VACCA, Giuseppe. Discorrendo sobre socialismo e democracia, IN

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VACCA, Giuseppe. Discorrendo sobre socialismo e democracia, IN, O Marxismo e o
Estado, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, (Biblioteca de ciências sociais; v. 8), p.
139-179.
O artigo de Giuseppe Vacca apareceu em “Mondoperario” em dois capítulos, nos
números 1 e 2 de 1976.
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Discorrendo sobre socialismo e democracia
Giuseppe Vacca
O ensaio de Norberto Bobbio publicado nos números 8-9 e 10 desta revista toca no
conhecimento do extraordinário aceleramento tanto da crise geral da sociedade
capitalista quanto da necessidade de dar vida a uma nova sociedade que Bobbio
prognostica como sendo de tipo socialista.
Já na feliz provocação de seus títulos, como ocorre freqüentemente nos seus artigos,
Bobbio deixa entrever uma profunda insatisfação dos modelos existentes de sociedade
socialista. “É verdade — diz ele — que a forma de Estado atuante nos países socialistas
é, quanto ao Estado representativo, uma alternativa, embora inaceitável. Se este fosse
realmente o Estado novo do qual fora feita a apologia antes que se tornasse de
domínio público e, portanto, a descoberta de sua degenerência não fosse mais
retratável, devemos nos contentar com o antigo”. Esta afirmação é posteriormente
esclarecida por outra, mais analítica, que vem pouco depois: É preciso reconhecer que
um modelo alternativo de organização política, alternativo ao Estado parlamentar, um
modelo que possa denominar-se “democrático e socialista” em contraste com o modelo
tradicional “democrático-liberal” — qual seja o seu sentido alternativo em relação a
alguns valores como a liberdade individual e o poder difuso, nos quais um socialista
não pode deixar de acreditar, mais adiantado que o precedente embora ao mesmo
tempo atuante — não existe, ou pelo menos é inexistente em todo o conjunto das
particularidades com as quais foi elaborado através dos séculos o sistema político da
“burguesia”.
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A esta insatisfação acrescenta-se uma indicação positiva, segundo a qual uma
sociedade “democrática, e socialista” como, por exemplo, no caso concreto do nosso
país, o sistema político representativo pode ser desenvolvido e levado a uma conclusão
efetiva, não subvertendo-o de imediato na raiz. “Nunca duvidei — diz Bobbio que o
sistema representativo tivesse limites .reais e insuperáveis em uma sociedade
capitalista selvagem como a nossa; a soberania do cidadão encontra-se limitada pelo
fato de que as grandes decisões quanto ao desenvolvimento econômico, ou não,
alcançam os órgãos representativos ou, quando chegam a eles, são tomadas em outra
sede, em uma sede onde a grande maioria dos cidadãos soberanos não tem a menor
voz ativa. Mas mesmo sob este aspecto, o defeito do sistema não é o de ser
representativo, mas sim o de não sê-lo suficientemente.”
Nesta linha de pesquisa não há quem não veja o risco da hipótese do sistema
parlamentar representativo como a única forma de democracia política e, portanto,
como modelo abstrato e a priori, para a definição da democracia socialista, por demais
tendencioso e parcial para a avaliação do caráter democrático das sociedades
socialistas existentes e daquelas desejadas. No entanto, não se pode deixar de
partilhar a inspiração fundamental do discurso de Bobbio, preocupada em sublinhar
que a sociedade socialista e o próprio processo histórico de sua passagem terão
características democráticas adequadas às necessidades vitais do desenvolvimento
econômico, político e moral de sociedades complexas como a nossa, na medida em
que a nova sociedade esteja caracterizada pela consolidação e extensão da
democracia, incluindo a democracia representativa.
A democracia dos produtores
Todavia, não concordo com a primazia atribuída por Bobb o e6 democ en a
representativa nomo s stema de recomposição política de todo o corpo social. Entre
outras coisas, mesmo em uma “democracia de massas” como a nossa, tanto nos
mecanismos institucionais previstos pela Constituição quanto e principalmente nos
processos reais da vida política e das lutas de classe, pode-se fundamentalmente
perceber que, desde agora, as instituições representativas não são mais as sedes ou
os artífices principais da recomposição
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política. E, por outro lado, o próprio Bobbio alude à democracia de uma sociedade
socialista ou à fase de transição, todavia não em termos puros e simples de
democracia representativa, mas pendendo para um entrelaçamento de uma
democracia delegada com várias formas de democracia direta (seria também melhor
falar de formas de uma democracia “de baixo”), portanto para um sistema democrático
de tipo novo, mais avançado, que seria denominado “democracia organizada”. De fato,
após ter demarcado os limites e não a generalização da democracia direta, Bobbio
demonstra auspiciar o desenvolvimento de novas formas de “democracia organizada”
— descontando a prevalência da democracia representativa — já que, como ele afirma,
“nos limites em que a democracia direta é realizável, democracia representativa e
democracia não representativa não são de fato incompatíveis. Pelo contrário, se é
verdade que a segunda pode integrar utilmente a primeira, é também verdade que não
pode substituí-la.”
A verdade é que seu discurso não pode avançar muito mais porque Bobbio renuncia
orientar a pesquisa exatamente onde deveria ser orientada: para as experiências
históricas de uma “democracia dos produtores” e de uma “democrecia partindo de
baixo”. Certo é que, até hoje, aurorais ou falidas, embora insuficientes, as
experiências, no seu entrelaçamento com a democracia representativa e nas
solicitações positivas que lhe são impressas, já indicam, a meu ver, as linhas de
desenvolvimento de uma “democracia organizada”, como uma forma mista,
provavelmente adequada às evoluções de uma sociedade democrática e socialista.
Nesta direção, entre outras coisas, o discurso sobre os procedimentos e as instituições
da democracia se reajustaria aos processos históricos de transformação das sociedades
capitalistas em sociedades socialistas, evitando o risco de uma modelagem abstrata.
Assim, não se daria a impressão de querer de qualquer maneira tapar o sol com a
peneira, definindo de uma vez por todas a democracia, ainda que na sede de uma
ciência da política, embora a priori.
Bobbio, no entanto, desembaraça-se rápido demais do problema da democracia dos
produtores; considera que suas únicas experiências históricas, “o socialismo gildista” e
o “sovietismo”, sejam inseríveis na problemática da “democracia industrial”. E, de
forma simplificada, objeta: “o erro no qual sempre caíram os teóricos da democracia
industrial é aquele de acreditar na possibilidade de resolver a democracia política na
democracia econômica e o auto-governo
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dos cidadãos no auto-governo dos produtores. O erro decorre de acreditar que não
existam problemas do cidadão distintos dos do trabalhador (ou do produtor). Em vez
disso, estes problemas existem e são exatamente os da liberdade, das liberdades civis
e políticas”. Pode-se aceitar o esquema geral no qual Bobbio inscreve esta crítica. De
fato, ele conclui recordando que “se a emancipação política é insuficiente, é de
qualquer maneira necessária, não podendo existir emancipação humana que não
’passe pela emancipação política. Emancipação esta — acrescenta Bobbio — que
requer o desenvolvimento, a ampliação, o reforço de todas as instituições das quais
nasceu a democracia moderna, não trazendo nenhuma vantagem, embora
momentânea, da sua suspensão.”
A experiência dos conselhos
Mas, a nível dos problemas de liberdade assim como se apresentam já hoje na
sociedade italiana, e da forma pela qual vão se configurando nela as instituições de
democracia dos produtores (conselhos de fábrica, conselhos de área), podemos
realmente dirigir a esta nova trama de “democracia de baixo” a crítica para a resolução
da democracia política na democracia econômica? Evidentemente, não pretendo propor
como alternativa à linha de Bobbio aquela de um sovietismo tout-court como fo me
nstitucional remetada finalmente pela democracia socialista. A grosso modo, penso
saber o quanto o sovietismo dissolveu-se historicamente em “democracia industrial”
ou, pior ainda, em corporativismo puro e simples.
Sei bem que o limite corporativo é uma ameaça sempre pendente sobre todas as
instituições de “democracia dos produtores”. E digo mais: paralelo ao “cretinismo”
parlamentar e extraperlamentar, sei perfeitamente que existiu e existe o “cretinismo”
de conselho. Mas, vejamos concretamente quais são os ensinamentos que podem ser
tomados de algumas experiências italianas recentes.
Existe ou não na Itália, já há decênios, um deslocamento progressivo do movimento
operário e sindical dos temas do desenvolvimento econômico, das suas características
e contradições, da sua correção e controle democrático? Esta linha parte ou não da
classe operária e da fábrica, isto é, da maneira na qual a classe operária
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italiana vem juntando os problemas salariais aos da estrutura da relação do trabalho,
do sistema de fábrica (organização do trabalho e sistema de controle e comando sobre
a produção), das reformas econômicas e políticas e, portanto, colocando no centro das
suas lutas toda a esfera de produção e suas ligações com a distribuição e com os
aparatos da reprodução ampliada? Os conselhos, as noves
instituições de poder democrático dos produtores, estimularem ou impediram este
processo? Ou não teriam, eles próprios, nascido dos impulsos da classe operária para
superarem suas divisões e unirem-se, superando o próprio corporativismo de setores e
complexidade das classes? Não é através destas novas instituições que se acelera, ou
não, o amadurecimento da classe operária como uma nova classe geral, capaz de
colocar conscientemente os problemas do desenvolvimento no centro do conflito e da
própria visão do processo histórico, tornando-se portanto classe do governo?
Dando ainda um exemplo: quem, a não ser os conselhos operários, tomou a iniciativa
antifascista, assumindo em primeiro lugar a obrigação de defender a democracia
republicana nestes anos, e isto nas zonas nevrálgicas da estratégia de tensão? Onde, a
não ser na fábrica, e graças às novas instituições unitárias democráticas dos
produtores, ocorreu _a unificação política da classe operária italiana, dos operários
católicos e dos leigos e marxistas diante do desafio fanfaniano, no referendum para a
abolição do divórcio?
Poderíamos multiplicar os exemplos. Todavia, a experiência acumulada é insuficiente
para a realização de uma elaboração, de um novo modelo de democracia que possa
ser acolhido como a democracia do socialismo. Mas, aqueles que nos interessava
indicar como próprio por parte das novas instituições de democracia dos produtores,
encontram como defesa e desenvolvimento, “os direitos de liberdade, das liberdades
civis e políticas”, que, exatamente por obra deles parece progredir hoje para uma
democracia política. Portanto, o discurso sobre a democracia dos produtores não pode
ser restringindo aos limites por demais estreitos aos quais Bobbio os confina.
Emancipação política e luta de classes
Isto não invalida a afirmação geral de Bobbio segundo a qual
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“não pode existir uma emancipação humana que não passe por urna emancipação
política.” Pelo contrário. Apenas encaminho-a por terrenos mais amplos que aqueles
indicados por Bobbio. A emancipação política que conquista, defende e desenvolve os
direitos de liberdade em sociedades dominadas por grandes potentados econômicos e
estruturas de poder com tendências a esvaziar e tornar vãos até o valor representativo
e as possibilidades de recomposição política e controle das instituições da democracia
dirigida requer — a esta altura do desenvolvimento histórico — muito mais que a
definição dos procedimentos da democracia política e o empenho de salvaguardar as
instituições representativas. E esta confia, precisamente, muito mais no crescimento,
no consenso, no desenvolvimento da democracia dos produtores. Ademais, a
emancipação política como dimensão não eliminável do processo de emancipação
humana, indica a necessidade de uma potencialidade inusitada e de uma extensão
hiperbólica dos instrumentos de agregação, de associação autônoma, de recomposição
dos trabalhadores, bem além das próprias instituições históricas do movimento
operário: sindicato e partido. Estes últimos são insubstituíveis e proletários, sendo o
trabalho assalariado e a atomização social e política pressupostos do “status” do
cidadão que é, em suma, a desarticulação e a recomposição capitalista do Estado e da
sociedade civil, política e econômica e a necessidade de iniciar pelo ser social e político
atomizado dos produtores, para organizar ou a tutela dos seus interesses materiais ou
sua intervenção autônoma na vida do Estado. Mas, a emancipação política que
caminhe em direção à emancipação humana requer uma unificação política crescente
bem além do voto, uma soberania bem superior àquela coincidente “com a área de
poder da qual dispõem os órgãos representativos nos mais diversos níveis.”
Para começar, trata-se de luta contra as formas de decomposição corporativa,
subordinação, isolamento econômico e passividades impostas aos produtores pela
divisão social do trabalho e pela forma molecular do domínio, elaboradas pelas classes
capitalistas nos processos seculares de contrução da hegemonia e, justamente,
incorporadas na divisão do trabalho. Por ser exatamente o resultado complexo destes
processos o de descompor e subordinar os produtores peta dimisão social do trabalho
e sua separação da política, isolada em aparatos de domínio antagônicos aos
produtores e a eles impostos, sua recomposição unitária e, em definitivo, sua
“emancipação humana”, derivam de sua recomposição política. E
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esta é a profunda essência democrática do processo de formação de uma sociedade
antagônica, orientada para a reabsorção da divisão social do trabalho e a superação
das classes; em resumo, da sociedade socialista. Esta deriva da emancipação política,
pois pressupõe a apropriação e a crítica das massas, das raízes do
domínio,
incorporadas na divisão social do trabalho e, portanto, o reconhecimento das formás
políticas nas quais se inseria a mesma estratificação dos papéis sociais e das mansões
produtivas. Ela decorre, pois, da unificação dos produtores na religação da gama
infinita das formas de domínio por eles experimentados sob algumas leis de
movimento e articulações institucionais, fundamentais à formação social capitalista.
Em resumo, a emancipação humana decorre da emancipação política no sentido
profundamente democrático, cuja lei fundamental da luta pelo socialismo e da
construção de uma sociedade socialista é a da apropriação pelas massas da política: a
recomposição unitária dos produtores através de sua religação com os meios de
produção, a formação de uma economia regulada, a reclassificação da política
enquanto expropriação do poder e forma antagônica separada de sua organização.
Urna nova liberdade
Portanto, embora a democracia do socialismo certamente não pareça antagônina ou
alternativa quanto à democracia representativa, ela deixa, desde já, transparecer um
processo de desenvolvimento e reclassificação seu (a partir dela), que confia, sempre
mais, suas sortes à incorporação da política, redefinida nos processos da produção
econômica e reprodução social, submetidos ao controle dos produtores unificados
(colocados em urna relação fundamentalmente solidária e não mais competitiva entre
si). Percebe-se desde já que a democracia do socialismo decorre do desenvolvimento
da democracia dos produtores e da sua capacidade de re-classificar todas as outras
formas de democracia até elevar concretamente os trabalhadores associados a nível de
dominadores da retribuição orgânica social.
Para a democracia do socialismo, a liberdade individual e a participação dos
indivíduos é fundamental nas decisões coletivas. Mas, deve ser uma liberdade não
mais competitiva (liberdade como poder do indivíduo em oposição aos outros
indivíduos), nem
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totalmente negativa (liberdade como faculdade ou desimpedimento por parte das
potências econômicas e políticas), porém, uma liberdade que nasce da socialização
progressiva dos indivíduos e dos grupos sociais, enriquecendo-se de conteúdos
positivos, elevando-se até à participação e recomposição unitária do organismo social.
Trata-se portanto de uma nova liberdade decorrente de uma multiplicação inusitada
das formas celulares de recomposição dos produtores divididos e da sua religação na
luta comum contra a forma de mercadoria, a estrutura do capital e os seus efeitos
moleculares em toda a vida coletiva e individual; de uma liberdade que começa a
constituir-se na derrubada da ligação antagônica de política e economia, que é a célula
fundamental de todas as formas de domínio da sociedade atual.
Tudo isto equivale à afirmação de que a medida dos desenvolvimentos democráticos
do socialismo deve ser procurada na vida efetiva das instituições e nos procedimentos
políticos, embora não separadamente de seu sentido com os processos sociais pelos
quais os conflitos e as contradições particulares que surgem da divisão social do
trabalho, são reconduzidos às suas matrizes comuns de classe, reconhecidos e
praticados como conflitos de classe, tendencialmente recompostos para uma
socialização progressiva do poder e da apropriação em massa da política. Ou seja,
mesmo na sociedade socialista permaneceu por um longo período a medida efetiva do
capital, do Estado e das classes sociais para avaliar seu caráter democrático, sendo
aquela que devolveu a vida às instituições e aos procedimentos políticos para o
incremento efetivo e o livre desenvolvimento dos conflitos e das lutas de classe das
quais, certamente sob formas diversas e em um terreno novo em relação à sociedade
capitalista, deve ter procedimento a recomposição política tanto quanto a emancipação
humana dos produtores.
Tudo isto tem por base um novo desempenho dos produtores, garantido e sustentado
pelos institutos de sua recomposição política autônoma, de sua democracia. E, se
olharmos profundamente, a insatisfação pelos limites e as degenerações da
democracia nos países socialistas nos reconduz à paralisia ou à moderação da
capacidade política das instituições democráticas dos produtores. Na medida em que
estas vêm dirigidas do alto, comprimidas dentro de limites econômicos corporativos,
delegadas à gestão do consenso mais que à promoção do desempenho dos produtores,
eis que nem
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mesmo a democracia representativa e os direitos de liberdade possuem uma vida
plena e eficiente. Nesta perspectiva, se não existem dúvidas que a “emancipação
política” em uma sociedade “democrática e socialista” necessita de qualquer maneira
de instituições que sintetizem e centralizem os processos, as instituições particulares e
os momentos de uma vida democrática sempre mais rica e articulada, é francamente
difícil concordar que estes órgãos devam reproduzir em substância nem mais riem
menos as características do parlamento, no sentido estrito da “democracia
representativa”. Na nossa opinião, isto é pouco provável além de não ser auspicioso.
Por uma doutrina marxista do estado
Todavia, as linhas tomadas até agora para exame do ensaio de Bobbio merecem,
substancialmente, mais consenso que desacordo. Pois, no fundo, ele pede que se
aprofunde a indagação sobre os procedimentos e as instituições necessárias para
garantir uma sociedade “democrática e socialista” e, qual sejam as respostas, não há
dúvida de que em toda a esquerda italiana (excluídos os grupos extremistas
transcuráveis), em todo o movimento operário, existe uma concordância quanto a esta
exigência. E ainda mais: existe um reconhecimento concordante da boa qualidade do
sistema democrático previsto pela nossa Constituição e a convicção do seu
adequamento substancial à transformação socialista do nosso país. Donde um
profundo empenho para que venha a ser aplicado, defendido e desenvolvido por
inteiro. Na medida em que as preocupações e interrogações de Bobbio se dirigem para
os partidos da classe operária, creio que encontrem plena acolhida, respostas
afirmativas nada formais, e a verificação de uma prática e de um empenho político e
teórico que vem de trinta anos até agora. Na verdade, Bobbio sabe bem o quanto tudo
isto é insuficiente. Conhece todo o peso da diferença, quando não da contradição,
existente entre o caminho original da transformação democrática e socialista traçado e
praticado pelo movimento operário italiano e a realidade das experiências e dos
modelos existentes de “um socialismo historicamente realizado”. Sabe também que,
apesar das intenções, a linha e a prática coerentes de uma transição democrática
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para o socialismo, na qual estão empenhados todos os componentes do movimento
operário italiano, os desenvolvimentos políticos mundiais são tais que alimentam o
temor “das duras réplicas da história”.
Bobbio acredita que estas eventualidades devam ser combatidas também no plano
teórico e, portanto, pede um desenvolvimento fecundo de “uma doutrina marxista do
Estado, centralizada na elaboração do nexo democracia-socialismo e capaz de fixar um
modelo inegável e geralmente aceito de democracia, válido também para a sociedade
socialista, de tal forma que alimente a hipótese de uma sociedade alternativa para
aquela liberal-democrática, todavia aceitável pois é certamente democrática. De fato,
Bobbio afirma que o socialismo ainda não regulou positivamente suas relações com a
democracia, sobretudo devido a profundas insuficiências teóricas radicadas no miolo da
tradição marxista, senão no próprio pensamento de Marx e Engels. “O pensamento
socialista diz Bobbio - dirigiu por longo tempo sua atenção mais para os problemas da
renovação da sociedade em sua complexidade, começando pelo socialismo utópico e
não excluindo nem mesmo Marx e até aqueles da organização estatal.” Daí a
conseqüência de “não existir um modelo alternativo verdadeiro e próprio de um Estado
socialista”, afirma ainda Bobbio, esclarecendo que: “entendo-o como um modelo
perfeito e acabado também nos detalhes como o foi o modelo de Estado representativo
elaborado e aperfeiçoado pela grande tradição do pensamento liberal.” Pelo contrário,
“os esforços do pensamento político socialista, principalmente os de inspiração
marxista, concentraram-se sobretudo na crítica do Estado novo”. A gravidade desta
conseqüência é que, segundo Bobbio, não se desenvolveu uma ciência marxista da
política e não existe uma doutrina marxista do Estado. Aqui foram determinados “o
prevalescentes, senão exclusivo, interesse dos teóricos do socialismo para os
problemas da conquista do poder, onde o relevo dado ao problema do partido mais
que ao do Estado é a convicção persistente de que, uma vez conquistado o poder, o
Estado fosse um fenômeno de “transição”, isto é, estivesse, mais cedo ou mais tarde,
destinado a desaparecer e, portanto, lhe fosse particularmente adequada aquela forma
de governo que, por sua natureza transitória, é a ditadura (no sentido original da
palavra, como governo extraordinário para períodos e eventos extraordinários)”
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Tudo isto atenua as credenciais democráticas do movimento operário e quanto mais
aumentam os temores e as demoras, tanto mais a necessidade da transformação
socialista transborda do seio da crise geral da sociedade capitalista, recebendo de seu
aceleramento a marca de uma urgência dramática. O assunto assim encaminhado, a
diretriz das críticas bem como dos estímulos de Bobbio já não é mais tanto o
movimento operário quanto, e sobretudo, o “marxismo teórico”, principal responsável
pelos graves atrasos e pelas insuficiências do primeiro. E aí, Bobbio propõe um terreno
de discussão do qual não partilho o modo de sua colocação dos problemas, assim
como sua visão da teoria marxista, de sua forma, seus deveres, e das razões de seu
atraso.
O que é democracia
Bobbio nega a existência de uma doutrina marxista do Estado verdadeira e própria;
e, sobretudo, nega que o pensamento político socialista, em primeiro lugar aquele de
inspiração marxista, tenha elaborado suficientemente uma teoria própria e positiva da
democracia. Isto porque não colocou no centro de sua reflexão a democracia,
compreendida como um conjunto de regras judiciárias voltadas para a obtenção de
“certos resultados”. Pelo contrário, é de se crer que exista, neste ponto, um acordo
teórico de base quanto ao significado do termo “entre todos aqueles que invocam a
democracia, e se preocupam que o socialismo se pratique através da democracia e,
uma vez praticado, governe democraticamente”. Este significado preponderante é
aquele segundo o qual se entende por “democracia” um conjunto de regras que
permitem a participação mais ampla e mais segura da maior parte dos cidadãos, seja
de forma direta, seja indireta, nas decisões políticas, ou nas decisões que interessam
toda a coletividade.” As regras são mais ou menos as seguintes: sufrágio universal,
ativo e passivo, pluralismo político, princípio da maioria e respeito às minorias. Mas,
certamente, não se pode incluir o pensamento político marxista nesta seleção, pois ele
tem empenhado tradicionalmente suas melhores energias na crítica da democracia,
mais que na elaboração de uma teoria positiva sua. Portanto, é sobretudo à tradição
marxista que se dirigem as frases finais e polêmicas de Bobbio: “Não tenho nenhuma
dificuldade
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em admitir que este significado de democracia, que chamei preponderante, seja
também um significado restrito. Porém, teria alguma dificuldade em admitir que,
quando se fala de democracia
tout-court, sem adjetivos, deseja-se (c seja útil) entender outra coisa. Aquele que
entende outra coisa, seria melhor que o dissesse antecipadamente. E mais: nenhuma
dificuldade em admitir que para que um Estado seja “verdadeiramente” democrático,
não basta apenas a observância daquelas regras, mesmo que se esteja disposto a
admitir que basta a inobservância de uma delas para que não seja democrático (nem
verdadeiramente, nem aparentemente)”.
No início, referi-me ao risco que com tal impostação se hipostatiza a democracia
representativa como cânone da democracia tout-court. Na verdade existe a enunciação
explícita destas hipóteses no ensaio de Bobbio, onde, em polêmica com Colletti, ele
afirma: “Sistema parlamentar e garantia dos direitos de liberdade nasceram ao mesmo
tempo no âmbito de uma concessão única e coerente do Estado, que agora costuma-se
designar pelo termo de “constitucionalismo”. Até agora ninguém, no meu
conhecimento, conheceu um regime que tenha suprimido o parlamento e mantido a
liberdade; e nem mesmo um regime que tenha mantido o parlamento e suprimido a
liberdade.”
Como “argumento histórico”, ele adota esta afirmação exatamente no plano histórico,
afirmação que parece não apenas opinável, mas também redutiva. Todavia, não é
sobre isto que queremos discutir, assim como não tencionamos relevar a hipóstase do
sistema liberal na definição de democracia política de Bobbio, bem conhecido, com o
fim de enfatizar a implantação liberal do pensamento político de Bobbio, ou com o fim
de contrapor ao modelo proposto por Bobbio um outro modelo de democracia. Ao
Invés, desejamos desenvolver algumas reflexões quanto à fecundidade deste modo de
proceder e impostar o problema das regras e das instituições da democracia,
separando-o dos processos históricos e dos conteúdos das liberdades que, certamente
através de regras e instituições, produzem pelo menos um incremento real da
democracia.
Teoria e história
Para começar, recorremos também a um argumento de caráter histórico. Até o
movimento comunista ter se defendido unitariamente
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na contraposição da democracia proletária à democracia burguesa (contraposição de
modelo a modelo), apesar de suas contribuições fundamentais à causa da democracia
(basta pensar no peso principal sustentado na luta anti-fascista e anti-nazista), este
não desenvolveu nem uma nova prática da democracia nos países onde estava no
governo, nem uma contribuição teórica determinante para a “democracia do
socialismo”. Quando, porém, começou a abandonar a ideologia do modelo, pelo menos
alguns de seus setores foram mais expeditos tanto no plano da experiência quanto no
terreno da elaboração teórica do nexo democracia-socialismo. E isto deveria ser
suficiente para pôr de sobreaviso ambas as partes quanto à esterilidade da modelística
no campo do pensamento político, onde o método histórico é fundamental. Ou seja, a
necessidade de não separar a projeção jurídica e institucional da necessidade de
enfrentar ’e resolver - certamente conforme os princípios, mas os princípios não são
nunca “modelos” - os problemas da organização e do desenvolvimento da democracia,
assim como vêm sendo apresentados pelos processos históricos concretos (com
relação às particularidades muito variadas do desenvolvimento histórico das forças
produtivas, das classes e das tradições nacionais.)
A observação a ser feita com urgência refere-se portanto a este último problema,
quanto à- necessidade de saldar os problemas da democracia nos processos’históricos
e, portanto, de religar a teoria da política à teoria da história exatamente para evitar
que a primeira decaia no abstrato e infecundo modelismo judicial e institucional.
Quanto a isto, longe de concordar, discordamos sensivelmente de Bobbio, porque
também sua concepção tecnológica de democracia, que prescinde da história,
encontra-se na realidade incorporada a uma teoria da história. Qual? Se retornarmos
por alguns instantes à sua definição de democracia, esta apresenta-se submetida a um
emaranhado de conceitos segundo os quais os protagonistas da problemática política,
são em definitivo, os indivíduos e o Estado. Estamos, pois, em plena ideologia liberalhistoricista da história, incapaz afinal de historicisar até o fundo as formas do Estado e,
mais geralmente, da política, e menos ainda conceber os indivíduos diversamente de
seu imediatismo empírico de células atomizadas no interminável e agitado oceano do
mercado. A ela corresponde uma teoria política que não pode ir além das expressões
Jurídico-institucionais das relações sociais, e que por isso tende a
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resolver toda a problemática histórico-política como problemática jurídico-institucional.
O caminho da crítica do Estado político lhe é impedido, não conseguindo historicisar
nem a categoria jurídica, nem as formas institucionais e, aliás, assumindo
subrepticiamente as formas burguesas do direito e do Estado como cânones
hermenêuticos e de avaliação de todo o processo histórico.
Que tal ideologia da história não seja aceitável por posições marxistas é óbvio, e isto,
naturalmente, vale para o sentido que assim se instituiu entre teoria da história e
teoria da política, bem como para a teoria política que dela decorre. Mas não é apenas
isto que queremos objetar a Bobbio quanto à forma por demais rápida e a excessiva
intolerância que demonstra para com o marxismo teórico, desvalorizado de forma
muito drástica na nossa opinião, talvez dado o incômodo compreensível que ele sente
pelas disputas escolásticas nas quais se debatem alguns de seus apoiadores.
Como exemplo, tomemos uma delas: a polêmica entre Althusser e Lewis a propósito
da teoria marxista da história. Os termos da discussão são conhecidos. Mas, sigamos a
apresentação e a avaliação feita por Bobbio sobre ela. Se o marxismo teórico não
estivesse viciado por um escolasticismo crescente e pelo abuso do princípio de
autoridade, “não se explicaria — diz Bobbio — a incrível, insisto na “incrível”, disputa
entre dois marxistas como John Lewis e Louis Althusser quanto a um problema deste
tipo: se são os homens ou as massas que fazem a história. Lewis escreveu que “o
homem faz a história”. Althusser atira-lhe em cima um panfleto para dizer-lhe que
não: “Ce sont les masses qui font l’histoirme” (são as massas que fazem a história).
Desafio que se encontre um cientista social fora do campo marxista — conclui Bobbio
— que possa colocar-se seriamente um problema desta espécie.”
Uma nova escolástica marxista?
Não discuto que seja difícil encontrar um “cientista social” fora do campo marxista
que leve a sério tal problema. Mas o problema não é absolutamente escolástico. Na
verdade é fundamental. É o problema da teoria da história e não é difícil observar —
também por estar muito claramente enunciado pelos dois contendores
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que, enquanto para o primeiro a ciência marxista da história se resolve toda na
historiografia e em seus conceitos (de tempo, espaço, eventualidade, causa, fator,
etc... onde tudo quanto possa ser considerado como marxista, serão, no máximo
algumas concessões sobre a importância dos interesses econômicos como “fator”
histórico e a interação dialética entre estruturas e superestruturas), o segundo afirma
que uma ciência marxista da história está ainda, em grande parte, por ser elaborada
com base dos conceitos próprios e fundamentais do marxismo, como os do modo de
produção, das relações sociais de produção, das forças produtivas, da formação
econômico-social, etc..., considerando estes conceitos essenciais para a elaboração do
material historiográfico dentro de uma concepção materialista da história, acreditando
aliás que sem estes conceitos não se possa conhecer a história propriamente.
Uma discussão desta espécie é realmente tão inútil e escolástica? O sentido e a
extensão de uma contraposição nítida entre dois marxistas não está evidente, em
relação à teoria da história, se um deles considera a identidade da história e da
historiografia com a conseqüente impossibilidade de conceber as classes de outro
modo que camadas sociais, faltando a compreensão da história como história das lutas
de classes e, portanto, a possibilidade de uma crítica da economia e de uma teoria
política; enquanto o outro tem no centro estes resultados ulteriores, considerando
essencial para produzi-los um reconhecimento da história como história das lutas de
classes e, portanto, procura no marxismo e na obra de Marx categorias adequadas à
produção de um conceito autônomo de classes?
É sintomático que Bobbio subvalorize o alcance de uma discussão desta espécie que
objetive o desenvolvimento criativo do marxismo. Se os estudos sobre Marx tivessem
ido adiante e a apropriação do seu campo teórico e da ruptura epistemológica ocorrida
no campo da crítica de economia política tivessem já produzido uma ciência mais
avançada da história, todos nós poderíamos estar favorecidos. E isto também seria útil
para Bobbio, porque certamente uma teoria da história mais rica e explicativa que a
liberal-historicista, submetida à sua teoria da política (que reduz a problemática
política fundamentalmente às relações entre indivíduo e Estado), não permitiria a esta
última restringir o problema da democracia aos seus revezes judiciários e
institucionais. Infelizmente, nada disto existe e alguns marxistas se apressam em reler
Marx para produzir os conceitos úteis para uma nova compreensão da
Página 154
história. Serão realmente tão ingenuamente escolásticos como leva a crer o fato de
“fantasiar” sobre textos de Marx, em vez de colocar a análise na realidade atual?
Bobbio é um pensador sutil demais para negligenciar o fato de não se poder conhecer
a realidade sem uma teoria da realidade. E a sua própria teoria da política demonstra
um atraso enorme da ciência da história junto a uma profunda exigência de uma
ruptura epistemológica que nos ajude a elaborar um conhecimento histórico mais
completo. Então? Talvez devesse considerar com mais benevolência a “escolástica” dos
teóricos marxistas.
O valor da tradição
Mas, afinal, o que significa esta “escolástica”? “Diante da constatada deficiência da
doutrina marxista do Estado — afirma Bobbio — estar-se-ia induzido a pensar que o
primeiro passo a ser dado seja o de estudar com instrumentos sempre mais perfeitos
de análise a realidade atual, tanta a dos estados capitalistas quanto a dos estados
coletivistas, com a finalidade de descobrir-lhes os defeitos de funcionamento, e tendo
bem claros na mente os objetivos que se deseja alcançar.” “Ao contrário — observa
Bobbio — ocorre ainda com muita freqüência que se pense ser o primeiro dever de um
marxista procurar o que disse Marx.” Tudo isto lhe parece “escolástico”, em sentido
estrito; isto é, conhecer a realidade mais pelas análises de Marx, bem ou mal, velhas
de cem anos, do que por si mesmo. Portanto, está viciado pelo “abuso do princípio de
autoridade”, por citações, pela marxiologia que são, afinal, resultado e causa de
impedimentos e atrasos no desenvolvimento de uma doutrina marxista do Estado.
Que estes atrasos existam, não há dúvida. Que uma marxiologia infecunda e
redundante esteja se desenvolvendo, agravando-os em vez de preenchê-los, também
é verdadeiro, sobretudo se observarmos a grande parte da produção acadêmica jovem
e não apenas jovem, depois de ’68. Mas, tudo isso não nos convence da tese por
demais simplificada, segundo a qual em vez de “explicar” as poucas páginas da teoria
política de Marx, é preciso voltar-se para “o estudo com instrumentos sempre mais
perfeitos de análise da realidade atual, etc...” É justamente aqui que surge o
problema, quanPágina 155
do o desejaríamos resolvido. De onde tirar estes “instrumentos sempre mais
perfeitos?” São exatamente estes que às vezes tenta-se encontrar nos escritos de
Marx, precisamente para conhecer melhor a realidade atual. Ora, ou considera-se
poder afirmar que de toda a tradição marxista não se podem extrair estes
instrumentos, que é necessário procurá-los alhures, ou então não se pode contestar
aos marxistas o direito de procurá-los no pensamento marxista e em Marx, sobretudo
na fase onde toda a tradição requer ser repensada à luz das grandes mutações que
atualmente se produzem.
Não acreditamos que Bobbio queira contestar a seriedade deste trabalho. Em
primeiro lugar, cada época e cada geração determina seus deveres e produz seus
resultados em relação à tradição. E, não se compreende porque, logo aos marxistas,
deve ser contestado o direito de repensar e praticar criticamente a própria tradição.
Em segundo lugar, este é um dever imprescindível porque os instrumentos de análise
atuais sempre brotam da tradição e de uma relação — a mais fundamentalmente
crítica possível — conjunta. Em terceiro lugar, este trabalho é indispensável para
reclassificar a tradição, que pesa de toda maneira sobre a cultura e a consciência, por
parte dos teóricos mais advertidos. Em quarto lugar, não vejo porque Bobbio deva
mostrar tão pouca compreensão em relação àquele que se esforça em forjar os
próprios instrumentos de pesquisa na tradição marxista, quando depois declara
abertamente conseguir os seus em uma tradição diferente e, além do mais, distante (e
não apenas no sentido cronológico) da “estrutura do mundo” atual.
Uma avaliação mais profunda do problema da tradição teria, ademais, evitado a
Bobbio a incompreensão da centralidade da relação Marx-Hegel, do recorrente retorno
dos marxistas à interpretação de Hegel, do modo pelo qual o problema Hegel vem
sendo impostado na tradição marxista. A primeira coisa a ser observada, para quem
atribui o devido peso à tradição, é que o hegel-marxismo é, em geral, uma forma
teórica das fases do desenvolvimento da iniciativa política da classe operária e da
elevação da sua ação a nível do Estado. O problema da relação Marx-Hegel é central
para os desenvolvimentos revolucionários da tradição marxista, isto por exprimir
sinteticamente nó plano teórico-filosófico o ponto de ataque da crítica marxista à forma
e nível da política na sociedade capitalista. Por que então pensar que tantas energias
profusas no estudo de,Hegel e sua relação Marx-Hegel, na cultura
Página 156
marxista italiana, sejam apenas o fruto do doutrinarismo, do provincialismo, do
conformismo dos marxistas italianos? Que eles realmente desconhecem em que
sentido a filosofia de Hegel permite uma aproximação à totalidade complexa da
formação social capitalista e em que medida no entanto não é preferível estudar
Smith, para aproximar-se do mesmíssimo tema? [Nota 1]
Página 157
É evidente que consideramos útil, de uma provocação feliz, a polêmica de Bobbio
quanto ao marxismo teórico contemporâneo. Sem dúvida, é verdade que seu
deslocamento é basicamente “escolástico” e que ele não contribuiu o suficiente para
preencher as lacunas da “doutrina marxista do Estado”. Todavia, orientada como está,
não nos parece que a polêmica de Bobbio atinja o alvo e resulte efetivamente fecunda.
Isto porque, na minha opinião, ele propõe como defeito do marxismo teórico aquilo
que para mim parecem atrasos e contradições do movimento operário em sua
complexidade. Ou então, coloca
em termos de ciência política um problema
“totalmente político”, talvez o aspecto político mais importante dos atrasos e das
insuficiências do movimento comunista em sua complexidade. Tentarei explicar-me.
Da onde nascem os defeitos denunciados por Bobbio nas linhas de pesquisa do
marxismo contemporâneo? Não se chega a uma posição exata do objetivo (preencher
as lacunas e superar os atrasos ou as contradições) sem responder preliminarmente a
esta pergunta. Para mim, é convincente a resposta segundo a qual estas
descompensações se originam na dupla cisão, determinada no interior do movimento
operário nos anos ’20, sendo mais aprofundada e cristalizada até os anos ’50: a cisão
entre comunismo e social-democracia, de teoria e movimento no interior de cada
tronco nos anos ’20 - ’30, com a conseqüente redução empírica da prática política do
movimento operário, a conversão da teoria socialista e comunista em esquematizações
ideológicas pobres, a separação do marxismo do corpo vivo do movimento.
Excetuando a experiência italiana, onde, ao contrário, os dois protagonistas
fundamentais da teoria marxista Gramsci e Togliatti - são também os dirigentes mais
importantes do movimento operário, na realidade assistimos nestes anos à
transformação do marxismo criativo, fundamentalmente como crítica filosófica da
alienação e do autoritarismo, quando não como crítica romântica da sociedade de
massas, confiada à alternativa de alguns setores da intelectualidade revolucionada pela
Revolução de Outubro, separada do bloco de classes dominantes e, todavia, nada mais
que “hóspede” do movimento operário e quase sempre estranha à sua vida concreta,
não incorporada por ele quando não é abertamente afastada ou marginalizada.
Felizmente, a situação é descrita por Aldo Zanardo que destaca como, em
conseqüência da revolta do movimento operário na Europa Ocidental nos anos ’20,
“posteriormente, a socialPágina 158
democracia abdica em grande parte, terminando por integrar-se no existente. O
comunismo resiste, mas, na maioria das vezes, não sabe verdadeiramente e
continuadamente ligar-se às coisas e agir... recai fartamente em uma intransigência
genérica e em uma expectativa passiva... [Nota 2]”.
Esta situação refere-se sobretudo aos anos ’20 e ’30. Todavia, ao final do nosso
problema, ela é tudo menos pregressa. Que o forte limite escolástico denunciado por
Bobbio no marxismo teórico contemporâneo se ajuste ou não ao “limite do filosofismo”
do marxismo dos anos ’20 e.’30 indicado por Zanardo, a análise deste último permite
individualizar a raiz histórica de uma ou de outra deformação.
E digo mais. Se Bobbio pode polemizar em boa parte o “marxismo teórico”
contemporâneo é porque, partindo exatamente daquelas cisões, aviam-se diversos
filões de “marxismo teórico”. Isto é, de um pensamento marxista elaborado por grupos
intelectuais “separados” do movimento operário, mesmo se orientados no sentido
socialista ou anticapitalista, que encaminham uma tradição própria é verdadeira do
“marxismo teórico” a diversos filões de “marxismo dos grupos intelectuais
radicalizados”, destacada de temáticas que não correspondem aos problemas
concretos que o movimento operário tem diante de si, em sua complexidade.
O marxismo dos filósofos
Pode-se, portanto ralar de um “marxismo teórico” no sentido estrito, devido àquelas
cisões, da constituição de um “marxismo preparado” ou dos intelectuais, junto a um
contraste para com o achatamento pragmático da teoria política do movimento
operário. E não se devem desconhecer as contribuições que, de qualquer maneira,
foram feitas para o desenvolvimento da teoria, mesmo com os limites e as distorções
derivadas da sua condição histórica há pouco indicadas. Mas, denunciando seus limites
e suas formações escolásticas, chamando sua atenção para a pobreza constatada do
pensamento político marxista, deparando com seus erros e
Página 159
até tendo a impressão de que não existe uma doutrina marxista do Estado, acerta-se
no alvo? Escolhe-se o alvo certo e o interlocutor adequado? Ou a própria existência de
um “marxismo teórico” próximo e separado da teoria marxista, incorporada e
elaborada pelo movimento operário, não é por si nada mais que a causa objetiva das
suas deformações, e também a expressão de um problema que conduz o discurso e
orienta o olhar bem além da tradição constituída pelo marxismo dos intelectuais?
Disse anteriormente que Bobbio coloca em termos de ciência política um problema
político, tout-court. Creio que, neste ponto, esta afirmação esteja esclarecida.
Portanto, Luporini tem razão quando, depois de ter levantado os problemas já
analisados por Zanardo, apresentando o resultado de suas principais contribuições
filosóficas para o marxismo, propõe ao movimento comunista a pergunta crucial: “Por
que a elaboração do marxismo está hoje quase apenas nas mãos dos “filósofos”?”. E,
de sua parte, esclarece: ”aquela pergunta é, em sua base, política”. [Nota 3]
Caso se deseje contribuir para a superação dos atrasos e das deformações
denunciadas por Bobbio nas orientações do “marxismo teórico”, a questão vai bem
além da denúncia do “escolasticismo” e do “abuso do princípio de autoridade” que
viciam a doutrina política marxista. A questão não se resolve assumindo simplesmente
como erros ou espírito eclesiástico as deformações da ciência política marxista,
chamando esta última para seus deveres de pesquisa atuais, embora assumindo-a
como interlocutor principal para o encaminhamento da solução do problema
apresentado. Pode-se considerar que um “modelo alternativo” ao “Estado
parlamentar”, que seja, no entanto “aceitável” enquanto ”democrático e socialista”,
“não exista” porque o “marxismo teórico” não pensou o suficiente para elaborá-lo?
Rejeitamos esta impostação e - muita atenção - não por considerar necessário
distribuir as responsabilidades entre marxismo teórico e movimento operário de forma
diversa daquela proposta por Bobbio e, afinal, em favor de uma defesa corporativa do
“marxismo dos intelectuais”. Temos à nossa frente um problema bem maior que o de
atirar culpas e responsabilidades. Trata-se de compreender como proceder para
superar os defeitos denunciados por
Página 200
Bobbio e que com certeza existem. Todavia, Bobbio afirma que o problema principal é
o de atrair a ciência política marxista para tarefas diferentes daquelas às que serve.
Parece-me que o problema é outro.
Pode-se considerar que para superar as suas insuficiências, o marxismo deva
produzir os seus Locke, Kant, Constant, Tocqueville, assim como ocorre com a
burguesia na elaboração secular do próprio “modelo” de Estado? O problema não pode
ser colocado nestes termos, porque a forma do pensamento político marxista não é a
mesma do pensamento político liberal e democrático, assim como o movimento do
tornar-se Estado da classe operária não é o mesmo da burguesia. Temos diante de nós
uma transição histórica bem diferente daquela da qual emerge a burguesia como
classe dominante, na passagem do feudalismo para o capitalismo.
A forma marxista da ciência política
O modo de elaboração da hegemonia por parte do proletariado quanto à burguesia é
radicalmente diferente: em síntese, a burguesia elaborava a própria hegemonia em
uma formação social dividida e antagônica, na qual vinha reclassificando e não
suprimindo, mas, pelo contrário, exaltando antagonismos e cisões. A alguns modelos
do Estado confiava o dever de unificar os diversos segmentos das classes proprietárias,
fazendo com que assim acreditassem no objetivo de unirem-se para constituirem-se
em uma classe dominante, elaborando, portanto, por períodos desconexos, em certa
medida, a própria ciência política e a própria prática revolucionária. Aliás, preparava-se
para tornar-se Estado, assimilando, sobretudo os tradicionais intelectuais de sua época
e reclassificando-os. Assim, através da formação do mercado ela também formava a
classe intelectual moderna, protagonista de algumas funções específicas e essenciais
para a nova forma de domínio e, portanto, até certo ponto, “autônoma”; ou seja,
detentora de uma porção do poder. Na formação social da burguesia o
desenvolvimento da ciência política de forma “autônoma” está separado do concreto.
Tornar-se Estado da nova classe dominante é apenas um reflexo da articulação
autônoma do ideológico, seja como base de recomposição antagônica da política e da
economia, própria da sociedade caPágina 161
pitalista, seja como mediação do processo de elaboração da nova ciência e de sua
submissão progressiva ao capital. À autonomia relativa da classe intelectual
correspondem tanto a elaboração de uma “ciência separada” da política quanto sua
capacidade de contribuir como modeladora da definição das formas de Estado. Tudo
isto destaca uma forma bem determinada do pensamento político.
Pode-se considerar que tudo isto sirva igualmente para a classe operária? Ou será
que diversidade radical de tornar-se Estado implica e pressupõe uma nova forma do
pensamento político? Quanto às formas da classe operária tornar-se Estado, não me
parece ser este o centro de insistência para esclarecer o sentido de nossas afirmações;
tudo o que indicamos sumariamente no primeiro parágrafo é suficiente. Portanto, que
a forma do pensamento político marxista deva ser diferente da do pensamento político
democrático e liberal é conseqüência das particularidades que se seguem aos
processos de elaboração da hegemonia, de assimilação dos intelectuais orgânicos por
parte da classe operária. Ora, não há dúvidas de que tudo isto decorre de uma relação
radicalmente nova entre intelectuais e massa, virada pelo avesso em relação ao
modelo burguês, por estar fundamentada na elaboração molecular de uma classe
intelectual voltada para a recomposição unitária das massas e para a sua direção, com
base no seu consenso autônomo para promover-lhe unidade, sabedoria e autogoverno.
É impossível pensar em uma contribuição decisiva para o pensamento político marxista
por parte dos grupos intelectuais socialistas que elaboram, enquanto classe
(individualizados como sábios e especialistas de coisas políticas) um novo modelo de
Estado. O próprio movimento socialista moderno nasceu do encontro entre marxismo e
movimento operário, ou seja, da capacidade deste último em incorporar e reclassificar
um certo número de marxistas intelectuais. E a formação do novo Estado decorre,
desta vez, da reclassificação de todas as classes e em primeiro lugar dos intelectuais
como classe; ou seja, da recomposição da classe operária e da inteligência científica,
dos intelectuais e das massas. Os desenvolvimentos da teoria política marxista se
destacam e são determinados pelo andamento destes processos. Nenhum atalho ou
privilégio é concedido ao “marxismo dos intelectuais”. A forma do pensamento político
socialista é radicalmente diferente daquela do pensamento político liberal e
democrático, pois o marxismo já está incorporado nas instâncias da nova classe
comum, desenvolvendo-se com base no enPágina 162
trelaçamento que nelas se produz entre a prática da teoria e a prática política.
Consideramos por um momento as figuras intelectuais que dominam a história do
marxismo, sobretudo na época do imperialismo: Lênin, Gramsci, Mao, Togliatti,
Bukharin, Ho Chi Minh e tantos outros. São figuras intelectuais radicalmente
diferentes: grandes teóricos da política e também grandes chefes do movimento
comunista, fundadores de Estados, dirigentes de partidos. Isto não significa que esta
coincidência deva repetir-se automaticamente, tanto mais quanto mais a classe
operária se torna Estado e se introduz na transição. Mas, a reviravolta da ligação
intelectualmassas é um dado constitutivo do movimento socialista, não menos que as
possibilidades de um desenvolvimento teórico do marxismo. Este último procede da
premissa indispensável da ruptura da divisão do intelectual, da recomposição da teoria
e do movimento, da apropriação em massa da política como técnica e ciência; não
pode deixar de ser obra do “intelectual coletivo”, do partido político entendido não
apenas “como a organização técnica do próprio partido”, mas como “todo o bloco social
ativo do qual o partido é seu guia por ser a expressão necessária”.(Gramsci).
Portanto, tanto para o pensamento político marxista quanto para o marxismo em
geral, coloca-se o problema da especificidade de sua forma. Longe de pedir ou esperar
um desenvolvimento do “marxismo teórico” a ponto de garantir pela elaboração de
novos modelos políticos o caráter democrático da sociedade socialista, trata-se de
início (para individualizar corretamente os interlocutores e o plano do discurso) de
tornar conhecimento da forma teórica particular do marxismo. Isto é ciência política
não positiva (como a modelística jurídica, econômica, sociológica, politológica
burguesa) da política e da história. Ou seja, os desenvolvimentos da teoria marxista
são decorrentes dos desenvolvimentos da fundação estratégica e da reelaboração da
própria experiência por parte do movimento operário em seu conjunto. Portanto, ao
colocar em questão a teoria do Estado marxista, deve-se conseguir reconduzir os
limites e as deformações aos desenvolvimentos históricos do movimento socialista,
encontrando as ligações reais existentes entre os primeiros e os segundos, orientando
a crítica para os defeitos reais do movimento como um todo, caso se deseje estimular
o incremento necessário da doutrina ao invés de dirigir ao “marxismo dos intePágina 162
lectuais” o pedido de exaltação da sua “separação”, orientando-se na busca de
modelos abstratos de democracia socialista.
Teoria do Partido e Teoria do Estado
Destas premissas não se pode aceitar a crítica principal feita por Bobbio à “doutrina
marxista do Estado”, segundo a qual ela teria desenvolvido a teoria do partido e não a
teoria do Estado, devido ao interesse “prevalecente senão exclusivo dos teóricos do
socialismo pelo problema da conquista do poder” mais que pelos mecanismos da sua
organização democrática.
É verdade que, à primeira vista, existem na tradição socialista e comunista reflexões
maiores sobre o partido do que sobre o Estado. Mas afinal, observando mais
profundamente, será mesmo assim? De início, a teoria marxista do partido no
pensamento marxista é, em geral, parte integrante da reflexão histórica e teórica
sobre determinadas formas de Estado e sobre a forma de derrubá-las.
Consideremos o caso de Lênin. Não há dúvida de que a teoria do partido constitui o
aspecto mais desenvolvido e inovador, talvez o núcleo essencial de sua contribuição
para a teoria marxista. Mas isto, quanto à sua concepção do partido, sintetiza, c a
teoria marxista. Mas isto, quanto à sua concepção do partido, sintetiza, concentra e
traduz na prática uma reflexão já resumidamente desenvolvida sobre as mutações
morfológicas da formação social capitalista, sobre o papel da política e de sua forma de
Estado, sobre os modos de proceder para a conquista do poder em uma situação
historicamente determinada, sobre as novidades que a mesma forma de teoria assume
com o nascimento do movimento operário organizado e o processo de recomposição
encaminhado por ele entre intelectuais e massas, no último decênio do século XIX e,
de qualquer maneira, depois de Marx.
Não se pode ignorar a importância histórica do fato de Lênin ter escrito “O Que
Fazer?” por vários motivos: a) ao estudar os desenvolvimentos mundiais do
capitalismo baseado na lei do desenvolvimento desigual, pôde colocar no centro de sua
pesquisa a história da Rússia do último decênio do século XIX como a história do
Página 164
seu desenvolvimento capitalista e da formação do mercado; b) apropriou-se das
categorias fundamentais da crítica da economia política e da consciência de que para
fazê-la funcionar era indispensável sair do nível da lógica para o processo histórico
que, conforme o implante teórico de Marx (unificando os volumes I e III do CAPITAL),
coloca no centro da análise o processo de reprodução ampliada do capital, ou seja, a
ligação entre produção e reprodução na formação de um mercado determinado, unindo
assim economia e política, fazendo emergir como essencial o reconhecimento das
formas particulares do Estado dentro das quais está inserido todo o relacionamento da
produção com reprodução nas suas condições fundamentais; c) definiu concretamente
os deveres do proletariado russo, já que com base no reconhecimento indicado
elaborou uma nova ligação entre democracia e socialismo, individualizando na Classe
operária o protagonista da revolução democrática; d) individualizou em termos novos a
relação entre teoria e movimento, assumindo que, sendo a consciência socialista o
fruto de uma concepção resultante da relação entre todas as classes; do papel do
Estado e dos caminhos de sua derrubada, ao nível da evolução histórica do
proletariado — o russo em especial — ela deve ser introduzida na classe operária “pelo
exterior”, pela sua experiência imediata no conflito de classes; e) onde é necessário
atingir uma organização política de vanguarda da classe operária radicalmente
diferente daquela experimentada na tradição socialista [Nota 4].
Considerando-se tudo isto, certamente não se pode afirmar que, neste fato
específico, Lênin tenha desenvolvido a teoria marxista do partido em lugar ou em
prejuízo da doutrina marxista do Estado. O contrário é verdadeiro: uma nova doutrina
do partido foi elaborada por Lênin exatamente porque com ele o marxismo deu um
passo adiante na reflexão política e nas formas da política, colocando no centro de sua
pesquisa as estruturas do Estado, certamente de maneira conjunta com os objetivos
de sua reviravolta. Contrariamente ao que Bobbio levaria a acreditar, a doutrina
leninista do partido é, portanto parte essencial e derivada, embora preponderante, da
reflexão leninista do Estado.
Página 165
E o que dizer de Gramsci? Sua doutrina do Partido como “príncipe moderno” e
“intelectual coletivo” é concebível, separada como está pela importância do peso
particular que o Estado assume no Ocidente capitalista, confiando os deveres da
garantia da reprodução das relações de produção capitalistas não apenas e nem tanto
aos aparelhos repressivos e ao monopólio da violência legalizada quanto aos “aparatos
de hegemonia” em particular? Togliatti indicou justamente na teoria gramsciana do
partido um novo capítulo do leninismo, e, na teoria gramsciana da hegemonia, a
melhor premissa para o desenvolvimento da ciência política marxista.
A Contribuição de Gramsei
Este encaminhamento para a reflexão sobre as particularidades do Estado no
Ocidente capitalista constitui, portanto, um dos núcleos essenciais de toda a
elaboração dos “Quaderni”, situando-se no cruzamento das categorias fundamentais
da ciência política gramsciana; tais como “revolução passiva”, “guerra de posições”,
“hegemonia”, “bloco histórico”. De fato, repercorrendo aqui a história do conceito de
“revolução permanente”, “surgido antes de 1848 como expressão elaborada
cientificamente das experiências jacobinas de 1789 ao Termidor”, Gramsci observa
como aquele conceito torna-se desatualizado e improponível na época do imperialisrno,
nos países de capitalismo desenvolvido. Nestes países, “depois de 1870, as relações
organizadoras internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e
maciças e a fórmula de 48 da ‘revolução permanente” tem sua elaboração superada na
ciência política pela fórmula de “hegemonia civil”. Acontece na arte política o que
acontece na arte militar: a guerra de movimento torna-se sempre mais uma guerra de
posição”.
A própria relação com Lênin torna-se “tradução na linguagem histórica nacional” da
experiência bolchevista, e o esforço de reinterpretar a política de “frente única” da
ótica das particularidades nacionais européias põe em ação um núcleo verdadeiro e
próprio de “uma doutrina marxista do Estado”, certamente o mais avançado de todo o
horizonte da Terceira Internacional.
Página 166
Nos “Quaderni del carcere”, há mais que o embirão de uma doutrina marxista do
Estado: existe o núcleo de uma teoria do Estado a nível do capitalismo desenvolvido.
Que seja considerado mais ou menos adequado, suficiente ou não; não existem
dúvidas todavia de que aqui está o fundamento da teoria gramsciana do partido
revolucionário. As características do partido revolucionário e os seus caracteres não
são consequências da conjugação de princípios abstratos do tipo relação entre
vanguarda e massas, espontaneidade e direção consciente em geral. Quando muito,
estes são úteis para a definição dos critérios técnico-organizadores do partido-aparato,
sempre em relação à sua função histórica. E daí a reflexão gramsciana em torno do
“teorema das proporções definidas” [Nota 6] ou dos três elementos constitutivos do
partido político. [Nota 7] Mas a teoria determinada pelo partido está estritamente
interligada à teoria do Estado no qual o partido trabalha e que pretende conquistar.
Ambas, então, são parte da teoria geral da revolução.
Por outro lado, não é por acaso que uma das posições fundamentais da reflexão
gramsciana sobre o partido encontra-se entre as “anotações e notas reunidas para um
conjunto de ensaios sobre a história dos intelectuais” [Nota 8]. E aqui, a unidadedistinção de política e economia colocada por Gramsci com base na sua concepção
determinada pelo Estado-hegemonia, encontra um correspondente evidente e um
desenvolvimento na concepção do partido.
Prossigo com Gramsci para não atualizar demais a discussão. Caso examinássemos a
evolução ulterior apresentada por Togliatti na concepção marxista do partido junto à
teoria e construção do “partido novo”, seria ainda mais evidente a ligação entre a
concepção do partido e a análise histórico-política das particularidades nacionais do
Estado, no interior de uma concepção bem definida da transformação democrática e
socialista do país; tanto que não se pode negar a ligação necessária e ademais a
fundação da concepção do partido no pensamento marxista entre a teoria do Estado e
da Revolução.
É verdade que Bobbio chega a acusações tão drásticas ao marxismo em termos de
doutrina do Estado por considerar que, desde
Página 167
Marx e Engels, o marxismo tenha praticado manifestamente “uma concepção negativa
da política”, baseada na redução do Estado a um “instrumento de domínio da classe
dominante”. Ora, seria por demais extenso tentar demonstrar aqui o quanto esta
interpretação do pensamento de Marx e Engels é unilateral e por isso não capta o
significado de sua concepção sobre política; pelo contrário, derruba-a. Do exame
sumário, considerando as ligações entre teoria do partido e teoria do Estado em Lênin
e Gramsci, não nos parece estar confirmada a afirmação de Bobbio quanto à visão
redutiva do Estado como “instrumento de domínio da classe dominante” no
pensamento marxista. Antes, deve-se dizer que provavelmente existem razões
decisivas que se referem ao método e à direção de pensamento seguidos por Bobbio,
que o conduzem a uma interpretação do pensamento político de Marx e Engels na
forma indicada. E provavelmente estás são as razões que tornam pouco fecundo o
diálogo de Bobbio com o marxismo.
A concepção do marxismo pelo Estado é bem mais complexa e profunda que aquela
atribuída por Bobbio. Pode ser resumida, recorrendo-se a uma anotação dos
“Quaderni” gramscianos, onde Gramsci, propondo uma reflexão sobre o Estado
“segundo a produtividade (função) das classes”, afirma: “Para as classes produtivas
(burguesia capitalista e proletariado moderno) o Estado não é concebível a não ser
como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado
sistema de produção. A conquista do poder e a afirmação de um novo mundo
produtivo são inseparáveis: a propaganda para um é também a propaganda para o
outro; na realidade, a origem unitária da classe dominante que é econômica e política
ao mesmo tempo reside apenas nesta coincidência”.[Nota 9]
Com esta forma de colocar a questão do Estado, certamente não emergem em
primeira instância os problemas relativos às formas de governo e aos mecanismos
reguladores das relações entre governados e governantes. O próprio Gramsci, ao
propor a concepção do partido como “Príncipe moderno”, advertia: “Nesta realidade (a
realidade de uma “sociedade civil” na qual o partido tem o “poder de fato”), que está
em movimento contínuo, não se pode criar um direito constitucional do tipo tradicional,
mas apePágina 168
nas um sistema de princípios que confirmam como fim do Estado o seu próprio fim, o
seu próprio desaparecimento, isto é, a reabsorção da sociedade política na sociedade
civil.” [Nota 10]
Mas isto é bem diferente de urna ausência de uma doutrina do Estado. É apenas
uma teoria da política fundada de maneira diferente, ligada à teoria da história e nela
incorporada, não dividida pelo método típico abstrativo das ciências jurídicas e
políticas.
Quanto a este método, do qual Bobbio — cientista do direito e da política —
demonstra não querer se afastar, seria bom lembrar o que Gramsci também diz a
respeito da visão do Estado nas classes intelectuais dos países da Europa continental,
e sobretudo naqueles em que eles têm um peso particular. “Quando o impulso para o
progresso não está estritamente ligado a um desenvolvimento econômico local, mas é
reflexo do desenvolvimento internacional que leva para a periferia suas correntes
ideológicas nascidas com base no desenvolvimento produtivo dos países
desenvolvidos”, como é evidente no caso da unificação nacional italiana, “então a
classe portadora de novas idéias é a classe dos intelectuais e a concepção de Estado
muda de aspecto. O Estado é concebido como urna coisa em sí, como um absoluto
racional. Concluindo, Gramsci diz: “pode-se afirmar que, sendo o Estado a moldura
concreta do mundo produtivo e os intelectuais o elemento social que melhor se
identifica com o pessoal governante, é próprio das funções dos intelectuais colocar o
Estado como um absoluto; desta forma sua existência é racionalizada e sua função
histórica concebida como absoluta. [Nota 11] A nós parece que na história da classe
intelectual deva-se indicar, na Itália, a real referência de uma ciência da política de
implante típico-abstrativo e não histórico-político.
Estado e Revolução
Seja esta impressão justa ou não, acreditamos que as posições leninistas ou
gramscianas, sumariamente indicadas por nós, mosPágina 169
trem ad abundantiam tanto a presença atuante de uma doutrina marxista da política e
do Estado quanto a sua derivação da teoria do partido. E isto se impõe argumentar
aqui.
Pode-se objetar que aquelas doutrinas aqui lembradas são doutrinas do Estado, mas
incorporadas a urna teoria da política que prevê a extinção do Estado. Daí a validade
das observações de Bobbio quanto às razões do atraso do marxismo em ocupar-se das
instituições democráticas e dos procedimentos que as garantem.
Na nossa opinião não é assim. Mesmo por causa do método histórico-político que é
próprio do marxismo e que pressupõe uma estreita união entre a teoria das
instituições e a teoria dos processos (históricos, políticos, de massa, etc...), entre
teoria da política e teoria da história, a doutrina marxista do Estado não pode ser
separada da teoria da revolução. Portanto, a ciência política marxista elabora mais
princípios que modelos. A eles, pois, se reconduzem as técnicas institucionais e
processuais. Ou será apenas um acaso (talvez produzido pela ocasião política) que a
principal reflexão leninista sobre o Estado é ao mesmo tempo uma definição da teoria
da revolução?
Na verdade não é nenhum acaso que, para o marxismo, política e economia,
produção e reprodução social não possam ser penetradas de maneira adequada, a não
ser no âmbito de uma teoria da história (análise das formações sociais, dos modos de
produção, das classes, dos “aparatos hegemônicos”, das lutas políticas como lutas de
classes incorporadas nas lutas de hegemonia) capaz de ligá-las estreitamente entre si.
Consideremos por um momento o conceito fundamental do marxismo: a
interpretação da história como história das lutas de classes; o próprio conceito de
classes, separado da totalidade complexa da crítica da economia política, desmoronase nas noções sociológicas de estratos, classes de renda, status, etc. Ele funciona
corretamente apenas dentro do marxismo pelo que é: uma categoria fundamental da
política elaborada por uma ciência particular da política e da história. Na posição em
que uma teoria do processo é indispensável, que por brevidade retomamos
rapidamente com o jovem Togliatti. Ele lembra, no célebre artigo de ‘25, La Nostra
Ideologia, que “a mola do desenvolvimento histórico encontra-se para nós na
modificação das relações de produção, embora seja
Página 170
também verdade que as relações de produção se traduzem em relações de classes e a
classe é o elemento que se organiza, adquire uma consciência que ‘quer’ e faz pesar
sua organização sobre todo o processo de transformação social. Quem dá consciência,
organização e vontade à classe é o partido que se forma em seu seio. “Aquele que
“não deve nunca pensar em ter de lidar com uma realidade que se desenvolve sozinha,
automaticamente, pois encontra-se sempre diante de um sistema de forças em
movimento, deve propor-se modificar este movimento e seus resultados, mas não
pode consegui-lo a não ser inserindo-se nele de forma ativa” ’[Nota 12].
Deve-se acrescentar a isto a insistência, não casual, por parte de um Togliatti
maduro, quanto à distância de Gramsci, não apenas da tradição socialista italiana, mas
também do próprio Labriola. Togliatti insiste no conceito de que uma teoria própria e
verdadeira da revolução amadurece na Itália somente depois do encaminhamento da
“tradução”, em linguagem histórica e nacional, da experiência bolchevista e da obra de
Lênin [Nota 13], onde considera Gramsci o primeiro, o verdadeiro marxista italiano,
por ter sido o artífice desta “tradução”. Com que argumentos? Para a tradição
socialista italiana e também para os poucos marxistas “a concepção do
desenvolvimento histórico permanecia... faltava a própria noção das modificações e do
transtorno das relações de poder na sociedade, do rompimento do bloco histórico
dominante e da criação revolucionária de um novo bloco. É esta noção, no entanto,
que Gramsci colocou como fundamento de todo o seu pensamento e de toda a sua
ação sucessiva. Esta foi a maior conquista realizada por ele” [Nota 14]
Em torno da noção de “bloco histórico” comprimem-se e entrelaçam-se todos os
elementos da concepção política e histórica gramsciana. Ela é, um pouco, o espírito de
seu marxismo. Na Itália, pela primeira vez, o marxismo atinge, com Gramsci, a sua
perfeita expressão, exatamente porque assume a forma de teoria política, de ciência
da política e da história.
Página 171
Princípios e Procedimentos
Portanto não se deve apenas rejeitar a redução feita por Bobbio da concepção
marxista do Estado, a partir de Marx e Engels; mas, se a teoria social elaborada por
eles é aquela relembrada por Togliatti, deve-se dizer que toda a sua obra é uma
ciência integral da política. Aliás, é o que afirma a tradição comunista italiana a qual,
longe de poder esclarecer as dúvidas — se existe até mesmo uma doutrina marxista do
Estado — define a forma como a ciência da política. Que o Estado, organismo sintético
da política e objeto principal de sua ciência, seja questionado pelo marxismo no
interior de uma teoria geral da revolução, é certamente uma particularidade
metodológica e epistemológica do marxismo. Mas é sobretudo a conseqüência, no
plano teórico, do fato de que é muito menos possível separar no plano histórico, a
partir da época do imperialismo, o Estado instituição dos processos de sua
transformação revolucionária. O marxismo procede, no plano teórico, na medida em
que ajusta o processo lógico e o processo histórico. Este, justamente na época do
imperialismo, tem o seu elo fundamental na união que liga irreversivelmente o Estado
à revolução.
Concluindo: não só parece surpreendente a pergunta se existe uma doutrina marxista
do Estado, mas deve-se acrescentar que não se vê onde apoiar uma ciência política
capaz de intervir nos processos da atualidade, a não ser pela religação praticada pelo
marxismo entre teoria da história e teoria da política. Portanto, longe de faltar uma
doutrina do Estado na época do imperialismo, o marxismo como tal assume a forma de
ciência integral da política.
Atualmente, na medida em que todo o movimento da história está caracterizado por
conflitos e contrastes emergentes dos “blocos de hegemonia”, grandes argumentos
coletivos, formas organizadas pela consciência e pela vontade, já lhe imprimem uma
orientação determinante. Nesta base é possível o autêntico conhecimento da história
(a história como história mundial e a unificação de sua teoria). A ela se acrescenta
uma ciência integral da política exatamente porque todo o processo parece estar
separado por temas coletivos organizados e dominados desde já pelos elementos da
consciência e da vontade. Esta ciência decorre, com certeza, cada vez menos da mente
do próprio “filósofo individual” e está cada
Página 172
vez mais incorporada nos organismos que reúnem os protagonistas do processo: nasce
o “pensador-coletivo”, incorporando em si a ciência do processo. Mas isto nada mais é
que uma confirmação da necessidade de uma ciência que reúna teoria e praxis,
instituições e processos, lógica e história, segundo um postulado fundamental do
marxismo. Portanto, também por este caminho confirmam-se tanto o seu caráter
básico para qualquer teoria política desejada, quanto o valor de seu desenvolvimento
em forma de ciência da política e da história.
Da forma como se recompõem assim história e liberdade, creio que aí se encontre a
resposta mais ampla às preocupações levantadas por Bobbio em termos de
democracia. Bem verdade que não é uma resposta elaborada, mas não faltam os
princípios para a elaboração necessária. Assim, assinalada a centralização da teoria da
hegemonia na própria concepção política, Gramsci não deixa de advertir que “entre os
tantos significados de democracia, o mais realista e concreto parece-me ser aquele em
relação ao conceito de hegemonia. No sistema hegemônico — continua — existe
democracia entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos, na medida em que o
desenvolvimento da economia e, portanto, a legislação que expressa este
desenvolvimento, favorece a passagem molecular dos grupos dirigidos para o grupo
dirigente”.[Nota 15] Assim, fixados estes princípios parece-me estar aberto o caminho
jura incorporar ao socialismo todos os procedimentos indicados por Bobbio (a herança
irrenunciável da liberal-democracia) e tantos outros.
Que isto nem pareça um esforço de ecletismo, pois o marxismo, na forma que o
vimos, propondo e que é própria da tradição comunista italiana (“tradução do
leninismo em linguagem histórica italiana”), caracteriza-se, no plano teórico, nem mais
nem menos como “a organização crítica do saber sobre as necessidades históricas que
substanciam o processo de desenvolvimento da sociedade humana; não é o
ajustamento de uma lei natural que se desenvolve ‘absolutamente’, transcendendo o
espírito humano”
Página 173
Os paradoxos de Bobbio
Do quanto viemos afirmando, decorre que os problemas da liberdade e da
democracia deverão ser repropostos a partir das características da atualidade. Isto é,
eles deverão ser repensados em relação às leis de movimento do presente e às
características de fundo do processo histórico em ação. Para Bobbio, este é sem dúvida
o horizonte onde se colocam as suas indicações, não menos que suas preocupações.
De fato, parece evidente que colocando o problema da liberdade como problema da
democracia no socialismo, ele individualiza o presente como época de crise orgânica e
de passagem de uma formação social para outra, indicando no socialismo a sociedade
para a qual tendem as leis de movimento no processo histórico em ação.
Mas, das características do presente reivindica-se apenas uma tendência para a
sociedade socialista, ou também para a caracterização democrática de seu sistema
político? Neste ponto emergem as preocupações principais de Bobbio quanto aos
destinos da democracia, pois ele considera que as tendências prevalecentes concorrem
para a formação de uma sociedade socialista, mas nem por isto também democrática.
Bobbio lembra que muitas vezes foi-lhe dirigida a acusação de pessimismo histórico, e
ele a rejeita com firmeza. Qualquer que seja o adjetivo adequado à sua visão do
processo, vejamos concretamente como lhe parecem funcionar as coisas. Neste ponto,
devem ser discutidos aqueles itens que ele próprio denomina de “paradoxos da
democracia”.
Pode-se partilhar a opinião segundo a qual, enquanto aumenta a necessidade de
democracia, acentuam-se as condições objetivas desfavoráveis a ela? Consideremos
uma por uma as tendências que Bobbio indica na sua afirmação.
Em relação à primeira, parece-me que Bobbio confunde dois tipos de problemas
diferentes. Se considerarmos a sua afirmação “nada é mais difícil que fazer respeitar
as regras do jogo democrático nas grandes organizações”, com relação aos
procedimentos políticos da democracia, a afirmação parece inexata, ou melhor, o
contrário é verdadeiro: nos países que, na ótica de Bobbio, devemos considerar como
democráticos por excelência, quanto maiores são as dimensões da organização, tanto
mais desenvolvidos e inciPágina 174
sivos se apresentam os procedimentos democráticos (basta lembrar a Inglaterra ou os
Estados Unidos).
Ao invés disso, a afirmação de Bobbio possui um valor geral se referida à eficácia
destes procedimentos em promover a mudança política efetiva nestas realidades. Isto
sim torna-se cada vez mais difícil nas “grandes organizações”. Mas por que? Pela
crescente divergência entre a demanda de uma democracia e suas condições objetivas
de possibilidade? Não me parece. A mudança das direções políticas e dos grupos
dirigentes em relação à qual os procedimentos democráticos são os mais auspiciosos, e
certamente medem a progressiva incidência ou ineficácia, é seguramente muito mais
difícil nas grandes organizações porque nelas os procedimentos são moleculares. Nelas
a mudança ocorre por degeneração e reclassificação e só exepcionalmente por
oposição e cisão. Isto decorre de uma maior homogeneidade e compatibilidade das
“grandes organizações”, do caráter coeso e hegemônico dos elementos de direção e,
em resumo, do maior volume e desenvolvimento da “vontade organizada” em
determinar a estagnação ou a mudança. Mas, deve-se então afirmar que é exatamente
nas “grandes organizações”, por serem muito mais desenvolvidas, que em média
pesem mais os elementos da consciência e da vontade e, em definitivo, as massas. O
verdadeiro paradoxo é que, além das aparências, existe precisamente nelas muito
mais democracia que nas sociedades capitalistas menos desenvolvidas, se com o
conceito de democracia entendemos medir o peso efetivo exercido pela vontade dos
indivíduos e das massas, e não apenas as formas de manifestação ou os
procedimentos instituídos para expressar e fazer valer esta vontade.
Quanto à contradição crescente entre a democracia por um lado, e, por outro, a
burocracia e a tecnocracia, pensamos em primeiro lugar que devemos considerar os
dois problemas ao mesmo tempo, porque burocracia e tecnocracia não são nada mais
que graus diferentes do mesmo fenômeno; em segundo lugar, também neste ponto
discordamos sensivelmente de Bobbio.
Se as coisas fossem como ele as apresenta, realmente não existiria uma solução para
o problema da democracia socialista, a não ser na perspectiva da extinção do Estado,
que é precisamente a perspectiva na qual ele não acredita, e que reprova ao marxismo
como uma utopia deléteria, responsável por seus atrasos na questão da doutrina do
Estado e reflexão sobre a democracia. Ou então, assim como em Weber, recalca a
teoria da burocracia e a hipóPágina 175
tese de burocratização universal, queira-se ou não aderir também à hipótese
weberiana da solução carismática e elitista dos problemas políticos da sociedade
contemporânea. De qualquer maneira, Bobbio não pode afastar de si a suspeita de
pessimismo e, no fundo, de nostalgia pela sociedade liberal.
Mas, além disto, também em termos de burocracia, parece-me necessário distinguir
dois aspectos do fenômeno e colocar em discussão a afirmação principal de Bobbio,
que, depois de ter isolado o problema e tê-lo reduzido às suas aparências técnicoformais, afirma que a burocratização é como tal antidemocrática, porque, por
definição, a burocracia é “um aparato de estrutura hierárquica... de poder descendente
e não ascendente.”
Não há dúvidas de que nas sociedades contemporâneas se desenvolve uma
burocratização crescente. Se desejamos ligar o fenômeno a categorias históricas
determinadas, devemos remontar às características do capitalismo monopolista de
Estado, forma econômico-política então dominante, a qual confia à crescente e
inusitada extensão dos aparatos de reprodução ampliada pelo impulso do Estado, a
reprodução e a extensão das relações de produção capitalistas.
Sob um certo aspecto, ligado à extensão necessária da divisão técnica do trabalho, o
processo é realmente irreversível e assume a forma de reclassificação e padronização
do trabalho intelectual nas hierarquias técnicas onde se situam, no alto, as premissas
da tecnocracia. Mas, podemos afirmar que ainda sob este aspecto, pelo qual somente
o processo é irreversível, burocracia e teconocracia sejam as fontes do novo
autoritarismo? Pelo contrário, estas são expressões formais e um dos principais
veículos pelo modo em que vêm sendo incorporadas no processo de reprodução e
reclassificação da sociedade dividida em classes. Ademais, surgem sempre com maior
evidência e como fatores de crise mais que de estabilização da sociedade tardiacapitalista, seja porque no capitalismo monopolista alimentam sempre mais a
insubordinação social das classes médias, seja porque este tipo de extensão dos
aparatos de reprodução ampliada, expressão da tendência orgânica do modelo de
desenvolvimento monopolista na depressão do trabalho produtivo, reduza
progressivamente a própria eficiência do sistema capitalista.
Página 176
Os intelectuais e as massas
O fenômeno assim enquadrado, o problema dele decorrente não é certamente o de
inventar os procedimentos adequados para garantir o funcionamento das instituições
representativas e o controle político da burocracia por parte das forças políticas como
tais. Que outra coisa são as instituições democráticas e as próprias forças políticas
senão sedes e seções de padronização do trabalho intelectual? E como pode ser
resolvido o problema enquanto a política permanecer confinada dentro de seu
“separatismo” capitalista e separada dos processos e aparatos delegados para a
privatização do “negócio geral”?
O problema da luta contra a burocracia e a tecnocracia como veículos de um novo
autoritarismo parece-me ser outro. Estas ameaças nascem, no fundo, da confirmação
e destinação do trabalho produtivo subordinado e da multiplicação dos aparatos
superiores de organização das massas, dentro e fora da produção, para obter delas a
descomposição, o isolamento econômico-corporativo, a subordinação e a passividade.
São estes os problemas a serem enfrentados na luta contra a burocracia, a tecnocracia
e o novo autoritarismo. E estes conduzem à necessidade de que a classe operária, as
forças sociais e políticas democráticas, sejam capazes de elaborar uma perspectiva de
reforma dos aparatos de reprodução social, e transformação do próprio relacionamento
entre intelectuais padronizados e a classe operária, entre intelectuais e massas que
saibam, enfim, promover um deslocamento democrático de massa das classes
intelectuais que constituem hoje em dia os quadros dos aparatos burocráticos por
excelência.
Isto é não apenas necessário, mas parece sempre mais provável. Esta perspectiva de
fato emerge com força, seja dos processos crescentes de insubordinação social das
classes médias intelectuais, que temos indicado como um objetivo definido da
padronização do trabalho intelectual, seja pela experiência avançada, por exemplo, no
sofrimento da sociedade italiana nos últimos dez-quinze anos, da relação cada vez
mais estreita, a esta altura do desenvolvimento histórico entre eficiência produtiva do
sistema econômico e transformações democráticas dos aparatos de reprodução social
além das bases produtivas e das relações de produção. Portanto, não partilhamos a
perspectiva pessimista de Bobbio quanto ao divórcio fatal entre burocracia e
democracia e quanto à burocratizaPágina 177
ção universal. Parece-nos que também o problema da burocracia deve ser enfrentado
de maneira diferente das perspectivas de Bobbio, e que isto é possível exatamente
porque o significado principal dos processos históricos que caracterizam o presente é
oposto àquele considerado por Bobbio.
Tocamos assim no tema do último “paradoxo da democracia”: existe realmente um
“contraste crescente entre processo democrático e sociedade de massa?”. Não
desejamos que a afirmação de Bobbio represente mais uma vez os elementos de uma
crítica romântica da sociedade de massas. O certo é que, mesmo com base no que
temos afirmado até então, a “sociedade de massas” já hoje, pelas contradições que a
percorrem, os processos que nela se apresentam, parece-nos também estar carregada
dos significados de uma nova liberdade e não apenas de ameaças mortais para a
democracia.
Já afirmamos, no início deste parágrafo, que a sociedade de massas está de qualquer
maneira caracterizada por um tal desenvolvimento da média intelectual (da qual não
se pode desconhecer o valor progressista, a não ser que se mantenham as repulsas
aristocráticas contra qualquer forma de conformismo, alimentando a ilusão — esta sim
utópica e não sei até que ponto progressista — de uma sociedade auto-regulada
enquanto privada de qualquer elemento e forma de significado e direção!) e por uma
tal extensão de elementos de consciência e vontades organizadas que nela se
encontram os objetivos pressupostos de uma nova liberdade. O verdadeiro problema
que se apresenta a esta altura é o da articulação autônoma e pluralista destes
elementos e formas de consciência e vontade organizadas e, neste sentido, existe o
problema de um novo conformismo (ou seja, de uma forma inédita de liberdade
solidária).
Concluindo: na medida em que a crise geral da sociedade capitalista, a esta altura de
sua evolução, indica a necessidade de sua reorganização integral em bases socialistas,
como o próprio Bobbio reclama na linha de seu ensaio, parece-nos que o problema da
democracia (aquela a ser defendida não menos que aquela nova a ser criada) se
entrega inteiramente às maneiras, às formas, à pluralidade dos protagonistas da
transformação socialista e da passagem para a nova sociedade. E assim, consideramos
que devem ser reajustados concretamente os aspectos e os problemas institucionais e
processuais da democracia socialista, com os processos de transição para o socialismo.
Página 178
Um debate que deve prosseguir
Neste ponto do discurso devemos receber a advertência de Bobbio quanto à
necessidade de ser um “bom marxista”, de não ser “penas marxista” e, se possível,
fazê-lo com carinho. Creio ser evidente, pelo que dissemos até agora, porque este
problema se coloca aqui e porque, uma vez esclarecida a problemática da transição
para o socialismo (que não é outra coisa senão a tematização proposta por Bobbio
para o nexo democracia-socialismo) na perspectiva teórica do marxismo, não apenas
não existam dificuldades, mas até seja necessário e totalmente isento de equívocos
(acreditamos) acolher as indicações úteis que surgem no ensaio de Bobbio. Isto é, fica
evidente o âmbito no qual se coloca — na transição democrática para o socialismo — a
necessidade, para todo o círculo de forças envolvidas no processo, de incorporar
procedimentos e instituições da democracia política, segundo as formas em que, ao
apropriar-se dela, estendê-la e reclassificá-la, elas se recompõem em uma articulação
pluralista por ser, no desenvolvimento das forças produtivas e nas particularidades
históricas dos grupos sociais e das classes, orgânica.
Em suma, não existem riscos de ecletismos ou de mediação abstrata de modelos
processuais, pois é o caráter do processo ao qual aderimos que coloca à classe
operária o problema de religar suas instituições políticas e teóricas a seus valores, às
instituições políticas, às tradições culturais, os valores ideais de outros componentes
do novo bloco histórico. Em um vasto desenho de transformação democrática e
socialista do nosso país parece-nos, portanto, que a perspectiva política de Bobbio
individualiza um componente autônomo do processo de forma parcial, embora
essencial. Na medida em que a teoria política Marxista que vimos expondo é
sustentada por este desenho e por sua vez o alimenta, a sua adesão a ela nos permite,
acreditamos, uma disponibilidade plena para o debate, mantendo com paixão uma
posição teórica que consideramos rigorosa, mas também capaz de entender
profundamente as razões do interlocutor e a validade de suas posições.
Mas, se tudo isto tem um sentido, o debate mais útil deveria principiar aqui, quando
o discurso do método está de certa forma exaurido e foram experimentadas as
possibilidades de entendimento e de troca decorrentes dos respectivos modelos
teóricos, caso se
Página 179
esteja disposto a examinar juntos as condições que tornam possível uma transição
democrática para o socialismo. Absorvendo este dever, poderemos verificar a validade
da definição assumida pelo marxismo como “organização crítica do saber das
necessidades históricas que substanciam o processo de desenvolvimento da sociedade
humana”, no caso específico italiano. Bobbio poderá fazer valer as razões que impõem
ao socialismo a necessidade de incorporar e reelaborar os conteúdos válidos da
tradição democrática e liberal à qual ele se alia. Mas isto, obviamente, fica para uma
outra oportunidade.
Notas
Nota 1 – página 156
Além das indicações do “Quaderni filosofia” de Lênin, deriva sobretudo de Gramsci o
impulso do marxismo teórico italiano em reconsiderar Hegel e reler Marx da ótica das
relações Marx-Hegel, e o próprio Hegel da ótica temática de Marx. Isto porque, tanto
na consideração de Lênin quanto na de Gramsci, e não apenas na visão de Marx que
era contemporâneo de Hegel, se entrevê no conjunto da filosofia hegeliana a
expressão mais desenvolvida da articulação complexa da formação social-capitalista,
em virtude da compreensão que Hegel teve do seu domínio do abstrato, da articulação
de política e economia, da centralização da contradição. Disto decorre um interesse
marcante também pelos aspectos singulares da filosofia hegeliana que interessam aos
setores particulares da sociedade capitalista, todavia sempre da ótica da conexão
estabelecida entre a filosofia hegeliana e formação social-capitalista.
Gramsci, por exemplo, falando da concepção hegeliana dos partidos como “trama
privada” do Estado, diz: “Ela deriva historicamente das experiências políticas da
Revolução francesa e devia servir para dar uma maior concretização ao
constitucionalismo. Um governo com o consenso dos governados, mas com o consenso
organizado, não genérico e vago como se afirma no momento das eleições: o Estado
tem e pede o consenso. Mas também “educa” com as associações políticas e sindicais,
que no entanto são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe
dirigente. Em um certo sentido Hegel, desta forma, já supera o puro constitucionalismo
e teoriza o Estado parlamentar, com o seu regime dos partidos.” (A. GRAMSCI,
Quaderni del Cárcere, vol. I, Torino, 1975, p. 56). Portanto, a razão do interesse
recorrente dos marxistas por Hegel é evidente: em que outro pensador encontrar-se-ia
todo um sistema de categorias voltadas para reconduzir a substância do Estado ao
princípio da organização e da “educação” dos cidadãos em uma relação crítica evidente
para com o atomismo crescente do processo capitalista e no esforço desmesurado de
recompô-lo politicamente em unidade?
Pelas características e importância da literatura marxista mais recente dedicada na
Itália em reconsiderar Hegel e a relação Marx-Hegel, precisamente com a intenção de
elaborar as formas que destacam o processo histórico atual e, entre elas, a forma da
política, eixo do giro do domínio abstrato — cf. BIAGIO DE GIOVANNI, Hegel ed il
tempo storico della società borghese, Bari, 1971: REMO BODEI, Sistema ed epoca in
Hegel, Bologna, 1975; ROBERTO RACINARO, Realitá e conciliazione in Hegel, Bari,
1975. Na literatura estrangeira, recentemente traduzida para o italiano, deve ser
lembrado pelo menos MANFRED RIEDEL (Hegel, fra tradizione e rivoluzione, Bari,
1975) que baseia sua interpretação em um uso atento da nova edição Hilting della
Filosofia del diritto de Hegel (aliás, também Bodei não o faz por menos).
Nota 2 – página 158
ALDO ZANARDO, Filosofia e socialismo, Roma, 1975, pp 170, 175,
Nota 3 – página 159
Cesare Luporini — Dialettica ematerialismo, Roma 1974, p. XLIII.
Nota 4 – página 164
Quem desejar uma proposição menos esquemática e sintética desta linha de leitura da
teoria leninista do partido, leia a introdução de Leonardo Paggi e Max Adler, II
Socialismo ed i Intellectuali, Bari, 1974.
Nota 5 – página 165
A. GRAMSC1, Quaderni. cit. Vol. III, pp. 1566-1567.
Nota 6 – página 166
Op.cit., Vol III, p. 1627.
Nota 7 – página 166
Ivi. pp. 1733-1734.
Nota 8 – página 166
Op. cit., vol. III, p. 1522.
Nota 9 – página 167
Op. cit., Vol. I, p. 132.
Nota 10 – página 168
Op. cit., Vol. I, p. 662.
Nota 11 – página 168
Op. cit. Vol. I, pp. 132-133.
Nota 12 – página 170
V. agora P. Togliatti, II Partito, Roma 1972, pp. 16-17.
Nota 13 – página 170
P. Togliatti Gramsci Roma 1967, . pp. 162-163.
Nota 14 – página 170
Idem pp. 176-166.
Nota 15 – página 172
A. GRAMSCI, Quaderni, op. cit., Vol 11, p. 1056.
Nota 16 – página 172
A. GRAMSCI, La nuova ordine, Torino, 1958, p. 191.
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