Diabo - Etapa

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AUTO DA BARCA
DO INFERNO
GIL VICENTE
Momento histórico

Segunda metade do XV a primeira do XVI –
‘século de ouro’

Expansão marítima e estabelecimento do
império português

Rotas comerciais
Humanismo
Transição da Idade Média para o
Renascimento
 Influência das ideias medievais
 Releitura dos textos da Antiguidade:



Novos gêneros literários
Antropocentrismo
Gil Vicente – o homem
Pai do teatro português
 Nascimento:





Guimarães (mais provável)
Barcelos
Lisboa
entre 1465/1470
Gil Vicente: profissão

Segundo Cleonice
Berardinelli:


1509 - Gil Vicente nomeado
ourives da rainha D. Leonor
(viúva de D.João II);
Mestre de Retórica do Rei
D. Manuel
O Teatro
História do Teatro – Antiguidade
Tragédias e comédias
 Texto escrito em verso
 Representação no espaço urbano
 Lei das três unidades: tempo/espaço/ação
 Desaparece no fim da Antiguidade

História do Teatro – Idade Média
Origem popular – trupes nômades
 Improvisação sobre temas e personagens
 Divertimento da plebe e da nobreza
 Não segue as três unidades
 Autos: argumento religioso
 Farsas: argumentos profanos (não religioso)

O teatro de Gil Vicente
Uso da tradição popular medieval
 Gil Vicente profissionaliza o teatro






Escreve o texto
Texto em versos: redondilhas
O ator deve seguir o texto escrito
Diretor do espetáculo
Cenografia e figurino
RECRIAÇÃO DO TEATRO = HUMANISMO
O teatro de Gil Vicente

44 peças


Classificação própria


Português, castelhano e bilíngües
Moralidades, comédias e farsas
Influência de Juan del Encina
Principais obras

Auto da Índia

Trilogia das Barcas

Auto da Barca do Inferno

Auto da Barca do Purgatório

Auto da Barca da Glória (Céu)

Auto da Alma

Farsa de Inês Pereira

Velho da Horta
Características temáticas

Dramatiza preceitos morais


critica vícios e costumes da sociedade
portuguesa
Função pedagógica e moralizadora
Ridendo castigat mores
Preceito antigo, frase de Molière
 “Castiga-se os costumes por meio do riso”
 Preceito da sátira:





Expor o desvio moral e produzir riso
Riso como punição
Existe um modelo de conduta moral
Desvio moral: opção pessoal
Linguagem
Rica e variada: caracteriza personagens
 Enraizada nas tradições populares:







termos chulos (palavrões)
frases feitas (provérbios)
ditados populares
trocadilhos
falares regionais
Expressões distantes da fala atual
Trilogia das barcas

Argumento:


Barcas levam as almas para o Inferno,
Purgatório ou Paraíso
Cenário comum:

Cais com duas barcas
Auto da Barca do Inferno

Estrutura:


ato único
subdivisão em cenas
– julgamentos individuais: sem unidade de ação
– coesão do espetáculo: Anjo e Diabo
Cenário: ancoradouro
 Sem unidade de tempo

A Barca
Compilação das Obras de Gil Vicente, 1586, pag. 179v
Personagens
Tipos sociais:



conjunto de características de um grupo social
Ausência de caracterização psicológica
ATENÇÃO: possível paralelo com os personagens
de Memórias de um Sargento de Milícias
Anjo

Representante da bondade. Previsível:




Não aceita subornos
Afasta os maus
Acolhe os bons
Não pode atacar os pecadores
Diabo

Representante da maldade

Irônico, debochado e enganador

Revela os erros dos homens

Produz riso no espetáculo

‘Advogado de Deus’
Diabo, Codex Giga,
1295, pag. 290r
Compilação das Obras de Gil Vicente,
1586, pag. 75f
Fidalgo

Membro da nobreza

Acostumado ao luxo e ao poder

Símbolos terrenos: cadeira, manto, pajem

Explora seus servos e é arrogante

Tirania = vício da nobreza
Anjo:
Fidalgo:
Anjo:
Fidalgo:
Anjo:
Fidalgo:
Anjo:
Fidalgo:
Que mandais?
Que me digais?
pois parti tão sem aviso,
se a barca do paraíso
é esta em que navegais.
Esta e; que lhe buscais?
Que me deixeis embarcar;
sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais
Não se embarca tirania
neste batel divinal
Não sei por que haveis por mal.
que entre minha senhoria.
Pra vossa fantasia
Mui pequena é esta barca.
Para senhor de tal
não há aqui mais cortesia?
Anjo:
Venha prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
Não vindes vós de maneira
para entrar neste navio.
Essoutro vai mais vazio:
a cadeira entrará,
e o rabo caberá
e todo o vosso senhorio.
Ireis lá mais espaçoso,
vós e... Vossa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso;
e porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
Quanto mais fostes fumoso.
Compilação das Obras de Gil
Vicente, 1586, pag. 67f
Compilação das Obras de Gil
Vicente, 1586, pag. 53f
Onzeneiro

Plebeu rico

Juros exorbitantes (onze por cento)

Símbolo terreno – bolsão

Ganha dinheiro com o tempo

“meu parente” = lado do mal
Onzeneiro:
Diabo:
Onzeneiro:
Diabo:
Onzeneiro:
Diabo:
Onzeneiro:
Diabo:
Para onde caminhais?
Oh! Que má-hora venhais,
onzeneiro meu parente!
Como tardastes vós tanto?
Mais quisera eu lá tardar.
Na safra do apanhar
me deu saturno quebranto
Ora mui muito me espanto
não vos livrar o dinheiro.
Nem tão só para o barqueiro
não me deixaram nem tanto.
Ora entrai, entrai aqui!
Não hei eu i de embarcar!
Oh! Que gentil recear,
e que coisas para mi!...
Onzeneiro:
Hou-lá! Hou demo barqueiro!
Sabeis vós no que eu me fundo?
Quero lá tornar ao mundo
e trazê-lo meu dinheiro;
que aqueloutro marinheiro,
porque me vê vir sem nada,
dá-me tanta borregada
como arrais lá do Barreiro.
Diabo :
Entra, entra e remarás!
Não percamos mais maré!
Todavia...
Por força é,
que te pês, cá entrarás!
Irás servir Satanás
pois que sempre te ajudou.
Oh! Triste, quem me cegou?!
Cal’te, que cá chorarás.
Onzeneiro:
Diabo:
Onzeneiro:
Diabo:
A avareza, iluminura em
manuscrito do “Livro das
Horas”, origem francesa
1436-1450
Parvo

Plebeu pobre

Ingenuidade e descontrole

Inocência e humildade

“Deixai vir a mim os pequeninos não os
impeçais, pois dele é o reino dos céus.” (Mt,
18;16)
Parvo: linguagem e destino

Reconhece o Diabo

Fala sem sentido e vocabulário chulo contra
o Diabo
O

Anjo o acolhe – está destinado ao céu
Espera “por aí” – fora do barco
Parvo: E onde havemos nós de ir ter?
Diabo: Ao porto de Lucifer.
Parvo: Hã?
Diabo:
Ao Inferno, entra cá.
Parvo: Ao inferno, ieramá?!
Hiu! Hiu! Barca do cornudo,
Pero vinagre beiçudo,
rachador de Alverca, huhá!
Sapateiro da Candosa!
Entrecosto de carrapato!
Hiu! Hiu! Caga no sapatp,
Filho da grande aleivosa!
Tua mulher é tinhosa
E há de parir um sapo
Chentado no guardanapo!
Neto da cagarinhosa!
Parvo:
Anjo:
Parvo:
Anjo:
Parvo:
Anjo:
Hou da barca!
Tu que queres?
Quereis-me passar além?
Quem és tu?
Não sou ninguém.
Tu passarás se quiseres;
porque em todos seus fazeres
por malícia não erraste.
Tua simpleza te baste
para gozar dos prazeres.
Espera entanto por aí:
veremos se vem alguém
merecedor de tal bem
que deva entrar aqui
Crônica de Nuremberg, 1493
Compilação das Obras de Gil
Vicente, 1586, pag. 138v
Sapateiro





Representa os plebeus artesãos
Rouba e engana o próximo
Religiosidade superficial
Símbolos: formas e tripeça
Vocabulário técnico e simples
Sapateiro: mandaram-me vir assi...
Mas – para onde é a viagem?
Diabo:
Para a terra dos danados.
Sapateiro: E os que morrem confessados
onde têm sua passagem?
Diabo:
Não cures de mais linguagem,
que esta é a tua barca, esta!
Sapateiro: Renegaria eu da festa.
e da barca e da barcagem.
Diabo:
Como poderá isso ser,
confessado e comungado?!
Tu morreste excomungado,
não no quiseste dizer.
Esperavas de viver;
calaste dez mil enganos;
tu roubaste bem trinta anos
o povo com teu mister.
Embarca, eramá para ti,
que há já muito que te espero!
Sapateiro: Digo-te que re-não quero!
Diabo:
Digo-te que si, re-si!
Sapateiro: Quantas missas eu ouvi
não me hão elas prestar?
Diabo:
Ouvir missa, então roubar –
é caminho para aqui.
Sapateiro: E as ofertas que darão?
E as horas dos finados?
Diabo:
E os dinheiros mal levados –
que foi da satisfação?
Sapateiro: Oh! Não praza ao cordovão,
nem à puta da badana,
se é esta boa traquitana
em que se vê João Antão!
Ora juro a Deus que é graça!
Livro das Horas, origem francesa, 1475. MS M.1001 fol. 97r, metade
inferior
Frade






Baixo clero corrupto
Dançarino
Espadachim
Devasso, traz a amante
Falta de moral
O Anjo não fala com ele, o parvo expulsa-o
Frade:
Diabo:
Frade:
Diabo:
Frade:
Juro a Deus que não te entendo!
E este hábito não me val’?
Gentil padre mundanal,
a Belzebu vos encomendo!
Corpo de Deus consagrado!
Pela fé de Jesus Cristo,
que eu não posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!
Um padre tão namorado
tanto dado à virtude!
Assim Deus me dê saúde
que estou maravilhado!
Não façamos mais detença.
Embarcai e partiremos:
tomareis um par de remos.
Não ficou isso na avença.
Diabo:
Frade:
Pois dada está já a sentença!
Por Deus! Essa seria ela?
Não vai em tal caravela
minha senhora Florença.
Como?! Por ser namorado
e folgar com uma mulher
se há um frade de perder
com tanto salmo rezado?!
Diabo:
Frade:
Diabo:
Ora estás bem aviado!
Mas estás bem corrigido!
Devoto padre e marido,
haveis de ser cá pingado...
Brísida Vaz




Agenciamento de prostituição
Feitiçaria – hímens postiços
Falsificação do casamento
Tenta seduzir o Anjo
Brísida:
Seisentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que não podem mais levar
Três armários de mentir
e cinco cofres de enleios,
e alguns furtos alheios,
assi em jóias de vestir;
guarda-roupa de encobrir,
enfim – casa movediça;
um estrado de cortiça
com dez coxins de embair.
Diabo:
Brísida:
Diabo:
Brísida:
A mor cárrega que é:
essas moças que vendia
Daquesta mercadoria
trago eu muita, à bofé!
Ora ponde aqui o pé.
Hui! Eu vou pra o paraíso!
E quem te disse a ti isso?
Lá hei-de ir desta maré.
Judeu
Segregação religiosa: não católico
 Suborno
 Símbolo: bode = satã
 O Diabo não quer levá-lo
 O Parvo o expulsa
 Vai fora da barca do Inferno

Judeu:
Diabo:
Judeu:
Diabo:
Judeu:
Diabo:
Judeu:
Diabo:
Que vai lá, hou marinheiro?
Oh! Que má-hora vieste!
Cuja é esta barca que preste?
Esta barca é do barqueiro.
Passai-me, por meu dinheiro.
E esse bode há cá de vir?
O bode também há-de ir.
Oh! Que honrado passageiro!...
Judeu:
Diabo:
Judeu:
Sem bode, como irei lá?
Pois eu não passo cá cabrões!
Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do semifará
que me passeis o cabrão!
Quereis mais outro tostão?
Nem tu não hás-de vir cá.
Por que não irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Diabo:
Judeu:
Corregedor







Nobre juiz. Representa ‘Justiça’
Julga com parcialidade
Busca proveitos próprios
Ignora a justiça divina
Arrogante
Símbolo material: processos
Linguagem rebuscada
Procurador





Nobre advogado
Eloquente e omisso
Sabedoria humana supera a divina
Símbolo material: os livros
Linguagem rebuscada
Corregedor:
Diabo:
Corregedor:
Diabo:
Corregedor:
Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há aqui meirinho do mar?
Não há cá tal costumagem.
Não entendo esta barcagem,
nem hoc non potest esse.
Se ora vos parecesse
que não sei mais que linguagem!...
Entrai, entrai, corregedor!
Hou! Videtis que petatis!
Super jure majestatis
tem vosso mando vigor?
Diabo:
Corregedor:
Diabo:
Corregedor:
Diabo:
Corregedor:
Quando éreis ouvidor
non ne accepistis rapina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for.
Oh! Que isca esse papel
para um fogo que eu sei!
Domine, memento mei!
Non es tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia judicastis malícia.
Semper ego in justicia
fecit e bem por nível.
E as peitas dos judeus
que vossa mulher levava?
Isso eu não no tomava,
eram lá percalços seus.
Enforcado
Plebeu ladrão
 Acredita que a oração dos outros o salva
 Pensa que o julgamento humano o livra dos
pecados
 Mostra que a justiça humana também
acerta

Diabo:
Dava-te consolação
isso, ou algum esforço?
Enforcado:
Com o baraço no pescoço
mui mal presta a pregação...
Ele leva a devoção,
que há de tornar a jantar...
Mas quem há de estar no ar
Aborrece-lhe o sermão.
Os Quatro Cavaleiros
Nobres modelares
 Cavaleiros Cruzados: morreram pela fé
 Linguagem: austera e direta
 Reconhecem o Diabo e o repudiam

Vêm quatro fidalgos, Cavaleiros da ordem de Cristo que morreram
nas partes da África. Vêm cantando a letra que se segue:
À barca, à barca segura,
guardar da barca perdida:
à barca, à barca da vida!
Senhores, que trabalhais
Pela vida transitória
Memórias, por Deus, memória
Deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais!
Porém na vida perdida
Se perde a barca da vida.
Diabo:
Cavaleiros, vós passais
e não perguntais onde is?
Primeiro Cavaleiro:
Vós, Satanás, presumis?
Atentai com que falais!
Segundo Cavaleiro: E vós, que nos demandais?
Sequer conhecei-nos bem:
morremos nas partes de além,
e não queirais saber mais.
Diabo:
Entra cá! Que coisa é essa?
Eu não posso entender isto!
Primeiro Cavaleiro: Quem morre por Jesus Cristo
não vai em tal barca como essa!
Tornam a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da
glória, e tanto que chegam diz o ANJO:
Anjo:
Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando,
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo o mal,
santos por certo sem falha,
que quem morre em tal batalha
merece paz eternal.
E assim embarcam.
Aqui fenece a primeira cena.
Compilação das Obras de Gil Vicente, 1586, pag. 20f
Personagens e críticas

Fidalgo: Inferno. Nobreza corrupta

Onzeneiro: Inferno. Ganância

Parvo: Céu

Sapateiro: Inferno. Desonestidade

Frade: Inferno. Corrupção clerical

Brísida Vaz: Inferno. Alcovitagem
Personagens e críticas
Judeu: Inferno. Não católico
 Corregedor: Inferno. Justiça corrupta
 Procurador: Inferno. Sabedoria humana
arrogante
 Enforcado: Inferno. Ladroagem julgada
 Quatro cavaleiros: Céu. Defesa da Fé

Salvos: parvo e quatro cavaleiros
 Condenados: todos os outros

Maus não entendem o julgamento
 Não abandonaram seus pecados
 Relações entre os pecadores
 reino corrupto a ser corrigido


Crítica contra todas as classes sociais
 riso para corrigir os desvios de todos
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