimento das políticas sociais abriu importantes espaços de experimentação dos indicadores e do monitoramento do desempenho associado a novas formas de organização e controle. A aplicação de modelos de contratualização é uma forma avançada de controle por resultados na administração de serviços, seja por órgãos governamentais, seja por entidades públicas não-estatais. A contratualização facilita a descentralização e a participação social na gestão de serviços e atividades de interesse coletivo. Trata-se de uma frente de experimentação de novos formatos de organização dos serviços públicos, com mais autonomia e flexibilidade em relação à burocracia tradicional. As limitações das práticas de gestão por resultados se devem à debilidade dos mecanismos de controle institucional e social. De forma geral, os modelos de contratualização dependem de capacidade técnica, mobilização de setores sociais diretamente relacionados à atividade e um arranjo institucional adequado. Outra dificuldade reside em que o estabelecimento de metas, indicadores e a consequente contratualização devem se inserir em iniciativas mais abrangentes de planejamento e coordenação da ação governamental. 10 Mecanismos de governança, como quinta e última área de importância em nossa agendas de gestão A governança é um dos campos mais importantes nos quais se constatam significativas transformações em curso na administração pública. O funcionamento dos governos é cada vez mais dependente de relações intra e intergovernamentais e com a sociedade e o mercado. Como conseqüência, as administrações públicas atualmente tendem a ser menos centralizadas, com menor hierarquização e abertas à interação com associações e outros atores sociais que compõem a esfera pública, mas não necessariamente integram o estado, de um ponto de vista formal. Avanços também aconteceram na disseminação da perspectiva da intersetorialidade das políticas, alcançando em especial as políticas sociais. Nas relações entre os governos, constatam-se experiências de ampliação de autonomias regionais e por outro lado, o desenvolvimento dos processos de integração entre países. Os resultados deste novo cenário de desconcentração, descentralização e autonomias têm sido propícios para o aprofundamento da democracia, em especial no âmbito dos governos locais. 11 Dessa forma, os estados contemporâneos exercem um papel central no desenvolvimento e na produção de políticas públicas para a correção das desigualdades, mas, cada vez mais, precisam construir uma vasta rede de relações que atravessam suas estruturas interna e externamente. As políticas públicas dependem, para seu sucesso, de uma cuidadosa consolidação de arranjos para sua gestão envolvendo múltiplos setores, órgãos, governos e atores políticos. As capacidades de governança são atualmente um valioso ativo a ser consolidado e preservado para o enfrentamento dos problemas e implementação de políticas que frequentemente exigem lidar com a coordenação, articulação, intersetorialidade, contratualização e parcerias, para sua implementação. Agenda emergente Para finalizar, vou me deter agora sobre a agenda de questões de gestão pública que, creio, representam desafios atuais a serem enfrentados pelos países da América Latina, dentro da orientação de alcançar o desenvolvimento inclusivo e sustentável. Em primeiro lugar, é importante prosseguir no esforço pelo fortalecimento do estado e da esfera pública como promotores da cidadania e da equidade social. As transformações de caráter estrutural devem continuar nas agendas governamentais, especialmente as reformas dos sistemas de previdência social e da função pública. 12 A boa gestão das contas públicas é pré-requisito para a gestão pública de qualidade nas políticas finalísticas prioritárias: educação, saúde, segurança pública, combate à pobreza e à desigualdade social. Há um conjunto de temas emergentes que estão ganhando atenção e cada vez mais passam a integrar a agenda dos governos. Dentre estes temas podemos destacar: - as questões ambientais; - as desigualdades de gênero e o respeito à diversidade étnica e cultural; - o cuidado com o envelhecimento populacional e consequente crescimento da população da chamada terceira idade; -os problemas de segurança relacionados ao tráfico de drogas; - a qualidade de vida nos grandes centros urbanos; e - a prevenção contra catástrofes naturais e acidentes de infraestrutura. A recente crise econômica e seu rebatimento como crise fiscal dos estados se soma a estes temas e adquire uma importância primordial, devido à amplitude de inter-relações e impactos que está desencadeando. Vivemos um momento de turbulências e incertezas. Precisamos construir capacidade técnica e articular apoio político e legitimidade, perante a sociedade, para que as respostas à crise sejam progressivas, ou seja, voltadas para aproveitar os programas e iniciativas de eficiência de gestão dos recursos públicos, como oportunidades de 13 inovação da gestão pública. Este é um desafio que se coloca para os países do CLAD e do mundo. 14