A POLÍTICA EDUCACIONAL DE MATO GROSSO DO SUL E A MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL Kátia Cristina Nascimento Figueira* Este estudo é parte do resultado de trabalho desenvolvido no Mestrado em Educação Brasileira pela UFMS e tem por objeto a política educacional no Estado de Mato Grosso do Sul no período compreendido entre 1991-1994. O recorte estabelecido deve-se, por um lado, ao período em que no Brasil as ações governamentais apontavam para maior inserção do país no processo que tem sido chamado de mundialização do capital e que culminaram por refletir em novos caminhos pensados para a educação no país e, por outro, a adoção em Mato Grosso do Sul, de uma proposta educacional considerada democrática pela maioria dos educadores, que trazia em seu interior alguns dos pressupostos defendidos por organismos multilaterais à frente desse mesmo processo. Na construção da investigação do objeto, buscou-se analisar em que medida se interrelacionam a singularidade, enquanto expressão da realidade universal, e a totalidade. Para tanto, com base nos estudos de Gramsci (1991) entendemos que o Estado adota políticas educacionais que expressam sua configuração na macroestrutura sócio-econômica de acumulação. Assim, considerando que as políticas educacionais diferenciam-se nos momentos históricos, podemos identificar como as alterações em curso no mundo do trabalho fizeram com que vários estudiosos destas mudanças defendessem, como necessárias, a adoção de políticas públicas voltadas para o preparo da mão-de-obra e erradicação de entraves com o que, ainda hoje, tem sido inadvertidamente chamado de “qualificação”. E, ainda, como estas propagadas exigências estavam postas na política educacional sul-mato-grossense. Portanto, partimos do pressuposto de que as políticas públicas para educação deverão ser compreendidas a partir do modo de produção vigente e que o Estado brasileiro tem seus projetos educacionais modificados historicamente. No bloco histórico capitalista, o Estado, enquanto instância superestrutural da sociedade, que mantém relação dialética com a infra-estrutura, será referenciado para analisarmos a singularidade da política educacional de Mato Grosso do Sul, com seus descompassos e com a incorporação de alguns elementos que estavam presentes na teoria sobre a educação preconizada como ideal pelos países desenvolvidos que detêm Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS. Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal - UNIDERP * 2 os meios de produção. Dada a perspectiva teórica que norteia nosso trabalho, procuramos estabelecer as mediações necessárias entre superestrutura e infra-estrutura para a compreensão das mudanças que se operaram na condução da referida política educacional. Com o intuito de analisarmos melhor esta relação, historiaremos a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, a fim de que sejam compreendidas a conformação das elites políticas estaduais e sua disputa pelo controle da máquina administrativa. Para entendermos o nascimento deste Estado examinaremos sob que base se deu esta criação, ou seja, como foram montadas a estrutura produtiva no Brasil e sua expressão política. Privilegiaremos, ainda, como foco, a política educacional do governo federal que via na educação importante papel, uma vez que em face às inovações tecnológicas, organizacionais e financeiras dos países de economia mais avançada, a ela caberia a função de instruir e desenvolver a capacidade lógico-abstrata que aquela formação econômica em curso exigiria. Neste sentido, apontaremos como a proposta educacional para Mato Grosso do Sul, articulava a demanda por democracia nas escolas com a reivindicação por democracia no país nos anos 80, os princípios e a concretização da proposta e a coexistência de conceitos indicadores do modo de produção em curso. Assim, faz-se necessário compreendermos a economia brasileira na década de 80, período que gesta o governo estadual no início dos anos 90, para que possamos analisar teoricamente em que contextos foram articulados as forças locais para alçar ao governo do Estado. Para tanto convém retrocedermos aos anos 50, período em que a industrialização tardia copiou a estrutura produtiva da Segunda Revolução Industrial, que tinha como base a industrialização pesada e cuja implantação tinha de ser feita em blocos, o que demandava grandes investimentos. O empresariado brasileiro, incapaz de coordenar esse processo sozinho, valeu-se do Estado que financiou e implantou o núcleo básico da indústria pesada sem, entretanto, interferir nas relações de propriedade que existiam, o que levou à perpetuação e preservação das estruturas de poder e das relações entre os setores agrários, industriais e bancários. A impossibilidade de rearranjos nessas relações criou impasses e conflitos que eram superados ao se recorrer ao capital externo, o que aprofundava os laços de dependência. Desta forma, a base da acumulação capitalista da economia brasileira foi definida com o chamado Plano de Metas, no governo de Juscelino Kubitschek, e assentava-se no tripé grande empresa estrangeira, empresa privada nacional e empresa pública. 3 A política econômica implementada em 1968 pelos governos militares propunha-se a alavancar um rápido desenvolvimento sem aumento da inflação. Este período que durou até 1973 ficou conhecido como “milagre econômico” e assentava-se, basicamente, na solidificação da indústria de bens de consumo duráveis (como eletrodomésticos e automóveis) através da introdução de capitais estrangeiros, tanto pela entrada de multinacionais quanto pelos empréstimos que deram início ao processo de elevação da dívida externa e, ainda, com a criação do sistema de crédito acessível à parte da classe média. Este modelo gerou profunda exclusão social e crescente concentração de renda. A fragilidade do Estado viria a ser sentida com as restrições dos recursos internacionais e, a partir de 1974, a economia brasileira começou a dar os primeiros sinais de que o ciclo expansivo se retraía, havendo ascensão do processo inflacionário e a perda da funcionalidade do sistema financeiro montado em 1964. O início dos anos 80 também foi o período em que, no âmbito infra-estrutural, foi aprofundada a crise econômica iniciada em meados da década de 70. Neste período houve crescente necessidade de recursos externos motivada, dentre outros, pelo aumento de importações e problemas na balança comercial, resultante do choque do petróleo. Entretanto, devido à diminuição das condições de crédito internacional e da desaceleração da economia brasileira, houve uma retração dos tomadores de recursos externos o que obrigou o governo a utilizar cada vez mais as empresas estatais para captação desses recursos. Dessa forma, com o esquema de acumulação dos grandes capitais que tinham como base os recursos externos e/ou públicos, a sobrecarga do Estado, que sustentava todos os setores atrasados, gerando com esta atuação grande concentração de riqueza e renda, impossibilitou a formação de uma base financeira nacional, resultando uma carência crônica de financiamento de longo prazo e um inchaço especulativo do mercado financeiro. (Goldenstein, 1994, p.94). Isto significa que esse conjunto de fatores levou o Estado à total impossibilidade de conter o processo inflacionário que estava em movimento ascendente e, dada a essa fragilidade, de conseguir estabelecer uma retomada de crescimento. Assim, com a economia brasileira assentada nessas bases, foi criado o Estado de Mato Grosso do Sul através da Lei Complementar nº 31, de 11 de outubro de 1977, e instalado em 01 de janeiro de 1979, juntamente com a posse dos deputados eleitos em 1978. Esta criação veio atender, por um lado, aos interesses das elites latifundiárias localizadas geograficamente na região sul do Mato Grosso uno, cuja participação no 4 processo divisionista remonta ao final do século XIX e, por outro, aos interesses do governo federal em criar mais um Estado da federação, pois assim aumentaria sua base de sustentação ao processo de abertura “lenta e gradual” preconizada pelo Presidente Geisel. O Estado assumiria papel importante no desenvolvimento de Mato Grosso do Sul através da instituição de programas especiais e crédito rural. Com a política de integração e desenvolvimento nacional estabelecida pelos governos militares, foram criadas várias Superintendências de Desenvolvimento Regional, que serviam muito mais ao interesse dos grandes empresários e aos interesses políticos. Além disso, com o fim do “milagre econômico” (1968-1973), coube à agropecuária a função de ajudar a reduzir o déficit da balança comercial e contribuir com a estratégia nacional de desenvolvimento estabelecida pelo Planalto. Este setor produtivo gozava da proteção do Estado que não rompia com o padrão de acumulação brasileiro. Assim, até meados da década de 60, a atividade agropecuária que era desenvolvida com pouca tecnologia, alterou sua configuração a partir dos governos militares pós-64, em que o processo de modernização do Estado deveu-se à inserção da agricultura de grande porte orientada pelo capital monopolista, bem como à estratégia de ocupação de “espaços vazios” como forma de garantir a segurança nacional. Assim, a modernização da agricultura era parte da política agrícola dos governos militares que se ligava ao modelo de desenvolvimento do capitalismo monopolista. Isto significa dizer que a expansão da produção agrícola com vistas ao mercado interno e externo era feita no sentido de, entre outros, aumentar a necessidade de importação de insumos e equipamentos, o que expandiria o parque industrial. O processo de modernização agrícola criou as bases das transformações técnicas da agropecuária em Mato Grosso do Sul e propiciou o desenvolvimento das lavouras de grãos e, com maior intensidade, a pecuária. Este processo foi realizado sem a devida distribuição de terras o que levou à intensificação do movimento migratório, bem como à grande ocupação do Estado, principalmente nas décadas de 70 e 80, por pessoas ligadas a esse tipo de atividade econômica , oriundas das regiões sul, sudeste e nordeste. A expressão da formação econômica se dá na conformação do quadro político do Estado. Assim, com o surgimento do novo Estado em 1979, as forças políticas locais disputaram entre si o controle da máquina administrativa e, até 1991, as frações da burguesia alternaram-se no governo estadual. Ao mesmo tempo, o novo governo ao assumir a Presidência da República em 1990, abria a economia para maior inserção à ordem econômica mundial. A década de 5 80, reflexo da crise estrutural dos anos 70, indicava o esgotamento do padrão de financiamento que não dava respostas a problemas, tais como a crescente inflação, endividamento e redução da capacidade de investimento do Estado, aumento dos gastos sociais e redução das taxas de crescimento setoriais. A crise estrutural assinalada implicou em profunda ruptura do modo taylorista-fordista de desenvolvimento nos países industrialmente avançados. Assim, o mundo do trabalho viu-se às voltas com a flexibilização dos processos de trabalho e produção e a economia transformava-se combinando grande especulação financeira com reduzido crescimento. A Mensagem Presidencial é indicadora dos novos caminhos pensados para o Brasil: Na busca da promoção do bem-estar social, o governo vem atuando de forma a superar a visão ultrapassada do Estado tentacular e onipresente. As medidas que buscam reduzir a presença do Estado na economia permitirão que a iniciativa privada tenha primazia na condução dos negócios, em ambiente de livre mercado. Somente assim, reduzindo gastos e evitando desperdícios, poderá o Estado dispor de condições para cumprir, de forma efetiva, suas funções sociais básicas. (Brasil. Mensagem ao Congresso Nacional, 1992, p.48-9). Para conseguir atingir esses objetivos, o Ministério da Educação definia que a meta principal para a área educacional é alcançar níveis que propiciem a formação integral do ser humano, permitindo-lhe, ao mesmo tempo, o exercício pleno da cidadania e o atendimento aos requisitos da moderna produção, baseada em novas tecnologias (id.,1992, p.145). Assim, o capitalismo contemporâneo ao estabelecer novos parâmetros para a estrutura ocupacional, acabava por afetar e redefinir o perfil da força de trabalho rumo à polivalência e multifuncionalidade. No Brasil, a preocupação que estabelece esta centralidade da educação teve seu início em dois programas de governo elaborados na gestão de Fernando Collor de Mello: o “Programa setorial de ação do governo Collor para o período 1991/1995” e “Brasil, um projeto de reconstrução nacional”. Em linhas gerais, ambos defendiam a necessidade do país em ingressar no patamar dos países desenvolvidos, sendo que o primeiro apontava como problemas a evasão escolar e a repetência, indicando a educação como instrumento que permitiria aquele ingresso. A educação passava, assim a ser considerada como estratégica para o aumento da competitividade e o Estado, coordenador e formulador do processo educativo, tinha por interlocutores o Conselho dos Secretários de Educação – CONSED e a União dos Dirigentes Municipais de Ensino - UNDIME. 6 A Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul participou dos trabalhos realizados na elaboração do documento-base “Plano Decenal de Educação para Todos”, que serviu como principal instrumento norteador da política educacional do período de 1991-94 para o Brasil e que guarda algumas semelhanças com a política educacional implantada em Mato Grosso do Sul: Em essência, o Plano ao traçar o ramo da Educação Nacional, traça o rumo da Educação Sul-Mato-Grossense. Para felicidade de nosso Estado, os programas viabilizados pela proposta de Educação Para MS estão amplamente contemplados no Plano decenal de Educação para Todos. Implementá-los tornou-se ordem do dia e compromisso oficialmente firmado em nome da qualidade do padrão educacional que o Brasil deverá atingir na próxima década. (MS.Relatório Final, 1994, p.40) Assim, as discussões acerca da inserção brasileira na configuração do capitalismo abrangia o pensar sobre a educação e a redefinição de seu papel frente às alterações ocorridas. Na análise de conjuntura indicava a necessidade de um ajuste econômico e financeiro que acabaria por provocar mudanças na composição e dinâmica das estruturas de emprego e das formas de organização da produção, o que requer alterações correspondentes nas estruturas e modalidades de aquisição e desenvolvimento das competências humanas.(Brasil. Plano Decenal de Educação para todos, 1993, p.8) Neste sentido, a educação seria o elemento agregador também das novas formas de exercício da cidadania, descentralizados e autônomos das estruturas centrais. Estes elementos seriam visíveis ao se identificar que na gestão dos Sistemas Escolares imperava a excessiva centralização burocrática, que resultou em ausência da participação da comunidade bem como na inércia para agir cooperativamente e adotar inovações e incorporar avanços cognitivos e tecnológicos nos processos ensino e de gestão escolar...(Id.Mensagem Presidencial ao Congresso Nacional, 1992, p.50). Assim, o estabelecimento de parcerias com instituições governamentais e nãogovernamentais auxiliariam na racionalização de recursos, pois dado ao número de envolvidos o ônus decorrente do processo educacional seria partilhado entre os envolvidos. O Estado, então se retiraria da função de principal responsável pelo financiamento de determinada política social e dividiria com segmentos da sociedade os seus custos. No Estado de Mato Grosso do Sul, a proposta educacional implementada tinha como eixo principal a gestão democrática, entendida como eleições diretas para os 7 cargos de direção escolares e constituição dos colegiados, como mecanismo possibilitador de maior participação da comunidade nas questões relativas à escola. Tal centralidade era justificada por sua vinculação às conquistas democráticas vividas no país nos anos 80 com o fim do regime militar. Entretanto, na prática, a autonomia não se efetivou totalmente, pois o governo adotava medidas que sinalizavam em direção contrária, como a centralização de recursos financeiros através da criação do Sistema de Caixa Único, em uma única Secretaria. Este fato é mais facilmente compreendido se o entendermos enquanto estratégia do Estado que, em uma relação dialética, por um lado apropria-se de reivindicações de organizações da sociedade civil, mas, também, por outro, possibilita a esta sociedade civil a conquista de posições no bloco histórico. Assim, a demanda por eleições diretas nas escolas foi atendida significando um ganho para a categoria, porém a democracia almejada não se concretizou em sua plenitude, haja vista que a participação foi limitada pela referida centralização de recursos. Ainda assim, buscou-se implementar sistemas descentralizados burocráticos nas chamadas Agências de Educação inaugurando novos padrões de gestão e participação através das referidas eleições. Desta forma, a redefinição de alguns papéis do Estado se fez presente deixando à sociedade parte da responsabilidade sobre a regulação e a avaliação dos resultados. Desta forma, a compreensão da política educacional sul-mato-grossense contemplava a preocupação com a democratização ao tempo em que coexistiam em seu interior alguns conceitos indicadores da configuração do modo de produção em curso. Neste sentido, medidas como descentralização de funções, participação através de eleições diretas e constituição de colegiados escolares, integração com órgãos de serviços, foram medidas que não tomaram um curso único. Se por um lado, ligavam-se aos princípios da educação, entendidos como exigência para o melhor desempenho do mercado e para a eliminação de alguns obstáculos burocratizantes impostos pelo Estado, por outro tais mediadas não foram plenamente efetivadas no sentido de deixar tudo à lógica do mercado. Referências Bibliográficas BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Plano decenal de educação para todos. 1983. ______. Plano decenal de educação para todos 1993-2000. 2.ed, 1994. 8 ______.Mensagem presidencial ao Congresso Nacional. 1992. GOLDENSTEIN, Lídia. Repensando a dependência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. MATO Grosso do Sul. Relatório Final. 1991-1994. Campo Grande, 1994.