PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA No presente estudo, investigamos as invariantes nas diferentes áreas do saber humano, a fim de encontrar um elemento comum de expressão da espiritualidade do homem. As invariantes encontradas foram o sagrado e a omnipotência, cujo uso e estruturação podem indicar a dimensão da expressão humanística e espiritual do homem. Para correlacionar psicologia, psicanálise e fé religiosa, é necessário observá-las e tentar entendê-las por meio de parâmetros parciais. A fé religiosa é um estado de ânimo que contém o sentimento de absoluto, total e verdadeiro, como um dogma. A psicanálise é um método de investigação e não constitui por si só o continente do conhecimento. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA As idéias de absoluto e total, de verdade total e acabada são elementos que a fé religiosa e a religião oferecem, e que a ciência, desde os tempos primevos, não se propõe a fornecer. Sabe-se, por exemplo, que, na física, as teorias têm valores relativos e são questionadas quando se considera o campo universal. É o caso da teoria gravitacional e da teoria dos quanta, que não puderam ser integradas em uma teoria única universal, que valesse tanto para o micro quanto para o macrocosmos. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Bryan Magee, citando as idéias de Popper, ressalta que só se pode instituir uma teoria mais abrangente, isto é, de valor mais próximo do universal, que em determinada época e contexto teria o valor de um conceito operacional. Este conceito tem valor de verdade, porém não absoluta, apenas mais abrangente16. Desse modo, proponho que das diferentes áreas do saber humano retiremos conhecimentos que nos proporcionem uma verdade mais abrangente. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A água, em forma de gelo, vapor ou líquida, apresenta-se sob formas bem diferentes, porém há uma invariante do ponto de vista químico: em todas estas formas, é constituída de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. A filosofia, a antropologia, a mitologia, a sociologia, a psicologia, a psicanálise, etc. são áreas do saber que, embora apresentem conteúdos muito diferentes, possuem invariantes ocultas, que nos fornecem verdades mais abrangentes, oriundas do saber específico de cada uma delas. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Por meio de suas teorias sobre o conhecimento e de suas concepções de Deus e da religião, os filósofos divergem, fornecendo um acervo de contribuições muito extenso e complexo1. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Alguns filósofos do grupo empirista admitem que podemos captar a realidade e a verdade de uma maneira total através dos nossos sentidos. Os filósofos do grupo intuicionista atribuem à intuição o poder de alcançar a realidade e a verdade total. O grupo idealista atribui à razão o poder de captar gradativamente a verdade e a realidade total. O grupo do materialismo dialético e histórico admite que a essência da realidade e da verdade é obtida por meio do método de pesquisa do materialismo histórico. O grupo fideísta admite que a revelação e a fé fornecem a verdade final. E assim por diante, cada grupo apresenta o seu próprio instrumento de poder omnipotente. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Como podemos observar, há uma invariante nesse caso, que é a idéia de poder omnipotente desse ou daquele método para alcançar a realidade plena, a verdade legítima. Essa invariante é a função de omnipotência, elaborada e localizada nas teorias dos diferentes filósofos. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Sócrates adotava uma postura humilde e prudente frente ao conhecimento. Ensinava que devíamos deixar para os deuses o cuidado com o Universo e o infinito. Devíamos questionar as nossas contradições e nos conscientizarmos da nossa ignorância. Ele demonstrava que, à medida que buscamos um conceito único, universal, que abarque uma extensão cada vez mais ampla de notas inteligíveis de um determinado conceito, acabamos por encontrar uma pluralidade de conceitos, sem que nenhum deles englobe todas as variáveis das notas inteligíveis. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Kant admitia que a coisa em si, o absoluto, a essência é incognoscível e que afirmações e conceitos sobre a essência não são de legítimo conhecimento, porque usam o entendimento fora dos seus limites. Husserl procurava colocar a “essência” entre parêntesis, sem negar ou afirmar a possibilidade de conhecê-la, mas limitando-se a pesquisar a intencionalidade do uso da essência durante o ato relacional. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A prática psicanalítica apenas investiga o uso que um determinado homem faz das funções do sagrado, da omnipotência e do sentimento de culpa e sua forma de expressá-las, seja através da religião ou de outras formas. Alguns psicólogos também tentaram elaborar conceitos, dando a eles uma conotação universal de verdades acabadas. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Freud foi o primeiro a observar a religião sob o vértice psicanalítico. “O princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista do pensamento, é o princípio da omnipotência do pensamento. Enquanto a magia ainda reserva a omnipotência apenas para os pensamentos, o animismo transmite um pouco dela para os espíritos, preparando assim o caminho para a criação de uma religião. A psicanálise dos seres humanos ensina-nos, com insistência muito especial, que o deus de cada um deles é formado à semelhança do pai e que a relação pessoal com Deus depende da relação com o pai em carne e osso e se modifica de acordo com essa relação, e que no fundo Deus nada mais é que um pai glorificado.”9 Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Para Freud, o sentimento de culpa que os homens apresentam tem origem nas hordas primitivas e se deve ao parricídio. Freud destaca que a supervalorização e a omnipotência do pensamento, assim como a imensa crença no poder dos desejos, são elementos da mente dos povos pré-letrados. Ele sintetiza: “O princípio que dirige a magia, a técnica da modalidade animista de pensamento é o principio da omnipotência do pensamento”9, p. 108. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Com uma atitude prudente, Freud diz, à página 125: “Não tem fundamento o receio de que a psicanálise fique tentada a atribuir a uma única fonte a origem de algo tão complicado como a religião [...]. Somente quando pudermos sistematizar as descobertas dos diferentes campos de pesquisa é que se tornará possível chegar à importância relativa do papel desempenhado na gênese das religiões pelo mecanismo estudado nesta página”9. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Em O futuro de uma ilusão – o mal-estar da civilização, Freud diz, à página 57: “Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade. Tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai. A ser correta esta conceituação, o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento e nos encontramos nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento”10. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Como vimos, Freud localiza a função de omnipotência nos povos pré-letrados, porém, mesmo com a sua genialidade, caiu na armadilha da própria omnipotência do pensamento, dando ao complexo de Édipo um modelo de explicação universal e atribuindo ao seu pensamento o poder de decifrar o futuro da religião. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Jung foi um dos autores que pesquisou profundamente a religião e a religiosidade do homem. Introduziu a concepção de inconsciente coletivo, apresentando os arquétipos como as representações coletivas primordiais que estão na base das diversas formas de religião. Esse autor admitiu que o espírito humano cria espontaneamente imagens de conteúdo religioso, que expressam direta ou indiretamente a natureza religiosa do homem. Para ele, a religião é uma relação com um valor supremo, o mais poderoso, seja ele positivo ou negativo, de uma maneira voluntária ou involuntária, constituindo um fator psíquico avassalador e cheio de energia poderosa. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA “O pressuposto da existência de deuses e demônios invisíveis é, na minha opinião, uma formulação do inconsciente psicologicamente adequada, embora se trate de uma projeção antropomórfica. Pois bem, como o desenvolvimento da consciência exige que se retirem todas as projeções que podem ser alcançadas, assim também é impossível continuar sustentando qualquer mitologia no sentido de uma existência não psicológica. Se o processo histórico da des-animação do mundo ou, o que é a mesma coisa, a retirada das projeções continuar avançando, como até agora, então, tudo quanto se acha fora, quer seja de caráter divino ou demoníaco, deve retornar à alma, ao interior desconhecido do homem, de onde aparentemente saiu”12, p. 142. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA “Incorreria em erro lamentável quem considerasse minhas observações como uma espécie de demonstração da existência de Deus. Elas demonstram somente a existência de uma imagem arquetípica de Deus e, na minha opinião, isso é tudo o que se pode dizer, psicologicamente, acerca de Deus”12, p. 64. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Jung, embora fosse um homem religioso, como pesquisador adotava uma postura científica. Resumindo sua extensa obra, no que se refere à religião e à religiosidade, destacamos: 1) Os arquétipos são elementos universais, de faculdade imaginativa e criativa, sem conteúdos específicos e herdados desde os tempos remotos. 2) Essas estruturas psíquicas são atemporais e universais como as categorias; por serem componentes universais do homem, não dependem dos limites de ordem familiar ou racial. 3) Em relação à teoria do renascimento e da reencarnação das almas, Jung estabelece um paralelismo com os arquétipos. Os arquétipos, com todo o seu acervo anímico de cunho universal, tendem a renascer do inconsciente para o consciente a fim de fornecer ao indivíduo uma visão mais holística do Ser, induzindo-o a caminhar para a individuação, que é o caminho do seu desenvolvimento. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA 4) A religião é a relação com o valor supremo, o mais poderoso, seja ele positivo ou negativo, de uma maneira voluntária ou involuntária. A este fator psíquico avassalador se dá o nome de Deus. 5) Mediante a exploração do inconsciente, a consciência se aproxima do arquétipo e o indivíduo é confrontado com a contradição abissal da natureza humana, proporcionando-lhe experiências opostas de luz e trevas, de Deus e Diabo. 6) Suas afirmações e teorias apontam somente a existência de uma imagem arquetípica de Deus e não a existência de Deus como uma entidade em si mesma, separada do homem. 7) Para ele, as imagens arquetípicas de Deus, antropomorficamente expressadas, apresentam uma antinomia, em que o bem e o mal encontram-se em um dinamismo intrínseco1. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Mais uma vez, a omnipotência como função é apresentada como sendo inerente aos arquétipos, que serão elaborados pelo homem através de sua cultura. A aplicação prática da psicanálise moderna propõe-se a pesquisar o uso que se faz de funções como sagrado, omnipotência do pensamento e sentimento de culpa, sem se preocupar com a essência em si, com o absoluto. Para isso, temos de nos assessorar das contribuições de psicanalistas como Melanie Klein, Bion, Grinberg e muitos outros, bem como de estudiosos de outras áreas, antropólogos como Margareth Mead, Malinowski, Levi-Strauss e muitos outros, que ampliam nossos conhecimentos dessas funções. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Em seus artigos sobre as posições esquizo-paranóide e depressiva, Melanie Klein nos fornece a infraestrutura do entendimento da relação primitiva do indivíduo frente ao mundo. Em seus artigos sobre as culpas depressiva e persecutória, Grinberg amplia e sintetiza as noções de Melanie Klein e nos possibilita o entendimento da necessidade de autocastigo e autoflagelação, impostos por algumas religiões. A culpa depressiva é relacionada à restauração, ao concerto, à reparação. A culpa persecutória é relacionada ao castigo, à retaliação. A primeira está ligada às forças de vida, e a segunda, às forças de morte. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A culpa é um sentimento que se refere ao passado. Surge em decorrência de um ataque destrutivo real ou imaginário contra o ego ou o objeto. A culpa pode originar concomitantemente duas formas de expressão: a depressiva, com necessidade de reparação, e a persecutória, com ansiedade de retaliação vinda do objeto. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Os povos primitivos, cujo pensamento era dominado pela função da omnipotência, produziam idéias e condutas oriundas dessas duas formas de expressão da culpa. Desse modo, quando havia transtornos na natureza, como secas, terremotos, doenças ou acontecimentos desastrosos, eles eram atribuídos ao castigo, à retaliação divina (culpa persecutória). Os indivíduos reagiam promovendo autoflagelações, imolando virgens para aplacar a ira dos deuses, etc. Os astecas, por exemplo, promoviam sacrifícios aos deuses, escolhendo uma vítima e derramando seu sangue em oferenda. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA O sacrifício com sangue continua sendo praticado atualmente. Muitas religiões fazem uso do açoite para castigar e derramar sangue para expiar as culpas. No sudoeste asiático, no monte Bahaw, em Luson, há uma igreja construída por mulheres, que se açoitam para expiar a culpa e depois se banham com vinagre. Algumas religiões ascéticas também fazem uso do sacrifício para expiar a culpa. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Quando não havia conhecimento científico dos fenômenos da natureza, as funções de culpa depressiva e culpa persecutória eram projetadas neles. Com o desenvolvimento da ciência, essas funções foram retiradas desse continente e projetadas em outros, escolhidos de acordo com a cultura de cada povo. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Os antropólogos de campo, como Margareth Mead, demonstraram que a cultura estimula os potenciais inerentes ao homem. Ela descreve, por exemplo, o caso dos povos arapesh e mundugumor. A cultura dos arapeshes estimulava a reparação, e assim os indivíduos cresciam calmos; não eram beligerantes nem vingativos. A cultura dos mundugumores estimulava a vingança, a destruição e a agressividade, e assim os indivíduos cresciam violentos, beligerantes e vingativos. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Bion adverte que a realidade última, o absoluto, Deus, a essência, foge ao domínio do conhecimento; é incognoscível. Ele propõe que a letra O seja utilizada para simbolizar o fato em si, a essência. Tudo o mais constituiria transformações de O, um “vir a ser” que não pode ser conhecido (posição kantiana de Bion). Assim como a matéria-prima é moldada e esculpida pelo escultor, as funções do sagrado, da omnipotência do pensamento e do sentimento de culpa são moldadas pela cultura. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A história e a filosofia da história nos fornecem elementos preciosos para ampliar o conhecimento. Por meio da filosofia da história, podemos tentar compreender a seqüência dos acontecimentos históricos, admitindo-se que ela não é incoerente e casual, mas segue um movimento determinado, segundo certas linhas de força. O historicismo pode ser considerado como um método filosófico que tenta explicar, através da história, os acontecimentos relevantes do direito, da moral, da religião, etc. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Mircea Eliade (1907–1986), um dos mais notáveis estudiosos das religiões de nossa época, elaborou uma análise profunda das religiões em sua coletânea História das crenças e das idéias religiosas6. Ele afirma que podemos estudar a essência da religião e da religiosidade através da história comparada. Desse modo, ele pesquisou as invariantes que podem ser encontradas na essência da religião e da religiosidade desde épocas longínquas até a época atual. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Para Mircea Eliade, há duas formas de manifestação do ser no mundo: a sagrada (hierofania) e a profana. O sagrado e o profano constituem as duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Esses modos de ser no mundo não interessam unicamente à história das religiões, à sociologia ou à etnologia. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no cosmos, conseqüentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana7. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Eliade incorporou à idéia de sagrado uma complexidade estrutural, com mitos, ritos, símbolos, figuras divinas, etc. Cada hierofania está sempre situada num determinado momento histórico e revela a posição do homem diante do sagrado. A realidade profana só se torna capaz de revelar o sagrado ao ser se for iluminada pelo símbolo. A camuflagem do sagrado, uma metáfora filosófica, não é menos legítima que a metáfora psicológica de Freud sobre a censura da consciência, que conduz a teoria da interpretação do inconsciente7. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Eliade salienta que Marx analisou e desmascarou o inconsciente social; Freud, o inconsciente pessoal; e Jung, o inconsciente coletivo, informando-nos como penetrar nas estruturas camufladas e atingir as verdadeiras causas de determinados objetivos. Para Eliade, o objetivo da história das religiões é o mesmo: identificar a presença do transcendente na experiência humana, isolá-lo da enorme massa do inconsciente e desmascarar a presença do transcendente camuflado pelo profano. O espaço sagrado é qualitativamente diferente do profano. Ao localizar um espaço sagrado, o indivíduo determina um ponto fixo, que o orientará na homogeneidade caótica dos espaços. O sagrado revela a função transcendente em ação no homem. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés, descalça as sandálias porque o lugar onde te encontras é uma terra sagrada” (Êxodus, 3: 5). Através de suas pesquisas, Eliade constata, na função do sagrado, a existência da função da omnipotência do pensamento, que elabora o sobrenatural. As funções do sagrado e da omnipotência do pensamento foram descritas e constatadas por diferentes pesquisadores, desde o início dos tempos, o que nos sugere que constituem duas funções inerentes ao homem. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA As chamadas categorias universais foram amplamente estudadas pela filosofia. Trata-se de idéias universais, que dizem respeito a cada um dos seres, individualmente, e à humanidade como um todo. Constituem os conceitos mais gerais que existem e são aplicadas a tudo o que é real. Enquanto os empiristas admitem que as categorias se originaram de experiências empíricas, para os idealistas elas não podem ser derivadas de nenhuma experiência, pois são anteriores a ela e a condicionam. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Para Durkheim, essas categorias teriam origem no social e seriam representações essencialmente coletivas, dependendo da maneira como a coletividade é constituída e organizada5. A omnipotência e o sagrado são idéias universais, como as categorias. O problema reside em aceitar, como os idealistas, que estas idéias existam a priori, ou, como diria Durkheim, sejam formadas pela elaboração do social, do coletivo. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Para Durkheim, essas categorias teriam origem no social e seriam representações essencialmente coletivas, dependendo da maneira como a coletividade é constituída e organizada5. A omnipotência e o sagrado são idéias universais, como as categorias. O problema reside em aceitar, como os idealistas, que estas idéias existam a priori, ou, como diria Durkheim, sejam formadas pela elaboração do social, do coletivo. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA O que teria aparecido primeiro, o ovo ou a galinha? Para nós, psicoterapeutas, isto não é relevante, pois nos limitaremos a investigar o uso que o indivíduo faz da função da omnipotência, seja ela revelada ou camuflada. A religião apresenta, na sua essência, a institucionalização das funções do sagrado e da omnipotência. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Tanto a psicoterapia como a religião perseguem o objetivo da evolução do homem. A psicoterapia utiliza teorias e métodos questionáveis, cuja validade e utilidade podem ser testadas. A religião utiliza a catequese, uma instrução metódica, baseada em dogmas inquestionáveis, que têm origem na fé e na revelação e, portanto, são considerados como verdade absoluta. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Até pouco tempo atrás, os problemas religiosos e espirituais não eram objeto de grande atenção por parte dos psiquiatras e psicólogos. Recentemente, graças a um grupo de pesquisadores, como Turner, Lukoff e colaboradores, os problemas religiosos e espirituais foram incluídos na DSM IV. Esta inclusão reflete o encorajamento à reparação da insensibilidade cultural da psiquiatria de tendência exclusivamente biológica15. Há diversas definições para o termo espiritualidade. Em geral, elas equacionam o transcendente com um Ser superior1, excluindo os ateus e materialistas. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Leonardo Boff4, um religioso, profundo conhecedor de teologia, enunciou um conceito de espiritualidade que abrange os religiosos e os ateus: “Espiritualidade é aquela atitude que coloca a vida no centro, que defende e promove a vida, contra todos os mecanismos de morte, diminuição e estancamento. O oposto ao espírito, neste sentido, não é o corpo, mas a morte e tudo o que estiver ligado ao sistema de morte, tomada em sentido amplo, de morte biológica, morte social e morte existencial, no sentido de fracasso, humilhação, opressão.” Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA O conceito de Leonardo Boff coloca as forças construtivas do homem em direção ao progresso e à proteção da vida material, social e espiritual como essência do sentido de espiritualidade, sem que o termo esteja obrigatoriamente relacionado com uma religião institucionalizada ou um Ser superior. Historicamente, o conceito de espiritualidade não era claramente separado e distinto de religião ou religiosidade. Porém, nos últimos anos pode-se observar uma separação nítida entre os conceitos de espiritualidade e religião. Como diria William James (1842–1910), é necessário separar a religião institucional da pessoal, pois esta última é a fonte de conhecimento do homem religioso11. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Entre os diversos referenciais psicoterápicos, a psicanálise pode ser usada como um instrumento útil de investigação do uso que um indivíduo faz e da maneira como se relaciona com a sua religião. O psicoterapeuta não pode e nem tem o direito de validar ou não os dogmas religiosos assumidos pelo paciente, devendo limitar-se a investigar o uso que ele faz desses dogmas. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Podemos ilustrar essas idéias teóricas com casos clínicos. Analisando A – Um profissional liberal, com 26 anos no início da observação, solteiro, apresentava queixas de angústia, conflitos familiares com mãe e pai, crises de impotência sexual sem motivos aparentes ou causas orgânicas. Era católico não praticante. Analisando B – Um profissional liberal, com 30 anos no início da observação, casado, queixava-se de fantasias que o incomodavam, caracterizadas por não poder pisar em manchas escuras ou pretas do chão, pois sentia que sua mãe morreria se fizesse isso. As flores roxas o incomodavam. Enfrentava conflitos familiares e crises de impotência sexual sem causas orgânicas. Fora educado na religião católica, porém não era praticante. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Estes dois casos, de profissionais liberais, observados por mais de dez anos, forneceram elementos preciosos de omnipotência do pensamento, noção de sagrado e religiosidade primitiva. O espaço proibido de ser pisado ou tocado, de estabelecer vínculo ou ligação, é a simbolização do sagrado no espaço profano.7 Este vínculo proibido, se desrespeitado, causaria a morte de sua mãe. O espaço profano (mancha preta ou escura) manifesta o sagrado por meio do símbolo “espaço sobrenatural”, com poder de vida e morte. É a mente primitiva com sua omnipotência do pensamento. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A defesa do ego primitivo é o afastamento, o corte do vínculo, o impedimento de estabelecer vínculo (pisar, tocar). O material defendido é toda a destrutividade inconsciente da mente primitiva omnipotente. Os impulsos de vida e amor incitavam o analisando a ficar atento e não pisar (não estabelecer vínculo) na mancha preta (símbolo da destrutividade inconsciente do analisando), que era vivenciada como omnipotente. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Os impulsos de vida e amor, caracterizados por tolerância à frustração, capacidade de renúncia, gratidão, perdão, etc., ainda não estavam suficientemente desenvolvidos e fortes para neutralizar os componentes destrutivos (intolerância à frustração, ódio, inveja, sentimentos inconscientes de vingança, etc.). Sendo assim, os mecanismos primitivos de defesa contra a destrutividade foram acionados. Sua mente primitiva expeliu o destrutivo ruim e identificou-se com o bom protetor. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Como sabemos, os conceitos desenvolvidos por Freud sobre o sentimento de culpa inconsciente apontam para o conflito de ambivalência: a eterna luta entre o instinto de vida e o de morte, entre as forças de criação, união e aproximação e as de destruição, eliminação e desintegração. Sabemos que o sentimento de culpa nem sempre é consciente, tendo muitas vezes motivação inconsciente. Nesse caso, só poderá ser percebido por meio de alguns indícios de comportamento. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Esse sentimento de culpa pode ser exteriorizado, por exemplo, por meio de irritabilidade, mau humor, apatia, depressão e transtornos psicossomáticos (impotência sexual no homem, frigidez sexual na mulher, etc.). As fases oral, anal e genital, exaustivamente estudadas pelos psicanalistas, podem fornecer informações sobre distúrbios psicopatológicos, como a impotência sexual no homem. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Melanie Klein13 assinala que o desenvolvimento sexual e emocional no menino e na menina inclui sensações genitais desde o início da primeira infância, antes dos três até os cinco anos (período concebido por Freud). Ela inclui o complexo de Édipo nos primeiros meses de vida, coincidindo com os impulsos orais-sádicos e os intensos sentimentos de ansiedade e culpa. Sustenta que a relação com o seio materno é a gênese inicial de toda a estruturação que posteriormente será organizada no complexo de Édipo. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Para Melanie Klein13, a culpa e as ansiedades persecutórias e depressivas não aparecem pela primeira vez no complexo de Édipo. Elas já existem desde o início da relação, devido às fantasias oraissádicas inconscientes de devorar o seio e destruí-lo quando lhe causa frustrações. Este é o primeiro conflito estrutural de vínculo, que posteriormente irá influenciar os outros, como, por exemplo, o genital. Melanie Klein lembra que o seio atacado e estragado se transforma em um objeto interno superegóico vingativo, retaliador e persecutório, por meio da introjeção, dificultando a aproximação da criança com o seio real (que na fantasia inconsciente se tornou perigoso). Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Em todo distúrbio psicossomático se oculta uma certa dose de sentimento de culpa inconsciente. Quando um impulso instintivo sofre repressão, seus componentes libidinosos se convertem em sintomas, e os agressivos, em sentimento de culpa. Nos analisandos A e B, o estabelecimento do vínculo genital estava possuído por esta estruturação persecutória. Ao tentar estabelecer um vínculo genital, surgia a ansiedade, devido à culpa persecutória inconsciente, decorrente dos vínculos primitivos orais e genitais com o objeto feminino. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A ansiedade é uma dor psíquica e o ego primitivo utiliza os mesmos mecanismos de outrora, ou seja, a repressão dos elementos libidinais e o afastamento do objeto. O afastamento e o não-estabelecimento de vínculo são defesas contra o material inconsciente, caracterizado por vivência de culpa frente ao objeto estragado e perigo de retaliação. A base desta estruturação e dos sintomas é o mau vínculo mãe-filho desenvolvido pelos analisandos e posteriormente deslocado nos novos vínculos. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Havia nestes analisandos um ódio inconsciente pela figura materna (posteriormente deslocado de forma inconsciente nas mulheres), defendido pelos sintomas. Durante o processo de análise dos dois pacientes, este ódio foi conscientizado, elaborado e neutralizado, e eles compreenderam que o problema não estava no vínculo genital (não havia problemas genitais reais), mas nos vínculos humanísticos, em que apresentavam pobreza de amadurecimento humanístico e espiritual, apontada, de modo primitivo, pelos sintomas. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Como diria Jung12, todos nós herdamos arquétipos de um potencial espiritual e humanístico de milhares de anos, que aparecem codificados em sintomas e sinais, como se pedissem para serem decifrados, a fim de não estancar o seu desenvolvimento. Esses analisandos puderam não só superar os sintomas, mas também perceber que eles apontavam para o desenvolvimento de sua espiritualidade e maturidade frente a um Bem Maior, mais universal. É isso que a humanidade busca na ecologia, nos direitos humanos e no ecumenismo religioso. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA A tarefa do psicoterapeuta é ajudar o indivíduo a desenvolver os aspectos construtivos de sua personalidade, o amor, para não usar os meios primitivos de defesa contra a destrutividade. Ao mesmo tempo, ele deve mostrar o uso que o indivíduo faz da função de omnipotência, localizada, nesse caso, no poder da mente do analisando. No caso dos dois analisandos, a defesa expressavase por meio das crises de impotência, com afastamento inconsciente e corte do vínculo para proteger o objeto contra o material defendido (destrutividade inconsciente do sujeito). Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Ao atuar com a impotência, não estabelecendo vínculos, inconscientemente o sujeito protege o objeto de seus impulsos destrutivos contra a figura feminina e se protege da retaliação vivida pelas ansiedades persecutórias. Nos dois analisandos, a espiritualidade, a religiosidade e a busca de um bem maior, mais abrangente, estavam camufladas pelos sintomas. Os meios utilizados (sintomas) não permitiam que eles atingissem os objetivos de desenvolvimento espiritual, sem considerar sua vinculação à noção de Deus, pois esta é uma escolha pessoal que deve ser respeitada. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA É impossível relatar, neste resumo, todas as nuanças da estrutura dos analisandos e suas modificações. Podemos dizer que, após anos de psicanálise, os sintomas desapareceram. Os analisandos se conscientizaram de sua pobreza espiritual e se esforçaram no caminho do desenvolvimento dos aspectos construtivos de suas personalidades. O homem não-espiritualizado é um homem doente, mesmo que não apresente sintomas clássicos descritos pela medicina. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA O sobrenatural e o sagrado estão presentes tanto no ateu como no religioso e são frutos da elaboração da função de omnipotência da mente. Trata-se de uma função existencial do homem, e o uso que ele faz dessa função será a medida para a sua compreensão. Atualmente, diversos autores não aceitam o preconceito e a noção a priori de que o comportamento religioso implica necessariamente um estado neurótico que precisa ser decodificado e eliminado pela interpretação (exorcismo). Trata-se de uma posição reducionista, oriunda dos primeiros trabalhos de Freud, que hoje estão em reformulação.9 Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA O psicanalista deve observar o uso que o analisando faz da representação da imagem de Deus em seu mundo subjetivo, pois se trata do uso da função de omnipotência. Dentre os diversos autores que apóiam esta posição, destacamos Odilon de Mello Franco8, que aborda em seu artigo a transição do homem-Deus ao homem com Deus. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA W. R. Bion2, 3, um dos mais notáveis psicanalistas da atualidade, utiliza a letra O como símbolo de tudo aquilo que, em outros quadros de referência, se pode chamar de realidade última, incognoscível, a verdade absoluta, a realidade, a coisa em si, o infinito, o desconhecido. É o que chamamos de função de omnipotência (que inclui a omnisciência e a omnipresença). Bion assinala que a realidade ou a coisa em si, ou seja, O, não pode ser conhecida, apenas “vir a ser” conhecida. Jorge Amaro PSICOLOGIA, PSICANÁLISE E FÉ RELIGIOSA Referências Bibliográficas 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) 8) 9) 10) 11) 12) 13) 14) 15) 16) AMARO, J. W. F. Psicoterapia e religião. São Paulo: Lemos, 1996. BION, W. R. Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1973. ______________. 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