EROS NA GRÉCIA ANTIGA A homossexualidade grega, de K. J. Dover, tem o porte dos grandes clássicos sobre a sexualidade. Evoca, pela erudi ção, rigor e elegância de argumentos, Christianity, social tolerance, and homosexvality, de John Boswell, ou os estu dos de Paul Veyne e Peter Brown. Sua originalidade deve- se, sobretudo, à exploração de processos judiciários e pin turas de vasos decorativos, fontes de pesquisa até então inéditas. Analisando processos de cidadãos acusados de praticar a prostituição masculina e a iconografia erótica, Dover confirma e dá novo relevo ao que era conhecido pela análise de textos cômicos, filosóficos ou poéticos. Na Antiguidade grega, a “pederastia”, ou seja, a relação sexual entre o homem mais velho, o eras tes, e o rapaz jovem, o erôm era aprovada, incentivada e tomada como mode lo de ética amorosa. Porém o leitor engana-se se projetar no passado os hábitos mentais do presente. A relação “peder não coincide com a moderna relação “homossexual”. Na Grécia não existiam palavras para designar o que chamamos de “homossexualidade” e “heterossexualidade” porque sim plesmente não existia idéia de “sexualidade”. A sexualidade é uma construção cultural recente, como mostrou Fou cault. No mundo helênico havia um eros múltiplo, heterogê neo, sem contrapartida no imaginário de hoje. Assim, o eros da “pederastia” era, em sua “natureza”, diverso do eros presente entre homens e mulheres ou mulheres e mulheres. Por princípio era virtuoso, ao contrário da “homossexuali dade” contemporânea, tida como vício, doença, “degenera134 A ÉTICA E O ESPELhO DA CULTURA EROS NA GRÉCIA ANTIGA 135 ção” ou perversão, desde que foi inventada pelas ideologias jurídico-médico-psquiátricas do século XIX. Entretanto, justamente porque era dirigida para a vir tude, a “pederastia” era draconianamente regulada em seu exercício. O que estava em jogo era a educação do cidadão, portanto, toda conduta que evocasse passividade e excesso era considerada indigna, O erômenos não podia ser passivo na relação amorosa, isto é, não podia ser penetrado, pres sionado física ou moralmente a ceder aos avanços sexuais do eras tes, subornado com dinheiro ou presentes etc. Do mesmo modo, toda desmedida, toda hub ris, era igualmente reprovada por ser pouco viril. Os amantes deviam ser comedidos, evitando exageros lúbricos ou apaixonados. A boa vida era a vida política. Em conseqüência, o uso dos prazeres devia estar a serviço da honra do cidadão. A liber dade sexual privada, como a concebemos, era impensável na Grécia. Mas, como disse certa vez Hannah Arendt, só um gran de pensador é capaz de grandes contradições. Dover mos tra de forma magistral a peculiaridade histórica da “pede rastia”; por que, então, denominá-la “homossexualidade”? Porque, penso — como quase todos em nossa cultura —, ele acredita na existência de algo chamado “sexualidade”, “heterossexualidade” e “homossexualidade”, independente dos elementos implicados na definição dos termos. Explico melhor. Sexualidade é um termo aplicado a uma série de realidades lingüísticas e não-lingüísticas como: descrições médico-biológicas do aparelho reprodutivo; descrições de sentimentos como amor, paixão, afeto etc.; descrições de sensações corpóreas como orgasmo, excitação física, eja culação etc.; descrições de regras e instituições de paren tesco, como família, casamento, maridos, esposas, filhos, namoro, “paquera” etc.; descrições de julgamentos e atitu des morais diante do que é permitido, proibido, desejado, condenado, rebaixado, ridicularizado etc. Imaginar que existe uma “sexualidade” além do con junto de itens constituintes de seu domínio de uso Iingüísti co faz tanto sentido quanto alguém perguntar “o que é ou onde está a universidade”, depois de localizar e identificar alunos, professores, salas de aula, laboratórios, cantinas, bibliotecas, edifícios, horário de aulas, provas, exames de titulação, como no exemplo de Gilbert Ryle. Não existe um “substrato” da universidade assim como não existe uma “substância” da sexualidade, com um atributo universal, reconhecível em todos os elementos que fazem parte de sua definição. Com a palavra “homossexualidade” ocorre a mesmís sima coisa. Dover acha que o que existe de comum entre a “pederastia” e a “homossexualidade” é a “disposição para buscar prazer sensorial por meio do contato corporal com pessoas do próprio sexo, de preferência ao contato com o outro sexo”. Mas o que é “buscar vazer sensorial com pes soas cio mesmo sexo ou cio sexo oposto”? Buscar prazer sensorial, sentir-se atraído por outro do mesmo sexo bioló gico, pode ser descrito da mesma forma como descrevemos a “atração” de um planeta por outro ou o tropismo de uma planta pelo sol? Uma “homossexualidade” como a grega, que impedia contatos físicos entre homens adultos, coito anal e manifes tações apaixonadas dos parceiros e que, além disso, fazia da “pederastia” a mais nobre fori»a de aparecimento de eros aos mortais é a mesma “homossexualidade” descrita como “perversão”, “desvio” ou produto de “disposições genéticas”, conforme a ideologia do momento? Mais ainda. Uma “homossexualidade” recomendada como louvável e praticada por toda elite moral, intelectual, política, artísti ca, guerreira, religiosa de uma sociedade culturalmente sofisticada como a grega seria a mesma “homossexualida de” das minorias gays; dos encontros clandestinos em gue tos; da culpa e da vergonha presentes na esmagadora maio ria dos que sentem tal tipo de inclinação erótica? Como e por que ver na “pederastia”, pensada desta forma, uma ocorrência particular de uma “homossexualida de” universal? Basta falar de “disposição ao prazer senso rial com pessoas do mesmo sexo”, para homogeneizar a “pederastia” e a “homossexualidade”? Duvido. Uma frase como esta não resistiria minimamente ao teste do valor erótico diferencial dos objetos, em Freud; da inescrutabili 1:36 A ÉTICA E O ESPELHo DA CILT1JRA dade do referente, em Quine; da autonomia do sentido, em relação ao suporte referencial, em Wittgenstein ou ao pro blema do referente sem realidade, em Davidson. A crença de Dover numa “homossexualidade” transistórica, igual a ela mesma no tempo e no espaço, é produto de nossa “dis 1 imaginária” para crer numa essência da “homosse xualidade” que, no entanto, só existe e tem sentido quando holisticamente articulada ao vocabulário moral da sexuali— dade burguesa oitocentista. Foi a partir do momento em que a família nuclear organizou-se em torno das figuras do homem-pai; da mulher-mãe; da criança-pai psicológico do adulto etc., que todos os indivíduos do mundo passaram a dividir-se em “heterossexuais” e “homossexuais” e esta divi são passou a tomar-se “natural” e “evidente por si mesma”. Desde então, médicos, psiquiatras, higienistas, pedagogos, juristas, moralistas, psicanalistas e a vox populi começa ram a caça à “homossexualidade” escondida ou manifesta dos “homossexuais”, descobrindo-a em “estruturas”; “dis posições”; “traumas” ou em qualquer outra invenção esta pafúrdia, plausível aos olhos do preconceito. O uso do termo “homossexualidade”, num estudo do quilate de A homossexualidade grega, surpreende e mos tra, ao mesmo tempo, a força performativa das palavras na construção lingüística de nossas crenças, desejos e subjeti vidades. Mas, como mostrou Freud, dizemos sempre mais do que queremos dizer. Para quem ainda não está totalmen te convertido à cultura do sexo-rei, com suas homossexua lidades, heterossexualidades e bissexualidades, a leitura deste livro fascinante é obrigatória. Em suma, uma obra prima com uma etiqueta infeliz. Fotlia (h’ 5. Pau/o, l!5/9