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Aluno exemplar
Ele foi admirador, aluno e amigo de Paulo Freire e tenta seguir à risca uma de
suas mais célebres frases: “não quero ser replicado; quero ser reinventado”.
Com mais de 30 anos de experiência em educação popular, o sociólogo e
educador peruano Oscar Jara procura reinventar seu modo de educar – ou
compartilhar informações, como prefere – a cada novo encontro. “Eu venho
para compartilhar uma proposta teórica e metodológica de sistematização. Mas
não consigo compartilhar se não olho a partir do ponto de vista das pessoas
que estão participando”, explica ele nesta entrevista, concedida durante sua
passagem pelo Brasil. O educador veio para capacitar a equipe do Comitê para
a Democratização da Informática (CDI) quanto à importância da
sistematização de projetos, em uma oficina realizada há duas semanas.
Seu trabalho em educação popular começou nos anos 70, com campesinos de
seu país natal. O trabalho acabou levando-o a percorrer diversos países da
América do Sul e, finalmente, a se radicar na Costa Rica, onde atualmente
dirige o Centro de Estudos e Publicações da Rede Alforja e coordena o
Programa Latino-Americano de Apoio a Sistematização de Experiências do
Conselho de Educação de Adultos da América Latina (Ceaal). No Brasil, o
educador realizou atividades de formação com o Instituto Cajamar, em São
Paulo; com o MST, em Veranópolis/RS, e com o Movimento de Alfabetização de
Jovens e Adultos (Mova), no Rio Grande do Sul, entre outros.
Nesta conversa, Jara comenta como a educação é um processo de
transformação individual, explica a importância que vê na sistematização de
projetos – especialmente para ONGs -, e mostra como procura e consegue
aprender a cada novo encontro, a cada nova experiência.
Rets - Há uma frase sua que diz: “A educação pela qual precisamos
trabalhar não é a que procura nos adaptar para os novos tempos, mas
sim a que propõe a mudança do próprio sentido das mudanças”. Ou
seja, seria formar cidadãos críticos e capazes de influenciar e
promover mudanças. Como fazer isso num país como o Brasil, onde
grande parte da população tem preocupações mais urgentes que
aprender, como comer e morar?
Oscar Jara - Essa é a realidade não só no Brasil, mas em toda a América
Latina. Um processo de uma educação libertadora não pensa em uma
transformação abstrata, pensa na transformação das suas condições concretas
de vida. Há dois possíveis caminhos: um deles é o da descoberta das suas
capacidades e seus potenciais. Há um princípio na educação popular que é o de
que todo mundo já tem um conhecimento das coisas através da prática. Às
vezes, nas condições de opressão em que vivemos, pensamos que não
sabemos ou conhecemos nada, que os outros têm que decidir por nós, não
somos cidadãos ou cidadãs, pois os outros são quem decidem etc. Então há aí
um primeiro caminho importante de valorização do que as pessoas sabem,
vivem, dos valores que as pessoas têm em sua vida cotidiana. E há um
segundo que é descobrir os elementos que impedem que essa aspiração a uma
realização mais plena nas esferas econômica, social, política, ideológica e no
cultural. Ou seja, que identificar os elementos da opressão. O ponto de partida
é essa opressão, mas não só pensando no lado negativo dela, mas sim
descobrindo as potencialidades que ela traz. É como poder desenvolver as
capacidades internas, e muitas vezes não visíveis, que todas as pessoas têm.
Então, mostrando isso explicitamente através de um diálogo que lhe permita
reconhecer, você se afirmar mais como pessoa no seu entorno, no seu
cotidiano. E vai começando a descobrir a relação entre esse cotidiano e as
condições sociais, políticas, econômicas do seu município, estado, país ou do
mundo. E essa conexão é um processo de aprendizagem teórico e prático. A
prática inclui essas condições de vida. Lembro-me de um projeto que
implementamos em uma comunidade campesina na Nicarágua na qual fizemos
debates, assembléias etc. Havia uma mulher que, no início, nem ia. Depois,
começou a ir e não falava nada. Participava ativamente, mas não
explicitamente. E finalmente, depois de um tempo, começou a falar, debater.
Isso tudo num período de dois anos. Visto de fora, parece simples: uma
senhora que participa em um projeto comunitário. Mas para aquela senhora é
uma mudança radical no que fazia, uma transformação substancial no seu
processo como cidadã. E isso só foi possível em função de ela ter se afirmado
nos valores que ela já tinha, mas que estavam escondidos. Formar-se como
cidadão e cidadã plenos é um processo que tem a ver com as distintas
capacidades e condições que cada um tem. Não é um discurso. É desenvolver
capacidades para compreender e atuar no contexto em que cada pessoa está.
Rets - Como foi a experiência de trabalhar com projetos brasileiros,
como Instituto Cajamar, Cepis etc.?
Oscar Jara – São experiências muito diversas, porque são distintas
organizações em épocas distintas. Comecei a trabalhar no Instituto Cajamar,
em 1986, 1987... portanto era outro contexto. E a idéia de criar um programa
de formação de lideranças em nível nacional era um grande projeto para um
continente. A primeira coisa é que são desafios enormes. A segunda coisa é
que são desafios diversos, porque cada região do Brasil é muito diferente. E a
terceira coisa que percebo é que há um dinamismo muito grande na sociedade,
que faz com que a dinâmica das organizações e a dinâmica da educação sejam
exigidas e questionadas permanentemente. Já não se pode atuar de uma
mesma maneira o tempo todo, porque a realidade muda muito. Sinto isso
quando venho ao Brasil, pois sempre encontro alguma coisa nova na
conjuntura, no país, nos movimentos sociais, nos debates... e isso faz mudar
também as propostas das organizações, que precisam se adaptar. Sempre
venho aqui para aprender, principalmente ao sentir esse dinamismo e viver a
complexidade que existe neste país e também a riqueza, a criatividade de sua
gente, a alegria, a sua maneira de enfrentar esses desafios. Fico feliz, porque
aprendo muito e tenho muita amizade e muito carinho por essas pessoas.
Rets - O senhor está no Brasil para lecionar em uma oficina sobre
sistematização. Qual a importância que o senhor atribui à
sistematização em um projeto?
Oscar Jara – Qualquer projeto de trabalho popular, organizativo ou
comunitário precisa ser avaliado e sistematizado. O que acontece é que se
avalia, mas não se sistematiza. E o que quer dizer isso? Nós temos um plano,
e nele temos metas, resultados e atividades. Mas entre o planejamento e o
processo há diferenças. Então uma avaliação permite que você verifique se o
resultado obtido é o que se pretendia. Porém uma sistematização permite
descobrir o caminho pelo qual você chegou a esse resultado. A sistematização
é a interpretação crítica da aprendizagem desse processo. Não é somente
ordenar e classificar as informações e os registros feitos ao longo da
experiência, mas, principalmente, extrair lições dessa caminhada, das decisões
tomadas, das opções e das razões pelas quais as coisas saíram daquele jeito e
não de outra maneira. E quando uma organização trabalha em diferentes
projetos e tem diferentes grupos trabalhando, cada um vai ter uma experiência
particular. Porque ainda que seja um mesmo plano, em uma região, com um
grupo, e em outra região, com outro grupo, vão acontecer coisas distintas.
Portanto, a sistematização desses processos pode ajudar muito a aprender
mutuamente dentro da mesma organização. É o que se passa com o CDI [a
organização não-governamental Comitê pela Democratização da Informática],
que tem diversas experiências, quase cada Escola de Informática e Cidadania é
uma experiência. Então são essas aprendizagens que a prática do dia-a-dia vai
dando ao educador e à educadora, ao coordenador e à coordenadora. Essas
aprendizagens precisam ser resgatadas por cada pessoa e cada equipe,
socializadas e partilhadas.
Rets - É como uma autocrítica de todo o processo?
Oscar Jara – Isso. É um olhar crítico sobre o processo.
Rets - E as ONGs, de maneira geral, compreendem essa importância?
Oscar Jara – Creio que sentem essa importância, essa necessidade. O
problema é que isso pressupõe destinar tempo e recursos, não é algo
automático. Às vezes há intenção de fazer, mas existe uma sobrecarga de
trabalho. Por exemplo, você dedica 20 horas por dia a um projeto e lhe dizem:
agora queremos que sistematize. Mas não lhe dizem: você terá 15 horas para
sistematizar. A sistematização significa dar uma pequena parada para
examinar o que foi feito, e isso pressupõe tempo e concentração, o que muitas
vezes falta. Supõe um hábito, uma cultura de registrar e documentar, de
reunir todos esses registros para poder observar o projeto. Por onde temos
caminhado? Que obstáculos enfrentamos e como enfrentamos? O que
aprendemos nesse momento? E vamos usar o que aprendemos ou não? Ou
seja, a sistematização olha muito para as mudanças do processo. A avaliação,
por outro lado, vai olhar para os resultados. E os dois elementos ajudam no
planejamento. Então, respondendo diretamente sua pergunta, nas ONGs da
América Latina sentimos essa necessidade: todo mundo quer aprender, mas
muitas vezes não obtemos os mecanismos e os recursos para assegurar que
isso aconteça.
Rets - O senhor tem uma experiência bastante ampla em educação,
sempre com a idéia de “reinvenção”. Que experiências exemplares de
educação popular o senhor vê no Brasil, além das de Paulo Freire?
Oscar Jara – A educação é algo vivo. O pior que pode ocorrer é quando se
pensa em educação como algo frio, fechado, encerrado no conteúdo que uma
pessoa lê para outra, e não como um ato criador nosso. A crítica à escola é
porque ela, muitas vezes, impede isso; porque nos deixa ilhados da vida e não
nos permite desenvolver processos de crescimento pessoal e humano. Assim,
deixa de ser educação para ser instrução. Por outro lado, educação significa
desenvolver a capacidade de aprender, de pensar de maneira crítica e
autônoma, e não para repetir o que os outros dizem. Nesse sentido, creio que
o Brasil tem um punhado de experiências pequenas e grandes que vêm
renovando a perspectiva de educação. Recordo-me, por exemplo, das escolas
itinerantes do Movimento dos Sem-Terra. Acompanhando o processo dos
acampamentos e dos assentamentos, criou-se uma pedagogia que responde
aos anseios dos movimentos e cria nas pessoas as capacidades para
desenvolver seus projetos. Eles têm uma escola de formação técnica no Rio
Grande do Sul, por exemplo, em que é impressionante o processo de formação
integral de mestres para as escolas do campo. É um processo maravilhoso que
articula a teoria, a prática e a mística do sentido do trabalho. Outra experiência
muito interessante foi todo o projeto do Instituto Cajamar, na formação dos
movimentos sociais no Brasil, nos anos 80. E conheço as experiências que faze
em São Paulo o Cepis, o Centro de Educação Popular do Instituto Sedes
Sapientiae, que tem um trabalho em distintos lugares e bairros no Brasil. Em
Recife há a Escola de Formação Quilombo dos Palmares, que mantém uma
rede impressionante de educadores e educadoras populares em todo o
Nordeste, desenvolve um projeto de formação com distintos setores e tem
encontros de sistematização de experiências e construção de pensamento a
partir daí. Outra experiência que conheci e da qual pude participar um pouco
foi o Mova (Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos), particularmente
no Rio Grande do Sul, na época do governo de Olívio Dutra, do PT. Foi uma
tentativa de desenvolver uma política pública de educação popular. Isso
mostra que educação popular é algo que, no Brasil, se faz no nível de uma
comunidade campesina, de um bairro, de um acampamento ou ao nível de
uma política de estado. E que a idéia de educação popular seja uma educação
para a transformação. Dentro ou fora da escola, em um pequeno grupo ou
numa comunidade maior, não importa. E todos nos inspiramos em Paulo
Freire, porque ele rompe um paradigma tradicional na América Latina e cria
um novo paradigma através do qual surgem muitas experiências.
Rets - O Brasil redescobriu Paulo Freire?
Oscar Jara – Paulo Freire era mais conhecido no Brasil do que no exterior.
Mas agora sinto que há uma reapropriação. E é como o próprio Paulo Freire
dizia: ele não queria ser repetido, mas reinventado. Tive a oportunidade de
conhecê-lo, de trabalhar com ele. Foi uma experiência maravilhosa ver como
ele buscava a coerência. Não queria ser o novo criador de algo que as pessoas
passariam a repetir, mas queria inspirar com suas inspirações. E todos esses
movimentos são um produto de pessoas que se inspiraram com as
provocações, as motivações, os paradigmas e os sonhos que Paulo Freire nos
ajudou a criar.
Rets - E por falar em Paulo Freire, o senhor foi aluno e amigo dele,
certo? Como o conheceu?
Oscar Jara - Meu primeiro encontro com ele foi em um evento internacional
em 1982, na Nicarágua, quando estava sendo formado um conselho de
educação de adultos na América Latina – do qual participo atualmente,
inclusive. Paulo Freire foi ao evento e eu, que já tinha lido obras dele, o
procurei para conversar. Este foi nosso primeiro contato. Em 1983, vim ao
Brasil e tive contato com outras pessoas do campo da educação popular que
tinham trabalhado com ele, aprendido com ele etc. Em 1986 ou 1987, eu
trabalhava com o Cepis aqui no Brasil e tive a oportunidade de ir à sua casa.
Tempos depois, trabalhamos juntos num seminário de três dias no Instituto
Cajamar. E nos encontramos várias outras vezes.
Rets - Há uma outra frase sua que diz o seguinte: “A educação não
deve, absolutamente, ser vista como um instrumento, mas sim como
um permanente processo criativo de transformação. Em cada gesto,
em cada opção pedagógica, estamos construindo a capacidade de
mudar a cada dia”. Em outras palavras, significa que aprende-se
sempre e com tudo. Sendo assim, o que o senhor aprendeu aqui no
Brasil?
Oscar Jara - Diria que estou aprendendo sempre. Primeiro, frente à novidade
de cada situação. Por exemplo, agora estou trabalhando com a equipe do CDI
[Jara estava num intervalo da capacitação que fez junto à equipe da ONG].
Cada pessoa que veio tem uma experiência e, mais que isso, tem uma maneira
de pensar sua experiência. Eu venho para compartilhar uma proposta teórica e
metodológica de sistematização. Mas não consigo compartilhar se não olho a
partir do ponto de vista das pessoas que estão participando. Então minha
primeira tarefa é aprender como essas pessoas do grupo olham, pensam,
sentem sobre o tema da sistematização, antes de dizer a eles “sistematização
é isso”. Então, tendo eu a responsabilidade de educar em torno de um tema,
tenho que desenvolver um processo de aprendizagem com as pessoas com as
que trabalho. Tenho que aprender com elas, primeiro, como elas enxergam as
coisas. É um desafio em que tenho que ter claro o que vou dizer, porém talvez
o mais importante seja preparar-me para receber, ouvir, sentir. Se só me
concentro no que vou dizer, simplesmente trago algo de outro lado que pode
ser que não se conecte com o que as pessoas fazem aqui. Assim, para mim
cada evento é uma oportunidade para aprender. Penso: o que vou poder
aprender hoje neste encontro? Que vou tirar como aprendizado que vai servir
para compartilhar com outras pessoas. Porque, quando digo alguma coisa,
digo porque aprendi antes com outra pessoa, certo? O aprendizado não vem
do ar. O mesmo que estou aprendendo aqui vai servir para trabalhar com
outros grupos. Aqui no Brasil aprendi também que há gente que trabalha em
condições muito difíceis, com muito poucos recursos. Que as pessoas têm
expectativas políticas importantes - e tiveram também frustrações políticas na
mesma proporção. Vi também que têm muito interesse no que passa em
outros lugares, outras partes do Brasil e da América Latina. Sinto que isso não
era tão forte no Brasil alguns anos atrás. As pessoas se preocupavam apenas
com o que se passava aqui. Agora, há uma inquietude maior com o que
acontece em Cuba, na Venezuela, na América Central, no contexto mundial. E
trato também de aprender um pouco de “portunhol” [risos], que é um idioma
lindo, e tento fazer ao máximo as oficinas em “portunhol”, pois o idioma não é
só palavras, é também uma maneira de sentir o mundo.
Fonte: Rets, com base em entrevista realizada por Maria Eduarda Mattar.
Colaborou: Fausto Rego.
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