VACCA, Giuseppe. Discorrendo sobre socialismo e democracia, IN, O Marxismo e o Estado, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, (Biblioteca de ciências sociais; v. 8), p. 139-179. O artigo de Giuseppe Vacca apareceu em “Mondoperario” em dois capítulos, nos números 1 e 2 de 1976. Página 139 Discorrendo sobre socialismo e democracia Giuseppe Vacca O ensaio de Norberto Bobbio publicado nos números 8-9 e 10 desta revista toca no conhecimento do extraordinário aceleramento tanto da crise geral da sociedade capitalista quanto da necessidade de dar vida a uma nova sociedade que Bobbio prognostica como sendo de tipo socialista. Já na feliz provocação de seus títulos, como ocorre freqüentemente nos seus artigos, Bobbio deixa entrever uma profunda insatisfação dos modelos existentes de sociedade socialista. “É verdade — diz ele — que a forma de Estado atuante nos países socialistas é, quanto ao Estado representativo, uma alternativa, embora inaceitável. Se este fosse realmente o Estado novo do qual fora feita a apologia antes que se tornasse de domínio público e, portanto, a descoberta de sua degenerência não fosse mais retratável, devemos nos contentar com o antigo”. Esta afirmação é posteriormente esclarecida por outra, mais analítica, que vem pouco depois: É preciso reconhecer que um modelo alternativo de organização política, alternativo ao Estado parlamentar, um modelo que possa denominar-se “democrático e socialista” em contraste com o modelo tradicional “democrático-liberal” — qual seja o seu sentido alternativo em relação a alguns valores como a liberdade individual e o poder difuso, nos quais um socialista não pode deixar de acreditar, mais adiantado que o precedente embora ao mesmo tempo atuante — não existe, ou pelo menos é inexistente em todo o conjunto das particularidades com as quais foi elaborado através dos séculos o sistema político da “burguesia”. Página 140 A esta insatisfação acrescenta-se uma indicação positiva, segundo a qual uma sociedade “democrática, e socialista” como, por exemplo, no caso concreto do nosso país, o sistema político representativo pode ser desenvolvido e levado a uma conclusão efetiva, não subvertendo-o de imediato na raiz. “Nunca duvidei — diz Bobbio que o sistema representativo tivesse limites .reais e insuperáveis em uma sociedade capitalista selvagem como a nossa; a soberania do cidadão encontra-se limitada pelo fato de que as grandes decisões quanto ao desenvolvimento econômico, ou não, alcançam os órgãos representativos ou, quando chegam a eles, são tomadas em outra sede, em uma sede onde a grande maioria dos cidadãos soberanos não tem a menor voz ativa. Mas mesmo sob este aspecto, o defeito do sistema não é o de ser representativo, mas sim o de não sê-lo suficientemente.” Nesta linha de pesquisa não há quem não veja o risco da hipótese do sistema parlamentar representativo como a única forma de democracia política e, portanto, como modelo abstrato e a priori, para a definição da democracia socialista, por demais tendencioso e parcial para a avaliação do caráter democrático das sociedades socialistas existentes e daquelas desejadas. No entanto, não se pode deixar de partilhar a inspiração fundamental do discurso de Bobbio, preocupada em sublinhar que a sociedade socialista e o próprio processo histórico de sua passagem terão características democráticas adequadas às necessidades vitais do desenvolvimento econômico, político e moral de sociedades complexas como a nossa, na medida em que a nova sociedade esteja caracterizada pela consolidação e extensão da democracia, incluindo a democracia representativa. A democracia dos produtores Todavia, não concordo com a primazia atribuída por Bobb o e6 democ en a representativa nomo s stema de recomposição política de todo o corpo social. Entre outras coisas, mesmo em uma “democracia de massas” como a nossa, tanto nos mecanismos institucionais previstos pela Constituição quanto e principalmente nos processos reais da vida política e das lutas de classe, pode-se fundamentalmente perceber que, desde agora, as instituições representativas não são mais as sedes ou os artífices principais da recomposição Página 141 política. E, por outro lado, o próprio Bobbio alude à democracia de uma sociedade socialista ou à fase de transição, todavia não em termos puros e simples de democracia representativa, mas pendendo para um entrelaçamento de uma democracia delegada com várias formas de democracia direta (seria também melhor falar de formas de uma democracia “de baixo”), portanto para um sistema democrático de tipo novo, mais avançado, que seria denominado “democracia organizada”. De fato, após ter demarcado os limites e não a generalização da democracia direta, Bobbio demonstra auspiciar o desenvolvimento de novas formas de “democracia organizada” — descontando a prevalência da democracia representativa — já que, como ele afirma, “nos limites em que a democracia direta é realizável, democracia representativa e democracia não representativa não são de fato incompatíveis. Pelo contrário, se é verdade que a segunda pode integrar utilmente a primeira, é também verdade que não pode substituí-la.” A verdade é que seu discurso não pode avançar muito mais porque Bobbio renuncia orientar a pesquisa exatamente onde deveria ser orientada: para as experiências históricas de uma “democracia dos produtores” e de uma “democrecia partindo de baixo”. Certo é que, até hoje, aurorais ou falidas, embora insuficientes, as experiências, no seu entrelaçamento com a democracia representativa e nas solicitações positivas que lhe são impressas, já indicam, a meu ver, as linhas de desenvolvimento de uma “democracia organizada”, como uma forma mista, provavelmente adequada às evoluções de uma sociedade democrática e socialista. Nesta direção, entre outras coisas, o discurso sobre os procedimentos e as instituições da democracia se reajustaria aos processos históricos de transformação das sociedades capitalistas em sociedades socialistas, evitando o risco de uma modelagem abstrata. Assim, não se daria a impressão de querer de qualquer maneira tapar o sol com a peneira, definindo de uma vez por todas a democracia, ainda que na sede de uma ciência da política, embora a priori. Bobbio, no entanto, desembaraça-se rápido demais do problema da democracia dos produtores; considera que suas únicas experiências históricas, “o socialismo gildista” e o “sovietismo”, sejam inseríveis na problemática da “democracia industrial”. E, de forma simplificada, objeta: “o erro no qual sempre caíram os teóricos da democracia industrial é aquele de acreditar na possibilidade de resolver a democracia política na democracia econômica e o auto-governo Página 142 dos cidadãos no auto-governo dos produtores. O erro decorre de acreditar que não existam problemas do cidadão distintos dos do trabalhador (ou do produtor). Em vez disso, estes problemas existem e são exatamente os da liberdade, das liberdades civis e políticas”. Pode-se aceitar o esquema geral no qual Bobbio inscreve esta crítica. De fato, ele conclui recordando que “se a emancipação política é insuficiente, é de qualquer maneira necessária, não podendo existir emancipação humana que não ’passe pela emancipação política. Emancipação esta — acrescenta Bobbio — que requer o desenvolvimento, a ampliação, o reforço de todas as instituições das quais nasceu a democracia moderna, não trazendo nenhuma vantagem, embora momentânea, da sua suspensão.” A experiência dos conselhos Mas, a nível dos problemas de liberdade assim como se apresentam já hoje na sociedade italiana, e da forma pela qual vão se configurando nela as instituições de democracia dos produtores (conselhos de fábrica, conselhos de área), podemos realmente dirigir a esta nova trama de “democracia de baixo” a crítica para a resolução da democracia política na democracia econômica? Evidentemente, não pretendo propor como alternativa à linha de Bobbio aquela de um sovietismo tout-court como fo me nstitucional remetada finalmente pela democracia socialista. A grosso modo, penso saber o quanto o sovietismo dissolveu-se historicamente em “democracia industrial” ou, pior ainda, em corporativismo puro e simples. Sei bem que o limite corporativo é uma ameaça sempre pendente sobre todas as instituições de “democracia dos produtores”. E digo mais: paralelo ao “cretinismo” parlamentar e extraperlamentar, sei perfeitamente que existiu e existe o “cretinismo” de conselho. Mas, vejamos concretamente quais são os ensinamentos que podem ser tomados de algumas experiências italianas recentes. Existe ou não na Itália, já há decênios, um deslocamento progressivo do movimento operário e sindical dos temas do desenvolvimento econômico, das suas características e contradições, da sua correção e controle democrático? Esta linha parte ou não da classe operária e da fábrica, isto é, da maneira na qual a classe operária Página 143 italiana vem juntando os problemas salariais aos da estrutura da relação do trabalho, do sistema de fábrica (organização do trabalho e sistema de controle e comando sobre a produção), das reformas econômicas e políticas e, portanto, colocando no centro das suas lutas toda a esfera de produção e suas ligações com a distribuição e com os aparatos da reprodução ampliada? Os conselhos, as noves instituições de poder democrático dos produtores, estimularem ou impediram este processo? Ou não teriam, eles próprios, nascido dos impulsos da classe operária para superarem suas divisões e unirem-se, superando o próprio corporativismo de setores e complexidade das classes? Não é através destas novas instituições que se acelera, ou não, o amadurecimento da classe operária como uma nova classe geral, capaz de colocar conscientemente os problemas do desenvolvimento no centro do conflito e da própria visão do processo histórico, tornando-se portanto classe do governo? Dando ainda um exemplo: quem, a não ser os conselhos operários, tomou a iniciativa antifascista, assumindo em primeiro lugar a obrigação de defender a democracia republicana nestes anos, e isto nas zonas nevrálgicas da estratégia de tensão? Onde, a não ser na fábrica, e graças às novas instituições unitárias democráticas dos produtores, ocorreu _a unificação política da classe operária italiana, dos operários católicos e dos leigos e marxistas diante do desafio fanfaniano, no referendum para a abolição do divórcio? Poderíamos multiplicar os exemplos. Todavia, a experiência acumulada é insuficiente para a realização de uma elaboração, de um novo modelo de democracia que possa ser acolhido como a democracia do socialismo. Mas, aqueles que nos interessava indicar como próprio por parte das novas instituições de democracia dos produtores, encontram como defesa e desenvolvimento, “os direitos de liberdade, das liberdades civis e políticas”, que, exatamente por obra deles parece progredir hoje para uma democracia política. Portanto, o discurso sobre a democracia dos produtores não pode ser restringindo aos limites por demais estreitos aos quais Bobbio os confina. Emancipação política e luta de classes Isto não invalida a afirmação geral de Bobbio segundo a qual Página 144 “não pode existir uma emancipação humana que não passe por urna emancipação política.” Pelo contrário. Apenas encaminho-a por terrenos mais amplos que aqueles indicados por Bobbio. A emancipação política que conquista, defende e desenvolve os direitos de liberdade em sociedades dominadas por grandes potentados econômicos e estruturas de poder com tendências a esvaziar e tornar vãos até o valor representativo e as possibilidades de recomposição política e controle das instituições da democracia dirigida requer — a esta altura do desenvolvimento histórico — muito mais que a definição dos procedimentos da democracia política e o empenho de salvaguardar as instituições representativas. E esta confia, precisamente, muito mais no crescimento, no consenso, no desenvolvimento da democracia dos produtores. Ademais, a emancipação política como dimensão não eliminável do processo de emancipação humana, indica a necessidade de uma potencialidade inusitada e de uma extensão hiperbólica dos instrumentos de agregação, de associação autônoma, de recomposição dos trabalhadores, bem além das próprias instituições históricas do movimento operário: sindicato e partido. Estes últimos são insubstituíveis e proletários, sendo o trabalho assalariado e a atomização social e política pressupostos do “status” do cidadão que é, em suma, a desarticulação e a recomposição capitalista do Estado e da sociedade civil, política e econômica e a necessidade de iniciar pelo ser social e político atomizado dos produtores, para organizar ou a tutela dos seus interesses materiais ou sua intervenção autônoma na vida do Estado. Mas, a emancipação política que caminhe em direção à emancipação humana requer uma unificação política crescente bem além do voto, uma soberania bem superior àquela coincidente “com a área de poder da qual dispõem os órgãos representativos nos mais diversos níveis.” Para começar, trata-se de luta contra as formas de decomposição corporativa, subordinação, isolamento econômico e passividades impostas aos produtores pela divisão social do trabalho e pela forma molecular do domínio, elaboradas pelas classes capitalistas nos processos seculares de contrução da hegemonia e, justamente, incorporadas na divisão do trabalho. Por ser exatamente o resultado complexo destes processos o de descompor e subordinar os produtores peta dimisão social do trabalho e sua separação da política, isolada em aparatos de domínio antagônicos aos produtores e a eles impostos, sua recomposição unitária e, em definitivo, sua “emancipação humana”, derivam de sua recomposição política. E Página 145 esta é a profunda essência democrática do processo de formação de uma sociedade antagônica, orientada para a reabsorção da divisão social do trabalho e a superação das classes; em resumo, da sociedade socialista. Esta deriva da emancipação política, pois pressupõe a apropriação e a crítica das massas, das raízes do domínio, incorporadas na divisão social do trabalho e, portanto, o reconhecimento das formás políticas nas quais se inseria a mesma estratificação dos papéis sociais e das mansões produtivas. Ela decorre, pois, da unificação dos produtores na religação da gama infinita das formas de domínio por eles experimentados sob algumas leis de movimento e articulações institucionais, fundamentais à formação social capitalista. Em resumo, a emancipação humana decorre da emancipação política no sentido profundamente democrático, cuja lei fundamental da luta pelo socialismo e da construção de uma sociedade socialista é a da apropriação pelas massas da política: a recomposição unitária dos produtores através de sua religação com os meios de produção, a formação de uma economia regulada, a reclassificação da política enquanto expropriação do poder e forma antagônica separada de sua organização. Urna nova liberdade Portanto, embora a democracia do socialismo certamente não pareça antagônina ou alternativa quanto à democracia representativa, ela deixa, desde já, transparecer um processo de desenvolvimento e reclassificação seu (a partir dela), que confia, sempre mais, suas sortes à incorporação da política, redefinida nos processos da produção econômica e reprodução social, submetidos ao controle dos produtores unificados (colocados em urna relação fundamentalmente solidária e não mais competitiva entre si). Percebe-se desde já que a democracia do socialismo decorre do desenvolvimento da democracia dos produtores e da sua capacidade de re-classificar todas as outras formas de democracia até elevar concretamente os trabalhadores associados a nível de dominadores da retribuição orgânica social. Para a democracia do socialismo, a liberdade individual e a participação dos indivíduos é fundamental nas decisões coletivas. Mas, deve ser uma liberdade não mais competitiva (liberdade como poder do indivíduo em oposição aos outros indivíduos), nem Página 146 totalmente negativa (liberdade como faculdade ou desimpedimento por parte das potências econômicas e políticas), porém, uma liberdade que nasce da socialização progressiva dos indivíduos e dos grupos sociais, enriquecendo-se de conteúdos positivos, elevando-se até à participação e recomposição unitária do organismo social. Trata-se portanto de uma nova liberdade decorrente de uma multiplicação inusitada das formas celulares de recomposição dos produtores divididos e da sua religação na luta comum contra a forma de mercadoria, a estrutura do capital e os seus efeitos moleculares em toda a vida coletiva e individual; de uma liberdade que começa a constituir-se na derrubada da ligação antagônica de política e economia, que é a célula fundamental de todas as formas de domínio da sociedade atual. Tudo isto equivale à afirmação de que a medida dos desenvolvimentos democráticos do socialismo deve ser procurada na vida efetiva das instituições e nos procedimentos políticos, embora não separadamente de seu sentido com os processos sociais pelos quais os conflitos e as contradições particulares que surgem da divisão social do trabalho, são reconduzidos às suas matrizes comuns de classe, reconhecidos e praticados como conflitos de classe, tendencialmente recompostos para uma socialização progressiva do poder e da apropriação em massa da política. Ou seja, mesmo na sociedade socialista permaneceu por um longo período a medida efetiva do capital, do Estado e das classes sociais para avaliar seu caráter democrático, sendo aquela que devolveu a vida às instituições e aos procedimentos políticos para o incremento efetivo e o livre desenvolvimento dos conflitos e das lutas de classe das quais, certamente sob formas diversas e em um terreno novo em relação à sociedade capitalista, deve ter procedimento a recomposição política tanto quanto a emancipação humana dos produtores. Tudo isto tem por base um novo desempenho dos produtores, garantido e sustentado pelos institutos de sua recomposição política autônoma, de sua democracia. E, se olharmos profundamente, a insatisfação pelos limites e as degenerações da democracia nos países socialistas nos reconduz à paralisia ou à moderação da capacidade política das instituições democráticas dos produtores. Na medida em que estas vêm dirigidas do alto, comprimidas dentro de limites econômicos corporativos, delegadas à gestão do consenso mais que à promoção do desempenho dos produtores, eis que nem Página 147 mesmo a democracia representativa e os direitos de liberdade possuem uma vida plena e eficiente. Nesta perspectiva, se não existem dúvidas que a “emancipação política” em uma sociedade “democrática e socialista” necessita de qualquer maneira de instituições que sintetizem e centralizem os processos, as instituições particulares e os momentos de uma vida democrática sempre mais rica e articulada, é francamente difícil concordar que estes órgãos devam reproduzir em substância nem mais riem menos as características do parlamento, no sentido estrito da “democracia representativa”. Na nossa opinião, isto é pouco provável além de não ser auspicioso. Por uma doutrina marxista do estado Todavia, as linhas tomadas até agora para exame do ensaio de Bobbio merecem, substancialmente, mais consenso que desacordo. Pois, no fundo, ele pede que se aprofunde a indagação sobre os procedimentos e as instituições necessárias para garantir uma sociedade “democrática e socialista” e, qual sejam as respostas, não há dúvida de que em toda a esquerda italiana (excluídos os grupos extremistas transcuráveis), em todo o movimento operário, existe uma concordância quanto a esta exigência. E ainda mais: existe um reconhecimento concordante da boa qualidade do sistema democrático previsto pela nossa Constituição e a convicção do seu adequamento substancial à transformação socialista do nosso país. Donde um profundo empenho para que venha a ser aplicado, defendido e desenvolvido por inteiro. Na medida em que as preocupações e interrogações de Bobbio se dirigem para os partidos da classe operária, creio que encontrem plena acolhida, respostas afirmativas nada formais, e a verificação de uma prática e de um empenho político e teórico que vem de trinta anos até agora. Na verdade, Bobbio sabe bem o quanto tudo isto é insuficiente. Conhece todo o peso da diferença, quando não da contradição, existente entre o caminho original da transformação democrática e socialista traçado e praticado pelo movimento operário italiano e a realidade das experiências e dos modelos existentes de “um socialismo historicamente realizado”. Sabe também que, apesar das intenções, a linha e a prática coerentes de uma transição democrática Página 148 para o socialismo, na qual estão empenhados todos os componentes do movimento operário italiano, os desenvolvimentos políticos mundiais são tais que alimentam o temor “das duras réplicas da história”. Bobbio acredita que estas eventualidades devam ser combatidas também no plano teórico e, portanto, pede um desenvolvimento fecundo de “uma doutrina marxista do Estado, centralizada na elaboração do nexo democracia-socialismo e capaz de fixar um modelo inegável e geralmente aceito de democracia, válido também para a sociedade socialista, de tal forma que alimente a hipótese de uma sociedade alternativa para aquela liberal-democrática, todavia aceitável pois é certamente democrática. De fato, Bobbio afirma que o socialismo ainda não regulou positivamente suas relações com a democracia, sobretudo devido a profundas insuficiências teóricas radicadas no miolo da tradição marxista, senão no próprio pensamento de Marx e Engels. “O pensamento socialista diz Bobbio - dirigiu por longo tempo sua atenção mais para os problemas da renovação da sociedade em sua complexidade, começando pelo socialismo utópico e não excluindo nem mesmo Marx e até aqueles da organização estatal.” Daí a conseqüência de “não existir um modelo alternativo verdadeiro e próprio de um Estado socialista”, afirma ainda Bobbio, esclarecendo que: “entendo-o como um modelo perfeito e acabado também nos detalhes como o foi o modelo de Estado representativo elaborado e aperfeiçoado pela grande tradição do pensamento liberal.” Pelo contrário, “os esforços do pensamento político socialista, principalmente os de inspiração marxista, concentraram-se sobretudo na crítica do Estado novo”. A gravidade desta conseqüência é que, segundo Bobbio, não se desenvolveu uma ciência marxista da política e não existe uma doutrina marxista do Estado. Aqui foram determinados “o prevalescentes, senão exclusivo, interesse dos teóricos do socialismo para os problemas da conquista do poder, onde o relevo dado ao problema do partido mais que ao do Estado é a convicção persistente de que, uma vez conquistado o poder, o Estado fosse um fenômeno de “transição”, isto é, estivesse, mais cedo ou mais tarde, destinado a desaparecer e, portanto, lhe fosse particularmente adequada aquela forma de governo que, por sua natureza transitória, é a ditadura (no sentido original da palavra, como governo extraordinário para períodos e eventos extraordinários)” Página 149 Tudo isto atenua as credenciais democráticas do movimento operário e quanto mais aumentam os temores e as demoras, tanto mais a necessidade da transformação socialista transborda do seio da crise geral da sociedade capitalista, recebendo de seu aceleramento a marca de uma urgência dramática. O assunto assim encaminhado, a diretriz das críticas bem como dos estímulos de Bobbio já não é mais tanto o movimento operário quanto, e sobretudo, o “marxismo teórico”, principal responsável pelos graves atrasos e pelas insuficiências do primeiro. E aí, Bobbio propõe um terreno de discussão do qual não partilho o modo de sua colocação dos problemas, assim como sua visão da teoria marxista, de sua forma, seus deveres, e das razões de seu atraso. O que é democracia Bobbio nega a existência de uma doutrina marxista do Estado verdadeira e própria; e, sobretudo, nega que o pensamento político socialista, em primeiro lugar aquele de inspiração marxista, tenha elaborado suficientemente uma teoria própria e positiva da democracia. Isto porque não colocou no centro de sua reflexão a democracia, compreendida como um conjunto de regras judiciárias voltadas para a obtenção de “certos resultados”. Pelo contrário, é de se crer que exista, neste ponto, um acordo teórico de base quanto ao significado do termo “entre todos aqueles que invocam a democracia, e se preocupam que o socialismo se pratique através da democracia e, uma vez praticado, governe democraticamente”. Este significado preponderante é aquele segundo o qual se entende por “democracia” um conjunto de regras que permitem a participação mais ampla e mais segura da maior parte dos cidadãos, seja de forma direta, seja indireta, nas decisões políticas, ou nas decisões que interessam toda a coletividade.” As regras são mais ou menos as seguintes: sufrágio universal, ativo e passivo, pluralismo político, princípio da maioria e respeito às minorias. Mas, certamente, não se pode incluir o pensamento político marxista nesta seleção, pois ele tem empenhado tradicionalmente suas melhores energias na crítica da democracia, mais que na elaboração de uma teoria positiva sua. Portanto, é sobretudo à tradição marxista que se dirigem as frases finais e polêmicas de Bobbio: “Não tenho nenhuma dificuldade Página 150 em admitir que este significado de democracia, que chamei preponderante, seja também um significado restrito. Porém, teria alguma dificuldade em admitir que, quando se fala de democracia tout-court, sem adjetivos, deseja-se (c seja útil) entender outra coisa. Aquele que entende outra coisa, seria melhor que o dissesse antecipadamente. E mais: nenhuma dificuldade em admitir que para que um Estado seja “verdadeiramente” democrático, não basta apenas a observância daquelas regras, mesmo que se esteja disposto a admitir que basta a inobservância de uma delas para que não seja democrático (nem verdadeiramente, nem aparentemente)”. No início, referi-me ao risco que com tal impostação se hipostatiza a democracia representativa como cânone da democracia tout-court. Na verdade existe a enunciação explícita destas hipóteses no ensaio de Bobbio, onde, em polêmica com Colletti, ele afirma: “Sistema parlamentar e garantia dos direitos de liberdade nasceram ao mesmo tempo no âmbito de uma concessão única e coerente do Estado, que agora costuma-se designar pelo termo de “constitucionalismo”. Até agora ninguém, no meu conhecimento, conheceu um regime que tenha suprimido o parlamento e mantido a liberdade; e nem mesmo um regime que tenha mantido o parlamento e suprimido a liberdade.” Como “argumento histórico”, ele adota esta afirmação exatamente no plano histórico, afirmação que parece não apenas opinável, mas também redutiva. Todavia, não é sobre isto que queremos discutir, assim como não tencionamos relevar a hipóstase do sistema liberal na definição de democracia política de Bobbio, bem conhecido, com o fim de enfatizar a implantação liberal do pensamento político de Bobbio, ou com o fim de contrapor ao modelo proposto por Bobbio um outro modelo de democracia. Ao Invés, desejamos desenvolver algumas reflexões quanto à fecundidade deste modo de proceder e impostar o problema das regras e das instituições da democracia, separando-o dos processos históricos e dos conteúdos das liberdades que, certamente através de regras e instituições, produzem pelo menos um incremento real da democracia. Teoria e história Para começar, recorremos também a um argumento de caráter histórico. Até o movimento comunista ter se defendido unitariamente Página 151 na contraposição da democracia proletária à democracia burguesa (contraposição de modelo a modelo), apesar de suas contribuições fundamentais à causa da democracia (basta pensar no peso principal sustentado na luta anti-fascista e anti-nazista), este não desenvolveu nem uma nova prática da democracia nos países onde estava no governo, nem uma contribuição teórica determinante para a “democracia do socialismo”. Quando, porém, começou a abandonar a ideologia do modelo, pelo menos alguns de seus setores foram mais expeditos tanto no plano da experiência quanto no terreno da elaboração teórica do nexo democracia-socialismo. E isto deveria ser suficiente para pôr de sobreaviso ambas as partes quanto à esterilidade da modelística no campo do pensamento político, onde o método histórico é fundamental. Ou seja, a necessidade de não separar a projeção jurídica e institucional da necessidade de enfrentar ’e resolver - certamente conforme os princípios, mas os princípios não são nunca “modelos” - os problemas da organização e do desenvolvimento da democracia, assim como vêm sendo apresentados pelos processos históricos concretos (com relação às particularidades muito variadas do desenvolvimento histórico das forças produtivas, das classes e das tradições nacionais.) A observação a ser feita com urgência refere-se portanto a este último problema, quanto à- necessidade de saldar os problemas da democracia nos processos’históricos e, portanto, de religar a teoria da política à teoria da história exatamente para evitar que a primeira decaia no abstrato e infecundo modelismo judicial e institucional. Quanto a isto, longe de concordar, discordamos sensivelmente de Bobbio, porque também sua concepção tecnológica de democracia, que prescinde da história, encontra-se na realidade incorporada a uma teoria da história. Qual? Se retornarmos por alguns instantes à sua definição de democracia, esta apresenta-se submetida a um emaranhado de conceitos segundo os quais os protagonistas da problemática política, são em definitivo, os indivíduos e o Estado. Estamos, pois, em plena ideologia liberalhistoricista da história, incapaz afinal de historicisar até o fundo as formas do Estado e, mais geralmente, da política, e menos ainda conceber os indivíduos diversamente de seu imediatismo empírico de células atomizadas no interminável e agitado oceano do mercado. A ela corresponde uma teoria política que não pode ir além das expressões Jurídico-institucionais das relações sociais, e que por isso tende a Página 152 resolver toda a problemática histórico-política como problemática jurídico-institucional. O caminho da crítica do Estado político lhe é impedido, não conseguindo historicisar nem a categoria jurídica, nem as formas institucionais e, aliás, assumindo subrepticiamente as formas burguesas do direito e do Estado como cânones hermenêuticos e de avaliação de todo o processo histórico. Que tal ideologia da história não seja aceitável por posições marxistas é óbvio, e isto, naturalmente, vale para o sentido que assim se instituiu entre teoria da história e teoria da política, bem como para a teoria política que dela decorre. Mas não é apenas isto que queremos objetar a Bobbio quanto à forma por demais rápida e a excessiva intolerância que demonstra para com o marxismo teórico, desvalorizado de forma muito drástica na nossa opinião, talvez dado o incômodo compreensível que ele sente pelas disputas escolásticas nas quais se debatem alguns de seus apoiadores. Como exemplo, tomemos uma delas: a polêmica entre Althusser e Lewis a propósito da teoria marxista da história. Os termos da discussão são conhecidos. Mas, sigamos a apresentação e a avaliação feita por Bobbio sobre ela. Se o marxismo teórico não estivesse viciado por um escolasticismo crescente e pelo abuso do princípio de autoridade, “não se explicaria — diz Bobbio — a incrível, insisto na “incrível”, disputa entre dois marxistas como John Lewis e Louis Althusser quanto a um problema deste tipo: se são os homens ou as massas que fazem a história. Lewis escreveu que “o homem faz a história”. Althusser atira-lhe em cima um panfleto para dizer-lhe que não: “Ce sont les masses qui font l’histoirme” (são as massas que fazem a história). Desafio que se encontre um cientista social fora do campo marxista — conclui Bobbio — que possa colocar-se seriamente um problema desta espécie.” Uma nova escolástica marxista? Não discuto que seja difícil encontrar um “cientista social” fora do campo marxista que leve a sério tal problema. Mas o problema não é absolutamente escolástico. Na verdade é fundamental. É o problema da teoria da história e não é difícil observar — também por estar muito claramente enunciado pelos dois contendores Página 153 que, enquanto para o primeiro a ciência marxista da história se resolve toda na historiografia e em seus conceitos (de tempo, espaço, eventualidade, causa, fator, etc... onde tudo quanto possa ser considerado como marxista, serão, no máximo algumas concessões sobre a importância dos interesses econômicos como “fator” histórico e a interação dialética entre estruturas e superestruturas), o segundo afirma que uma ciência marxista da história está ainda, em grande parte, por ser elaborada com base dos conceitos próprios e fundamentais do marxismo, como os do modo de produção, das relações sociais de produção, das forças produtivas, da formação econômico-social, etc..., considerando estes conceitos essenciais para a elaboração do material historiográfico dentro de uma concepção materialista da história, acreditando aliás que sem estes conceitos não se possa conhecer a história propriamente. Uma discussão desta espécie é realmente tão inútil e escolástica? O sentido e a extensão de uma contraposição nítida entre dois marxistas não está evidente, em relação à teoria da história, se um deles considera a identidade da história e da historiografia com a conseqüente impossibilidade de conceber as classes de outro modo que camadas sociais, faltando a compreensão da história como história das lutas de classes e, portanto, a possibilidade de uma crítica da economia e de uma teoria política; enquanto o outro tem no centro estes resultados ulteriores, considerando essencial para produzi-los um reconhecimento da história como história das lutas de classes e, portanto, procura no marxismo e na obra de Marx categorias adequadas à produção de um conceito autônomo de classes? É sintomático que Bobbio subvalorize o alcance de uma discussão desta espécie que objetive o desenvolvimento criativo do marxismo. Se os estudos sobre Marx tivessem ido adiante e a apropriação do seu campo teórico e da ruptura epistemológica ocorrida no campo da crítica de economia política tivessem já produzido uma ciência mais avançada da história, todos nós poderíamos estar favorecidos. E isto também seria útil para Bobbio, porque certamente uma teoria da história mais rica e explicativa que a liberal-historicista, submetida à sua teoria da política (que reduz a problemática política fundamentalmente às relações entre indivíduo e Estado), não permitiria a esta última restringir o problema da democracia aos seus revezes judiciários e institucionais. Infelizmente, nada disto existe e alguns marxistas se apressam em reler Marx para produzir os conceitos úteis para uma nova compreensão da Página 154 história. Serão realmente tão ingenuamente escolásticos como leva a crer o fato de “fantasiar” sobre textos de Marx, em vez de colocar a análise na realidade atual? Bobbio é um pensador sutil demais para negligenciar o fato de não se poder conhecer a realidade sem uma teoria da realidade. E a sua própria teoria da política demonstra um atraso enorme da ciência da história junto a uma profunda exigência de uma ruptura epistemológica que nos ajude a elaborar um conhecimento histórico mais completo. Então? Talvez devesse considerar com mais benevolência a “escolástica” dos teóricos marxistas. O valor da tradição Mas, afinal, o que significa esta “escolástica”? “Diante da constatada deficiência da doutrina marxista do Estado — afirma Bobbio — estar-se-ia induzido a pensar que o primeiro passo a ser dado seja o de estudar com instrumentos sempre mais perfeitos de análise a realidade atual, tanta a dos estados capitalistas quanto a dos estados coletivistas, com a finalidade de descobrir-lhes os defeitos de funcionamento, e tendo bem claros na mente os objetivos que se deseja alcançar.” “Ao contrário — observa Bobbio — ocorre ainda com muita freqüência que se pense ser o primeiro dever de um marxista procurar o que disse Marx.” Tudo isto lhe parece “escolástico”, em sentido estrito; isto é, conhecer a realidade mais pelas análises de Marx, bem ou mal, velhas de cem anos, do que por si mesmo. Portanto, está viciado pelo “abuso do princípio de autoridade”, por citações, pela marxiologia que são, afinal, resultado e causa de impedimentos e atrasos no desenvolvimento de uma doutrina marxista do Estado. Que estes atrasos existam, não há dúvida. Que uma marxiologia infecunda e redundante esteja se desenvolvendo, agravando-os em vez de preenchê-los, também é verdadeiro, sobretudo se observarmos a grande parte da produção acadêmica jovem e não apenas jovem, depois de ’68. Mas, tudo isso não nos convence da tese por demais simplificada, segundo a qual em vez de “explicar” as poucas páginas da teoria política de Marx, é preciso voltar-se para “o estudo com instrumentos sempre mais perfeitos de análise da realidade atual, etc...” É justamente aqui que surge o problema, quanPágina 155 do o desejaríamos resolvido. De onde tirar estes “instrumentos sempre mais perfeitos?” São exatamente estes que às vezes tenta-se encontrar nos escritos de Marx, precisamente para conhecer melhor a realidade atual. Ora, ou considera-se poder afirmar que de toda a tradição marxista não se podem extrair estes instrumentos, que é necessário procurá-los alhures, ou então não se pode contestar aos marxistas o direito de procurá-los no pensamento marxista e em Marx, sobretudo na fase onde toda a tradição requer ser repensada à luz das grandes mutações que atualmente se produzem. Não acreditamos que Bobbio queira contestar a seriedade deste trabalho. Em primeiro lugar, cada época e cada geração determina seus deveres e produz seus resultados em relação à tradição. E, não se compreende porque, logo aos marxistas, deve ser contestado o direito de repensar e praticar criticamente a própria tradição. Em segundo lugar, este é um dever imprescindível porque os instrumentos de análise atuais sempre brotam da tradição e de uma relação — a mais fundamentalmente crítica possível — conjunta. Em terceiro lugar, este trabalho é indispensável para reclassificar a tradição, que pesa de toda maneira sobre a cultura e a consciência, por parte dos teóricos mais advertidos. Em quarto lugar, não vejo porque Bobbio deva mostrar tão pouca compreensão em relação àquele que se esforça em forjar os próprios instrumentos de pesquisa na tradição marxista, quando depois declara abertamente conseguir os seus em uma tradição diferente e, além do mais, distante (e não apenas no sentido cronológico) da “estrutura do mundo” atual. Uma avaliação mais profunda do problema da tradição teria, ademais, evitado a Bobbio a incompreensão da centralidade da relação Marx-Hegel, do recorrente retorno dos marxistas à interpretação de Hegel, do modo pelo qual o problema Hegel vem sendo impostado na tradição marxista. A primeira coisa a ser observada, para quem atribui o devido peso à tradição, é que o hegel-marxismo é, em geral, uma forma teórica das fases do desenvolvimento da iniciativa política da classe operária e da elevação da sua ação a nível do Estado. O problema da relação Marx-Hegel é central para os desenvolvimentos revolucionários da tradição marxista, isto por exprimir sinteticamente nó plano teórico-filosófico o ponto de ataque da crítica marxista à forma e nível da política na sociedade capitalista. Por que então pensar que tantas energias profusas no estudo de,Hegel e sua relação Marx-Hegel, na cultura Página 156 marxista italiana, sejam apenas o fruto do doutrinarismo, do provincialismo, do conformismo dos marxistas italianos? Que eles realmente desconhecem em que sentido a filosofia de Hegel permite uma aproximação à totalidade complexa da formação social capitalista e em que medida no entanto não é preferível estudar Smith, para aproximar-se do mesmíssimo tema? [Nota 1] Página 157 É evidente que consideramos útil, de uma provocação feliz, a polêmica de Bobbio quanto ao marxismo teórico contemporâneo. Sem dúvida, é verdade que seu deslocamento é basicamente “escolástico” e que ele não contribuiu o suficiente para preencher as lacunas da “doutrina marxista do Estado”. Todavia, orientada como está, não nos parece que a polêmica de Bobbio atinja o alvo e resulte efetivamente fecunda. Isto porque, na minha opinião, ele propõe como defeito do marxismo teórico aquilo que para mim parecem atrasos e contradições do movimento operário em sua complexidade. Ou então, coloca em termos de ciência política um problema “totalmente político”, talvez o aspecto político mais importante dos atrasos e das insuficiências do movimento comunista em sua complexidade. Tentarei explicar-me. Da onde nascem os defeitos denunciados por Bobbio nas linhas de pesquisa do marxismo contemporâneo? Não se chega a uma posição exata do objetivo (preencher as lacunas e superar os atrasos ou as contradições) sem responder preliminarmente a esta pergunta. Para mim, é convincente a resposta segundo a qual estas descompensações se originam na dupla cisão, determinada no interior do movimento operário nos anos ’20, sendo mais aprofundada e cristalizada até os anos ’50: a cisão entre comunismo e social-democracia, de teoria e movimento no interior de cada tronco nos anos ’20 - ’30, com a conseqüente redução empírica da prática política do movimento operário, a conversão da teoria socialista e comunista em esquematizações ideológicas pobres, a separação do marxismo do corpo vivo do movimento. Excetuando a experiência italiana, onde, ao contrário, os dois protagonistas fundamentais da teoria marxista Gramsci e Togliatti - são também os dirigentes mais importantes do movimento operário, na realidade assistimos nestes anos à transformação do marxismo criativo, fundamentalmente como crítica filosófica da alienação e do autoritarismo, quando não como crítica romântica da sociedade de massas, confiada à alternativa de alguns setores da intelectualidade revolucionada pela Revolução de Outubro, separada do bloco de classes dominantes e, todavia, nada mais que “hóspede” do movimento operário e quase sempre estranha à sua vida concreta, não incorporada por ele quando não é abertamente afastada ou marginalizada. Felizmente, a situação é descrita por Aldo Zanardo que destaca como, em conseqüência da revolta do movimento operário na Europa Ocidental nos anos ’20, “posteriormente, a socialPágina 158 democracia abdica em grande parte, terminando por integrar-se no existente. O comunismo resiste, mas, na maioria das vezes, não sabe verdadeiramente e continuadamente ligar-se às coisas e agir... recai fartamente em uma intransigência genérica e em uma expectativa passiva... [Nota 2]”. Esta situação refere-se sobretudo aos anos ’20 e ’30. Todavia, ao final do nosso problema, ela é tudo menos pregressa. Que o forte limite escolástico denunciado por Bobbio no marxismo teórico contemporâneo se ajuste ou não ao “limite do filosofismo” do marxismo dos anos ’20 e.’30 indicado por Zanardo, a análise deste último permite individualizar a raiz histórica de uma ou de outra deformação. E digo mais. Se Bobbio pode polemizar em boa parte o “marxismo teórico” contemporâneo é porque, partindo exatamente daquelas cisões, aviam-se diversos filões de “marxismo teórico”. Isto é, de um pensamento marxista elaborado por grupos intelectuais “separados” do movimento operário, mesmo se orientados no sentido socialista ou anticapitalista, que encaminham uma tradição própria é verdadeira do “marxismo teórico” a diversos filões de “marxismo dos grupos intelectuais radicalizados”, destacada de temáticas que não correspondem aos problemas concretos que o movimento operário tem diante de si, em sua complexidade. O marxismo dos filósofos Pode-se, portanto ralar de um “marxismo teórico” no sentido estrito, devido àquelas cisões, da constituição de um “marxismo preparado” ou dos intelectuais, junto a um contraste para com o achatamento pragmático da teoria política do movimento operário. E não se devem desconhecer as contribuições que, de qualquer maneira, foram feitas para o desenvolvimento da teoria, mesmo com os limites e as distorções derivadas da sua condição histórica há pouco indicadas. Mas, denunciando seus limites e suas formações escolásticas, chamando sua atenção para a pobreza constatada do pensamento político marxista, deparando com seus erros e Página 159 até tendo a impressão de que não existe uma doutrina marxista do Estado, acerta-se no alvo? Escolhe-se o alvo certo e o interlocutor adequado? Ou a própria existência de um “marxismo teórico” próximo e separado da teoria marxista, incorporada e elaborada pelo movimento operário, não é por si nada mais que a causa objetiva das suas deformações, e também a expressão de um problema que conduz o discurso e orienta o olhar bem além da tradição constituída pelo marxismo dos intelectuais? Disse anteriormente que Bobbio coloca em termos de ciência política um problema político, tout-court. Creio que, neste ponto, esta afirmação esteja esclarecida. Portanto, Luporini tem razão quando, depois de ter levantado os problemas já analisados por Zanardo, apresentando o resultado de suas principais contribuições filosóficas para o marxismo, propõe ao movimento comunista a pergunta crucial: “Por que a elaboração do marxismo está hoje quase apenas nas mãos dos “filósofos”?”. E, de sua parte, esclarece: ”aquela pergunta é, em sua base, política”. [Nota 3] Caso se deseje contribuir para a superação dos atrasos e das deformações denunciadas por Bobbio nas orientações do “marxismo teórico”, a questão vai bem além da denúncia do “escolasticismo” e do “abuso do princípio de autoridade” que viciam a doutrina política marxista. A questão não se resolve assumindo simplesmente como erros ou espírito eclesiástico as deformações da ciência política marxista, chamando esta última para seus deveres de pesquisa atuais, embora assumindo-a como interlocutor principal para o encaminhamento da solução do problema apresentado. Pode-se considerar que um “modelo alternativo” ao “Estado parlamentar”, que seja, no entanto “aceitável” enquanto ”democrático e socialista”, “não exista” porque o “marxismo teórico” não pensou o suficiente para elaborá-lo? Rejeitamos esta impostação e - muita atenção - não por considerar necessário distribuir as responsabilidades entre marxismo teórico e movimento operário de forma diversa daquela proposta por Bobbio e, afinal, em favor de uma defesa corporativa do “marxismo dos intelectuais”. Temos à nossa frente um problema bem maior que o de atirar culpas e responsabilidades. Trata-se de compreender como proceder para superar os defeitos denunciados por Página 200 Bobbio e que com certeza existem. Todavia, Bobbio afirma que o problema principal é o de atrair a ciência política marxista para tarefas diferentes daquelas às que serve. Parece-me que o problema é outro. Pode-se considerar que para superar as suas insuficiências, o marxismo deva produzir os seus Locke, Kant, Constant, Tocqueville, assim como ocorre com a burguesia na elaboração secular do próprio “modelo” de Estado? O problema não pode ser colocado nestes termos, porque a forma do pensamento político marxista não é a mesma do pensamento político liberal e democrático, assim como o movimento do tornar-se Estado da classe operária não é o mesmo da burguesia. Temos diante de nós uma transição histórica bem diferente daquela da qual emerge a burguesia como classe dominante, na passagem do feudalismo para o capitalismo. A forma marxista da ciência política O modo de elaboração da hegemonia por parte do proletariado quanto à burguesia é radicalmente diferente: em síntese, a burguesia elaborava a própria hegemonia em uma formação social dividida e antagônica, na qual vinha reclassificando e não suprimindo, mas, pelo contrário, exaltando antagonismos e cisões. A alguns modelos do Estado confiava o dever de unificar os diversos segmentos das classes proprietárias, fazendo com que assim acreditassem no objetivo de unirem-se para constituirem-se em uma classe dominante, elaborando, portanto, por períodos desconexos, em certa medida, a própria ciência política e a própria prática revolucionária. Aliás, preparava-se para tornar-se Estado, assimilando, sobretudo os tradicionais intelectuais de sua época e reclassificando-os. Assim, através da formação do mercado ela também formava a classe intelectual moderna, protagonista de algumas funções específicas e essenciais para a nova forma de domínio e, portanto, até certo ponto, “autônoma”; ou seja, detentora de uma porção do poder. Na formação social da burguesia o desenvolvimento da ciência política de forma “autônoma” está separado do concreto. Tornar-se Estado da nova classe dominante é apenas um reflexo da articulação autônoma do ideológico, seja como base de recomposição antagônica da política e da economia, própria da sociedade caPágina 161 pitalista, seja como mediação do processo de elaboração da nova ciência e de sua submissão progressiva ao capital. À autonomia relativa da classe intelectual correspondem tanto a elaboração de uma “ciência separada” da política quanto sua capacidade de contribuir como modeladora da definição das formas de Estado. Tudo isto destaca uma forma bem determinada do pensamento político. Pode-se considerar que tudo isto sirva igualmente para a classe operária? Ou será que diversidade radical de tornar-se Estado implica e pressupõe uma nova forma do pensamento político? Quanto às formas da classe operária tornar-se Estado, não me parece ser este o centro de insistência para esclarecer o sentido de nossas afirmações; tudo o que indicamos sumariamente no primeiro parágrafo é suficiente. Portanto, que a forma do pensamento político marxista deva ser diferente da do pensamento político democrático e liberal é conseqüência das particularidades que se seguem aos processos de elaboração da hegemonia, de assimilação dos intelectuais orgânicos por parte da classe operária. Ora, não há dúvidas de que tudo isto decorre de uma relação radicalmente nova entre intelectuais e massa, virada pelo avesso em relação ao modelo burguês, por estar fundamentada na elaboração molecular de uma classe intelectual voltada para a recomposição unitária das massas e para a sua direção, com base no seu consenso autônomo para promover-lhe unidade, sabedoria e autogoverno. É impossível pensar em uma contribuição decisiva para o pensamento político marxista por parte dos grupos intelectuais socialistas que elaboram, enquanto classe (individualizados como sábios e especialistas de coisas políticas) um novo modelo de Estado. O próprio movimento socialista moderno nasceu do encontro entre marxismo e movimento operário, ou seja, da capacidade deste último em incorporar e reclassificar um certo número de marxistas intelectuais. E a formação do novo Estado decorre, desta vez, da reclassificação de todas as classes e em primeiro lugar dos intelectuais como classe; ou seja, da recomposição da classe operária e da inteligência científica, dos intelectuais e das massas. Os desenvolvimentos da teoria política marxista se destacam e são determinados pelo andamento destes processos. Nenhum atalho ou privilégio é concedido ao “marxismo dos intelectuais”. A forma do pensamento político socialista é radicalmente diferente daquela do pensamento político liberal e democrático, pois o marxismo já está incorporado nas instâncias da nova classe comum, desenvolvendo-se com base no enPágina 162 trelaçamento que nelas se produz entre a prática da teoria e a prática política. Consideramos por um momento as figuras intelectuais que dominam a história do marxismo, sobretudo na época do imperialismo: Lênin, Gramsci, Mao, Togliatti, Bukharin, Ho Chi Minh e tantos outros. São figuras intelectuais radicalmente diferentes: grandes teóricos da política e também grandes chefes do movimento comunista, fundadores de Estados, dirigentes de partidos. Isto não significa que esta coincidência deva repetir-se automaticamente, tanto mais quanto mais a classe operária se torna Estado e se introduz na transição. Mas, a reviravolta da ligação intelectualmassas é um dado constitutivo do movimento socialista, não menos que as possibilidades de um desenvolvimento teórico do marxismo. Este último procede da premissa indispensável da ruptura da divisão do intelectual, da recomposição da teoria e do movimento, da apropriação em massa da política como técnica e ciência; não pode deixar de ser obra do “intelectual coletivo”, do partido político entendido não apenas “como a organização técnica do próprio partido”, mas como “todo o bloco social ativo do qual o partido é seu guia por ser a expressão necessária”.(Gramsci). Portanto, tanto para o pensamento político marxista quanto para o marxismo em geral, coloca-se o problema da especificidade de sua forma. Longe de pedir ou esperar um desenvolvimento do “marxismo teórico” a ponto de garantir pela elaboração de novos modelos políticos o caráter democrático da sociedade socialista, trata-se de início (para individualizar corretamente os interlocutores e o plano do discurso) de tornar conhecimento da forma teórica particular do marxismo. Isto é ciência política não positiva (como a modelística jurídica, econômica, sociológica, politológica burguesa) da política e da história. Ou seja, os desenvolvimentos da teoria marxista são decorrentes dos desenvolvimentos da fundação estratégica e da reelaboração da própria experiência por parte do movimento operário em seu conjunto. Portanto, ao colocar em questão a teoria do Estado marxista, deve-se conseguir reconduzir os limites e as deformações aos desenvolvimentos históricos do movimento socialista, encontrando as ligações reais existentes entre os primeiros e os segundos, orientando a crítica para os defeitos reais do movimento como um todo, caso se deseje estimular o incremento necessário da doutrina ao invés de dirigir ao “marxismo dos intePágina 162 lectuais” o pedido de exaltação da sua “separação”, orientando-se na busca de modelos abstratos de democracia socialista. Teoria do Partido e Teoria do Estado Destas premissas não se pode aceitar a crítica principal feita por Bobbio à “doutrina marxista do Estado”, segundo a qual ela teria desenvolvido a teoria do partido e não a teoria do Estado, devido ao interesse “prevalecente senão exclusivo dos teóricos do socialismo pelo problema da conquista do poder” mais que pelos mecanismos da sua organização democrática. É verdade que, à primeira vista, existem na tradição socialista e comunista reflexões maiores sobre o partido do que sobre o Estado. Mas afinal, observando mais profundamente, será mesmo assim? De início, a teoria marxista do partido no pensamento marxista é, em geral, parte integrante da reflexão histórica e teórica sobre determinadas formas de Estado e sobre a forma de derrubá-las. Consideremos o caso de Lênin. Não há dúvida de que a teoria do partido constitui o aspecto mais desenvolvido e inovador, talvez o núcleo essencial de sua contribuição para a teoria marxista. Mas isto, quanto à sua concepção do partido, sintetiza, c a teoria marxista. Mas isto, quanto à sua concepção do partido, sintetiza, concentra e traduz na prática uma reflexão já resumidamente desenvolvida sobre as mutações morfológicas da formação social capitalista, sobre o papel da política e de sua forma de Estado, sobre os modos de proceder para a conquista do poder em uma situação historicamente determinada, sobre as novidades que a mesma forma de teoria assume com o nascimento do movimento operário organizado e o processo de recomposição encaminhado por ele entre intelectuais e massas, no último decênio do século XIX e, de qualquer maneira, depois de Marx. Não se pode ignorar a importância histórica do fato de Lênin ter escrito “O Que Fazer?” por vários motivos: a) ao estudar os desenvolvimentos mundiais do capitalismo baseado na lei do desenvolvimento desigual, pôde colocar no centro de sua pesquisa a história da Rússia do último decênio do século XIX como a história do Página 164 seu desenvolvimento capitalista e da formação do mercado; b) apropriou-se das categorias fundamentais da crítica da economia política e da consciência de que para fazê-la funcionar era indispensável sair do nível da lógica para o processo histórico que, conforme o implante teórico de Marx (unificando os volumes I e III do CAPITAL), coloca no centro da análise o processo de reprodução ampliada do capital, ou seja, a ligação entre produção e reprodução na formação de um mercado determinado, unindo assim economia e política, fazendo emergir como essencial o reconhecimento das formas particulares do Estado dentro das quais está inserido todo o relacionamento da produção com reprodução nas suas condições fundamentais; c) definiu concretamente os deveres do proletariado russo, já que com base no reconhecimento indicado elaborou uma nova ligação entre democracia e socialismo, individualizando na Classe operária o protagonista da revolução democrática; d) individualizou em termos novos a relação entre teoria e movimento, assumindo que, sendo a consciência socialista o fruto de uma concepção resultante da relação entre todas as classes; do papel do Estado e dos caminhos de sua derrubada, ao nível da evolução histórica do proletariado — o russo em especial — ela deve ser introduzida na classe operária “pelo exterior”, pela sua experiência imediata no conflito de classes; e) onde é necessário atingir uma organização política de vanguarda da classe operária radicalmente diferente daquela experimentada na tradição socialista [Nota 4]. Considerando-se tudo isto, certamente não se pode afirmar que, neste fato específico, Lênin tenha desenvolvido a teoria marxista do partido em lugar ou em prejuízo da doutrina marxista do Estado. O contrário é verdadeiro: uma nova doutrina do partido foi elaborada por Lênin exatamente porque com ele o marxismo deu um passo adiante na reflexão política e nas formas da política, colocando no centro de sua pesquisa as estruturas do Estado, certamente de maneira conjunta com os objetivos de sua reviravolta. Contrariamente ao que Bobbio levaria a acreditar, a doutrina leninista do partido é, portanto parte essencial e derivada, embora preponderante, da reflexão leninista do Estado. Página 165 E o que dizer de Gramsci? Sua doutrina do Partido como “príncipe moderno” e “intelectual coletivo” é concebível, separada como está pela importância do peso particular que o Estado assume no Ocidente capitalista, confiando os deveres da garantia da reprodução das relações de produção capitalistas não apenas e nem tanto aos aparelhos repressivos e ao monopólio da violência legalizada quanto aos “aparatos de hegemonia” em particular? Togliatti indicou justamente na teoria gramsciana do partido um novo capítulo do leninismo, e, na teoria gramsciana da hegemonia, a melhor premissa para o desenvolvimento da ciência política marxista. A Contribuição de Gramsei Este encaminhamento para a reflexão sobre as particularidades do Estado no Ocidente capitalista constitui, portanto, um dos núcleos essenciais de toda a elaboração dos “Quaderni”, situando-se no cruzamento das categorias fundamentais da ciência política gramsciana; tais como “revolução passiva”, “guerra de posições”, “hegemonia”, “bloco histórico”. De fato, repercorrendo aqui a história do conceito de “revolução permanente”, “surgido antes de 1848 como expressão elaborada cientificamente das experiências jacobinas de 1789 ao Termidor”, Gramsci observa como aquele conceito torna-se desatualizado e improponível na época do imperialisrno, nos países de capitalismo desenvolvido. Nestes países, “depois de 1870, as relações organizadoras internas e internacionais do Estado tornam-se mais complexas e maciças e a fórmula de 48 da ‘revolução permanente” tem sua elaboração superada na ciência política pela fórmula de “hegemonia civil”. Acontece na arte política o que acontece na arte militar: a guerra de movimento torna-se sempre mais uma guerra de posição”. A própria relação com Lênin torna-se “tradução na linguagem histórica nacional” da experiência bolchevista, e o esforço de reinterpretar a política de “frente única” da ótica das particularidades nacionais européias põe em ação um núcleo verdadeiro e próprio de “uma doutrina marxista do Estado”, certamente o mais avançado de todo o horizonte da Terceira Internacional. Página 166 Nos “Quaderni del carcere”, há mais que o embirão de uma doutrina marxista do Estado: existe o núcleo de uma teoria do Estado a nível do capitalismo desenvolvido. Que seja considerado mais ou menos adequado, suficiente ou não; não existem dúvidas todavia de que aqui está o fundamento da teoria gramsciana do partido revolucionário. As características do partido revolucionário e os seus caracteres não são consequências da conjugação de princípios abstratos do tipo relação entre vanguarda e massas, espontaneidade e direção consciente em geral. Quando muito, estes são úteis para a definição dos critérios técnico-organizadores do partido-aparato, sempre em relação à sua função histórica. E daí a reflexão gramsciana em torno do “teorema das proporções definidas” [Nota 6] ou dos três elementos constitutivos do partido político. [Nota 7] Mas a teoria determinada pelo partido está estritamente interligada à teoria do Estado no qual o partido trabalha e que pretende conquistar. Ambas, então, são parte da teoria geral da revolução. Por outro lado, não é por acaso que uma das posições fundamentais da reflexão gramsciana sobre o partido encontra-se entre as “anotações e notas reunidas para um conjunto de ensaios sobre a história dos intelectuais” [Nota 8]. E aqui, a unidadedistinção de política e economia colocada por Gramsci com base na sua concepção determinada pelo Estado-hegemonia, encontra um correspondente evidente e um desenvolvimento na concepção do partido. Prossigo com Gramsci para não atualizar demais a discussão. Caso examinássemos a evolução ulterior apresentada por Togliatti na concepção marxista do partido junto à teoria e construção do “partido novo”, seria ainda mais evidente a ligação entre a concepção do partido e a análise histórico-política das particularidades nacionais do Estado, no interior de uma concepção bem definida da transformação democrática e socialista do país; tanto que não se pode negar a ligação necessária e ademais a fundação da concepção do partido no pensamento marxista entre a teoria do Estado e da Revolução. É verdade que Bobbio chega a acusações tão drásticas ao marxismo em termos de doutrina do Estado por considerar que, desde Página 167 Marx e Engels, o marxismo tenha praticado manifestamente “uma concepção negativa da política”, baseada na redução do Estado a um “instrumento de domínio da classe dominante”. Ora, seria por demais extenso tentar demonstrar aqui o quanto esta interpretação do pensamento de Marx e Engels é unilateral e por isso não capta o significado de sua concepção sobre política; pelo contrário, derruba-a. Do exame sumário, considerando as ligações entre teoria do partido e teoria do Estado em Lênin e Gramsci, não nos parece estar confirmada a afirmação de Bobbio quanto à visão redutiva do Estado como “instrumento de domínio da classe dominante” no pensamento marxista. Antes, deve-se dizer que provavelmente existem razões decisivas que se referem ao método e à direção de pensamento seguidos por Bobbio, que o conduzem a uma interpretação do pensamento político de Marx e Engels na forma indicada. E provavelmente estás são as razões que tornam pouco fecundo o diálogo de Bobbio com o marxismo. A concepção do marxismo pelo Estado é bem mais complexa e profunda que aquela atribuída por Bobbio. Pode ser resumida, recorrendo-se a uma anotação dos “Quaderni” gramscianos, onde Gramsci, propondo uma reflexão sobre o Estado “segundo a produtividade (função) das classes”, afirma: “Para as classes produtivas (burguesia capitalista e proletariado moderno) o Estado não é concebível a não ser como forma concreta de um determinado mundo econômico, de um determinado sistema de produção. A conquista do poder e a afirmação de um novo mundo produtivo são inseparáveis: a propaganda para um é também a propaganda para o outro; na realidade, a origem unitária da classe dominante que é econômica e política ao mesmo tempo reside apenas nesta coincidência”.[Nota 9] Com esta forma de colocar a questão do Estado, certamente não emergem em primeira instância os problemas relativos às formas de governo e aos mecanismos reguladores das relações entre governados e governantes. O próprio Gramsci, ao propor a concepção do partido como “Príncipe moderno”, advertia: “Nesta realidade (a realidade de uma “sociedade civil” na qual o partido tem o “poder de fato”), que está em movimento contínuo, não se pode criar um direito constitucional do tipo tradicional, mas apePágina 168 nas um sistema de princípios que confirmam como fim do Estado o seu próprio fim, o seu próprio desaparecimento, isto é, a reabsorção da sociedade política na sociedade civil.” [Nota 10] Mas isto é bem diferente de urna ausência de uma doutrina do Estado. É apenas uma teoria da política fundada de maneira diferente, ligada à teoria da história e nela incorporada, não dividida pelo método típico abstrativo das ciências jurídicas e políticas. Quanto a este método, do qual Bobbio — cientista do direito e da política — demonstra não querer se afastar, seria bom lembrar o que Gramsci também diz a respeito da visão do Estado nas classes intelectuais dos países da Europa continental, e sobretudo naqueles em que eles têm um peso particular. “Quando o impulso para o progresso não está estritamente ligado a um desenvolvimento econômico local, mas é reflexo do desenvolvimento internacional que leva para a periferia suas correntes ideológicas nascidas com base no desenvolvimento produtivo dos países desenvolvidos”, como é evidente no caso da unificação nacional italiana, “então a classe portadora de novas idéias é a classe dos intelectuais e a concepção de Estado muda de aspecto. O Estado é concebido como urna coisa em sí, como um absoluto racional. Concluindo, Gramsci diz: “pode-se afirmar que, sendo o Estado a moldura concreta do mundo produtivo e os intelectuais o elemento social que melhor se identifica com o pessoal governante, é próprio das funções dos intelectuais colocar o Estado como um absoluto; desta forma sua existência é racionalizada e sua função histórica concebida como absoluta. [Nota 11] A nós parece que na história da classe intelectual deva-se indicar, na Itália, a real referência de uma ciência da política de implante típico-abstrativo e não histórico-político. Estado e Revolução Seja esta impressão justa ou não, acreditamos que as posições leninistas ou gramscianas, sumariamente indicadas por nós, mosPágina 169 trem ad abundantiam tanto a presença atuante de uma doutrina marxista da política e do Estado quanto a sua derivação da teoria do partido. E isto se impõe argumentar aqui. Pode-se objetar que aquelas doutrinas aqui lembradas são doutrinas do Estado, mas incorporadas a urna teoria da política que prevê a extinção do Estado. Daí a validade das observações de Bobbio quanto às razões do atraso do marxismo em ocupar-se das instituições democráticas e dos procedimentos que as garantem. Na nossa opinião não é assim. Mesmo por causa do método histórico-político que é próprio do marxismo e que pressupõe uma estreita união entre a teoria das instituições e a teoria dos processos (históricos, políticos, de massa, etc...), entre teoria da política e teoria da história, a doutrina marxista do Estado não pode ser separada da teoria da revolução. Portanto, a ciência política marxista elabora mais princípios que modelos. A eles, pois, se reconduzem as técnicas institucionais e processuais. Ou será apenas um acaso (talvez produzido pela ocasião política) que a principal reflexão leninista sobre o Estado é ao mesmo tempo uma definição da teoria da revolução? Na verdade não é nenhum acaso que, para o marxismo, política e economia, produção e reprodução social não possam ser penetradas de maneira adequada, a não ser no âmbito de uma teoria da história (análise das formações sociais, dos modos de produção, das classes, dos “aparatos hegemônicos”, das lutas políticas como lutas de classes incorporadas nas lutas de hegemonia) capaz de ligá-las estreitamente entre si. Consideremos por um momento o conceito fundamental do marxismo: a interpretação da história como história das lutas de classes; o próprio conceito de classes, separado da totalidade complexa da crítica da economia política, desmoronase nas noções sociológicas de estratos, classes de renda, status, etc. Ele funciona corretamente apenas dentro do marxismo pelo que é: uma categoria fundamental da política elaborada por uma ciência particular da política e da história. Na posição em que uma teoria do processo é indispensável, que por brevidade retomamos rapidamente com o jovem Togliatti. Ele lembra, no célebre artigo de ‘25, La Nostra Ideologia, que “a mola do desenvolvimento histórico encontra-se para nós na modificação das relações de produção, embora seja Página 170 também verdade que as relações de produção se traduzem em relações de classes e a classe é o elemento que se organiza, adquire uma consciência que ‘quer’ e faz pesar sua organização sobre todo o processo de transformação social. Quem dá consciência, organização e vontade à classe é o partido que se forma em seu seio. “Aquele que “não deve nunca pensar em ter de lidar com uma realidade que se desenvolve sozinha, automaticamente, pois encontra-se sempre diante de um sistema de forças em movimento, deve propor-se modificar este movimento e seus resultados, mas não pode consegui-lo a não ser inserindo-se nele de forma ativa” ’[Nota 12]. Deve-se acrescentar a isto a insistência, não casual, por parte de um Togliatti maduro, quanto à distância de Gramsci, não apenas da tradição socialista italiana, mas também do próprio Labriola. Togliatti insiste no conceito de que uma teoria própria e verdadeira da revolução amadurece na Itália somente depois do encaminhamento da “tradução”, em linguagem histórica e nacional, da experiência bolchevista e da obra de Lênin [Nota 13], onde considera Gramsci o primeiro, o verdadeiro marxista italiano, por ter sido o artífice desta “tradução”. Com que argumentos? Para a tradição socialista italiana e também para os poucos marxistas “a concepção do desenvolvimento histórico permanecia... faltava a própria noção das modificações e do transtorno das relações de poder na sociedade, do rompimento do bloco histórico dominante e da criação revolucionária de um novo bloco. É esta noção, no entanto, que Gramsci colocou como fundamento de todo o seu pensamento e de toda a sua ação sucessiva. Esta foi a maior conquista realizada por ele” [Nota 14] Em torno da noção de “bloco histórico” comprimem-se e entrelaçam-se todos os elementos da concepção política e histórica gramsciana. Ela é, um pouco, o espírito de seu marxismo. Na Itália, pela primeira vez, o marxismo atinge, com Gramsci, a sua perfeita expressão, exatamente porque assume a forma de teoria política, de ciência da política e da história. Página 171 Princípios e Procedimentos Portanto não se deve apenas rejeitar a redução feita por Bobbio da concepção marxista do Estado, a partir de Marx e Engels; mas, se a teoria social elaborada por eles é aquela relembrada por Togliatti, deve-se dizer que toda a sua obra é uma ciência integral da política. Aliás, é o que afirma a tradição comunista italiana a qual, longe de poder esclarecer as dúvidas — se existe até mesmo uma doutrina marxista do Estado — define a forma como a ciência da política. Que o Estado, organismo sintético da política e objeto principal de sua ciência, seja questionado pelo marxismo no interior de uma teoria geral da revolução, é certamente uma particularidade metodológica e epistemológica do marxismo. Mas é sobretudo a conseqüência, no plano teórico, do fato de que é muito menos possível separar no plano histórico, a partir da época do imperialismo, o Estado instituição dos processos de sua transformação revolucionária. O marxismo procede, no plano teórico, na medida em que ajusta o processo lógico e o processo histórico. Este, justamente na época do imperialismo, tem o seu elo fundamental na união que liga irreversivelmente o Estado à revolução. Concluindo: não só parece surpreendente a pergunta se existe uma doutrina marxista do Estado, mas deve-se acrescentar que não se vê onde apoiar uma ciência política capaz de intervir nos processos da atualidade, a não ser pela religação praticada pelo marxismo entre teoria da história e teoria da política. Portanto, longe de faltar uma doutrina do Estado na época do imperialismo, o marxismo como tal assume a forma de ciência integral da política. Atualmente, na medida em que todo o movimento da história está caracterizado por conflitos e contrastes emergentes dos “blocos de hegemonia”, grandes argumentos coletivos, formas organizadas pela consciência e pela vontade, já lhe imprimem uma orientação determinante. Nesta base é possível o autêntico conhecimento da história (a história como história mundial e a unificação de sua teoria). A ela se acrescenta uma ciência integral da política exatamente porque todo o processo parece estar separado por temas coletivos organizados e dominados desde já pelos elementos da consciência e da vontade. Esta ciência decorre, com certeza, cada vez menos da mente do próprio “filósofo individual” e está cada Página 172 vez mais incorporada nos organismos que reúnem os protagonistas do processo: nasce o “pensador-coletivo”, incorporando em si a ciência do processo. Mas isto nada mais é que uma confirmação da necessidade de uma ciência que reúna teoria e praxis, instituições e processos, lógica e história, segundo um postulado fundamental do marxismo. Portanto, também por este caminho confirmam-se tanto o seu caráter básico para qualquer teoria política desejada, quanto o valor de seu desenvolvimento em forma de ciência da política e da história. Da forma como se recompõem assim história e liberdade, creio que aí se encontre a resposta mais ampla às preocupações levantadas por Bobbio em termos de democracia. Bem verdade que não é uma resposta elaborada, mas não faltam os princípios para a elaboração necessária. Assim, assinalada a centralização da teoria da hegemonia na própria concepção política, Gramsci não deixa de advertir que “entre os tantos significados de democracia, o mais realista e concreto parece-me ser aquele em relação ao conceito de hegemonia. No sistema hegemônico — continua — existe democracia entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos, na medida em que o desenvolvimento da economia e, portanto, a legislação que expressa este desenvolvimento, favorece a passagem molecular dos grupos dirigidos para o grupo dirigente”.[Nota 15] Assim, fixados estes princípios parece-me estar aberto o caminho jura incorporar ao socialismo todos os procedimentos indicados por Bobbio (a herança irrenunciável da liberal-democracia) e tantos outros. Que isto nem pareça um esforço de ecletismo, pois o marxismo, na forma que o vimos, propondo e que é própria da tradição comunista italiana (“tradução do leninismo em linguagem histórica italiana”), caracteriza-se, no plano teórico, nem mais nem menos como “a organização crítica do saber sobre as necessidades históricas que substanciam o processo de desenvolvimento da sociedade humana; não é o ajustamento de uma lei natural que se desenvolve ‘absolutamente’, transcendendo o espírito humano” Página 173 Os paradoxos de Bobbio Do quanto viemos afirmando, decorre que os problemas da liberdade e da democracia deverão ser repropostos a partir das características da atualidade. Isto é, eles deverão ser repensados em relação às leis de movimento do presente e às características de fundo do processo histórico em ação. Para Bobbio, este é sem dúvida o horizonte onde se colocam as suas indicações, não menos que suas preocupações. De fato, parece evidente que colocando o problema da liberdade como problema da democracia no socialismo, ele individualiza o presente como época de crise orgânica e de passagem de uma formação social para outra, indicando no socialismo a sociedade para a qual tendem as leis de movimento no processo histórico em ação. Mas, das características do presente reivindica-se apenas uma tendência para a sociedade socialista, ou também para a caracterização democrática de seu sistema político? Neste ponto emergem as preocupações principais de Bobbio quanto aos destinos da democracia, pois ele considera que as tendências prevalecentes concorrem para a formação de uma sociedade socialista, mas nem por isto também democrática. Bobbio lembra que muitas vezes foi-lhe dirigida a acusação de pessimismo histórico, e ele a rejeita com firmeza. Qualquer que seja o adjetivo adequado à sua visão do processo, vejamos concretamente como lhe parecem funcionar as coisas. Neste ponto, devem ser discutidos aqueles itens que ele próprio denomina de “paradoxos da democracia”. Pode-se partilhar a opinião segundo a qual, enquanto aumenta a necessidade de democracia, acentuam-se as condições objetivas desfavoráveis a ela? Consideremos uma por uma as tendências que Bobbio indica na sua afirmação. Em relação à primeira, parece-me que Bobbio confunde dois tipos de problemas diferentes. Se considerarmos a sua afirmação “nada é mais difícil que fazer respeitar as regras do jogo democrático nas grandes organizações”, com relação aos procedimentos políticos da democracia, a afirmação parece inexata, ou melhor, o contrário é verdadeiro: nos países que, na ótica de Bobbio, devemos considerar como democráticos por excelência, quanto maiores são as dimensões da organização, tanto mais desenvolvidos e inciPágina 174 sivos se apresentam os procedimentos democráticos (basta lembrar a Inglaterra ou os Estados Unidos). Ao invés disso, a afirmação de Bobbio possui um valor geral se referida à eficácia destes procedimentos em promover a mudança política efetiva nestas realidades. Isto sim torna-se cada vez mais difícil nas “grandes organizações”. Mas por que? Pela crescente divergência entre a demanda de uma democracia e suas condições objetivas de possibilidade? Não me parece. A mudança das direções políticas e dos grupos dirigentes em relação à qual os procedimentos democráticos são os mais auspiciosos, e certamente medem a progressiva incidência ou ineficácia, é seguramente muito mais difícil nas grandes organizações porque nelas os procedimentos são moleculares. Nelas a mudança ocorre por degeneração e reclassificação e só exepcionalmente por oposição e cisão. Isto decorre de uma maior homogeneidade e compatibilidade das “grandes organizações”, do caráter coeso e hegemônico dos elementos de direção e, em resumo, do maior volume e desenvolvimento da “vontade organizada” em determinar a estagnação ou a mudança. Mas, deve-se então afirmar que é exatamente nas “grandes organizações”, por serem muito mais desenvolvidas, que em média pesem mais os elementos da consciência e da vontade e, em definitivo, as massas. O verdadeiro paradoxo é que, além das aparências, existe precisamente nelas muito mais democracia que nas sociedades capitalistas menos desenvolvidas, se com o conceito de democracia entendemos medir o peso efetivo exercido pela vontade dos indivíduos e das massas, e não apenas as formas de manifestação ou os procedimentos instituídos para expressar e fazer valer esta vontade. Quanto à contradição crescente entre a democracia por um lado, e, por outro, a burocracia e a tecnocracia, pensamos em primeiro lugar que devemos considerar os dois problemas ao mesmo tempo, porque burocracia e tecnocracia não são nada mais que graus diferentes do mesmo fenômeno; em segundo lugar, também neste ponto discordamos sensivelmente de Bobbio. Se as coisas fossem como ele as apresenta, realmente não existiria uma solução para o problema da democracia socialista, a não ser na perspectiva da extinção do Estado, que é precisamente a perspectiva na qual ele não acredita, e que reprova ao marxismo como uma utopia deléteria, responsável por seus atrasos na questão da doutrina do Estado e reflexão sobre a democracia. Ou então, assim como em Weber, recalca a teoria da burocracia e a hipóPágina 175 tese de burocratização universal, queira-se ou não aderir também à hipótese weberiana da solução carismática e elitista dos problemas políticos da sociedade contemporânea. De qualquer maneira, Bobbio não pode afastar de si a suspeita de pessimismo e, no fundo, de nostalgia pela sociedade liberal. Mas, além disto, também em termos de burocracia, parece-me necessário distinguir dois aspectos do fenômeno e colocar em discussão a afirmação principal de Bobbio, que, depois de ter isolado o problema e tê-lo reduzido às suas aparências técnicoformais, afirma que a burocratização é como tal antidemocrática, porque, por definição, a burocracia é “um aparato de estrutura hierárquica... de poder descendente e não ascendente.” Não há dúvidas de que nas sociedades contemporâneas se desenvolve uma burocratização crescente. Se desejamos ligar o fenômeno a categorias históricas determinadas, devemos remontar às características do capitalismo monopolista de Estado, forma econômico-política então dominante, a qual confia à crescente e inusitada extensão dos aparatos de reprodução ampliada pelo impulso do Estado, a reprodução e a extensão das relações de produção capitalistas. Sob um certo aspecto, ligado à extensão necessária da divisão técnica do trabalho, o processo é realmente irreversível e assume a forma de reclassificação e padronização do trabalho intelectual nas hierarquias técnicas onde se situam, no alto, as premissas da tecnocracia. Mas, podemos afirmar que ainda sob este aspecto, pelo qual somente o processo é irreversível, burocracia e teconocracia sejam as fontes do novo autoritarismo? Pelo contrário, estas são expressões formais e um dos principais veículos pelo modo em que vêm sendo incorporadas no processo de reprodução e reclassificação da sociedade dividida em classes. Ademais, surgem sempre com maior evidência e como fatores de crise mais que de estabilização da sociedade tardiacapitalista, seja porque no capitalismo monopolista alimentam sempre mais a insubordinação social das classes médias, seja porque este tipo de extensão dos aparatos de reprodução ampliada, expressão da tendência orgânica do modelo de desenvolvimento monopolista na depressão do trabalho produtivo, reduza progressivamente a própria eficiência do sistema capitalista. Página 176 Os intelectuais e as massas O fenômeno assim enquadrado, o problema dele decorrente não é certamente o de inventar os procedimentos adequados para garantir o funcionamento das instituições representativas e o controle político da burocracia por parte das forças políticas como tais. Que outra coisa são as instituições democráticas e as próprias forças políticas senão sedes e seções de padronização do trabalho intelectual? E como pode ser resolvido o problema enquanto a política permanecer confinada dentro de seu “separatismo” capitalista e separada dos processos e aparatos delegados para a privatização do “negócio geral”? O problema da luta contra a burocracia e a tecnocracia como veículos de um novo autoritarismo parece-me ser outro. Estas ameaças nascem, no fundo, da confirmação e destinação do trabalho produtivo subordinado e da multiplicação dos aparatos superiores de organização das massas, dentro e fora da produção, para obter delas a descomposição, o isolamento econômico-corporativo, a subordinação e a passividade. São estes os problemas a serem enfrentados na luta contra a burocracia, a tecnocracia e o novo autoritarismo. E estes conduzem à necessidade de que a classe operária, as forças sociais e políticas democráticas, sejam capazes de elaborar uma perspectiva de reforma dos aparatos de reprodução social, e transformação do próprio relacionamento entre intelectuais padronizados e a classe operária, entre intelectuais e massas que saibam, enfim, promover um deslocamento democrático de massa das classes intelectuais que constituem hoje em dia os quadros dos aparatos burocráticos por excelência. Isto é não apenas necessário, mas parece sempre mais provável. Esta perspectiva de fato emerge com força, seja dos processos crescentes de insubordinação social das classes médias intelectuais, que temos indicado como um objetivo definido da padronização do trabalho intelectual, seja pela experiência avançada, por exemplo, no sofrimento da sociedade italiana nos últimos dez-quinze anos, da relação cada vez mais estreita, a esta altura do desenvolvimento histórico entre eficiência produtiva do sistema econômico e transformações democráticas dos aparatos de reprodução social além das bases produtivas e das relações de produção. Portanto, não partilhamos a perspectiva pessimista de Bobbio quanto ao divórcio fatal entre burocracia e democracia e quanto à burocratizaPágina 177 ção universal. Parece-nos que também o problema da burocracia deve ser enfrentado de maneira diferente das perspectivas de Bobbio, e que isto é possível exatamente porque o significado principal dos processos históricos que caracterizam o presente é oposto àquele considerado por Bobbio. Tocamos assim no tema do último “paradoxo da democracia”: existe realmente um “contraste crescente entre processo democrático e sociedade de massa?”. Não desejamos que a afirmação de Bobbio represente mais uma vez os elementos de uma crítica romântica da sociedade de massas. O certo é que, mesmo com base no que temos afirmado até então, a “sociedade de massas” já hoje, pelas contradições que a percorrem, os processos que nela se apresentam, parece-nos também estar carregada dos significados de uma nova liberdade e não apenas de ameaças mortais para a democracia. Já afirmamos, no início deste parágrafo, que a sociedade de massas está de qualquer maneira caracterizada por um tal desenvolvimento da média intelectual (da qual não se pode desconhecer o valor progressista, a não ser que se mantenham as repulsas aristocráticas contra qualquer forma de conformismo, alimentando a ilusão — esta sim utópica e não sei até que ponto progressista — de uma sociedade auto-regulada enquanto privada de qualquer elemento e forma de significado e direção!) e por uma tal extensão de elementos de consciência e vontades organizadas que nela se encontram os objetivos pressupostos de uma nova liberdade. O verdadeiro problema que se apresenta a esta altura é o da articulação autônoma e pluralista destes elementos e formas de consciência e vontade organizadas e, neste sentido, existe o problema de um novo conformismo (ou seja, de uma forma inédita de liberdade solidária). Concluindo: na medida em que a crise geral da sociedade capitalista, a esta altura de sua evolução, indica a necessidade de sua reorganização integral em bases socialistas, como o próprio Bobbio reclama na linha de seu ensaio, parece-nos que o problema da democracia (aquela a ser defendida não menos que aquela nova a ser criada) se entrega inteiramente às maneiras, às formas, à pluralidade dos protagonistas da transformação socialista e da passagem para a nova sociedade. E assim, consideramos que devem ser reajustados concretamente os aspectos e os problemas institucionais e processuais da democracia socialista, com os processos de transição para o socialismo. Página 178 Um debate que deve prosseguir Neste ponto do discurso devemos receber a advertência de Bobbio quanto à necessidade de ser um “bom marxista”, de não ser “penas marxista” e, se possível, fazê-lo com carinho. Creio ser evidente, pelo que dissemos até agora, porque este problema se coloca aqui e porque, uma vez esclarecida a problemática da transição para o socialismo (que não é outra coisa senão a tematização proposta por Bobbio para o nexo democracia-socialismo) na perspectiva teórica do marxismo, não apenas não existam dificuldades, mas até seja necessário e totalmente isento de equívocos (acreditamos) acolher as indicações úteis que surgem no ensaio de Bobbio. Isto é, fica evidente o âmbito no qual se coloca — na transição democrática para o socialismo — a necessidade, para todo o círculo de forças envolvidas no processo, de incorporar procedimentos e instituições da democracia política, segundo as formas em que, ao apropriar-se dela, estendê-la e reclassificá-la, elas se recompõem em uma articulação pluralista por ser, no desenvolvimento das forças produtivas e nas particularidades históricas dos grupos sociais e das classes, orgânica. Em suma, não existem riscos de ecletismos ou de mediação abstrata de modelos processuais, pois é o caráter do processo ao qual aderimos que coloca à classe operária o problema de religar suas instituições políticas e teóricas a seus valores, às instituições políticas, às tradições culturais, os valores ideais de outros componentes do novo bloco histórico. Em um vasto desenho de transformação democrática e socialista do nosso país parece-nos, portanto, que a perspectiva política de Bobbio individualiza um componente autônomo do processo de forma parcial, embora essencial. Na medida em que a teoria política Marxista que vimos expondo é sustentada por este desenho e por sua vez o alimenta, a sua adesão a ela nos permite, acreditamos, uma disponibilidade plena para o debate, mantendo com paixão uma posição teórica que consideramos rigorosa, mas também capaz de entender profundamente as razões do interlocutor e a validade de suas posições. Mas, se tudo isto tem um sentido, o debate mais útil deveria principiar aqui, quando o discurso do método está de certa forma exaurido e foram experimentadas as possibilidades de entendimento e de troca decorrentes dos respectivos modelos teóricos, caso se Página 179 esteja disposto a examinar juntos as condições que tornam possível uma transição democrática para o socialismo. Absorvendo este dever, poderemos verificar a validade da definição assumida pelo marxismo como “organização crítica do saber das necessidades históricas que substanciam o processo de desenvolvimento da sociedade humana”, no caso específico italiano. Bobbio poderá fazer valer as razões que impõem ao socialismo a necessidade de incorporar e reelaborar os conteúdos válidos da tradição democrática e liberal à qual ele se alia. Mas isto, obviamente, fica para uma outra oportunidade. Notas Nota 1 – página 156 Além das indicações do “Quaderni filosofia” de Lênin, deriva sobretudo de Gramsci o impulso do marxismo teórico italiano em reconsiderar Hegel e reler Marx da ótica das relações Marx-Hegel, e o próprio Hegel da ótica temática de Marx. Isto porque, tanto na consideração de Lênin quanto na de Gramsci, e não apenas na visão de Marx que era contemporâneo de Hegel, se entrevê no conjunto da filosofia hegeliana a expressão mais desenvolvida da articulação complexa da formação social-capitalista, em virtude da compreensão que Hegel teve do seu domínio do abstrato, da articulação de política e economia, da centralização da contradição. Disto decorre um interesse marcante também pelos aspectos singulares da filosofia hegeliana que interessam aos setores particulares da sociedade capitalista, todavia sempre da ótica da conexão estabelecida entre a filosofia hegeliana e formação social-capitalista. Gramsci, por exemplo, falando da concepção hegeliana dos partidos como “trama privada” do Estado, diz: “Ela deriva historicamente das experiências políticas da Revolução francesa e devia servir para dar uma maior concretização ao constitucionalismo. Um governo com o consenso dos governados, mas com o consenso organizado, não genérico e vago como se afirma no momento das eleições: o Estado tem e pede o consenso. Mas também “educa” com as associações políticas e sindicais, que no entanto são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente. Em um certo sentido Hegel, desta forma, já supera o puro constitucionalismo e teoriza o Estado parlamentar, com o seu regime dos partidos.” (A. GRAMSCI, Quaderni del Cárcere, vol. I, Torino, 1975, p. 56). Portanto, a razão do interesse recorrente dos marxistas por Hegel é evidente: em que outro pensador encontrar-se-ia todo um sistema de categorias voltadas para reconduzir a substância do Estado ao princípio da organização e da “educação” dos cidadãos em uma relação crítica evidente para com o atomismo crescente do processo capitalista e no esforço desmesurado de recompô-lo politicamente em unidade? Pelas características e importância da literatura marxista mais recente dedicada na Itália em reconsiderar Hegel e a relação Marx-Hegel, precisamente com a intenção de elaborar as formas que destacam o processo histórico atual e, entre elas, a forma da política, eixo do giro do domínio abstrato — cf. BIAGIO DE GIOVANNI, Hegel ed il tempo storico della società borghese, Bari, 1971: REMO BODEI, Sistema ed epoca in Hegel, Bologna, 1975; ROBERTO RACINARO, Realitá e conciliazione in Hegel, Bari, 1975. Na literatura estrangeira, recentemente traduzida para o italiano, deve ser lembrado pelo menos MANFRED RIEDEL (Hegel, fra tradizione e rivoluzione, Bari, 1975) que baseia sua interpretação em um uso atento da nova edição Hilting della Filosofia del diritto de Hegel (aliás, também Bodei não o faz por menos). Nota 2 – página 158 ALDO ZANARDO, Filosofia e socialismo, Roma, 1975, pp 170, 175, Nota 3 – página 159 Cesare Luporini — Dialettica ematerialismo, Roma 1974, p. XLIII. Nota 4 – página 164 Quem desejar uma proposição menos esquemática e sintética desta linha de leitura da teoria leninista do partido, leia a introdução de Leonardo Paggi e Max Adler, II Socialismo ed i Intellectuali, Bari, 1974. Nota 5 – página 165 A. GRAMSC1, Quaderni. cit. Vol. III, pp. 1566-1567. Nota 6 – página 166 Op.cit., Vol III, p. 1627. Nota 7 – página 166 Ivi. pp. 1733-1734. Nota 8 – página 166 Op. cit., vol. III, p. 1522. Nota 9 – página 167 Op. cit., Vol. I, p. 132. Nota 10 – página 168 Op. cit., Vol. I, p. 662. Nota 11 – página 168 Op. cit. Vol. I, pp. 132-133. Nota 12 – página 170 V. agora P. Togliatti, II Partito, Roma 1972, pp. 16-17. Nota 13 – página 170 P. Togliatti Gramsci Roma 1967, . pp. 162-163. Nota 14 – página 170 Idem pp. 176-166. Nota 15 – página 172 A. GRAMSCI, Quaderni, op. cit., Vol 11, p. 1056. Nota 16 – página 172 A. GRAMSCI, La nuova ordine, Torino, 1958, p. 191.