Loops, samples, cultura técnica e cibercultura Por Cláudio Manoel Duarte de Souza* Um dos argumentos que mais reflete a falta de compreensão sobre os processos de produção da música eletrônica é de que esta é "feita por computador (máquina)" - e não "através do" -, portanto, uma música "mecânica, fria, sem alma". Por trás desse argumento, pode-se identificar alguns problemas relacionados à Cultura Técnica - ou melhor, a falta desta e incompreensão dos processos de produção da Cibercultura. Um deles é a dificuldade de entender o objeto técnico como algo que, embora inventado, é naturalizado no decorrer do tempo. Quanto mais recente a invenção, mais estranha é a sua absorção enquanto objeto "natural". O outro problema é o fato de que o objeto técnico, reapropriado, passa a ter uma outra significação. Não precisamos entender, a fundo, por exemplo, porque ao girar a chave da ignição de um carro, o mesmo pode andar, impulsionado pelo motor - uma atividade complexa gerada a partir de engrenagens e de relações entre mecânica e eletricidade. Ligar o carro e fazê-lo funcionar é uma atividade técnica naturalizada, assim como acender uma lâmpada ou aquecer uma pizza no microondas. O tempo nos faz entender ou conviver sem estranhamento com esses objetos técnicos. A novidade, ao contrário, sempre não é "natural". É que há uma cultura estabelecida não científica nem técnica que interpreta o surgimento de novos objetos técnicos ou como um produto utilitário, apenas, e sem significação ou, por outro lado, como algo rebelde e com intenções próprias, conforme argumenta Simondon (1958:11): "... de um lado, ela os trata como pura junção de matéria, desprovida de verdadeira significação, e apresentando somente uma utilidade. De outro lado, ela supõe que estes objetos são também robôs e que eles são animados de intenções hostis para com o homem, ou representam para ele um permanente perigo de agressão, de insurreição". A frase "música feita por computador (máquina)" remete a essa compreensão. É retirado desta máquina um significado (ou se dá a ela uma utilidade básica, rotineira e mecanicista). Por outro, se exagera ao atribuir a essa máquina a execução, independente da interferência humana. Mas se, por mais complexo que seja o objeto técnico, ele é naturalizado pelo tempo, passa mesmo a integrar a própria vida, de forma "natural"; esse objeto técnico "natural" é entendido como uma extensão do homem. O "andar" do carro, o "acender" da lâmpada, o "aquecer" a pizza no microondas é natural. O computador, digamos, já é um objeto técnico naturalizado. Estranho mesmo é o "fazer" a música através do computador ou sampler - pois essa técnica não foi "naturalizada". Atribuir a significação de fazer música ao computador não é ainda natural; natural é essa máquina armazenar dados ou substituir a máquina de escrever tradicional Surge aí uma outra observação. O objeto técnico, mesmo naturalizado pelo tempo, ao ser utilizado com uma nova significação é igualmente "estranhado" até que esta nova significação a ele atribuída seja também "naturalizada". Para Simondon, a mais forte causa da alienação no mundo contemporâneo reside no desconhecimento da máquina, "que não é uma alienação causada pela máquina, mas pelo não-conhecimento de sua natureza e de sua essência, pela ausência do mundo das significações, e pela sua omissão no quadro dos valores e dos conceitos que fazem parte da cultura" (1958:9). Mas a própria falta de uma Cultura Técnica é algo mais profundo do que a aceitação natural dos objetos técnicos e suas várias formas de significação e utilização propostas através do tempo. Uma Cultura que nos dê bases para compreender a máquina, ela mesma, e raciociná-la, desde já, como nossa extensão, pois se a Cibercultura1 é resultado da apropriação das tecnologias, é o resultado de uma certa forma de usar os recursos tecnológicos disponíveis, a compreensão de que os objetos Segundo Levy: "... conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. técnicos, das tecnologias, elas mesmas, podem ter outras significações – outros usos – é algo anterior à naturalização dada pelo tempo. As etapas seriam: os objetos técnicos são inventados, chocam pela novidade e, em seguida, são absorvidos como naturais legitimados pela ação do tempo: eis sua "naturalização"; podem surpreender mais uma vez, se a eles forem atribuídas novas funções, que deverão ser "naturalizadas" pelo tempo, posteriormente. O impasse mesmo se constitui nas agilidades: da invenção técnica, da naturalização do objeto, da naturalização das resignificações (reapropriação) dos objetos técnicos. A cultura está a reboque das invenções e de sua naturalização. Isso é o que justifica o argumento de que a música eletrônica é "feita por máquina". Falta Cultura Técnica para entender o processo de produção e funcionamento dos novos objetos técnicos, falta cultura para entender as novas atribuições e significações desses objetos e ainda não houve o tempo necessário para a naturalização dos mesmos. O exemplo ícone é o do sampler e de softs que editam sons, que produzem música. Um sampler é um instrumento de produção musical? Ou melhor, um sampler é um instrumento musical? Um computador é um instrumento musical? O próprio tempo nos fez naturalizar a idéia de que um violão, ou um piano – invenções – são instrumentos musicais. São artefatos - fruto do pensamento inventivo. São objetos técnicos, extensões maquínicas do homem e já tiveram seu momento de estranhamento. Peter Ilich Tchaikovsky (1840-93) incluiu em sua sinfonia "1812" um tiro de canhão - som, ou timbre, nada convencional saído de um objeto - agora instrumento musical - também nada convencional. Por trás desta experimentação estética, Tchaikovsky aponta um caminho percorrido pela música eletrônica: a busca de novos timbres e o entendimento de que outros instrumentos, que não os "tradicionais" (naturalizados), fazem música, produzem ritmo e melodias, ordenam ruídos. Uma pick up foi projetada para rodar discos de vinil. Essa utilidade desse objeto técnico está naturalizada pelo tempo e nem precisamos entender o funcionamento desse maquinário, de sua estrutura interna. Mas entender essa mesma pick up com outra significação, como um instrumento musical, está além na naturalização inicial do próprio objeto; está diretamente relacionado à naturalização desta nova significação aplicada a ele. Pois há um conjunto de técnicas desenvolvidas pelos djs (como o backto-back, back spin, scratch, mixagem, remixagem) que atribuem a essas pick ups um valor de instrumento musical de percussão e de produção de texturas sonoras. É preciso ter a consciência - Cibercultura - de que os objetos técnicos podem desenvolver novas atribuições. Sobre o que Simondon (1958:13) afirma: "Uma verdadeira tomada de consciência das realidades técnicas agarradas em sua significação corresponde a uma pluralidade aberta de técnicas. Não se pode aliás caminhar de outra maneira, porque um conjunto técnico, mesmo de pouca extensão, compreende máquinas cujos princípios de funcionamento restabelecem domínios científicos muito diferentes". Simondon reforça a idéia de uma reversão, até, das utilidades iniciais de um objeto técnico e justifica, em primeira instância, que qualquer instrumento pode ser um instrumento musical, por exemplo, se essa significação for atribuída a ele. O músico contemporâneo Marcelo Martins, de Brasília, defende que "...não importa muito se você está com um violoncelo, um tambor, um toco de madeira ou um teclado sofisticado: o que interessa é como se dá o fluxo da sua idéia até o equipamento que você está usando!!!". Ora, o músico alagoano Hermeto Pascoal utiliza uma gama de objetos – inclusive sucatas – e lhes atribui a significação de instrumentos musicais. É interessante registrar que, em plena década de 20, a peça musical (Ballet Mechanique) foi composta para ser "tocada" por máquinas de fábricas. Uma sinfonia produzida pelas ruidosas máquinas, agora instrumentos musicais - portanto objetos técnicos que teriam que sofrer uma nova naturalização, desta vez pela nova significação a eles atribuídos. Essa indisposição à máquina e suas novidades é resquício de uma cultura ludita – ou a presença do neoludismo. A ausência de uma formação de Cibercultura traz ao homem a postura de ressentimento em relação à máquina. A máquina é um instrumento acelerador da produção (inclusive simbólica) e portanto libertador de atividades mais "automáticas". A máquina resgata para o homem a sua autêntica função de pensador. Pensador que propõe novas significações, novas formas de usar as máquinas. Em resumo, os objetos técnicos são naturalizados pelo tempo em sua significação inicial (para "o quê" eles foram inventados), mas sua resignificação (uma nova forma de usar o mesmo objeto técnico) coloca em xeque mais uma vez a nossa falta de Cultura Técnica. É essa reutilização do mesmo objeto (sua resignificação) que deverá ser naturalizada. Em breve, enfim, uma pick up, além de ser um instrumento para tocar músicas em vinis, poderá ser compreendida como um instrumento musical de percussão também - a partir da naturalização não do objeto, mas de sua resignificação, assim como os computadores, instrumentos de produção muito mais do que armazenadores de dados. * Cláudio Manoel (ou Cláudio M.) é jornalista de formação, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA, professor das Faculdades Jorge Amado, fundador e dj do grupo de música eletrônica Pragatecno, sub-editor da publicação 404nOtF0und, integrante do Núcleo de Pesquisa Humanidades e coordenador do Atelier de Comunicação e Cultura das Faculdades Jorge Amado, membro do coletivo de artistas digitais e-letroINvasores, moderador da comunidade virtual PragatecnoBrasil e produtor cultural. www.facom.ufba.br/ciberpesquisa www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und/index.html www.pragatecno.com.br www.fja.edu.br Referência bibliográfica: SIMONDON, G. Du Mode D´Existence des Objets Techniques. Editions Aubier, 1958. __. Sobre a tecno-estética: carta a Jacques Derrida. ... 1992