a paciência de jó dos computadores

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A PACIÊNCIA DE JÓ DOS COMPUTADORES
Luca Rischbieter1
Existe uma grande diferença entre a atividade de um pesquisador acadêmico e a
de um professor ou de um pedagogo: enquanto pesquisadores buscam análises
detalhadas e certezas comprovadas, pedagogos não podem esperar que isso
aconteça, o que os interessa são idéias fortes e aplicações práticas.
Estamos defendendo neste artigo, escrito mais pela ótica do pedagogo que pela
do pesquisador, uma idéia que pode ser resumida assim: apesar de sua grande
variedade, todos os softwares educativos têm uma característica comum, que é
sua infinita paciência em relação aos erros das crianças.
A conseqüência prática é que essa é uma propriedade que pode ser explorada
para melhorar processos de aprendizagem específicos e ao mesmo tempo ajudar
o desenvolvimento de uma auto-imagem mais confiante e positiva em nossas
crianças e jovens.
Começamos com um exemplo que ilustra esse ponto de vista. A história foi
contada há alguns anos por um professor que trabalhava, em Curitiba, em uma
instituição de apoio psicopedagógico a alunos(as) de escolas públicas com
“dificuldades de aprendizagem”. Nela, ele relata o uso que fez de um software que
todos nós considerávamos de péssima qualidade, pois se limitava a apresentar
“continhas” com frações em um contexto graficamente muito pobre e que não
tinha relação nenhuma com o conteúdo do jogo:
“Antes de usar o software ‘x’ com os alunos, eu achava este um péssimo produto,
sem nenhuma criatividade, mecânico. Mas, como ele era o único jogo de
computador disponível na área de Matemática, nós o experimentamos com um
grupo de alunos ‘fracos’ e repetentes de 3.ª série, muito atrasados em
Matemática. Os resultados me impressionaram. Isso porque, depois de muitos
erros, eles foram selecionando níveis cada vez mais simples de desafios e
chegaram a exercícios que até mesmo eles conseguiam resolver. Foi muito
impressionante ver sua reação quando apareceu ‘½ + ½ =?’ na tela: todos
começaram a dizer, excitados, ‘1, coloca 1!’ e, quando receberam a mensagem de
‘parabéns!’, seus rostos se iluminaram. Eles adoraram a interação proporcionada
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Pedagogo e Geógrafo
pelo software, que aplaudia os acertos e não reprimia os erros. Além disso,
usamos a possibilidade de cadastrar novos desafios para oferecer problemas que
eles começaram a resolver (os mesmos que não queriam fazer com lápis e papel).
Os resultados foram ótimos, inclusive em relação à performance na escola,
principalmente porque essas crianças ganharam confiança interagindo com o
software.” (Relato do professor Marco Aurélio Mikosz)
Os alunos mencionados aqui eram considerados “péssimos” e já viviam com a
sina de serem vistos assim, dentro e fora da escola. O que existe de quase
absurdo nessa história é que foi somente com um software de qualidade medíocre
que esses alunos viveram suas primeiras experiências escolares de “acertar”. É
essa experiência que parece ter sido decisiva na mudança que acabou levando,
até mesmo, a grandes melhoras desses alunos em seu rendimento dentro da
escola.
O exemplo ilustra uma hipótese que, mesmo que apresentada aqui de forma um
pouco “crua”, é fruto de bastante reflexão e algo com que muitos(as) de nós
devem concordar:A imensa maioria das dificuldades de aprendizagem não se
deve a “deficiências cognitivas”, mas à falta de autoconfiança de crianças e de
adolescentes que se acostumaram a ouvir e a dizer “não sei”, “não posso”.
Alunos(as) que internalizam essa visão negativa acabam nem se engajando em
análises específicas, pois, diante de uma dificuldade, ficam como que
paralisados(as) pela autocrítica e pela convicção de sua própria incompetência.
A escola não parece capaz, na maioria dos casos, de mudar essa situação (aliás,
muito pelo contrário), mas não adianta querer culpar professores por isso. Quem é
ou foi professor sabe que é quase impossível para quem lida com grupos de 20 a
30 alunos concentrar seu trabalho nos alunos “mais fracos”, pois é preciso dar
aulas para “a média”, para “a maioria” que consegue acompanhar o ritmo.
“Atrasados” desde o começo, muitos alunos acabam passando seus anos de
escola sendo cada vez mais marginalizados.
Devido à grande paciência dos computadores, interações com softwares
educativos podem ser um novo elemento para nos ajudar a tentar mudar essa
situação.
Mais um exemplo: crianças de ciclo 1 que têm dificuldade para ler podem se
divertir e aprender muito com softwares e desafios concebidos para crianças em
idade pré-escolar. Até mesmo um jogo simples como o da “forca” adquire
características novas ao ser desenvolvido para computadores e é grandemente
apreciado por crianças sem confiança para jogá-lo fora do computador.
Mas por que isso acontece? Essa é uma questão interessante e que precisa ser
mais explorada e discutida, mas, aparentemente, a impessoalidade e a paciência
infinita dos programas de computador - mesmo que eles jamais possam ter a
sensibilidade de um bom educador - fazem com que até mesmo os erros sejam
vistos de forma lúdica. O fato de receber o tempo todo reações positivas, mesmo
em caso de erro, de uma tela de computador faz com que essas situações não
sejam vivenciadas como "punição" ou "censura", ao contrário do que pode
acontecer quando a avaliação fica a cargo de um "outro" de carne e osso...
Muitos especialistas criticam os softwares simples e primários, como os de nossos
exemplos, e defendem o uso apenas de materiais em que haja espaço para
criação, autoria e comunicação. Pessoalmente, já tive a mesma visão e continuo a
favor do desenvolvimento e do uso de softwares cada vez mais sofisticados —
como as novas versões do Logo ou produtos como o Cabri Geômetra. Mas
também defendo a idéia de que até mesmo os softwares mais simples e
elementares podem trazer resultados surpreendentes e que eles não devem ser
descartados de nosso “arsenal” de recursos didáticos, principalmente porque
normalmente são mais acessíveis e baratos.
Com uma boa biblioteca de softwares, uma opção, quando encontramos alunos
com dificuldades em alguma área específica, é procurar atividades, nessa mesma
área, que sejam dirigidas a uma faixa de idade inferior à desses alunos.
Aliás, o mesmo princípio vale para todos(as) os(as) alunos(as), e, por exemplo,
uma criança que gosta muito de Matemática pode explorar produtos que oferecem
desafios matemáticos para níveis de estudo cada vez mais avançados, em vez de
ser obrigada — como acontece hoje em dia — a seguir o mesmo ritmo de toda a
classe, vendo exercícios que já sabe resolver.
Os exemplos ilustram a idéia de que um bom acervo de softwares educativos
pode nos ajudar na implementação do que atualmente chamamos de uma
“pedagogia diferenciada”, pois permite diversificar as possibilidades de atividades
oferecidas a alunos e alunas e proporcionar desafios mais adequados para cada
um(a).
Para concluir, é importante deixar muito claro que atualmente, do ponto de vista
da pesquisa acadêmica, nós simplesmente não sabemos quase nada sobre o que
está sendo discutido aqui, sobre as novas e diferentes concepções de “erro” e
“acerto” que se desenvolvem e sobre o que nossas crianças podem tirar de suas
interações com computadores e softwares, mesmo quando estes podem ser
considerados de baixa qualidade e embasados em teorias de aprendizagem
ultrapassadas.
Mas “não saber quase nada”, enquanto pesquisadores, não pode ser uma
desculpa para deixarmos de explorar — pragmaticamente, no dia-a-dia da escola
e da família — a possibilidade de que até mesmo o uso de softwares educativos
extremamente simples possa produzir resultados surpreendentes. Não podemos
ter a mesma paciência que têm os computadores e aguardar as certezas
acadêmicas, pois temos urgência em ensinar de forma cada vez mais diversificada
e melhor.
Este artigo se encerra, assim, com um duplo convite: aos pesquisadores, para que
dêem mais atenção à natureza específica das interações criança—computador e
não restrinjam suas análises apenas ao uso dos softwares mais sofisticados; e
aos educadores, para que levem em conta a possibilidade de que, graças à sua
“paciência de Jó”, os computadores associados aos softwares educativos sejam
aliados poderosos não apenas para ensinar, mas para alcançarmos um dos
objetivos mais importantes e básicos da educação: ajudar cada criança a construir
uma auto-imagem positiva.
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