O Público e o Privado nas Políticas Sociais

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O Público e o Privado nas Políticas Sociais
Paulo de Arruda Penteado Filho
1. Introdução
2. Breve histórico das políticas sociais no Brasil
3. Público e privado num contexto de desigualdade social
4. A crise do Estado e sua influência nas relações entre o público e o privado
5. Perspectivas
1. Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir, brevemente, as relações entre o público e o privado no
contexto das políticas sociais no Brasil. Para isso, na seção 2 será apresentado um breve
histórico dessas políticas, ressaltando as transformações das relações público-privado ao longo
do tempo. Na seção 3, será discutida a influência de desigualdades sociais extremadas, como as
verificadas no Brasil, sobre essas relações. Em seguida, na seção 4, os efeitos da atual crise do
Estado capitalista, no mundo e no Brasil em particular, sobre a delimitação dos espaços
públicos e privados será discutida. Finalmente, na seção 5, serão abordadas, rapidamente,
perspectivas futuras dessa delimitação.
2. Breve histórico das políticas sociais no Brasil
As relações público-privado nas políticas sociais podem ser encaradas a partir de dois pontos de
vista. Em primeiro lugar, pode-se analisar os movimentos com relação ao grau de
universalidade no atendimento dos serviços sociais. Em segundo, cabe verificar a repartição de
tarefas entre o setor estatal e as empresas privadas.
A evolução das políticas sociais no Brasil segue um padrão, claramente perceptível, em direção
à universalização do acesso aos serviços sociais e, portanto, nesse sentido, vem aumentando,
gradativamente, seu caráter público.
O caso da previdência social é paradigmático. Até o início dos anos vinte, não havia sistema
previdenciário no Brasil. Os seus primórdios se dão com a criação de companhias privadas de
seguro do trabalho, em 1919, mas é com as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs),
criadas em 1923, que vai começar a se estabelecer um sistema previdenciário no país. As CAPs
eram sociedades civis, organizadas por empresas e financiadas pelo governo federal, empresas e
trabalhadores. Dada sua natureza, apenas nas grandes empresas havia condições para sua
implantação. A forma de financiamento levava a que a qualidade e a quantidade dos serviços
fossem diferenciados em função do porte das empresas e do nível salarial de seus empregados.
(Ver, p. ex., Braga e Paula, 1986)
É apenas com o início do processo de industrialização e a ruptura política representada pela
ascensão de Getúlio Vargas que vai se definir uma política previdenciária e de saúde, criando-se
os mecanismos legais e institucionais para sua implementação. Assim, é na década de 30 que
vão ser criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). Estes são organizados por
categoria profissional e institucionalizados como autarquias. Desta forma, há condições de um
2
maior controle estatal, bem como tendem a se homogeneizar os serviços, embora apenas no
interior de cada categoria.
Desde o início da década de 50, várias tentativas são empreendidas de uniformização do
sistema, sem, no entanto, conseguir sucesso. Apenas em 1966-67, com o agravamento da
situação financeira dos institutos, é que tal uniformização vai ocorrer, através da sua unificação
e da criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). (Braga e Paula, 1986)
Se os Institutos de Aposentadorias e Pensões ofereciam níveis diferenciados de serviços em
função do nível de renda das categorias que os compunham, a criação do INPS acarreta um
padrão menos meritocrático e mais universal de serviços. No entanto, ainda era excluída dos
seus benefícios grande parte da população e da força de trabalho brasileira: os trabalhadores do
campo, em sua grande maioria, as empregadas domésticas e os prestadores de serviços
autônomos, os quais, em seu conjunto, representavam parcela majoritária da força de trabalho.
Essa situação, no entanto, vai se modificando, gradativamente, a partir de 1963, com a criação
do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural - FUNRURAL. Ao longo da década de 70, dá-se
a inclusão de trabalhadores autônomos, empregadas domésticas e empregadores rurais.
A Constituição de 1988 estabelece a universalização da cobertura previdenciária e a Lei nº
8.213, de 24/7/91, termina de universalizar e unificar os benefícios previdenciários no país.
No caso da saúde, também se verifica essa tendência de universalização dos serviços. Dada a
crescente participação da medicina previdenciária em relação às ações de saúde pública, a
expansão dos serviços de saúde deu-se, desde a década de 30, em benefício dos segurados da
Previdência Social. Dessa forma, seu grau de universalização e uniformidade evoluiu pari
passu com a ampliação da cobertura previdenciária.
O ponto culminante da ampliação do acesso aos serviços de saúde se dá com a criação, em
1987, do Programa de Desenvolvimento de Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde SUDS, que deu origem ao Sistema Único de Saúde - SUS, que atende, indiscriminadamente, a
qualquer cidadão brasileiro.
Por outro lado, a ampliação da oferta de serviços públicos de saúde se dá com a participação
crescente do setor privado, através de convênios, o que é uma outra dimensão da relação
público-privado nas políticas sociais. Cabe aqui observar que, mais do que a questão da
estatização versus privatização, o que importa considerar são as formas específicas em que se
dão as relações entre o Estado e, no caso, as empresas do setor de saúde.
A mesma tendência universalizante verifica-se em alguns outros serviços sociais básicos, como
a educação de primeiro grau, o abastecimento de água e, em menor escala, a urbanização de
áreas residenciais.
Esse processo universalizante, no entanto, não se dá sem problemas. Em particular, a magnitude
dos desassistidos e a relativa escassez de recursos, que têm que ser disputados com os chamados
investimentos produtivos, provocam uma queda da qualidade dos serviços, paralelamente à
3
ampliação da cobertura1. Os efeitos dessa queda de qualidade são condicionados pelo nível de
extrema desigualdade social, característico da sociedade brasileira. É o que veremos a seguir.
3. Público e privado num contexto de desigualdade social
Se a queda de qualidade dos serviços que acompanha a ampliação de sua cobertura pode ser, até
certo ponto, entendida como resultado dos desequilíbrios provocados pela magnitude da
demanda insatisfeita e pela escassez de recursos, seus efeitos sobre a relação entre o público e o
privado passam pelo quadro de extremas desigualdades sociais prevalecentes no país.
Diante do elevado grau de desigualdades sociais no Brasil, serviços efetivamente universais
precisam atender às expectativas de qualidade dos extratos superiores da estrutura social. Não
estamos, aqui, falando dos muito ricos, mas da -- ainda pequena -- “classe média” brasileira.
Esse grupo social seria, de certa forma, aquele que dispõe dos atributos da cidadania. No
entanto, menos da cidadania do capitalismo de massas da segunda metade do século XX, nos
países desenvolvidos, e mais do protótipo de cidadão do início do século, nesses mesmos
países. A evolução histórica da idéia de cidadania implica numa universalização de direitos na
qual, apesar dos avanços mencionados, dificilmente se enquadra a situação brasileira.
Nesse contexto, a universalização do acesso a serviços públicos, com sua -- até certo ponto -inevitável queda de qualidade, tem implicado na progressiva evasão das camadas médias dos
serviços públicos em direção aos serviços privados.
A universalização do acesso aos serviços de saúde, por exemplo, tem sido limitada pela
incapacidade da oferta expandir-se na mesma proporção. Isso tem levado a um aumento na
demora do atendimento e uma queda na qualidade dos serviços. Em conseqüência, os grupos
sociais de maior poder aquisitivo deixam de utilizar esses serviços, e passam crescentemente
para o mercado privado, particularmente através de seguros de saúde privados, num processo
que foi caracterizado como universalização excludente. (Magalhães, 1993; Faveret Filho e
Oliveira, 1990)
Esse movimento pode ser compreendido a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, ele
representa a reação de uma sociedade extremamente segmentada socialmente à tentativa de
universalização dos serviços. Por outro, tem um efeito socialmente positivo, na medida em que
a contribuição da “classe média” é menos do que correspondente aos benefícios a que ela,
teoricamente, tem direito. Ou seja, a contribuição à previdência social do típico trabalhador de
classe média não cobre sequer aos benefícios que ele recebe em termos de aposentadoria.
Portanto, a exclusão da classe média do sistema de saúde pública não deixa de ter um efeito
positivo do ponto de vista distributivo. Mesmo assim, evidencia a dificuldade de se atingir
padrões de efetiva universalidade em contextos de marcada desigualdade de renda2. (Draibe, s.
d., p. 81 e seguintes)
1
Isto não significa ignorar os efeitos positivos, embora insuficientes, da universalização do acesso e da expansão
dos serviços. As últimas décadas no Brasil mostram uma melhoria crescente em quase todos os indicadores sociais,
apesar da manutenção de um quadro de dualismo estrutural. (Possas, 1989; Monteiro, 1995) Essa melhoria parece
se verificar até mesmo em áreas inesperadas, como a nutrição infantil. (Monteiro et alli, 1993)
2
Note-se que alguns estudos comparativos internacionais têm concluído que o próprio efeito redistributivo do
Welfare State depende da estrutura de distribuição de renda e da riqueza. (Magalhães, 1993, p. 188-189) Teríamos,
4
Duas outras características da sociedade brasileira têm efeito, ainda, sobre as relações entre o
público e o privado. Uma delas é o padrão clientelista, que implica não apenas numa utilização
de recursos públicos para atender a interesses eleitorais privados, como numa distribuição
seletiva desses recursos3. A outra é o padrão corporativista, que reforça a manutenção de
benefícios e direitos conquistados por grupos sociais específicos, em detrimento dos demais4.
Finalmente, a expansão das ações assistencialistas também caracteriza um padrão seletivo de
atendimento. Apesar disso, sua importância não pode ser desprezada, principalmente no
contexto de estagnação e recrudescimento da pobreza absoluta que tem prevalecido desde o
início da década de 80.
4. A crise do Estado e sua influência nas relações entre o público e o privado
Além das características estruturais da sociedade brasileira, as recentes transformações da
situação mundial, em particular a crise dos Estados Nacionais, têm profundas implicações sobre
as relações entre o público e o privado, tanto em geral, quanto em termos da política social. Em
países como o Brasil, marcados pelas já mencionadas desigualdades sociais profundas, essas
implicações são ainda mais sérias.
A crise dos Estados Nacionais deste fim de século se caracteriza, antes de tudo, por uma
profunda crise fiscal. As causas últimas dessa crise têm sido motivo de acirradas discussões.
Embora seja impossível, no âmbito deste trabalho, examinar essa questão em profundidade,
cabe lembrar que, na verdade, a crise fiscal foi precedida, temporalmente, por uma crise do
próprio processo de acumulação capitalista -- ou seja, por um decréscimo das taxas de
crescimento dos produtos nacionais e da produtividade das empresas privadas da maioria dos
países. O argumento inicial dos assim chamados neo-liberais era de que essa queda de produto e
de produtividade era causada pela ação do Estado, mas pode muito bem ser argumentado que
foi essa perda de dinamismo econômico, historicamente anterior, que provocou a crise fiscal do
Estado.
Seja como for, a crise fiscal dos Estados Nacionais é, hoje, um dado a ser considerado,
independentemente de quais sejam suas reais causas. A essa crise fiscal se soma a perda de
capacidade regulatória desses mesmos Estados Nacionais, enfraquecidos pelos conhecidos
processos que têm sido enquadrados no conceito de globalização.
Como esses processos influenciam as relações entre o público e o privado? Fundamentalmente,
provocando a redução da capacidade do Estado agir no sentido público, tal como, com todas as
suas limitações, tem sido entendido esse conceito no passado recente. A ideologia “neo-liberal”
tem sido, até certo ponto injustamente, responsabilizada por isso. Na verdade, essa redução da
desta forma, um tipo de causação circular, em que o efeito redistributivo das ações estatais tenderia a ser tanto
maior qunaot menores as desigualdades existentes.
3
Sobre a simbiose contraditória entre clientelismo e Estado do Bem Estar na América Latina, bem como seus
efeitos sobre as relações público-privado, ver Marques-Pereira (s. d., especialmente, p.113 e seguintes).
4
Não pretendemos, aqui, utilizar esses conceitos com a usual conotação meramente normativa. A esse respeito e
sobre a necessidade de levar esses componentes em conta em qualquer proposta realista de mudança, ver Reis
(1993). No entanto, essas duas características da sociedade brasileira têm óbvias implicações quanto às relações
entre o público e o privado.
5
capacidade de ação do Estado vem sendo provocada por fatores estruturais bem mais
profundos, entre os quais cabe destacar a mencionada redução das taxas de crescimento
econômico. A isso vem se acrescentar, ainda, a incapacidade de absorver parcelas significativas
da força de trabalho, mesmo em fases de crescimento econômico5.
O binômio crise fiscal do Estado e falência do setor privado em promover o aumento da
produtividade e do emprego nos leva a uma situação de sérias e perversas conseqüências sociais
e de perspectivas sombrias para o futuro.
Mas, essas são questões demasiadamente complexas para serem adequadamente abordadas
neste trabalho. O que parece indubitável é que nos deparamos com uma situação em que as
relações entre o público e o privado terão que ser profundamente revistas, uma vez que nenhum
dos dois lados da equação parece estar em condições de cumprir o que têm, historicamente,
prometido.
5. Perspectivas
Diante desse quadro, quais têm sido as propostas de solução? Por um lado, a esquerda tem tido
uma posição dúbia. Um setor tem defendido posições corporativistas e estatistas, dificilmente
conciliáveis com a visão universalista e socialista que supostamente defendem. Outros,
particularmente aqueles que têm experimentado o poder, têm adotado medidas que não diferem
muito do ideário “neo-liberal” 6 . Outros setores da esquerda têm defendido um padrão de
atuação em que movimentos sociais organizados e organizações não-governamentais assumam
funções tradicionalmente consideradas como estatais -- posto que públicas.
Por seu turno, a direita tem defendido a redução e o retraimento do Estado, sem apresentar
propostas minimamente viáveis para solucionar os problemas da baixa taxa de aumento da
produtividade e da decrescente taxa de absorção da mão de obra.
A tendência predominante tem sido a de transferir responsabilidades do setor estatal para o setor
privado, seja através das empresas, seja através das organizações não-governamentais (ONGs).
Mas será que o setor privado está à altura dessa tarefa?
As empresas parecem estar crescendo muito mais em função da crise fiscal do Estado do que de
sua capacidade produtiva. Os setores sociais engajados numa ação social de novo tipo estão,
eles mesmos, em risco de descenso social. Além disso, no caso do Brasil, o setor privado tem
escassa tradição de ações de interesse público e forte tendência a se apropriar de parcelas do
próprio aparelho estatal.
Diversos autores têm trazido à tona a questão das implicações sociais da crise do Estado, que
leva à necessidade de profundos reordenamentos econômicos e sociais para fazer frente aos
problemas fiscais e do mercado de trabalho, apontando, alguns deles, para a necessidade da
emergência de novos padrões de solidariedade social. Só o futuro dirá se seremos capazes de
enfrentar esse desafio de forma adequada.
5
Na verdade, talvez devêssemos estar nos perguntando mais sobre o por quê do setor privado estar sendo tão
incompetente em cumprir o seu papel e, menos, sobre a chamada crise do Estado.
6
Por exemplo, através da privatização de empresas municipais.
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