Do mito à filosofia - FTP da PUC

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Curso: Filosofia
Disciplina: Introd. à Filosofia
Docente: Luiz Paulo Rouanet
Data: 25/4/2008
Do mito à filosofia
Como se passa do mito e da religião à filosofia? Realmente se passa dos primeiros à
última? Esses domínios não estão tão separados quanto gostariam alguns e, pelo contrário,
é a tentativa de separá-los que acaba provocando a continuidade entre essas diferentes
formas de buscar respostas para o mistério do mundo. “A depuração do mito pelo logos não
é um episódio da luta eterna, das origens até Voltaire e Renan [e além], entre a superstição
e a razão, que faria a glória do gênio grego; o mito e o logos (...) não se opõem como o erro
à verdade.”1
O livro de Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento,2 explora exatamente
esse paradoxo do esclarecimento que, querendo livrar-se do mito, acaba tornando-se ele
próprio um mito.Várias passagens desse livro poderiam ser utilizadas para ilustrar essa tese,
mas bastam algumas:
Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o
esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia.
(p. 26)
O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. (p. 29)
No mundo esclarecido, a mitologia invadiu a esfera profana. (p. 40)
O horror mítico do esclarecimento tem por objeto o mito. (p. 41)
Assim, mito e esclarecimento encontram-se dialeticamente imbricados, são mesmo
inseparáveis. Querer livrar-se do mito é como querer que haja dia sem que haja noite, que
haja apenas vida desperta, sem vida adormecida, apenas razão sem sonho, fabulação,
imaginação. O grande mito é o mito do próprio Esclarecimento que, pelo menos desde
Platão, tenta sem sucesso livrar-se do mito e que “fica cada vez mais enredado, a cada
passo que dá, na mitologia”.
1
Paul VEYNE, Acreditavam os gregos em seus mitos? Trad. Horácio Gonzalez e Milton Meira Nascimento.
São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 11.
2
T. W. ADORNO; M. HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.
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O que fazer, então? Livrar-se do mito? Já vimos que não é possível. Então, aceitálo, ou pelo menos, aceitar que a razão não é tão “racional” quanto se pensa, que mesmo no
domínio da razão não está ausente (e felizmente!) uma certa dose de desrazão, de
sentimento, de imaginação. Porque senão seria apenas lógica, e a lógica – pelo menos a
lógica clássica –, como sabemos, é tautológica, ou seja, limita-se ao dado, ao “fato”, não
pode acrescentar informação nenhuma.
É possível, porém, distinguir entre tipos de razão. Há a “razão instrumental”, que é
aquela que manipula, utiliza os outros como meios para atingir seus próprios objetivos de
poder. Há a razão “instintiva”, “natural”, aquele que aparece entre os homens em estado de
natureza, e que consiste em defender em primeiro lugar e acima de tudo os próprios
intesses. Há, por fim, a razão “emancipatória”, a qual visa promover a humanidade,
devolvendo à coletividade uma primazia, sem porém descurar dos interesses dos
indivíduos. É, nesse sentido, uma razão “esclarecida” propriamente dita.
Essa razão esclarecida tem por lema o “Ousar saber”, de Horácio: “Sapere aude!
Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é portanto a divisa do
Esclarecimento.”3
Esse é tema que explora Sérgio Paulo Rouanet em As razões do Iluminismo e em
outras obras.4 Há ali uma defesa da razão, mas de uma razão crítica, emancipadora. Embora
deva reconhecer-se os limites da razão, não é por isso que se deve abdicar à mesma,
recaindo no irracionalismo. Por outro lado, a apropriação da razão por alguns setores, como
por exemplo, pelo ciência, é que leva ao irracionaolismo: “Não há pior irracionalismo que o
conduzido em nome de uma razão científica que usurpa as prerrogativas da razão integral.”5
Se conhecimento é poder, é preciso lembrar que “o verdadeiro inimigo é o poder e não a
razão”.6 Se a razão, por fim, tem implicações negativas, não há, porém, como evitá-la: “sem
razão não há emancipação, e sem emancipação não há razão”.7
3
I. Kant. Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimento? Trad. Luiz P. Rouanet. Brasília: Casa das Musas,
2007, p. 11.
4
Sergio P. ROUANET. As razões do Iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. Cf. do mesmo autor: Malestar na modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1993; A razão cativa. 2ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
5
S. P. Rouanet, As razões do Iluminismo, p. 210.
6
Idem, ibidem, p. 208.
7
Idem, ibidem, p. 210.
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A nos fiarmos unicamente no relato de Adorno e Horkheimer, parece que não há
esperança, que a razão necessariamente conduz ao objetivo oposto àquele que se propõe, e
querendo o progresso, causa a regressão: “A maldição do progresso irrefreável é a
irrefreável regressão.”8
Porém, não podemos permanecer unicamente no terreno da dialética negativa (título
de outra obra de Adorno). É preciso ir além. Será o trabalho empreendido por Habermas
que, apoiando-se na virada lingüística e na transformação da filosofia, perpetua a filosofia,
ao mesmo tempo confirmando a previsão dos pais fundadores da Escola de Frankfurt (“a
filosofia perdeu o momento de sua realização histórica e está condenada a perpetuar-se”) e
superando-a (“não é possível filosofar após Auschwitz”).9
Em resumo, para poder passar-se do mito à filosofia, é preciso fazê-lo sem negar
completamente o mito, mas sim incorporando-o de modo a estabelece com ele um diálogo,
e não um combate.
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9
Dialética do Esclarecimento, op. cit., p. 46.
Cf. K.-O. Appel. A transformação da filosofia. 2 vs. Trad. Paulo Asthor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000.
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