Biotecnologia e horror humanista.

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Pondé, Luiz Felipe. “Biotecnologia e horror humanista.” São Paulo: Folha
de São Paulo, 10 de outubro de 1999.
10-10-99 FSP
LUIZ FELIPE PONDÉ
Biotecnologia e o horror humanista
A quarta barreira (a manipulação gênica) à qual se refere o
filósofo Sloterdijk é na realidade uma espécie de queda em um abismo
ontológico, o que produzirá seguramente um tipo de horror metafísico que
nos faz pensar em uma ciência visitada pelo terror gótico de Lovecraft.
Há alguns anos a mídia foi invadida pelo evento da Dolly, a ovelha
maldita.
Todavia, para além do que possa parecer, pensamos que a clonagem
não é o limite do escatológico que se pode prever com relação aos
"pruridos morais" que uma sociedade narcisista produzirá quando acordar
um dia de seu sono dogmático e descobrir sua "ontotecnologia". A
verdadeira batalha moral se encontra na prática da programação gênica em
seres humanos, prática essa que um dia será viável (ainda que não com
todas as cores que lhe dá a "science fiction") no plano do mercado de
bens de consumo: a biotecnologia é um dos horizontes promissores do
capitalismo atual.
Interessante pensar que normalmente os alarmes do humanismo de
plantão disparam -e muitas vezes com alguma razão- quando se ouve o termo
"engenharia genética" (EG): nazismo, pureza étnica. Esse mesmo humanismo
confuso não parece se dar conta de que um forte "halo nazista", se
limpados os contextos históricos, permanece presente em atitudes tais
como o encurralamento da velhice pela automutilação feliz praticada por
muitas mulheres, na disciplina férrea dos "clubes de saúde", na beleza
higiênica de corpos esculpidos e no culto da eficiência a toda prova.
Talvez, quando a "democratização" do consumo de bens gênicos se
concretizar no mercado, as pessoas percebam que se pode pensar em
engenharia genética como um "direito adquirido" em nome do próprio
projeto de emancipação moderna, e não só como "limpeza ariana": algum
dia, uma gravidez não assistida por técnicas genéticas poderá soar como
uma mãe que não faz pré-natal e se entrega ao sabor do acaso. Melhorar as
"funções" genéticas não é igual necessariamente a produzir uma "raça
única". Mas, como parece ser a regra geral, sem uma compreensão imediata
em termos de "liberdade de consumo" ou "modos de consumo", o ser humano
ocidental emancipado não consegue reconhecer nenhuma "racionalidade" no
mundo à sua volta.
A engenharia genética é um advento na história do planeta que
impõe a necessidade de produzirmos não apenas uma ética tampão, mas de
procurarmos tomar consciência da revolução ontológica que ela representa:
a EG, diante da concepção materialista e pragmática -que tende a ser a
atual-, representa um potencial emancipatório assustador. Desde o mito da
Queda, romper o que é considerado o "limite natural" significa a sensação
de vertigem do Ser. A revolução genética é mais próxima em radicalidade
antropológica da revolução da agricultura do que da industrial. A
civilização pós-genética será mais distante da nossa do que foi a préindustrial.
De
caçadores-coletores
do
"natural"
passamos
a
seus
programadores. A tentativa fácil de tornar ilegítimo o uso- em seres
superiores, inclusive o homem- da EG tenderá a se dissolver diante da
atmosfera mental contemporânea: interesses narcísicos, visão desencantada
de mundo, sociedade "market-oriented", relativismo feroz.
O drama se passa em um cenário materialista e pragmático,
portanto. Ser materialista significa pensar que tudo o que existe são
configurações distintas de matéria. Ser pragmático é habitar um mundo da
multiplicidade dispersa encurralada pela contingência: o homem pragmático
é racional, na medida em que mitiga os efeitos nefastos do acaso sobre si
mesmo (as misérias da contingência) via uma engenharia de conceitos: ter
cognoscibilidade é ter eficácia.
Nesse cenário, permanecer sendo é "programar eficientemente".
Mesmo em termos espirituais só há lugar para uma espiritualidade
oportunista na qual drama metafísico é sinônimo de angústia com o
sucesso, ou seja, vitória sobre o acaso (teologia da prosperidade). A
relação desse espiritualismo de consumo com a EG é complacente, porque
ele costuma aceitar bem formas protobiotecnológicas como parte do direito
metafísico ao sucesso: a patologização do envelhecimento e sua "cura" por
meio
de
tratamentos
estéticos,
"plásticos"
ou
holísticos
são
formasarcaicas de biotecnologia com largo consumo.
O verdadeiro mal-estar "ético" aqui parece ser com a constatação
latente de que o uso da EG será "irresistível" como forma avançada de
humanismo narcísico, e com isso seremos obrigados a contemplar a
existência apenas histórica da "Natureza", que assim se revela relativa.
Quando pensa, esse oportunista produz argumentos "críticos" frouxos, como
o que diz que a EG é contra a "condição humana", como se esta "condição"
não fosse exatamente combater essa mesma Natureza que nos devora (a
modernidade sendo apenas a radicalização desse "programa").
A cultura genética (o horror em si) é aquela na qual a própria
definição de cultura como algo que se diferencia da Natureza tende a se
dissolver: o homem da cultura genética não sabe o que se opõe a sua
"techné". É a artificialidade como horizonte único. Tal fato, para esse
homem, estabelecerá uma possível consistência ética da EG "heavy", já que
o suposto privilégio do "natural" passa a ser inexistente: o problema
migra para procedimentos técnico-sociais, como regulamentação jurídica,
padrões de comportamentos e a demanda de consumo. Nesse nível, o drama da
morte da "Natureza" se privatiza.
Contrariamente ao que se pensava, foi o materialismo -e não
qualquer forma de espiritualismo- que lançou o homem em uma experiência
social e psicológica de transcendência real: o materialismo não é mais
somente uma concepção de mundo, mas sim uma prática (ética) que molda o
real. É exatamente a selvagem equivocidade (variação de sentido dos
objetos e dos valores no mundo) do materialismo que se revela intratável
à ética ingenuamente humanista que busca limites para o uso pesado da EG.
É exatamente a "Natureza" que se dissolverá contra a cultura, por meio da
banalização do consumo de bens gênicos.
Essa equivocidade é a mesma que visitou os sábios da Universidade
de Salamanca, quando do retorno das grandes navegações: "Os índios são ou
não seres humanos? Andam nus! Como podem ser descendentes de Adão?". Com
a decadência do vocabulário teológico, essa questão perdeu o poder de
produzir horror à consciência ocidental. O que acontecerá quando o
vocabulário "naturalista" perder a capacidade de nos "assustar"? Quem
tiver uma bela alma, que volte à praia.
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