Tinhorão, José Ramos. História social da música popular brasileira

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A música folclórica redescoberta
Relatório parcial – janeiro de 2002
Projeto Vocações musicais e trajetórias sociais de estudantes de música:
o caso do Instituto Villa-Lobos da UNIRIO
Elizabeth Travassos
Coordenadora
Professora Adjunta
IVL/UNIRIO
Introdução
Assiste-se hoje, nas capitais brasileiras, a um renascimento do interesse pela música
“folclórica” entre estudantes, artistas, animadores culturais e pesquisadores. Sintomas desse
fenômeno são: 1) o aparecimento de grupos musicais cujo trabalho explicita o vínculo com
tradições que constituíram temas preferenciais dos estudos de folclore musical no Brasil
(cantoria, coco, bumba-meu-boi, maracatu etc.): refiro-me a grupos como Cascabulho,
Mestre Ambrósio, e a artistas como Antônio Nóbrega e Zeca Baleiro. Oriundos das capitais
nordestinas, eles têm impacto nacional apesar de não migrarem, necessariamente, para o Rio
e São Paulo (como fizeram artistas nordestinos em épocas anteriores); 2) o surgimento de
grupos musicais ou teatrais-musicais envolvendo estudantes universitários, cujo trabalho se
inspira nos chamados folguedos populares e cujos participantes se dedicam simultaneamente
às atividades artísticas e à pesquisa de campo e/ou bibliográfica: grupo A Barca, em São
Paulo, Mundaréu, em Curitiba, Cordão do Boitatá e Boi Cascudo, no Rio, entre outros; 3) a
adoção do forró (baile nordestino e gêneros musicais e de dança associados) pela juventude
de classe média nas capitais; a participação do segmento estudantil é tão importante que o
movimento foi batizado de “forró universitário” 1 ; 4) o crescimento do número de
dissertações e teses, nas diversas áreas das ciências humanas, que retomam os temas
tradicionais do Folclore (entendido como campo de conhecimento) e atualizam sua
abordagem por meio de molduras conceituais e metodológicas distintas daquelas que
vigoraram nos estudos de folclore da primeira metade do século XX 2 . Alguns desses
1
2
V. a dissertação de mestrado de Roberta de Alencastre Ceva (2001).
V. Arroyo 1999, Mello e Souza 2001, Alcure 2001, entre outros.
2
trabalhos recentes são reflexões acerca do conhecimento produzido pelos folcloristas (v.
Vilhena 1997).
Alinhei alguns sintomas sem ordená-los cronologicamente ou por sua importância
relativa, procurando destacar a produção musical e a participação de estudantes, que
interessam diretamente ao trabalho. Constatei o interesse renovado pelo folclore na pesquisa
de campo conduzida entre estudantes da escola de música da UNIRIO, os quais, mesmo
sendo minoritários dentro da instituição, ilustram uma tendência contemporânea da música e
da cultura brasileiras. Os termos com que descrevo os sintomas dessa tendência, porém, não
são transparentes: dizer que o trabalho de um grupo musical se “inspira” no folclore não
esclarece muita coisa, pois não foram poucas as propostas teóricas e empreendimentos
concretos, desde o século XIX, que elaboram e reelaboram o caso da relação entre artistas
criadores e música folclórica. Ademais, a diferença percebida entre Cascabulho, Antônio
Nóbrega, de um lado, e A Barca e Mundaréu, de outro, reside mais no grau de integração ao
mercado em que se encontram, e no seu lugar de origem (os dois primeiros oriundos de
movimentos culturais das capitais do Nordeste, os segundos do sul do país), do que na
ligação – que não é exclusiva dos segundos – com o universo estudantil e com a pesquisa.
Outros fatos poderiam ser lembrados como sintomas da renovação do interesse não
somente pela música folclórica, mas pela cultura popular ou pelas tradições populares de
uma maneira geral: produções cinematográficas (como o premiado Central do Brasil, de
Walter Salles Jr.), mostras documentais (como “Estética do cangaço”, parte integrante da
grande exposição comemorativa dos 500 anos do Descobrimento do Brasil), discos recentes
de músicos cujas carreiras não estão necessariamente associadas à inspiração folclórica
(como Congado Celebration, do trompetista-jazzista Márcio Montarroyos).
A idéia de que estamos diante de reações locais à globalização já foi expressa por
participantes do movimento contemporâneo de redescoberta do folclore, por historiadores e
antropólogos 3 . Um estudante de música da UNIRIO que constituiu com os amigos um
“grupo de boi”4, em 1998, disse-me que a idéia era, no fundo, uma “resposta à globalização”
sob a forma de adesão a “valores mais profundos e sutis mesmo, modo de pensar, modo de
Ridenti (2000:14) fala de uma “reação ao ímpeto transnacionalizante neoliberal”; Ceva (2001) introduziu a
discussão da globalização.
3
3
viver, de se relacionar, pensamento comunitário; relações de vida diferentes das que a gente
acha por aí” (aluno do curso de MPB).
Os sintomas não esgotam-se na enumeração da página anterior. Haveria que
discriminar os fenômenos e indagar até que ponto não são sintomas da própria globalização:
a “Tenda Raízes” do Rock’n Rio é sugestiva. Prefiro pensar em ciclos de atração, alternada
com indiferença, dos estratos “cultos” pelas culturas populares no Brasil. Com efeito, o
reconhecimento de uma cultura brasileira original e originária do povo tem atraído, pelo
menos desde o final do século XIX, intelectuais, literatos, músicos e cientistas, em vogas que
se sucedem: romantismo literário, modernismo dos anos 1920 etc. Já se sugeriu também a
existência de uma linha de continuidade entre eles – linha que se constitui em reação crítica à
modernização e que se caracteriza pela busca da alteridade interna como passo para instituir
o Brasil como totalidade5.
Neste trabalho, desejo antes de tudo identificar um fenômeno que repercute na escola
de música da UNIRIO – provisoriamente chamado de “recente redescoberta” do folclore – e
delimitar contextos que possam torná-lo inteligível. A etnomusicologia tem uma
contribuição específica a dar, nesse caso, ocupando mesmo uma posição estratégica na
análise de movimentos culturais que têm na música uma de suas mais importantes frentes. A
música popular tem sido, de fato, o foco de numerosos discursos sobre a cultura brasileira e
um dos espaços sociais privilegiados para as mediações entre níveis de cultura6. Além disso,
o entusiasmo pelo folclore que se percebe entre estudantes universitários – parte do
movimento de que falo – torna o momento propício à ampliação do interesse pelos estudos
etnomusicológicos7.
4
Trata-se de um grupo cujas performances musicais, teatrais e coreográficas derivam do auto ou folguedo do
boi, conhecido em diversos locais do Brasil sob os nomes de bumba-meu-boi (Maranhão), boi-bumbá (Pará e
Amazonas), boi pintadinho ou boi malhadinho (Rio de Janeiro), boi-de-mamão (Paraná) etc.
5
V. o comentário que Luiz Fernando Dias Duarte endereçou aos trabalhos de Hermano Vianna, Letícia Vianna,
Adriana Facina e Roberta Ceva no seminário “Mediação, cultura e política”, organizado por G. Velho e K.
Kuschnir (2001).
6
V. a propósito o argumento de Hermano Vianna em O mistério do samba (1995).
7
Salta aos olhos a relação entre folclore musical e etnomusicologia, no Brasil e talvez em outros países
latino-americanos, onde o estudo das músicas extra-européias e não-ocidentais – objetos da etnomusicologia,
segundo as definições mais convencionais da disciplina – confunde-se com o estudo das músicas “populares”.
Em certo sentido, a etnomusicologia é a disciplina que amplia os horizontes temáticos e metodológicos do
folclore musical, vinculado a outras gerações de estudiosos, ao mesmo tempo em que “atualiza” seus quadros
teóricos e bibliografias.
4
1. Comparando dois movimentos culturais
O contato com estudantes entusiastas do folclore 8 tornou necessário delimitar
contextos que dêem inteligibilidade à adesão a tipos de música pouco (re)conhecidos na
instituição escolar. A imprensa chamou de “juventude enraizada” uma rede carioca de
estudantes e artistas identificados com a redescoberta do folclore9. A denominação pode
prestar-se a mal-entendidos (não é termo de autoidentificação), mas assinala a faixa etária
dos entusiastas do folclore e sua preocupação com o que há de profundo, sólido e com poder
gerador na cultura brasileira – as raízes. A palavra, embora desbotada, é amplamente usada
pelos jovens adeptos do forró, por exemplo (v. Ceva 2001), e por membros de grupos
teatrais-musicais10.
Consultamos também os jornais na expectativa de que o noticiário da imprensa
permitisse enxergar melhor a amplitude do interesse pela cultura popular11. Não foi surpresa
encontrar uma referência ao curso de música da UNIRIO numa matéria do Jornal do Brasil
(assinada por André Luiz Barros, publicada no Caderno B de 14/01/1997) sobre a
redescoberta da música folclórica. A escola foi citada como “ponto de encontro do pessoal da
raiz-galho”, alusão à declaração de um dos músicos do grupo Acorda Bamba, integrado por
estudantes do Instituto Villa-Lobos. Segundo ele, o grupo faz “samba de galho”, não
exatamente o samba de raiz, mas a ele ligado geneticamente.
Paralelamente, procurei estabelecer pontos de referência externos ao movimento
contemporâneo que pudessem iluminar-lhe os aspectos mais relevantes, por contraste ou
semelhança. Elegi como movimento cultural comparável aquele que surgiu também entre
estudantes, entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, institucionalizado no Centro
Popular de Cultura, órgão da União Nacional dos Estudantes. Congregava artistas de
diversas áreas, entre os quais os dramaturgos e atores Oduvaldo Vianna Filho (mais
Em “Perfis culturais de estudantes de música”, sistematização final das atividades de pesquisa no biênio
1998/2000 (Projeto Vocações musicais e trajetórias sociais de estudantes de música: o caso do Instituto
Villa-Lobos da UNIRIO), identifiquei um perfil de estudantes “populistas e adeptos de fusões”. Abandonei a
denominação “populistas”, preferindo falar de entusiastas do folclore ou “brincantes” (termo que explico
adiante).
9
A reportagem intitulada “Juventude enraizada” apareceu na Revista de Domingo, n. 1241, do Jornal do Brasil
de 13 de fevereiro de 2000.
10
Alguns estudantes e ex-estudantes da UNIRIO assinam o projeto “Raízes da tradição popular” que promove
espetáculos e oficinas de caboclinhos, maracatu etc.
11
Foram consultadas, no Centro de Documentação do Jornal do Brasil, matérias sobre folclore e cultura
popular entre 1998 e 2000. São citadas algumas matérias de 1997 e de 2001,
8
5
conhecido como Vianinha) e Gianfrancesco Guarnieri, o músico carioca Carlos Lyra, o poeta
Ferreira Gullar, entre outros. A UNE foi fechada em conseqüência do golpe militar de 1964 e
os cepecistas se reorganizaram como Grupo Opinião, que realizou o show homônimo, em
1965, do qual se falará adiante12.
“Participação” era uma palavra-chave na época, utilizada para indicar o objetivo
básico do projeto de arte engajada daquela época: levar o estrato intelectual-artístico a
intervir na vida política nacional. As artes eram o instrumento próprio do segmento artístico
para enfrentar os graves problemas da nação brasileira – problemas culturais, decerto, porém
radicados na infra-estrutura das relações econômicas, conforme o modelo que orientava o
pensamento de esquerda, bastante forte na área cultural.
A análise que segue tem como premissa a perspectiva segundo a qual o folclore é
constituído por construções simbólicas negociadas entre vários agentes sociais – estado,
intelectuais, setores das camadas populares, museus etc. Essas construções têm por objeto
elementos de cultura identificados como próprios das camadas populares e cristalizam-se em
torno de alguns deles, que passamos a reconhecer automaticamente como “folclóricos”:
bonecos de barro, bumba-meu-boi, romarias etc. Ao mesmo tempo, outros elementos, apesar
de integrados ao modo de vida das camadas populares, nem sempre são reconhecidos da
mesma maneira. Em outras palavras, as operações que classificam formas culturais como
“folclóricas”, “regionais”, “populares” etc. são históricas e contingentes. Luiz Gonzaga, o
aclamado “rei do baião”, não é conhecido como cantor folclórico no Brasil, apesar de seu
investimento em tipos regionais (sua indumentária era um misto de cangaceiro e vaqueiro) e
em gêneros musicais da tradição nordestina. Outro exemplo é o comentário de Charles
Perrone acerca da canção “Águas de março”, de Tom Jobim: de acordo com o estudioso, ela
“amplia o gênero folclórico samba de matuto” (1988:31). A informação pode ter sido
fornecida pelo próprio compositor, mas raramente “Águas de março” é lembrada em conexão
com o folclore.
Nas seções que seguem, discuto continuidades e descontinuidades entre os dois
contextos temporais focalizados (anos 1960 e anos 1990). Observar-se-á que a produção
cultural e musical tem suscitado algumas questões recorrentes: música folclórica é a música
12
A história do CPC foi reconstituída por Ridenti (2000) e Barcelos (1994). Carlos Estevam Martins foi o
primeiro diretor da entidade. Afastou-se em 1962 e foi substituído brevemente por Cacá Diègues. Depois
6
do povo como totalidade ou de um estrato social particular? podem artistas de classe média e
formação acadêmica, geralmente moradores das capitais do Sudeste do país, interpretar, sem
incorrer no pastiche, as músicas da população pobre, rural ou interiorana, geralmente do
Nordeste? podem fazê-lo sem idealização etnocêntrica? até que ponto essa preocupação é
cabível no âmbito da criação e performance artísticas? São questões que concernem,
basicamente, as relações entre estratificação social e alteridade cultural e que, nessa medida,
podem interessar aos campos acadêmicos da etnomusicologia e antropologia.
Na ordem de exposição adotada, apresento rapidamente o CPC e o contexto
político-ideológico em que surgiu, em seguida algumas impressões derivadas das entrevistas
com estudantes e da observação do movimento contemporâneo de redescoberta do folclore.
Recorri à bibliografia disponível sobre a produção cultural dos anos 1960, aos discos
e textos de algumas peças teatrais13. Para os anos 1990, sirvo-me das entrevistas e conversas
informais com estudantes da UNIRIO e da observação direta de espetáculos dos quais
participam, bem como do noticiário na imprensa diária. As maneiras como a “música do
povo” é representada pelos artistas nos dois contextos – os repertórios considerados e as
formas de apropriar-se deles – são ilustradas, basicamente, por meio dos discos Guarnicê –
uma singela opereta popular, do grupo Mundaréu (2000), Turista aprendiz, do grupo A
Barca (CPC-UMES, 2000), O povo canta (CPC da UNE, 1962) e Show Opinião (Philips,
1965). Não há nenhum CD gravado por estudantes da UNIRIO que pesquisam e interpretam
o repertório folclórico, mas assisti em 2000 e 2001 a vários espetáculos por eles organizados
ou dos quais participaram.
2. Anos 1960: o Manifesto do CPC da UNE
A idéia de cotejar dois movimentos culturais separados por três décadas – um que se
inicia após a Revolução Cubana, marco no imaginário da esquerda latino-americana – e outro
após a queda do muro de Berlim, que sepultou o “socialismo real” – não é arbitrária. Há
quem sugira continuidades entre a produção cultural dos anos 1990 e as de trinta anos atrás:
assumiu o CPC Ferreira Gullar, que dirigiu o órgão até seu fechamento, em 1964.
13
Consultados nos arquivos do Museu da Imagem e do Som (Rio de Janeiro), Funarte e Biblioteca da UNIRIO.
Agradeço a Beatriz Paes Leme, Cynara, Santuza Cambraia Naves e João Maia pela ajuda na busca aos discos
Opinião e O povo canta (CPC-UNE). Santuza Naves cedeu-me gentilmente uma entrevista inédita que realizou
com o compositor Carlos Lyra. Sou grata a Cláudia Maria Villar Caldeira, bolsista de Iniciação Científica, que
visitou os arquivos e providenciou cópias do material de interesse da pesquisa.
7
Marcelo Ridenti crê que questões mal resolvidas daquela época retornam agora, como
“reação ao ímpeto transnacionalizante neoliberal” (2000:14). Têm aparecido diversas
referências, entre estudantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, ao antigo Centro Popular de
Cultura da União Nacional dos Estudantes. Um novo CPC foi criado no âmbito da União
Metropolitana dos Estudantes Secundaristas em São Paulo, em 1995, tendo como guia
espiritual um dos integrantes do antigo CPC (o cineasta Denoy de Oliveira, já falecido). O
selo fonográfico dessa entidade edita os discos do grupo “A Barca”, por exemplo, bem como
música popular que tem poucas chances de ser ouvida pelos canais das grandes
corporações14. Um boletim recente da UNE fala da construção de Centros Universitários de
Cultura e Arte (CUCAS) cuja proposta foi objeto de um debate que contou com a
participação do poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, ex-dirigente do CPC. Estudou-se ali
“...a possibilidade de criação de algo parecido com o que foi o CPC, repensado e voltado para
os dias de hoje”. O CPC, em suma, volta a ser uma referência para os estudantes, após
algumas décadas durante as quais a sigla era lembrada como ilustração das fraquezas
estético-políticas da arte engajada. Mas a principal razão para lembrá-lo neste trabalho é a
freqüência e a força com que ele (e seu sucessor, o Opinião) invocou as idéias de povo,
popular, música popular.
Por ter sido muito criticado, desde sua fundação, e por ter apresentado um célebre
“Anteprojeto do manifesto” – documento que formaliza intenções e tomadas de posição –, o
CPC aparece como um movimento propriamente dito, de contornos desenhados. Em outras
palavras, o CPC pode ser definido em seus limites cronológicos e princípios ideológicos. Ao
contrário disso, a multiplicidade de iniciativas contemporâneas atestando o entusiasmo pelo
folclore não apresenta a mesma nitidez.
Além disso, as produções que apareceram sob sua égide não são, necessariamente,
ilustrações da doutrina exposta no Manifesto, rejeitado mesmo pelos que participaram da
fundação do órgão! Conta o compositor Carlos Lyra que tinha diversas discordâncias com
outros membros do CPC, tendo mesmo se posicionado contra o nome inicialmente proposto,
“A Gravadora CPC-UMES é uma alternativa para todas as correntes da Música Popular Brasileira,
notadamente aquelas que, por sua qualidade e diferenciação, não encontram lugar na mídia convencional. A
gravadora valoriza as expressões regionais, a tradição étnica, a história musical do povo brasileiro, a memória
sonora do nosso cinema e do nosso teatro, o trabalho dos novos, o resgate dos mestres, a vanguarda, o clássico,
o moderno e o eterno. Nosso compromisso maior é com a qualidade e a valorização do principal bem cultural de
nosso país: a música” (reproduzido do site CPC/UMES na Internet).
14
8
Centro de Cultura Popular, pois não sendo ele mesmo um representante do “povo”, “não
saberia produzir o tipo de música que aqueles sambistas faziam” (v. Castro 1997:261)15. Os
adeptos da “bossa nova nacionalista” (Lyra, Nelson Lins e Barros) não identificavam-se com
o Manifesto porque estavam preocupados com os aspectos estéticos da canção, e não apenas
com a conscientização política, de sorte que na música o documento teve pouca influência
real (v. Napolitano 2001:44). Segundo depoimento de Ferreira Gullar, o show Opinião era, já
em 1965, uma superação do sectarismo do CPC. Em resumo: os próprios cepecistas criticam
o Manifesto.
O “Anteprojeto do manifesto” (republicado na íntegra no livro de Heloisa Buarque de
Hollanda 1980) expõe as convicções do CPC a respeito da arte e cultura. Em primeiro lugar,
recusa-se a concepção idealista que trata os problemas da arte como problemas
exclusivamente estéticos. A arte “...não pode ser entendida como uma ilha incomunicável e
independente dos processos materiais que configuram a existência da sociedade”. O artista,
como qualquer outro homem, está preso às “contradições, às lutas e às superações por meio
das quais a história nacional segue o seu curso” (apud Hollanda 1980:121). Como parte da
superestrutura, a arte mantém estreita conexão com as “relações de produção que formam a
estrutura econômica da sociedade”. Em segundo lugar, opõem-se “artista alienado” e
“criador consciente”. O primeiro, acreditando poder fugir à tomada de posição, toma posição
à sua revelia. A escolha está dada entre ser sujeito ou “objeto passivo”.
A noção de povo veiculada no manifesto engloba não só a classe revolucionária, que
teria como destino histórico transformar a sociedade (operariado industrial), mas os estratos
aliados (burguesia nacional, intelectuais), idéia defendida pelo Partido Comunista Brasileiro,
na época. Outras noções importantes do texto são as de “arte do povo” – que se aproxima de
um conceito de folclore 16 –, “arte popular” – a da indústria cultural – e “arte popular
“Carlinhos explicou que o fato de gostar de samba de morro não o fazia ter vontade de mudar-se para a favela
e que, portanto, não saberia produzir o tipo de música que aqueles sambistas faziam. Além disso, usava camisas
de zuarte, compradas na Casa da Pátria, na Praça Quinze, apenas porque estavam na moda. Mas era favorável a
um centro popular de cultura, que estaria aberto a todas as tendências” (Castro 1997: 261).
16
“A arte do povo é predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de
preferência no meio rural ou em áreas urbanas que ainda não atingiram as formas de vida que acompanham a
industrialização. O traço que melhor a define é que nela o artista não se distingue da massa consumidora.
Artistas e público vivem integrados no mesmo anonimato e o nível de elaboração artística é tão primário que o
ato de criar não vai além de um simples ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada” (apud
Hollanda 1980:129).
15
9
revolucionária” – a ser feita pelo CPC. A rigor, as duas primeiras não podem ser chamadas de
“arte”, por falta de qualidade técnica.
Admite-se, porém, uma relativa autonomia da arte que é a condição de possibilidade
de uma arte revolucionária:
Se não fosse possível à consciência o adiantar-se em relação ao ser social e
converter-se, dentro de certa medida, em uma força modificadora do ser social,
também não seriam exeqüíveis nem a arte revolucionária nem o CPC (apud Hollanda
1980:123).
O tom característico das vanguardas políticas tornou antipático o Manifesto, mas algumas
idéias ali contidas eram consensuais.
Os anos 1950 caracterizaram-se pelo reforço da tendência nacionalista dos setores
que apostavam no desenvolvimento econômico-social da sociedade brasileira – para alguns,
um desenvolvimento autônomo que se faria acompanhar de uma cultura igualmente
autônoma (Reis Filho 2000; Mota 1985)17. Aos intelectuais foi confiada a tarefa de funcionar
como “consciência nacional” que catalisaria as forças dos segmentos interessados na
superação do subdesenvolvimento: burguesia industrial, operariado, classe média. Era
importante falar para todos esses setores aliados. Na vertente nacional-desenvolvimentista18,
o “Brasil arcaico” (resíduos herdados do passado colonial, arraigados nas regiões atrasadas e
interioranas dominadas por relações de produção pré-capitalistas) era uma barreira ao projeto
de independência econômica e cultural19. Boa parte do que interessava aos folcloristas, e que
hoje entusiasma setores da juventude, caía na rubrica do arcaísmo.
“...um povo economicamente colonial ou dependente também será dependente e colonial do ponto de vista da
cultura” (Roland Corbisier, diretor-executivo do ISEB, em Formação e problema da cultura brasileira, de
1958, apud Mota 1985:165). Segundo Daniel Aarão Reis Filho, os principais elementos do projeto de
desenvolvimento capitalista autônomo eram: um estado forte e intervencionista; planejamento centralizado; um
movimento ou um partido congregando as diferentes classes em torno de uma ideologia nacional; íntima
associação entre estado, patrões e trabalhadores; crítica à liberalidade irrestrita dos capitais; defesa dos
interesses nacionais e justiça social. V. também Bóris Fausto (1996:407): os nacionalistas almejavam um
“desenvolvimento baseado na industrialização, enfatizando a necessidade de se criar um sistema econômico
autônomo, independente do sistema capitalista internacional. Isso significava dar ao Estado um papel
importante como regulador da economia e como investidor em áreas estratégicas”.
18
“A expressão nacional-desenvolvimentismo, em vez de nacionalismo, sintetiza pois uma política econômica
que tratava de combinar o Estado, a empresa privada nacional e o capital estrangeiro para promover o
desenvolvimento, com ênfase na industrialização. Sob esse aspecto, o governo JK prenunciou os rumos da
política econômica realizada, em outro contexto, pelos governos militares após 1964” (Fausto 1996:427).
19 O ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), órgão criado em 1955 e subordinado ao Ministério da
Educação, tornou-se o organismo de assessoria ao governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek
(Fausto 1996:426).
17
10
Os movimentos sociais populares (Ligas Camponesas, sindicatos etc.) alcançaram,
nessa época, um grau de organização que lhes permitia pressionar os governos reivindicando
as reformas de base (Reis Filho 2000). A pressão radicalizou-se em fins de 1963,
amedrontando os setores sociais beneficiados com o dinamismo econômico20. Guerra-fria e
macartismo, no plano internacional, contribuíam para identificar nacionalismo radical e
comunismo, no Brasil. As bandeiras anticomunistas foram empunhadas pelos porta-vozes da
defesa da “civilização cristã ocidental” e a reação capitaneada por militares instalou um
regime baseado em leis de exceção, cassação de mandatos e extinção de partidos políticos.
Com o golpe de estado de abril de 1964, os movimentos sociais de esquerda tornaram-se
clandestinos ou foram desarticulados. A partir do movimento estudantil, tentaram-se
organizar grupos revolucionários que apostavam suas fichas numa “utopia do impasse” – a
crença na inevitável derrocada da ditadura, por sua incapacidade de encaminhar o processo
de emancipação do imperialismo21.
Nesse contexto situam-se os discos O povo canta (1962), Opinião de Nara (Philips,
1964) e Opinião (Philips, 1965. O primeiro coincide com a ascensão do movimento em prol
das reformas de base e reúne quatro canções políticas que tematizam a subordinação do
Brasil ao imperialismo norte-americano. A linguagem é direta, os autores e intérpretes não
sofreram censura, o disco foi produzido numa época em que a UNE era uma entidade legal. O
show Opinião, por sua vez, considerado o primeiro gesto de resistência dos artistas à ditadura
militar, como que dá início a uma longa lista de obras que recorrerão à metáfora para falar da
oposição ao regime militar, dos trabalhadores explorados, da pobreza. Antes disso, em 1964,
com os militares já no poder, Nara Leão, a “musa da bossa-nova”, gravou Opinião de Nara,
“o disco que rachou a bossa nova”, com sambas de Zé Kéti22 e da dupla Baden Powell e
Vinícius de Moraes, uma toada de protesto de João do Vale, cantigas de capoeira. Hoje soa
É preciso deixar claro que as reformas de base não visavam à implantação do socialismo: “É fácil perceber
que as reformas de base não se destinavam a implantar uma sociedade socialista. Eram apenas uma tentativa de
modernizar o capitalismo e reduzir as profundas desigualdades sociais do país, a partir da ação do Estado. Isso
porém implicava uma grande mudança à qual as classes dominantes em geral, e não apenas os latifundiários
como se pensava, opuseram forte resistência” (Fausto 1996:448).
21
“Com essa crença se organizaria a autodenominada esquerda revolucionária, ou nova esquerda. Para eles, a
ditadura era uma tragédia, mas tinha uma virtude: a de limpar os horizontes, removendo da cena política as
tradições moderadas do PTB e do velho PCB de Prestes, soterrados sob os escombros da derrota política.
Agora, não mais seria possível cultivar ilusões. As massas se transformariam em classes, e a revolução, a
autêntica revolução, poderia despontar como hipótese” (Reis Filho 2000: 43).
22 Nome artístico de José Flores de Jesus (1921-1999), compositor e cantor.
20
11
um disco bossa-nova 23 , mas na época foi percebido como uma ruptura, conforme a
declaração de Nara Leão numa entrevista na revista Fatos e Fotos:
Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha
de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão
do povo, e não uma coisa feita de um grupinho para outro grupinho. E essa história de
dizer que a Bossa Nova nasceu na minha casa é uma grande mentira. Se a turma se
reunia aqui, fazia-o em mais de mil lugares. Eu não tenho nada, mas nada mesmo,
com um gênero musical que não é o meu e nem é verdadeiro (apud Castro 1997:348).
A virada nacionalista foi criticada, na época, por instalar a promiscuidade entre arte e
política. A ingenuidade política da cultura do “protesto” também não passou desapercebida.
Na ausência de base social efetiva – pois os movimentos sociais haviam recuado –,
estudantes e intelectuais de esquerda protestavam nos teatros freqüentados por seus pares,
transformando cada performance numa catarse. Uma crítica conhecida foi formulada em
termos sarcásticos por Ruy Castro: o Opinião teria inaugurado a “ideologia da pobreza, uma
praga da música popular brasileira” (1997:351). Artistas da zona sul do Rio de Janeiro,
vestindo “roupas de butique de Ipanema”, passavam a cantar a dura vida dos pobres.
Discutir se artistas têm – e quais artistas têm – o “direito” de falar pelo “povo” não
cabe no tipo de análise que procuro fazer. Marcelo Ridenti (2000:52-53) indica a pequena
representação das classes subalternas na política como solo propício ao aparecimento de
“porta-vozes” na classe média. Entretanto, outros autores assinalam precisamente que os
movimentos sociais populares (no campo e na cidade) tinham peso no jogo político dos anos
1950. Pode-se, ainda, lembrar as tradições políticas populista e paternalista, bem como as
mediações entre níveis de cultura que têm sido detectadas na sociedade brasileira (v. por
exemplo Velho e Kuschnir 2000).
Em lugar de discutir a eficácia do protesto, ou quem tem direito a falar dos pobres,
prefiro buscar o sentido que o protesto adquiria para os atores sociais na época. Maria
Hermínia de Almeida e Luiz Weis (1998:384), nessa direção, lembram que a participação
política tinha, para membros da classe média intelectualizada, o cunho de uma “reforma
23
V. a impressão de Marcos Napolitano: a bossa-nova nacionalista era antes de tudo bossa-nova. O autor
sustenta também que uma mistura de bossa-nova e samba tradicional configurou o padrão de sonoridade da
MPB nascente, espelhado nos LPs das gravadoras Elenco e Philips (2001:49-51).
12
moral” que envolvia a recusa da visão de mundo pequeno-burguesa 24 . A participação
resumia-se, ocasionalmente, à panfletagem, audição e canto de música de protesto, apoio a
pessoas na clandestinidade. Era, antes de tudo, participação numa cultura de esquerda, num
tempo em que “reinava um estado de espírito combativo” (Schwarz 1989:30).
A ascensão dos movimentos sociais, seguida do golpe de 1964, coincide com
capítulos movimentados da história da música popular: bossa-nova, “racha” na bossa-nova,
canção de protesto, festivais da canção, tropicália, iê-iê-iê. As apreciações desses capítulos
variam, embora certo consenso tenha se formado em torno da crítica à chamada canção de
protesto25, que aparece imprensada – num momento político fugaz – entre as bem sucedidas e
celebradas bossa-nova e tropicália. No entanto, passaram por ela bossanovistas, como Carlos
Lyra e Nara, futuros MPB, como o quarteto MPB4, sambistas, como Zé Kéti.
Ocorre que a perspectiva política nacional-popular, dominante até 1967, entra em
crise no fim dos anos 1960, precipitando a crítica generalizada à canção engajada
(Napolitano 2001). José Miguel Wisnik acredita que a tropicália respondeu ao momento
político de forma mais adequada, por sua capacidade de criticar o populismo nacionalista e
de apreender o Brasil como realidade heterogênea: “No fermento da crise que espalha ao
vento, o tropicalismo capta a vertiginosa espiral descendente do impasse institucional que
levaria ao AI5” (Wisnik 1979/80:16)
Convém lembrar que canção de protesto não é gênero musical. O protesto pode
aparecer sob as vestes do baião, do samba, da marcha, da bossa-nova... desde que se façam
presentes temas político-sociais na letra, literal ou metaforicamente veiculados. Nos anos
1960, isso significava denúncia do imperialismo yankee, da exploração do trabalho, da
concentração da propriedade da terra, das relações econômica desiguais. Entretanto, dada a
parcial superposição dos círculos sociais da bossa-nova e da canção de protesto, é natural
Marcos Napolitano também critica a tese do “circuito fechado de comunicação” (o protesto confinado a
pequenos círculos), sustentada por Heloisa Buarque de Hollanda e Roberto Schwarz. O muito conhecido e
citado ensaio de Walnice Nogueira Galvão, que identifica com acuidade o tema do “dia que virá” na canção de
protesto, também considera que, no nível ideológico, tal canção propunha o imobilismo e a expectativa ingênua
de que as mudanças sociais ocorreriam por uma espécie de fatalidade. Creio que a crítica parece compartilhar,
com os autores das canções de protesto, a premissa de que as canções deveriam conter análises políticas
desembaraçadas de qualquer resíduo ideológico e promover a verdadeira mobilização para a ação.
25
Não investigamos a origem dessa expressão no Brasil. Silvio Mehry, em comunicação pessoal, afirmou que
se trata de uma tradução de protest song, então em voga nos Estados Unidos, ressaltando a ironia de uma
importação destinada precisamente a mobilizar corações e mentes contra o imperialismo yankee. É possível que
tenha razão. No show Opinião foi incluída “Guantanamera”, que Pete Seeger tinha transformado em um hit da
esquerda norte-americana.
24
13
que, muitas vezes, a última se assemelhe musicalmente à primeira, principalmente na
configuração timbrística (v., por exemplo, o disco Opinião de Nara, de 1964).
Augusto de Campos foi o primeiro a reparar que a bossa-nova inovou ao retirar a
canção do registro grandiloqüente e sentimental, vigente no samba-canção e no bolero (v.
Campos 1993). No lugar das vozes potentes e da interpretação inflamada, a bossa trouxe o
estilo vocal contido e ritmicamente preciso, a poesia leve, coloquial. Esta intervenção
inovadora foi traída, entretanto, nas recaídas sentimentais ou épicas da canção de protesto. A
observação do crítico é correta no que tange à poética do protesto, avessa à contemplação da
paisagem carioca que sintetiza a vertente mais nuclear da bossa-nova.
Por outro lado, há quem perceba que boa parte da canção de protesto é um
desdobramento da bossa-nova – no estilo musical e nos personagens que figuram como elos
de ligação (Vinícius de Moraes, Carlos Lyra, Nara Leão). É o que observa Charles Perrone
(1998) quando se refere a uma “segunda fase” da bossa-nova, caracterizada pela presença de
“regionalismos”, “protesto” e temas da atualidade26.
Wisnik também fala de desdobramento da bossa-nova, associando, uma vez mais,
populismo nacionalista e recurso a tradições musicais populares:
A bossa-nova não sustentou muito tempo intatos o intimismo urbano e a
contemplação otimista do País moderno que a caracterizaram, pois as linhas cruzadas
daquele momento cultural, em que um projeto populista de aliança de classes em
bases nacionais contracenava fortemente com o desenvolvimentismo, levaram a que
ela se desdobrasse numa música de tipo regional, rural, baseada na toada e na
moda-de-viola, quando não no frevo, no samba e na marcha-rancho. Vandré, Sérgio
Ricardo, Edu Lobo, Gilberto Gil e o próprio Caetano, entre outros, fizeram a mesma
passagem, de uma formação bossanovística para a canção de protesto (1999:121).
3. Anos 1990: a redescoberta do folclore
O gosto atual pelo folclore repercute no noticiário jornalístico, na crítica musical e de
espetáculos veiculada na grande imprensa. Uma rápida mirada nesse noticiário basta para
26 “Três aspectos da ascensão (1958) e evolução da Bossa Nova são especialmente pertinentes ao estudo da
relação música-poesia: a carreira musical de Vinícius de Morais, o aparecimento de Violão de rua (1962) e de
composições nacionalistas juntamente com a poesia de cunho social, e a instituição dos festivais de música
popular em 1965 [...] As composições do início da Bossa Nova estavam limitadas quase que exclusivamente a
canções de caráter íntimo. Mas numa segunda fase o novo estilo incorporou obras regionalistas, canções que
falavam de acontecimentos atuais e música de protesto. Na primeira metade da década, a música popular, o
filme, o teatro e a literatura identificavam-se cada vez mais com a efervescência de atividade política e com a
preocupação de uma conscientização de problemas sócio-econômicos” (Perrone 1988:25 e 32).
14
perceber que não há uniformidade entre os artistas ou as produções vinculados à tendência,
nem termos de geração e de formação, nem no modo de inserção no mercado. A intensidade
do engajamento com um projeto artístico calcado na cultura popular, pode-se supor, também
varia.
Há ecos da tendência em artistas e produtores que já têm longa carreira profissional,
muitas vezes sem qualquer manifestação antecedente de inclinação pela cultura popular ou
folclore. Por outro lado, há aqueles cuja identidade pessoal e profissional vem sendo
elaborada precisamente no cultivo dessa inclinação. Há ecos na atividade amadorística
estudantil e em produções do circuito alternativo – considerado mais “cultural” (e menos
comercial) que aquele dependente do financiamento das grandes corporações. De forma
inesperada, ela ecoa também em setores que nos habituamos a enxergar como desengajados
de qualquer preocupação com folclore, cultura popular ou nacional, como os músicos
jazzistas (ou que fazem jazz fusions).
O noticiário detecta a distância social e cultural que separa a “juventude enraizada”
(composta sobretudo por estudantes universitários de classes médias) dos setores populares
da cultura brasileira. A distância evidencia-se no relato do espanto das famílias diante, por
exemplo, dos CDs que seu filho ou filha começa a ouvir em casa: “Aí eu fui ver esse show
[Segundas Histórias, de Antônio Nóbrega] e fiquei apaixonada”, conta uma estudante,
comprei o CD e ficava ouvindo umas dez vezes. Minha mãe ficava falando: – Tira
essa música, que eu não agüento, meu namorado ficava sacaneando o jeito como ele
cantava, sabe, e eu fiquei apaixonada... (aluna do curso de Museologia da
UNIRIO)27.
Ou diante do gosto por viagens para a “roça”, períodos de tempo em comunidades
alternativas em cidades pequenas e áreas rurais: “meus pais são hiper-urbanos [...] aí quando
eu comecei a viajar, a ir pra roça, não queria mais voltar, aí eles falavam: [...] quê que cê fica
tanto tempo lá, quê que tem lá?” (aluno do curso de MPB).
A distância social entre os estudantes e os artistas populares ligados às chamadas
raízes culturais constitui um enigma. Roberta Ceva, como outros, pergunta-se: se o forró
sempre esteve aí, próximo, na Feira de São Cristóvão, se Luiz Gonzaga e Jackson do
27
A estudante foi entrevistada, apesar de não estar inscrita em curso de música, por ser membro de grupos
folclóricos estudantis integrados por alunos do Instituto Villa-Lobos e por ter freqüentado como ouvinte a
disciplina Folclore Musical Brasileiro, no IVL.
15
Pandeiro já tinham sido revisitados, em outras ocasiões, e se a demanda por uma cultura
autêntica, brasileira, também nunca cessou de existir, por que surgem as bandas de forró
entre universitários como uma “descoberta”?28
Talvez na própria pergunta – por que eles se interessam por folclore? – resida parte da
explicação. O encanto de que se reveste o folclore não resulta de propriedades intrínsecas dos
jongos e sambas-de-roda, toadas de boi, cantigas de folião e romances. Em conjunto, só
fazem parte da experiência cultural do pesquisador de folclore, e não dos jongueiros,
sambistas, brincantes e foliões. O que une esses itens na mesma classe, sob a rubrica folclore,
é a distância que guardam da experiência cultural corriqueira dos setores médios urbanos;
distância simbólica, bem entendido, que pode resultar da raridade propriamente dita (nenhum
desses itens tem lugar assegurado no núcleo mais dinâmico do mercado de música popular),
do afastamento geográfico-social, das peculiaridades do estilo musical e da performance.
Corrobora esta idéia a observação de espetáculos e CDs dos grupos do eixo Rio de
Janeiro/São Paulo (pode-se incluir o Mundaréu, de Curitiba), que fazem passeios pelo amplo
território brasileiro. Juntam-se cantigas de boi de várias partes do Brasil, cantos de vários
folguedos natalinos e assim por diante. Apesar disso, percebe-se que uma certa fidelidade aos
estilos tradicionais é um preceito estético desses grupos.
O inverso ocorre nos espetáculos e CDs dos músicos do Nordeste ligados à mesma
tendência de revalorização do folclore. Sua inspiração provém, em parte, das tradições de
seus locais de origem (embolada para Zeca Baleiro, cantoria, coco e forró para Mestre
Ambrósio e Cascabulho, carimbó para Chico César etc.), em parte do rock e pop, o que os
afasta dos timbres e instrumentações acústicos tradicionais. Em lugar da referência ao
“folclore brasileiro”, genérico, a dupla referência às instâncias local e global (v. Mancilla
2001).
Alguns depoimentos de estudantes ajudam a entender o que se vislumbra nos cantos,
danças e folguedos do povo. Uma aluna conta que o repertório musical do folclore produz
nela “um estremecimento espiritual”, efeito único, que explica sua adesão apaixonada à
prática de danças como cacuriá, maracatu e pastoril. O gosto pelo folclore une também os
jovens numa espécie de comunidade simbólica de iniciados. Quem dança num grupo de
“Por que jovens cariocas das camadas médias sem necessariamente uma ligação imediata com o Nordeste
resolvem tomar um elemento da cultura nordestina como signo mais representativo de nossa identidade? Por
que não o ‘legítimo samba carioca’, há tempos transformado em ritmo nacional...? “ (2001:118).
28
16
maracatu já fez ou faz capoeira, freqüenta eventualmente rodas de samba, oficinas de jongo
etc. Na geografia do Rio de Janeiro, isso significa conhecer determinado circuito alternativo
de cultura, mais ou menos invisível para a mídia, divulgado boca a boca entre universitários.
Assim, todas aquelas coisas vão juntando-se como espécimes de um mesmo gênero pelo fato
de serem encontráveis reunidos na prática cultural dos entusiastas do folclore. Freqüentar a
“juventude enraizada” (residências, espaços culturais, campi universitários, praia, etc.) é
mover-se numa rede social em cujo horizonte cultural existem capoeira, boi, samba, forró,
maracatu, jongo, ciranda etc., bem como contatos diretos, muito valorizados, com os
“mestres” da cultura popular. Como disse uma estudante: “...você encontra, na verdade,
sempre as mesmas pessoas nessas coisas”. E é com elas que se aprende o “sentimento da
brincadeira”.
O folclore propicia, também, ocasiões de expressão espontânea, individualizada,
liberta da necessidade de “fazer perfeito” característica do mundo do show business. Essa
desestetização acaba distanciando o entusiasta do folclore do ideal de elevada qualidade
artística hegemônico no ambiente escolar. Há, em lugar disso, o desejo explícito de intervir
social ou culturalmente por meio da prática artística: Veja-se este depoimento de um
estudante:
E tem esse grupo de boi, que começou em 98, que na verdade não ia ser nem um
grupo de boi…Começou com a idéia de fazer um grupo de arte, de amigos, de se
juntar pra fazer trabalho voluntário em orfanato, creche, favela. E aí não sei, apareceu
um boi, alguém tinha um boi. – Vamos fazer um boi! [...] A nossa intenção no
começo... a intenção original não era nem essa, era fazer um evento humanitário, aí
foi, a gente começou a se apresentar e aí começa a necessidade de fazer o teatro
(aluno do curso de Música Popular Brasileira).
Se avaliarmos essa fala com os critérios de conscientização política da esquerda dos anos
1960, ela soará ingênua. No contexto geral do depoimento, é uma fala que politiza a atividade
artística, algo que os une aos cepecistas e outros artistas engajados do passado os entusiastas
do folclore.
A análise das entrevistas, de alguns CDs e alguns espetáculos, bem como a leitura do
noticiário, permitem algumas afirmações genéricas sobre o movimento contemporâneo de
redescoberta do folclore. Elas são comentadas a seguir, mantendo-se a perspectiva de
comparação com os anos 1960, sempre que pertinente.
17
3. Uma arqueologia do folclore musical
A revisitação sistemática da obra de folcloristas e artistas considerados pioneiros ou
precursores, que se observa atualmente, sugere uma “arqueologia” do folclore. Incluo aí as
descobertas de artistas populares, isto é, a incorporação nos circuitos universitário e
alternativo de músicos, dançarinos, artesãos e poetas cujas carreiras se desenvolviam em
cidades do interior, nas feiras, festas da zona rural etc.
Dentre os folcloristas, Mário de Andrade é a referência mais importante em matéria
de estudo etnográfico da cultura popular. O trajeto de sua viagem de 1928/29, bem como o da
Missão de Pesquisas Folclóricas que ele concebeu e organizou, dez anos depois, tem sido
refeito, como se seus passos precisassem ser reencontrados, literal e metaforicamente29. De
fato, Mário de Andrade abriu frentes de estudo que tiveram pouca continuidade no Brasil. No
âmbito dessa arqueologia da música popular está a revisitação dos lugares onde Mário de
Andrade fez sua pesquisa de campo, que permite comparar as realidades culturais locais
contemporâneas com as dos anos 1920 e 1930 – sobretudo no que diz respeito à situação do
folclore. Medem-se, a partir daí, as perdas, transformações, resistências30.
Dentre os músicos populares, Jackson do Pandeiro e Jacinto Silva31 recebem tributos
dos colegas mais jovens e têm sua obra por eles reinterpretada. Outros, cujas carreiras se
desenrolavam à margem do mercado, são produzidos em disco e espetáculos, no Rio de
Janeiro e São Paulo (a cantora de ciranda pernambucana, Lia de Itamaracá, é um exemplo).
As descobertas de artistas populares foram freqüentes nos anos 1960. Zé Kéti, João
do Vale, Nelson Sargento, Cartola, Clementina de Jesus, todos ganharam notoriedade junto
às platéias intelectualizadas que se identificaram com a música popular politicamente
engajada, nos primeiros anos da ditadura militar. Se repararmos o número de sambistas dessa
29
Sua obra de folclorista já foi revisitada antes, por um ou outro artista, isoladamente (v. por exemplo o disco de
Teca Calazans, Musique Populaire Brésilienne, produzido pela Divisão de Música Popular da Funarte).
Contudo, a atuação simultânea de A Barca, Antônio Nóbrega e outros retirando do silêncio dos arquivos os
repertórios que ele recolheu é algo que não se viu anteriormente.
30
Uma equipe da TV Cultura de São Paulo refez o roteiro da Missão de Pesquisas Folclóricas para um filme
sobre a própria Missão, com atores representando os membros da equipe (Luís Saia, Martin Braunwieser,
Benedito Ladeira), assim como Mário de Andrade, Oswald e Tarsila do Amaral. A equipe tinha uma pergunta
básica, segundo o produtor Jorge Palmari: as tradições folclóricas permaneceram ou não, durante as seis últimas
décadas? “Muita coisa mudou – disse ele – mas alguns grupos ainda resistem com bravura, como os congos, de
origem africana, que vivem em Pombal, cidade no alto sertão da Paraíba” (Jornal do Brasil, 26/02/1998,
Caderno B). V. também Carlos Sandroni (1999).
18
lista, concluiremos que a arqueologia os beneficiou, embora ela não tivesse como foco,
deliberadamente, o samba urbano. João do Vale e Clementina de Jesus estendiam um pouco
o leque de gêneros, trazendo baiões, xotes, pontos de jongo e de umbanda.
Contudo, o desejo de conhecer os músicos e músicas espalhados pelo Brasil existia e
é atestado pela ampliação de sonoridades da nascente MPB. Há muito mais do que samba no
show Opinião, no disco Opinião de Nara, na música de cena de Edu Lobo para Arena canta
Zumbi, nos afro-sambas de Baden e Vinícius, na trilha sonora de Sérgio Ricardo para Deus e
o diabo na terra do sol (de Glauber Rocha). O foco não planejado nos sambistas pode ter sido
o resultado da conjugação de dois fatores: proximidade geográfica (os sambistas moravam
no Rio de Janeiro) e grau de familiaridade que esses já tinham com o mundo profissional da
música popular. Pois o interesse pelas artes do povo era satisfeito no Rio de Janeiro, em
locais de encontro como o restaurante Zicartola, ou por meio de conhecedores da cultura
popular de outras regiões 32 . Não havia a necessidade imperiosa da viagem para ver e
experimentar in situ.
O movimento recente de redescoberta investe num leque mais amplo de repertórios,
gêneros e sonoridades. Nesse sentido, ele é tributário do avanço da modernização que tornou
viagens e comunicações mais rápidas e fáceis. O samba urbano praticado nos morros,
subúrbios e periferias continua a ser admirado por músicos, artistas e intelectuais da zona sul.
Embora a idealização das raízes e da tradição autêntica possa ainda ser projetada sobre o
samba urbano, tanto quanto há 30 anos atrás, ela tende, pelo menos no caso da “juventude
enraizada”, a dirigir-se para objetos menos próximos do ponto de vista cultural e geográfico.
Daí o renascimento do interesse pelo folclore nordestino de origem rural ou de cidades
pequenas, pelos batuques e jongos do interior dos estados do Sudeste, pelo bumba-meu-boi
maranhense e assim por diante.
Sob outro aspecto, as descobertas de artistas e repertórios musicais populares não
tinham conotações arqueológicas. Elas simbolizavam o papel do povo brasileiro numa
transformação iminente da sociedade, mirando, portanto, o futuro. Nesse sentido, o Opinião
31
O primeiro desenvolveu carreira bem sucedida no Rio de Janeiro, nos anos 1950; o segundo, alagoano,
permaneceu no Nordeste, onde gravou diversos discos desde 1959 e morreu desconhecido do público
“nacional” no início deste ano de 2001.
32
Em suas memórias da época da bossa-nova, Nelson Motta (2000) evoca as reuniões de amigos, praticamente
todos envolvidos com o novo “gênero” musical, e a presença insólita de Aloysio Magalhães, que cantava
desafios nordestinos.
19
é exemplar: Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão representavam a aliança de classes
(trabalhadores urbanos, rurais e burguesia esclarecida) necessária para fazer frente ao
imperialismo e ao latifúndio. “O dia que virá” é a expressão das esperanças depositadas no
futuro. Se agora parece não haver a mesma disposição prospectiva, a preocupação com
precursores sugere o sentimento de que um elo com a tradição foi perdido.
4. Combinação entre pesquisa e atividade artística
A arqueologia de que falei no item anterior é inspiradora da criação artístico-cultural.
Ela não esgota-se na viagem e nos contatos diretos com os praticantes da cultura folclórica.
Tampouco tem como objetivo único a produção de um trabalho científico, dissertação ou tese
acadêmica sobre a cultura e a música brasileiras. Os participantes prezam a criação de grupos
de dança, música, teatro e ópera que oferecem, eventualmente, “lições” de cultura brasileira.
Isso não exclui o envolvimento com a pesquisa científica, e freqüentemente articula-se com
ela, mas a atividade distanciada e não-participante do pesquisador não têm o mesmo apelo do
fazer artístico e das expressões musicais e corporais.
A combinação entre pesquisa etnográfica (não necessariamente nos moldes
preconizados no meio acadêmico)33 e atividade artística é um elemento crucial na definição
da identidade dos jovens interessados nas “raízes”. Da mesma forma como coexistem em
Mário de Andrade o poeta e o folclorista, artistas profissionais e estudantes, hoje, tentam
combinar (re)criação e investigação – o que não é de surpreender, pois para interpretar
repertórios da tradição popular é necessário buscá-los, e não apenas nos livros e discos. Com
isso, há uma retomada da pesquisa de campo como método fundamental de estudo do
folclore, paralelamente ao abandono relativo das preocupações especulativas com origens e
com genealogias de traços culturais. Parafraseando George Stocking Jr. (1992), pode-se
dizer que a pesquisa de campo volta a ser o certificado de pertencimento à comunidade de
entusiastas do folclore e o sustentáculo de seus valores metodológicos centrais34.
A palavra etnografia está sendo usada aqui para significar qualquer atividade de “escrita das culturas”, na
forma de texto verbal escrito ou de gravações audiovisuais. Assim sendo, não está comprometida com o rigor e
o controle exigidos no caso da etnografia praticada por antropólogos em contextos acadêmicos.
34
A frase de Stocking, Jr. diz respeito à antropologia: “...fieldwork became the certifying criterion of
membership in the anthropological community and the underpinning of its central methodological values”
(1992:357).
33
20
Quanto a isso, também pode-se indagar o que há de novo. No show Opinião, por
exemplo, há um trecho memorável em que João do Vale explica o que são “excelências”,
enquanto Nara entoa um típico canto de ritual fúnebre da população rural do Nordeste. Mas
logo percebe-se, pela fala em primeiro plano de João do Vale (o canto decresce até tornar-se
fundo musical), que o motivo pelo qual as excelências entraram no roteiro do show era a
necessidade de falar, de modo sinuoso, da mortalidade nas regiões pobres:
[Nara cantando ] – Diz um A Ave Maria / Diz um B brandosa e bela /Diz um C
cofrin’ de graça / E um D divina estrela / Esperança nossa .... (etc.)
[João do Vale] – Isso é uma excelência com as letras do alfabeto. Excelência é uma
música que se canta em velório. Morte? Morte é coisa de todo dia. Mesmo viajando
de caminhão, de longe quando via luz lampião acesa numa casa de madrugada, podia
contar: era velório. De longe se ouvia a cantoria....
[Nara cantando] – Diz um mê Mãe dos mortais / Diz um nê nuvem do brilho / Diz um
O Orai por nós / E um P por nossos filhos (transcrito do disco show Opinião).
A excelência tinha menos interesse por seu conteúdo ou forma do que pela possibilidade de
operar, no show, como índice da morte. Os cantos da tradição popular estavam no roteiro por
suas qualidades musicais e poéticas, mas eram também significantes deslocados de seu
contexto e transformados em suporte de um discurso sobre a pobreza. O baião “Carcará”,
acrescido da declamação das estatísticas da migração de nordestinos, num crescendo
dramático, adquiria novo significado: “Em 1950 havia dois milhões de nordestinos vivendo
fora de seus estados natais. 10% da população do Ceará emigrou; 13% do Piauí; mais de 15%
da Bahia”. Esses dados numéricos enxertados no canto transformam o carcará numa alegoria.
A articulação com a pesquisa é facilitada pelas relações entre estudantes de artes e de
ciências sociais, entre artistas e cientistas sociais. Por isso, convém evocar os contextos
intelectuais em que se inserem os dois movimentos de que falo. Como aos intelectuais é
conferida a prerrogativa de pensar a sociedade e a cultura brasileiras, eles instituem as
categorias cultura popular e folclore (v. Chartier 1995). Ademais, eram oriundos do meio
acadêmico alguns nomes importantes da cultura politicamente engajada dos anos 1960:
Carlos Estevam Martins, um dos fundadores do CPC da UNE e autor de seu Manifesto, era
sociólogo do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, órgão do MEC).
Nessa época, de fato, a sociologia conquistara hegemonia no campo das ciências
sociais, cabendo-lhe identificar os problemas da sociedade brasileira. Antropologia e
etnografia ocupavam-se de temas que pareciam de menor relevância para a discussão dos
21
rumos da sociedade nacional. O folclore, por sua vez, perdia o passo, no terreno das ciências,
passando a configurar um tipo de atuação intelectual bastante colada ao estado e aos projetos
educativos (v. Vilhena 1997). Não admira que os artistas do Teatro de Arena de São Paulo,
segundo as fontes consultadas, tenham ido buscar assessoria junto a sociólogos, e que o
tenham feito para dar respaldo conceitual a uma peça teatral sobre a mais-valia35, e não para
consultá-los sobre a realidade e a cultura do “povo”.
O CPC e suas produções tinham mais afinidade com a matriz intelectual sociológica –
de coloração fortemente nacionalista – do que com o folclore, embora a já existente e atuante
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (fundada em 1958) pudesse alimentar
esperanças de monopolizar ou deter o mais válido conhecimento do popular.
Entretanto, a idéia de folclore andava no ar, pelo menos em algumas das mentes
responsáveis pela concepção e realização do show Opinião. Marcos Napolitano chama de
“folcloristas” (as aspas são dele) os inimigos da bossa-nova e autores engajados,
esteticamente ligados ao “samba tradicional”: Lúcio Rangel, José Ramos Tinhorão e
Hermínio Bello de Carvalho. Acha também que o Manifesto do CPC “...indicava um
caminho contrário, muito mais próximo à posição dos ‘folcloristas’, inimigos da bossa nova”
(2001:43). Só é possível concordar com esta afirmação mantendo a palavra folcloristas entre
aspas. O Manifesto do CPC, na realidade, desvaloriza a “arte do povo”.
Mas é verdade que a nacionalização da bossa-nova, para artistas como Carlos Lyra,
dependia de se “ampliar o leque expressivo” para incluir a música verdadeiramente popular.
Além disso, depois de 1964, “...a conjuntura mudou e levou alguns artistas de esquerda a se
aproximar das matrizes populares de cultura como uma reação ideológica ao fracasso da
‘frente única’” (Napolitano 2001:43). Falou-se em folclore por ocasião do show Opinião.
Lembra o historiador:
Boa parte do material poético e musical apresentado [no show] foi resultado do
método “folclórico”, como o próprio programa faz questão de frisar. Heitor dos
Prazeres e Cartola recolheram o material do “partido alto”. Cavalcanti Proença
recolheu o “desafio” entre os cantadores Cego Aderaldo e Zé Pretinho (2001:71).
E adiante:
35
Trata-se da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho.
22
A partir do sucesso do show Opinião, sobretudo, o samba autêntico e os ritmos
regionais folclóricos passaram a definir o ideal de criação musical, permanecendo
assim pelo menos até a consolidação dos festivais da canção como espaço
privilegiado do debate musical (2001:105-06).
A idéia de folclore estava no ar, efetivamente, mas suas conotações eram outras, pois
as concepções dos intelectuais acerca da culturas popular também eram diferentes, como
espero que fique claro ao final deste texto.
Nas décadas de 1970 e 80, a antropologia ganhou fôlego para participar dos mais
importantes debates nas ciências sociais, introduzindo novos temas e problemas oriundos do
estudo das sociedades indígenas e das culturas populares urbanas (v. Vilhena 1997, Peirano
1992). Nesse processo, ocorre a reaproximação entre antropologia e folclore, propícia a uma
renovação dos estudos sobre cultura popular.
As produções atuais de grupos de entusiastas do folclore estão bem mais próximas da
antropologia, etnomusicologia e folclore. Os integrantes dos grupos são estudantes
interessados nessas disciplinas, leitores das obras de Mário de Andrade, quando não
estudantes de pós-graduação encaminhados para a pesquisa nessas áreas do conhecimento.
7. Aula-espetáculo
O formato “aula-espetáculo”, que vem sendo adotado com certa freqüência por
artistas ligados à redescoberta do folclore, é um achado que permite imprimir à performance
uma dupla natureza, artística e etnográfica. Na aula-espetáculo, as qualidades normalmente
requeridas de um espetáculo artístico – domínio técnico, expressividade, originalidade –
somam-se às informações sobre a cultura popular brasileira. Adotando a aula-espetáculo, que
entremeia explicações, números de música e de dança, os grupos contemporâneos realizam,
em certo sentido, o sonho dos folcloristas brasileiros de divulgação do folclore junto às
camadas letradas urbanas que perderam contato com a cultura popular tradicional.
Sabe-se que didatismo e proselitismo são fatais para um produto que se queira
artístico, pelo menos modernamente. Não admira que essas tenham sido as principais críticas
endereçadas às produções artísticas politicamente engajadas dos anos 1960, no Brasil (v.,
entre outros, Hollanda 1980). A repulsa à aliança entre “arte” e “lição/mensagem”, e à
subordinação da arte à política, tem suas raízes na ideologia da arte autônoma e no processo
histórico de separação entre as esferas da estética, ética e ciência. O reencontro entre arte e
23
pesquisa etnográfica torna necessário considerar a hipótese de retomada, não de projetos
específicos ligados ao uso político das artes (como a agit-prop que foi o modelo dos artistas
engajados dos anos 1950/60), mas de uma inclinação menos radicalmente não-pragmática da
arte. Pois o que se afirma, de fato, é a necessidade de atuar na esfera da arte e cultura em prol
de uma causa (v. depoimento do estudante, citado na p. 10). Mesmo quem não escolhe o
formato da aula-espetáculo ou não pode servir-se dele – num CD, informações ou
ensinamentos não podem ser transmitidos como numa aula – encontra atalhos para oferecer
informação suplementar ao público: uma faixa de disco pode ser introduzida por uma curta
frase explicativa36; elementos de cenografia podem conter informações sobre a manifestação
encenada37.
Mais ou menos acentuada, a preocupação didática evidencia-se nas falas informando
onde e quando foi recolhida certa cantiga ou movimento coreográfico, bem como nos textos e
fichas técnicas nos programas de espetáculo e livretos que acompanham CDs. Seu corolário
pode ser a preocupação com a fidelidade aos repertórios originais, portanto com um aspecto
do problema mais amplo da autenticidade. Fidelidade, entretanto, não é cópia, e há várias
maneiras de garantir o respeito ao caráter e à integridade do original, implicando em graus
diversos de proximidade para com a forma, instrumentação, timbres vocais, dinâmicas etc.
5. O problema da autenticidade
A maioria dos folcloristas brasileiros, agrupados nos anos 1960 na Campanha de
Defesa do Folclore Brasileiro (órgão criado em 1958, no âmbito do MEC), não exercitava a
representação artística do folclore. A formação de grupos que eram chamados de
para-folclóricos, despertava muita preocupação, decerto porque trazia à baila,
inevitavelmente, a dolorosa questão da autenticidade da representação. Artistas profissionais,
com formação escolar e vivência urbana, ainda que bem intencionados e subsidiados por
pesquisas, corriam o risco de soar falsos ao representar a cultura popular.
36
Uma fala de Jackson do Pandeiro abre a primeira faixa do CD Fome dá dor de cabeça, do grupo Cascabulho.
V. ainda comentário de Tárik de Souza do CD Coco na Paraíba, de Silvério Pessoa, ex-líder do Cascabulho,
que também inclui depoimento explicativo (“Cultura no Nordeste não é só de cana”, Jornal do Brasil, 2 de
junho de 2001, Caderno B, p. 4).
37 Como no espetáculo Folguedos de Natal na Rotunda, encenado em dezembro de 2000 no Hall do Centro
Cultural do Banco do Brasil. Faixas de pano penduradas nos balcões da rotunda traziam os textos de cânticos
folclóricos natalinos de várias partes do Brasil.
24
Os entusiastas do folclore dos anos recentes não se embaraçam com o desgastante
debate sobre o para-folclórico – muitos sequer têm conhecimento dele. Isso não quer dizer
que são alheios ao problema. Ao contrário, parecem ter dele uma percepção clara. Uma atriz
envolvida com produções que se apropriam do folclore assegurou, numa conversa informal,
que não o faria se as técnicas, formas e repertórios do folclore não respondessem às suas
próprias necessidades de expressão. Uma estudante da UNIRIO conta que o tema da
recriação do folclore rende longas discussões e controvérsias no interior dos grupos teatrais e
musicais, quando estão ensaiando. Ela mesma concluiu que seria impossível tornar-se
“igual” a seu modelo, os “mestres” da cultura popular: “A gente tem que saber que é uma
coisa de outro lugar...a gente não tem que fingir que é original” (aluna do curso de
Museologia).
Trata-se de um tema amplo, com muitas facetas e implicações na área jurídica (dos
direitos autorais e da proteção à propriedade intelectual), na ética da pesquisa de campo, na
política cultural, na estética teatral e musical. Discutir quem tem e quem não tem direito a
apropriar-se do folclore, ou que tipo de apropriação é correto dos pontos de vista ético e
político, é adentrar o debate dos atores sociais, com pequeno rendimento para a compreensão
do que está em jogo. Obviamente, são condenáveis as apropriações ilícitas do ponto de vista
da aplicação da lei vigente que protege direitos autorais. Atenho-me, neste comentário, à
apresentação do debate no que tange a aspectos políticos e estéticos.
Sabe-se que, nos anos 1960, não eram os folcloristas os únicos a discutir o problema
da autenticidade da representação. No âmbito da produção musical, a interpretação de
repertório popular por artistas da classe média foi duramente interpelada pela crítica e
nenhum caso guarda com maior nitidez o veto político às apropriações que o de Nara Leão,
acusada de populista quando da guinada que a levou à música engajada. Os autores do show
Opinião (Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes) incorporaram as
acusações ao texto da peça, transformando-as numa das cenas: “Você vai fazer um disco
cantando baião, Nara?” perguntava uma voz. “Por que? A constituição não permite cantar
baião?”, ela retruca. E a voz provocava: “O dinheiro do disco você vai distribuir entre os
pobres, é?” No disco, a cena transformou-se no seguinte depoimento:
Meu nome é Nara Lofego Leão. Nasci em Vitória mas sempre vivi em Copacabana.
Não acho que quem vive em Copacabana só pode cantar determinado tipo de música.
25
Mas é mais ou menos isso: eu quero cantar todo tipo de música que ajude a gente a ser
mais brasileiro e que faça todo mundo querer ser mais livre, que ensine a aceitar tudo,
menos o que pode ser mudado (trecho gravado no disco Show Opinião).
O debate que opôs bossa-nova e bossa-nova nacionalista permanece na memória dos anos
1960 como uma das mais importantes controvérsias estético-políticas da época, desdobrada
na oposição entre música popular brasileira e a nascente jovem guarda. Os argumentos
contrários à incorporação de repertórios da tradição popular pelos artistas de classe média38
eram, basicamente, inautenticidade e populismo, as acusações endereçadas a Nara Leão.
Críticas análogas podem ser veiculadas, hoje, contra os entusiastas do folclore.
Entretanto, elas não configuram um debate com ampla repercussão no meio artístico e
intelectual, provavelmente porque faltam interlocutores dispostos a sustentar posições muito
marcadas, contra ou a favor da tendência. Lembremo-nos que a imprensa foi uma caixa de
ressonância para discussões que poderiam não Ter ultrapassado os muros dos apartamentos e
bares da zona sul e que apareceram, nos jornais, críticos ferozes da bossa-nova, da canção de
protesto, do iê-iê-iê.
Numa reflexão interessante que se atém apenas ao cinema, Ivana Bentes comenta
uma enquete, realizada pelo Jornal do Brasil em julho de 2001, sobre os melhores filmes
brasileiros dos últimos anos39 . Segundo a autora:
Na passagem do Brasil rural ao urbano, tematizada no cinema dos anos 60, os
sertanejos transformaram-se em favelados e suburbanos, “ignorantes e
despolitizados”, mas também rebeldes primitivos e revolucionários, capazes de
mudanças radicais, como nos filmes de Glauber. O cinema brasileiro dos anos 90 vai
mudar radicalmente de discurso diante desses territórios da pobreza e seus
personagens, com filmes que transformam o sertão ou a favela em “jardins exóticos”
ou museus da História, como em Guerra de Canudos , de Sérgio Rezende, ou a
refilmagem meramente folclórica e folhetinesca de O cangaceiro, de Massaini. Mas
também renovando essa iconografia, e trazendo novos personagens e discursos:
38
Interpretações recentes dos debates sugerem a necessidade de levar em conta a competição entre gravadoras
por fatias maiores do mercado crescente de ouvintes de música popular (Napolitano 2001). Alguns autores
demonstram, contudo, indisfarçável antipatia pelas posições nacionalistas ou politizadas dos anos 1960,
tentando ridicularizá-las – o que impede, naturalmente, que se leve a sério suas tentativas de contar a história da
música popular.
39
V. a matéria de Sérgio Rodrigues intitulada “A retomada do sertão” no Caderno B do Jornal do Brasil,
08/07/2001. A enquete detectou uma preferência por filmes “nordestinos”. Votaram as “cabeças pensantes”,
segundo o articulista, que não estiveram envolvidas com as produções. Venceram Central do Brasil, com 11
votos, Eu tu eles e Baile perfumado, com 9 votos cada. Na mesma página, Ivana Bentes assinou o artigo “Da
estética à cosmética da fome”.
26
como em Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas; ou nos documentários
Santo forte, de Eduardo Coutinho, ou Notícias de uma guerra particular, de João
Moreira Salles, enfocando os novos sujeitos do discurso (o favelado, o policial, o
traficante) (Ivana Bentes, “Da estética à cosmética da fome”, Jornal do Brasil,
08/07/2001, Caderno B).
Segundo Ivana Bentes, a perspectiva política do atual cinema é “tênue” e a experimentação
estética rara. Em conseqüência, a miséria vira clichê, deixando abertas as questões éticas e
estéticas que, segundo a autora, ainda deveriam estar sendo discutidas:
A questão ética é: como mostrar o sofrimento, como representar os territórios da
pobreza, dos deserdados, dos excluídos, sem cair no folclore, no paternalismo ou
num humanismo conformista e piegas? A questão estética é: como criar um novo
modo de expressão, compreensão e representação dos fenômenos ligados aos
territórios da pobreza, do sertão e da favela, dos seus personagens e dramas? Como
levar esteticamente o espectador a “compreender” e experimentar a radicalidade da
fome e dos efeitos da pobreza e da exclusão, dentro ou fora da América Latina?
(Ivana Bentes, “Da estética à cosmética da fome”, Jornal do Brasil, 08/07/2001,
Caderno B).
As perguntas legítimas da articulista (e seu esboço de resposta, invocando Glauber Rocha)
guardam a esperança de uma representação artística da pobreza que não seja conformista
como conteúdo nem como forma. Isso ajuda-nos a enxergar um traço contemporâneo
saliente: o arrefecimento generalizado da atitude de vanguarda, seja ela política ou estética.
Com isso, perdem intensidade também as críticas à redescoberta do folclore como base para a
criação artística, e o debate que poderiam desencadear.
Entre estudantes vinculados à escola de música da UNIRIO – vinculados a uma
instituição comprometida com a manutenção da qualidade artística –, os entusiastas do
folclore tendem a ser alvo de comentário dos colegas que se pautam por critérios de
virtuosismo na interpretação e complexidade nos aspectos técnicos da composição e arranjo.
Diz-se que estudam pouco e não enfrentam os riscos e dificuldades da criação propriamente
dita, escolhendo repertórios fáceis e alheios. De fato, eles não estudam da mesma forma nem
as mesmas coisas que seus colegas: a opção pelo folclore exige esforços que não foram
solicitados pela instituição, tais como realização de pesquisas bibliográficas e de campo.
Estes esforços permanecem “invisíveis” para a escola e a maioria dos estudantes.
A discussão da autenticidade conduz ao entroncamento entre arte e política que
caracterizou os anos 1950 e 60. O historiador Marcelo Ridenti lembra o “embaralhamento
27
entre vocações artísticas, acadêmicas e políticas” naquelas circunstâncias históricas
(2000:93). A politização não está ausente das empreitadas artísticas contemporâneos, mas
emerge em outros termos, e contra um pano de fundo diferente, tributária tanto do anseio por
uma sociedade mais democrática quanto da crítica que a contracultura endereçou à sociedade
de consumo. Já não é indiscutível, para as esquerdas, o ideal da revolução como processo de
transformação social capaz de instaurar uma ordem igualitária e justa. Temas como ecologia,
raça, etnia, gênero e direitos culturais adentraram o terreno da política40.
É impossível não notar, entretanto, que se não há uma orientação ideológica explícita,
as menções à “resistência cultural” dos artistas são recorrentes. Elas fazem pensar que
estamos novamente diante de “rituais cívicos”, semelhantes aos da cultura de protesto dos
anos 1960, ritos que celebram agora “nossa cara, nosso jeito, nossa brasilidade” (encarte do
CD Guarnicê) e “a música que o Brasil merece”. Trata-se de um discurso elíptico, cujo alvo
pode ser a poderosa indústria cultural, ou o clima de capitulação dos artistas que enaltecem as
virtudes do mercado e renunciam à crítica.
Também nos distancia dos anos 1960 uma outra atitude para com o nacionalismo
cultural, embora apelos como os do Mundaréu sejam comuns. O “nacional por subtração”
(Schwarz 1989:30) não é mais hegemônico nas concepções de intelectuais e artistas de
esquerda. Da mesma forma, a bandeira política anti-imperialista tornou-se um “tópico
vazio”. Se, para muitos, a camada de cultura importada pode ser removida porque debaixo
dela desabrochará a cultura nacional verdadeira (a partir das raízes), essa proposição deixou
de ser um axioma para quem preconiza fusões e justaposições continuadas como
procedimento capaz de produzir o nacional. Disse um estudante: “eu não estou fechado a
nenhuma influência, não sou xenófobo [...] Me interesso por qualquer manifestação
folk...assim...uma cultura diferente da nossa, um pensamento diferente” (aluno do curso de
Música Popular Brasileira).
Se a poucos ocorre assumir o nacionalismo como nos anos 60, a celebração da atitude
cosmopolita também não parece representar uma saída para a cultura e as artes. Quem tomou
a dianteira, de fato, foi a indústria cultural, com produtos nacionais (samba e música
Caetano Veloso conta que sua “atitude reticente em face das certezas políticas de amigos suscitava neles uma
irônica desconfiança” (1997:114) – por isso, estava entre os “alienados”. Também distanciava-se dos setores
politizados do mundo artístico porque estes “nunca discutiam temas como sexo e raça, elegância e gosto, amor
ou forma” (1997:116). De fato, eram temas ausentes da discussão dos anos 1960.
40
28
sertaneja, por exemplo) vexatórios para a classe artística e repugnantes para a maioria dos
intelectuais.
Ademais, a espiritualização – às vezes sob a forma de conversão religiosa – tem sido
uma resposta para os dilemas da vida contemporânea.
De qualquer forma, espetáculos e CDs querem ser veículos de mensagens dirigidas
aos espectadores, e não mero entretenimento. O selo CPC-UMES, por exemplo, tem como
lema “Fazendo a música que o Brasil merece”: a frase alude à baixa qualidade da produção
que as grandes gravadoras despejam no mercado brasileiro. Outro exemplo é a fala de
Fernando Bicudo, que dirigiu Catirina, musical baseado no bumba-meu-boi: “O espetáculo
não é só diversão. Queremos despertar a consciência do público para os valores de um povo
que precisa ser respeitado. Nosso trabalho é uma declaração de amor ao Brasil”41.
As mensagens têm girado em torno dos tópicos da originalidade cultural do povo
brasileiro, ignorada pela indústria cultural, e do resgate de valores esquecidos na voragem
contemporânea da globalização. Para entendê-las, deve-se levar em conta também a ênfase
nas parcerias como modo de relacionamento entre artistas e “povo”.
6. Parcerias
Uma característica da redescoberta contemporânea do folclore é a busca por relações
diretas com artistas populares, convidados para ministrar cursos e oficinas no circuito
cultural alternativo e estudantil. Espetáculos e CDs trazem artistas pouco afeitos aos palcos
das grandes cidades para contracenar com seus novos parceiros. Há tentativas de criação de
espaços de troca cultural em que os jovens estudantes também apresentam seu trabalho
diante dos mestres. Algumas parcerias têm cunho arqueológico (no sentido explicado nas
páginas anteriores), pretendem reabilitar artistas relegados ao ostracismo ou reconhecer
como legítimos produtores de arte e cultura os “anônimos” produtores das várias formas de
expressão cultural popular.
A presença viva de mestres da cultura popular, com seus corpos e vozes no palco, é
penhor da autenticidade que se deseja imprimir à representação. O show de lançamento de
Congado Celebration, de Márcio Montarroyos,
Declaração transcrita na matéria de Marília Sampaio, “Bumba-meu-boi e outras óperas”, Jornal do Brasil, 15
de abril de 1998, Caderno B.
41
29
importou a legítima congada afro-mineira, iluminou-a com projeto de Ney
Matogrosso, temperou-a com fusion jazz e entregou-a de bandeja para uma abismada
platéia de convidados de um night club da Lagoa, arrancando dela aplausos e uivos
calorosos (Cláudio Cordovil, “Delícias mineiras no jazz”, Caderno B, Jornal do
Brasil, 08/05/1998).
Como se vê, mesmo no âmbito da indústria cultural fazem-se apelos à cultura popular,
abrigados sob o rótulo world music, que tem rendido prêmios internacionais para artistas
brasileiros (Milton Nascimento, Gilberto Gil) e que leva à esfera mundializada da produção
cultural as mais remotas músicas associadas a tradições étnicas e regionais. A idéia de
“fusão” comanda, no nível mais explícito, esse tipo de produção, embora uma leitura menos
rápida perceba que o folclore é tratado aí como matéria-prima carecendo de polimento.
Os entusiastas do folclore não identificam-se, necessariamente, com a world music, e
rejeitam explicitamente a idéia de que é necessário “elevar” as tradições populares. Em lugar
do recurso estético da fusão entre gêneros de origens étnicas, nacionais e sociais diversas,
preferem contaminar-se com o folclore, em contatos diretos, na pesquisa de campo, nas
oficinas e cursos. Em lugar de aproximações fortuitas, episódicas e regidas pela assimetria
entre as origens de classe dos envolvidos, o ideal dos entusiastas é selar verdadeiras parcerias
com os representantes da cultura popular.
No âmbito das produções “integradas” (isto é, parte de um mundo artístico integrado,
no sentido de Howard Becker 1979), também observam-se tentativas de parceria. A inclusão
de depoimento ou trecho de música desses artistas num CD ou na trilha sonora do espetáculo
pode indicar a reivindicação de uma filiação artística: é o caso da faixa de CD do grupo
Cascabulho, que abre com um depoimento de Jackson do Pandeiro42. Lembremos que um
dos encantos do show Opinião era a “verdade” dos testemunhos autobiográficos dos artistas
que representavam a si mesmos – João do Vale, o migrante nordestino, Zé Kéti, o menino do
morro, trabalhador e sambista, Nara Leão, a moça burguesa – e personificavam, juntos, a
viabilidade das parcerias artísticas, elas mesmas representação metonímica da aliança entre
classes sociais43.
42
No disco Fome dá dor de cabeça, do Cascabulho, o depoimento de Jackson do Pandeiro antecede a entrada da
sanfona.
43
V. Damasceno (1994:164-65) “Através de todas as suas proposições testemunhais, os cantores insistiram em
ver-se como representantes da voz popular da nação, acentuando o chão comum das massas brasileiras (o povo)
sobre a divisão de classes. Os termos subjacentes ao protesto eram povo versus militares. Como uma categoria
social, povo era extremamente abrangente [...]. O apelo retórico do Opinião foi dirigido à formação de uma
30
No meio estudantil, a palavra-de-ordem é parceria, tanto no sentido próprio quanto
significando, metaforicamente, uma colaboração entre iguais. Nos trabalhos conjuntos com
artistas pobres, sem experiência no universo dos espetáculos profissionais, o ideal é evitar a
todo o custo a assimetria que caracteriza a pesquisa e documentação empreendidas por
pesquisadores, jornalistas e músicos44. O que se critica nesse tipo de atividade é a ausência de
preocupação com o estabelecimento de condições de reciprocidade entre pesquisador e grupo
pesquisado, que fornece informações, se deixa filmar, fotografar e gravar, sem receber
retribuição justa. Às vezes, a identidade dos criadores originais desaparece, eles raramente
têm sua quota no lucro financeiro da atividade e recebem remuneração que não é compatível
com sua atuação artística. Quando falam em parceria, os entusiastas do folclore desejam ir
além do relacionamento “comercial”, portanto ir além dos pagamentos por informações,
tornando-se sócios numa empreitada que faz sentido para todos.
As parcerias constituíam um impasse estético e político, há quarenta anos. Críticos de
colorações políticas diferentes alvejaram as tentativas dos músicos de falar como se fossem
porta-vozes do “povo” ou de impregnar-se de música popular no contato direto com
representantes do “povo”. Veja-se, por exemplo, a crítica de José Ramos Tinhorão ao CPC:
artistas da classe média arrogaram-se o direito de “falar pelo povo” de forma paternalista,
reproduzindo a distância real que os separava da maioria pobre da população.
Entre os objetivos do CPC – criado para promover, além de discussões políticas, a
produção e divulgação de peças de teatro, filmes e discos de música popular –
constava o de deslocar “o sentido comum da música popular, dos problemas
puramente individuais para um âmbito geral: o compositor se faz intérprete
esclarecido dos sentimentos populares, induzindo-o a perceber as causas de muitas
das dificuldades com que se debate” (citação extraída do texto de apresentação do
compacto O povo canta, do CPC da UNE, apud Tinhorão 1990: 250).
Mas os jovens bem-intencionados tinham-se formado em ambiente musical americanizado,
por isso forçosamente falariam numa linguagem que o “povo” não compreendia:
Assim, ao realizar-se dentro da proposta de produção ideológica o semidocumentário
cinematográfico Couro de Gato, em 1960 (em que o jovem diretor Joaquim Pedro de
Andrade focalizava os meninos pobres dos morros cariocas a caçar gatos para lhes
frente unida contra o golpe, e a democracia cultural que o espetáculo desejou exemplificar como já existente no
Brasil se apresentava em contraste metafórico à falta de democracia política”.
44 Adapto aqui a idéia de “assimetria arquetípica” da etnografia, de George Stocking, Jr.
31
tirar a pela, para com ela fazerem seus tamborins), o compositor escolhido para
musicar o filme era o mesmo autor do Criticando, Carlos Lira, que aí lançaria com
Geraldo Vandré uma requintada composição de bossa nova, em chocante desacordo
com a crua realidade das imagens do filme: Quem quiser encontrar o amor/ Vai ter
que sofrer/ Vai ter que chorar...(1990:250).
A mesma distância estética frustraria as parcerias com músicos do povo. Em 1961, Carlos
Lyra e Nelson Lins e Barros levaram ao apartamento dos dois, em Copacabana, os sambistas
Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti.
Os acordes compactos à base de dissonâncias do violão bossa nova não casavam com
a baixaria do violão de Cartola, e muito menos com a quase percussão do de Nelson
Cavaquinho, que beliscava as cordas de seu instrumento numa acentuação rítmica
das tônicas absolutamente pessoal (1990:251).
As diferenças musicais eram insuperáveis, segundo Tinhorão. Restou aos nacionalistas da
bossa-nova tomar o povo como tema de suas composições, cantando as dores dos pobres,
como Sérgio Ricardo, em “Zelão”, e a dupla Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em “O morro
não tem vez”. As parcerias interclasses eram inviáveis porque os músicos de classe média
insistiam em impor seus padrões aos parceiros, reproduzindo o fenômeno da dominação
cultural no nível das relações face a face. Ruy Castro reproduz (em causa própria) a avaliação
de Tinhorão, segundo quem a linguagem musical de Carlos Lyra e Nelson Lins e Barros “era
muito elaborada para a de Cartola ou Nelson Cavaquinho”. Dos encontros no apartamento na
zona sul saiu “Samba da legalidade”, de Lyra e Zé Kéti:
não por acaso, o único dos três sambistas que não era músico e capaz de contribuir
apenas com o know-how de primitivismo. Acabaram todos se convencendo de que o
melhor era continuar cada macaco no seu galho, embora isto não impedisse que as
composições quase inéditas daqueles sambistas pudessem ser gravadas de uma
maneira moderna – digamos, Bossa Nova. O que Nara imediatamente quis fazer
(Castro 1997:346).
Essas posições caracterizam, antes de mais nada, uma historiografia comprometida
com os debates internos ao campo da música. Marcos Napolitano, em outro registro, evita
julgar os compositores engajados ou nacionalistas e suas aproximações com os artistas
populares:
32
A questão, obviamente, é mais complexa do que simplesmente definir esta atitude
dos compositores como paternalista ou populista, como afirma José Ramos Tinhorão.
O que estava em jogo era a necessidade de buscar novos materiais para a bossa nova,
não tanto “tocar junto” com os compositores populares (Napolitano 2001:39).
Concordo com essa análise e creio ser possível acrescentar-lhe duas observações com
respeito à atualidade. Em primeiro lugar, a posição de porta-vozes esclarecidos do povo não é
sequer cogitada pelos entusiastas do folclore. Em segundo, pode-se adaptar a última frase da
citação, acima, e afirmar que uma das coisas que está em jogo, hoje, é tocar junto com os
compositores populares, além de buscar novos materiais para a música popular.
3.6. “O sentimento da brincadeira”
Um traço marcante do movimento de redescoberta do folclore é a tentativa de
apreensão do espírito da festa popular, evidenciada antes de tudo na atração pelos chamados
folguedos populares, e no desejo de instilar sua qualidade nos espetáculos e CDs. Por si só,
essa tentativa atenua os riscos de didatismo inerentes à forma da aula-espetáculo. As
apresentações terminam, sempre, numa roda alegre dos artistas que chamam o público para
dançar e cantar também, juntos. Isso ocorre mesmo quando a performance tem lugar em um
teatro ou casa de espetáculos com palco italiano, destinado justamente a separar artistas e
público. Em espetáculos que assisti no Canecão e no Teatro do BNDES, no Rio de Janeiro, os
artistas desceram do palco e deram às mãos ao público.
As rodas representam a comunhão entre os participantes. Abolindo as diferenças
entre os papéis que acabam de desempenhar, como performers e espectadores, e instalando
uma união festiva por meio das mãos dadas, do canto em uníssono e da coreografia da
ciranda pernambucana, adotada com freqüência (por ser fácil de aprender), a roda promove
uma efêmera communitas.
Dar “vivas” aos santos, no fim dos espetáculos, tal como ocorre nas festas católicas
tradicionais, ou a artistas falecidos (Grande Otelo, Clementina de Jesus etc.), é outro recurso
de constituição da communitas de brincantes, neste caso sob proteção espiritual. As
referências ao catolicismo tradicional, aliás, são freqüentes. Num espetáculo 45 do grupo
Mundaréu, o cenário era composto por um pequeno altar num dos cantos do palco. Sobre a
O espetáculo “Cutuca, rapaziada”, foi apresentado no pequeno auditório do Museu de Folclore Édison
Carneiro, em novembro de 2000.
45
33
toalha de renda branca que cobria o altar, velas acesas iluminavam uma imagem de São João
Batista Menino, cercada de flores de plástico. O primeiro número foi um bendito a duas
vozes, em terças paralelas, com acompanhamento de caixa e violão, os músicos caminhando
como numa procissão.
As referências religiosas na música e cenografia apoiam-se no conhecimento da
cultura popular, ao mesmo tempo em que condizem com a busca recente por contatos
regulares com o sagrado, que se expressa nas adesões a “novas religiões” e na religiosidade
difusa, não-institucionalizada. Nos anos 1960, nos meios intelectualizados de esquerda em
que predominavam os ateus materialistas (em que pese a origem católica de muitos deles), os
aspectos intensamente religiosos da cultura popular, católica ou afro-brasileira, foram
desconsiderados.
Às vezes, os entusiastas do folclore explicitam o propósito de opor resistência moral à
falência de valores humanos no mundo contemporâneo, apelando às emoções
compartilhadas. Recuperar os princípios cristãos pode apresentar-se, então, como uma
estratégia de resistência ao “apelo comercial”, símbolo de um mundo secularizado:
Apesar de todo apelo comercial imposto pelo mundo no final do milênio, ainda
persistem afetividade e emoção no ar, votos de felicidade, de alegria e de paz [...]
Aproveitamos então a época e a ocasião nós, músicos, cantores, atores, diretores,
produtores, cenógrafos, iluminadores, figurinistas, banqueiros, dançarinos,
escritores, artesãos, gráficos, enfim, artistas, brasileiros, para transformar nossas
atividades em festa conjunta, em divertimento, em folia, em folguedo baseados em
nossas tradições natalinas, brasileiras (folder do espetáculo Folguedos de Natal na
Rotunda, patrocinado pelo Centro Cultural Banco do Brasil, com a Cia. Itabirana de
Teatro dirigida por André Paes Leme, com direção musical de Cirlei de Hollanda).
Comunicar-se afetivamente, por meio da dança e do canto, parece ser tão valorizado, hoje,
quanto foram, no ambiente politizado do início dos anos 1960, suscitar a tomada racional de
consciência e a percepção objetiva da realidade46.
A apreensão do espírito da festa engloba o desejo de migrar, para o universo
profissional dos espetáculos, algo que se percebe inexistente ali – o “sentimento da
brincadeira” (mencionado por uma aluna) e um estilo de cooperação, de fazer junto. Numa
46
O movimento hippie e a contracultura, ainda nos anos 1960, constituíam outra vertente da produção cultural,
com grande impacto no teatro e na música popular. Críticos da “seriedade” excessiva da esquerda tradicional,
reabilitavam a confiança nas dimensões emocional e sensual da experiência humana. Setores mais severos da
esquerda chamavam de alienação a opção desses grupos (v. Hollanda 1980 e Veloso 1997, entre outros).
34
entrevista, uma estudante destacou, com perspicácia, a capacidade dos folguedos e festas
populares de agregar crianças e idosos – duas categorias para as quais cada vez mais há
produtos específicos, na indústria cultural e do lazer. A mesma estudante falava da facilidade
com que as mulheres idosas, na cultura afro-brasileira, exibem sua sensualidade na dança, o
que lhe chamou a atenção logo de seus primeiros contatos com dançarinas do
tambor-de-crioula maranhense. Procurando aprender com o “povo” um jeito de fazer, os
entusiastas do folclore rejeitam a lógica da produção cultural no mercado capitalista, com sua
divisão do trabalho que envolve “estrelas” e coadjuvantes e seu objetivo primeiro de gerar
lucro. É este o perfil do “brincante”.
A indumentária dos atores e músicos, nos espetáculos de entusiastas do folclore,
inspira-se nas vestimentas festivas e adereços usados por participantes dos folguedos
populares nos locais de origem. As moças usam vestidos e saias longos, em tecidos
estampados com flores coloridas. Túnicas de renda de filé – artesanato típico nordestino –
também são adotadas. Sandálias de couro cru, de confecção artesanal, e sapatilhas de lona
são os calçados preferidos. Os rapazes vestem roupas masculinas comuns, bastante coloridas,
às vezes chapéus. São representações de “roupas populares festivas”, figurino barato e
despojado, mesmo quando não se está no circuito das produções alternativas que trabalham
com orçamentos mínimos. As produções “integradas” podem contar com mais recursos de
figurino, iluminação, cenários e divulgação, mas não deixam de fazer menção ao ethos e à
estética da festa popular.
As empreitadas são coletivas, os entusiastas constituem grupos reunindo músicos,
atores, dançarinos, artistas plásticos, pesquisadores. Uma exceção é Antônio Nóbrega que,
embora tenha uma equipe de músicos e técnicos em seus espetáculos, atua como solista,
ostentando todo o leque dos seus talentos expressivos – excepcionais e não por acaso
múltiplos. Não obstante, Nóbrega é o paradigma do “brincante” – termo que ele, aliás,
contribuiu para popularizar junto às platéias do eixo Rio/São Paulo, com o espetáculo
homônimo – na versatilidade, na pesquisa que fundamenta a criação, no contato direto com
mestres populares. Seus shows e aulas-espetáculos constituem um marco na tendência de
redescoberta da música folclórica.
Coerentemente com o desejo de incorporação do espírito da festa popular, os
entusiastas do folclore escolhem formas teatrais e circenses como veículos privilegiados. São
35
linguagens coletivizantes, tanto quanto as dos folguedos populares que exigem participação
coletiva, base social “comunitária” e polivalência artística.
Os grupos artístico-culturais dos anos 1960, da mesma forma como os grupos
contemporâneos a que me refiro, eram compostos por profissionais jovens, em início de
carreira, e por estudantes. Isso tem relação com as formas alternativas escolhidas. Nos anos
1950, o teatro de arena foi adotado pelo grupo paulistano homônimo tanto por promover uma
atmosfera circense quanto por ser economicamente viável. O Teatro Popular do Estudante
(do qual faziam parte Guarnieri e Vianinha) queria falar para um público mais diversificado e
mais amplo (Damasceno 1994). Marcos Napolitano observa:
As “artes do espetáculo” ou as artes “performáticas” pareciam ser o caminho natural
da “popularização” da cultura engajada e nacionalista como resposta ao golpe militar.
Mesmo antes do golpe, o teatro, a música e o cinema já convergiam para a busca de
uma expressão comum, que articulasse os conteúdos, perspectivas e temáticas a
serem veiculados (Napolitano 2001: 65).
Uma leitura enfatizando os aspectos econômicos da viabilização desses grupos
artístico-culturais pode interpretar a experimentação de formas alternativas e o desejo de
alcançar novos e mais amplos públicos como estratégia de ocupação de um nicho no mercado
de cultura. Lembrá-lo não implica reduzir a interpretação a esses aspectos, pois têm peso, no
caso dos entusiastas do folclore, a busca de uma cultura autêntica, festiva e comunitária.
Visões do povo
Um exame mais detido de dois discos ilustra as observações dos itens anteriores.
O povo canta é expressão da concepção de povo articulada pelo Partido Comunista
Brasileiro nos anos 1960: uma frente constituída pelas classes aliadas contra o imperialismo e
o latifúndio, frente que incluía a burguesia industrial. Os intelectuais eram parte do povo,
conforme a representação das forças políticas cindidas entre nacionalistas e “entreguistas”.
A aliança entre música e teatro é evidente na dramatização constitutiva da “Canção do
subdesenvolvido” (Lado A, 1), em seus recursos de interpretação (bruscas mudanças de
andamento, entoações “choradas” ou “debochadas”, intervenções do coro, breques) e de
sonoplastia 47 . As personagens, caracterizadas por sotaques exagerados e vocabulário
47
Conforme observado também por Napolitano (2001:45).
36
estereotipado, recitam e cantam acompanhados por um coro: o colonizador português, o
brasileiro que acredita no “desinteresse” dos capitais estrangeiros, o norte-americano que
canta com swing. A canção resume em alguns minutos a história nada gloriosa do Brasil e
explica didaticamente as razões do subdesenvolvimento. Trata-se de um anti-hino,
sarcástico, teatral, didático, mas de um humor corrosivo. O violão e a bateria da
instrumentação, juntamente com os arranjos vocais, remetem aos ambientes sonoros de casas
noturnas no final dos anos 1950, precursores e contemporâneos da bossa-nova, nos quais se
formou musicalmente Carlos Lyra, o principal responsável pelo disco. Não há nessa faixa
qualquer intenção de recorrer a idiomas marcados por sua origem “popular” ou “regional”.
“João da Silva ou o falso nacionalista” (Lado A, 2) é um samba bossa-nova de Billy
Blanco, que canta acompanhado de piano, acordeão e bateria. João é a encarnação da classe
média urbana alienada: sequer sabe que paga royalties pelos bens importados que consome.
“Grileiro vem, pedra vai” (Lado B, 1 – música e letra de Raphael de Carvalho) é a
única canção “regional” do disco: um baião com levada e instrumentação características –
acordeão, zabumba, possivelmente um agogô –, à qual foi acrescentado um discreto piano. A
melodia do refrão é calcada, conscientemente ou não, na de uma célebre canção de Jackson
do Pandeiro48. Se o estilo remete ao Nordeste, a letra fala do morador do morro no Rio de
Janeiro, lugar onde vivem, de fato, numerosos migrantes nordestinos. A canção conclama à
ação, ensina o que fazer, como resistir à ameaça de expulsão: “Oi, grileiro vem, pedra vai /
De cima desse morro ninguém sai”49.
A última canção do disco, “Zé da Silva é um homem livre” (música de Geni
Marcondes e letra de Augusto Boal), como a anterior, trata de um inimigo interno do povo –
o patrão do trabalhador Zé da Silva, que o submete ao trabalho mal remunerado. A canção é
didática e tem um componente teatral, de inspiração brechtiana, no refrão que indaga: “Zé da
Silva é um homem livre / O que ele vai fazer?”.
O disco dirige-se tanto aos desfavorecidos quanto aos setores médios que necessitam
de esclarecimento político, e que compõem um povo brasileiro de Joões e Zés, personagens
Trata-se da canção “1 x 1” cujo refrão diz: “Este jogo não é um a um / Se o meu time perder, eu mato um” .
Talvez seja esse o motivo que levou Napolitano a identificar a canção como sendo do gênero “coco”.
49
A canção faz lembrar o samba “Opinião”, de Zé Kéti, cantado alguns anos depois: “Podem me prender /
Podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui do morro eu não saio
não”, composta como reação às tentativas das Prefeituras de desocupar à força terras passíveis de valorização
no centro e na zona sul do Rio de Janeiro, expulsando dali os moradores.
48
37
de uma história nacional marcada pelo duplo eixo de dominação. No primeiro, o
imperialismo norte-americano freia o desenvolvimento autônomo brasileiro; no segundo,
expropriam-se terra e trabalho de parte da população. A inspiração do disco provém
basicamente do teatro e não teve tanto impacto na futura MPB.
De fato, para alguns dos atores do processo, como Nara Leão e Nelson Lins e Barros,
a saída desalienante da música popular estaria na aliança entre musicalidade da bossa e
musicalidade popular, apenas esboçada em O povo canta. Lins e Barros asseverava num
artigo na revista Movimento (editada pela UNE), em 1963:
No processo de conscientização da realidade brasileira a bossa nova tomou, como
tinha que ser, uma posição nacionalista. E entre o dilema da promiscuidade ou
alienação, seguiu o terceiro caminho, o único caminho da arte popular: o de ser um
meio de expressão do povo, crescendo com ele, e principalmente, servindo a ele (...)
Essa nova bossa é a ponte, é a mão que vai encontrar o morro, o terreiro e o sertão, em
uma sociedade melhor que vamos ver, talvez, não muito longe (Lins e Barros apud
Napolitano 2001:47).
Na concretização da proposta tiveram papel importante o show Opinião, obras da
dupla Baden Powell e Vinícius de Moraes e do então jovem compositor Edu Lobo. Com mais
firmeza, eles voltaram-se para sonoridades afro-baianas e nordestinas identificadas com o
mundo rural e tradicional (candomblé, capoeira, literatura de cordel e desafio de cantoria,
xote, baião etc.). Os repertórios de origem popular, como as excelências e o desafio entre o
Cego Aderaldo e Zé Pretinho, cantados por Nara e João do Vale no Opinião, eram
recontextualizados e rearranjados musicalmente. Tornavam-se então metáforas dos temas da
agenda política da esquerda: pobreza, morte, fome, disposição para a luta, indignação etc.
Ouça-se agora o CD Turista aprendiz, do grupo paulistano A Barca. A maior parte do
repertório apresentado foi recolhida por Mário de Andrade, na viagem de 1928/29, e pela
Missão de Pesquisas Folclóricas de 1937/38 por ele idealizada. Mário é a grande referência
do produtor artístico (Marcos Vinícius de Andrade) e, provavelmente, do grupo A Barca,
aparecendo no livreto que acompanha o CD como ancestral homeageado, “o grande
professor de Brasil”. Os integrantes da Barca são apresentados em sua dupla identidade de
“músicos e pesquisadores” que fazem “shows e aulas-espetáculos”. O livreto traz pequenos
verbetes sobre os gêneros musicais interpretados, uma lista de fontes, como num trabalho
erudito, e o relato de uma viagem de pesquisa musical, ilustrada por uma foto do grupo
38
literalmente “na estrada”. Usam-se, pois, procedimentos retóricos análogos aos que
constituem a autoridade etnográfica do tipo “experiencial” (v. Clifford 1998)50:
A Barca conheceu e tocou com alguns grupos de carimbó do Pará, como os Brasas
Vivas, de Terra Alta, Novo Zimba e Canarinho, de Maracanã [...] Com o grupo de
carimbó de Santarém Novo, os Quentes da Madrugada, aprendemos as toadas Terra
do caranguejo, de Ticó, e Aruê, aruá, que posteriormente encontramos em outras
versões (“Apontamentos de viagem”, livreto do CD Turista aprendiz)..
Entre os novos intérpretes paulistanos e os criadores espalhados pelo Brasil, firma-se
uma relação que une aprendizes e mestres, tocando juntos. Apesar de a etnografia pressupor
distância geográfica e cultural entre observador e observado, a apresentação do grupo A
Barca insiste numa proximidade simbólica a despeito das diferenças. As fotos dos músicos
do grupo são misturadas às dos “informantes” (com quem aprendem parte do repertório que
cantam) e às que Mário de Andrade fez em suas viagens. A página central inclui reproduções
de desenhos oitocentistas retratando “tipos” brasileiros, misturados às fotos dos músicos.
Estabelece-se, assim, a continuidade temporal-espacial que liga a todos como membros da
comunidade brasileira.
A Barca imprime sua marca em arranjos que incluem baixo, piano, fender rhodes,
sanfona, rabeca, sax, viola, violão, cavaquinho, percussão, além de algumas intervenções de
guitarra e bateria.
Diferentemente, o CD Guarnicê, uma singela opereta popular, do grupo Mundaréu,
de Curitiba, exemplifica uma estratégia de representação “autêntica” da música folclórica.
São destacadas, na apresentação escrita de cada faixa, todas aquelas em que o texto da
tradição oral recebeu novo arranjo. O leitor deduz que, nas demais, “nada” foi acrescentado,
subtraído ou transformado. E no entanto as intervenções do grupo Mundaréu costumam ser
bastante delicadas e discretas, como por exemplo a inserção de um contracanto à melodia. De
resto, parece ser sua opção manter-se perto da sonoridade dos grupos entre os quais foi
recolhido o repertório (ao vivo ou em discos): canta-se a duas vozes, em terças ou sextas
paralelas, canta-se a capella ou sem acompanhamento harmônico de qualquer espécie,
50
A autoridade experiencial, segundo Clifford (1998), constitui-se por meio de uma escrita etnográfica que
enfatiza o fato de o antropólogo ter “estado lá”, observando e participando, bem como sua capacidade de
empatia com os informantes.
39
utilizam-se somente instrumentos de feitura artesanal, provavelmente adquiridos junto aos
fabricantes, durante viagens de pesquisa.
Seu ideal não é o de um som “assinado” (comum a instrumentistas, compositores e
arranjadores), mas o de um naturalismo documental. Os espetáculos e repertórios não
pretendem levar o público à experiência estética “pura” geralmente visada pelas artes, ao
mesmo tempo em que não se esgotam no divertimento massificado oferecido pela indústria
da cultura.
O objetivo da cultura engajada nos anos 1960 era a desalienação e isso exigia
distanciamento, informação, reflexão. Apostava-se na razão, capaz de submeter a crítica os
véus ideológicos antepostos entre os homens e a realidade objetiva. O sujeito da canção, em
O povo canta, é um homem esclarecido que deseja despertar consciências. Ele está presente,
ainda, como um narrador sem corpo e sem nome, no show Opinião. Sua força é menor em
função da presença concreta das três personagens centrais, com seus nomes e histórias
pessoais verdadeiros. Não são tipos anônimos (João e Zé da Silva), que reduzem e retiram a
profundidade, mas indivíduos singulares que nos dão a ver, também, identidades sociais.
Apesar da ênfase no esclarecimento, a canção de protesto também promovia, para platéias
“iniciadas”, catarse emocional e identificação com os artistas no palco.
O contato com a cultura popular, agora, promove antes de tudo uma intoxicação
emocional assumida, que transborda na dança coletiva e outros gestos de comunhão, como
dar as mãos. Sela-se a identidade dos participantes do rito, exatamente como nas sessões do
show Opinião. Mas o conteúdo emocional não é o mesmo daquele desencadeado por canções
como “Carcará” e “Zé da Silva é um homem livre”, nas quais a revolta do cantor faz sua voz
elevar-se progressivamente até culminar em um grito.
Na produção dos anos 1960, predomina a imagem do povo que precisa ser instruído e
conduzido, de forma compatível com a atitude vanguardista predominante entre artistas.
Apesar das privações dos setores desfavorecidos, o povo é representado como protagonista
na transformação da sociedade. Isso não é de espantar, pois, como se viu, o CPC tinha
afinidades com a produção sociológica de coloração nacionalista e marxista. As investidas
nos universos musicais populares pelos artistas do CPC e Opinião eram coerentes com
aquelas imagens: os repertórios musicais escolhidos simbolizavam as privações e a
capacidade de luta (capoeira e desafio, por exemplo). Os que podiam evocar o Brasil arcaico
40
e a alienada arte do povo, barreiras ao projeto de emancipação econômica e transformação
social, eram ressignificados, como as excelências do Opinião.
As produções recentes enfatizam a abundância cultural, a diversidade espalhada pelo
país, o ethos cômico e festivo, a permanência de tradições que não foram varridas do mapa
pela urbanização e industrialização. As imagens do povo subjacentes remetem a idéias
valorizadas, tais como a de potencial criativo, resistência da tradição, disposição para o riso e
para a dança.
A revisitação arqueológica de precursores, o apelo emocional, a espiritualização e
“despolitização” podem evocar ares pós-modernos. Mas as continuidades e convergências
entre os movimentos culturais de ida ao povo são notáveis. Por isso, cabe dizer, parodiando o
Manifesto do CPC e despertando, assim, a simpatia de alguns e a descrença de outros, que o
novo ainda é o povo – mesmo que ele não seja imaginado da mesma forma.
41
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