O RICARDO III DA HISTÓRIA E O RICARDO III DE SHAKESPEARE Martin Cezar Feijó FACOM – FAAP 2006 SHAKESPEARE HISTÓRICO OU CONTEMPORÂNEO? “Se estudarmos apenas o Shakespeare histórico, eliminaremos toda sua relevância para nosso próprio tempo. Mas, se pensarmos em Shakespeare apenas como nosso contemporâneo, perderemos uma das maiores recompensas do estudo das humanidades, que é a investigação das condições e valores das sociedades totalmente diferentes da nossa...” Northrop Frye. Sobre Shakespeare. Tradução de Simone Lopes de Mello. São Paulo: Edusp, 1999, pág. 13. THE PLAY: RICHARD III RICHARD Now is the winter of our discontent Made glorious summer by this son of York, And all the clouds that loured upon our house In the deep bosom of the ocean buried. (Act I Scene 1) A PEÇA: RICARDO III RICARDO Agora, o inverno de nossas amarguras se converte em verão glorioso ao sol de York, e as nuvens negras sobre a nossa casa se desmancharam no fundo do oceano. (Ato I, Cena 1) Tradução de Jô Soares OS FATOS: O QUE REALMENTE ACONTECEU ? • “As peças de Shakespeare não somente confundiram nossa compreensão sobre o século XV por canonizarem uma interpretação corrente no período Tudor; elas também direcionaram seriamente ao erro sobre o que realmente aconteceu.” (Bruce Webster. The War of the Roses. London: UCL Press, 1998, p. 16.) Shakespeare e Ricardo III • William Shakespeare (1564 – 1616). • Ricardo de Gloucester (1452-1485), que foi corado rei da Inglaterra com o nome Ricardo III em 1483. • Governou até 1485. • Proposta para a reflexão: personagem de teatro pode ser considerado o mesmo da história? Shakespeare e Ricardo III • Shakespeare nasceu quase 80 anos depois da morte de Ricardo III. • Um exemplo: a diferença entre o nascimento da maioria de vocês e a morte – no exílio, pois havia sido deposto pela Proclamação da República - do último monarca brasileiro, D. Pedro II (1891), é de aproximadamente 90 anos... • E Shakespeare escreveu a peça em torno de 110 anos depois da coroação de Ricardo III (1483), por volta de 1593... • A base histórica da peça, portanto, não é fruto de experiência ou memória, mas de pesquisa histórica... • E imaginação, principalmente. Shakespeare e Ricardo III • Mas a imaginação, mesmo de um gênio, é neutra com relação aos interesses de seu tempo histórico? • Qual é, então, a relação entre história e a ficção? • Em suma, qual a relação entre o personagem de teatro com o personagem da história? • E por fim, o que movia Shakespeare nas peças históricas sobre os reis que deram origem ao Estado absolutista inglês? Shakespeare e Ricardo III • 1º Ponto: relação entre história e ficção. • História e Poesia conforme Aristóteles: • “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; • ...”é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: • ...”o que é possível segundo a verossimilhança e necessidade.” (Aristóteles. Poética. Livro IX, 50. Tradução de Eudoro de Souza. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Editora Abril, 1973, pág. 451.) Shakespeare e Ricardo III • “Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem versos ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – • ...” diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as coisas que poderiam suceder.” (Aristóteles. Poética. Livro IX, 50. Tradução de Eudoro de Souza. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Editora Abril, 1973, pág. 451.) INTRODUÇÃO A SHAKESPEARE UMA VIDA, VÁRIAS HISTÓRIAS. (Quem é Shakespeare?) INTRODUÇÃO A SHAKESPEARE “O gênio é enigmático: na língua inglesa, esse truísmo é reforçado pelo rosto inexpressivo, oval, de Shakespeare espiando em silêncio detrás dos poemas e peças. Fora deles, ele não diz nada sobre a sua obra ou a sua vida. Ele não deixa comentários sobre a cidade de Londres, onde escolheu viver durante 20 anos, longe de sua mulher e filhos, antes de voltar para eles (novamente sem comentário subsistente) em sua cidade natal de Stratford. Esse silêncio ficou sendo parte da lenda de Shakespeare. “ (Robert Pinsky - The New York Review of Books) Uma vida, várias histórias. • • • • • • • • As versões contraditórias. A falta de documentos. Os estudos mais atualizados. Batizado em 26/04/1564. Óbito em 23/04/1616. Escreveu várias histórias. Viveu apenas uma vida. Mas deixou modelos para montar. Quem é Sílvia? De “Os Dois Fidalgos de Verona” • • • • • • • • • • • • • • • • Who is Sílvia? What is she? That all our swins commend her; Holy, fair, aind wise is she, The heavens such grace did lend her, That she might admired be. Is she kind, as she is fair? For beuty lives with kindness: Love doth to her eyes repair, To help him of his blindness; And, being help’d, inhabits there. Then to Silvia let us sing, That Silvia is excelling She excels each mortal thing, Upon the dull earth dwelling; To her let us garland s bring. (Act IV, scene II) • • • • • • • • • • • • • • • • Quem é Sílvia? Quem é ela? Pelos poetas louvada? É santa, sensata e bela, Pelos céus foi tão prendada Que encanto dos olhos é ela. É tão bela quanto boa? Porque beleza é bondade. Aos olhos dela Amor voa, Cego, implora caridade, E achando-a, a bela abençoa. À Sílvia, louvor t eçamos, Que toda excelência encerra, Nenhum mortal, que saibamos, A excede na triste Terra. Grinaldas lhe ofereçamos! (Ato IV, cena II. Trad. O. Mendes) Who is Shakespeare? What is he? • • • • • • • Quem é Shakespeare? Quem é ele? Tão aclamado quanto mitificado? É filho de seu tempo ou da imaginação? É plebeu, nobre ou estrangeiro? Marlowe, Bacon, Edward de Vere Ou o judeu francês Jacques Pierre? Nenhum mortal, que saibamos, o excede na triste terra. • Shakespeare é o inventor do humano? • Ou da moderna fantasia? • O que sabemos é que era filho de João e Maria. Os anos de aprendizado 1564-1582 • • • • • • • • • • • • Nascido na província, filho de João e Maria. Mãe: Mary Arden, de Warwickshire. Do lar. 8 filhos. Pai: John Shakespeare, de Stratford-on-Avon. Do comércio. De luvas, lã e dinheiro. Não compareciam muito à igreja anglicana. Acusados de “católicos”. Ou fuga de credores? Educado em escola pública. Afastado da escola, por dificuldades financeiras. Formação em retórica e latim. O grego continuou grego. A escola de latim no tempo de Shakespeare • • • • • • • • • Deferto neminem - Não acuses ninguém. Multituduni place - Agrada a multidão. Pecuniae obediunt omnia - Tudo obedece ao dinheiro. Felicitas incitat inimicitias - A felicidade cria inimizades. Somnus mortis imago - O sono é a imagem da morte. Tempus edax rerum - O tempo é um devorador. Tempus dolorem lenit - O tempo abranda a dor. Animus cujusque sermone revelatur. A mente de uma pessoa se revela na sua fala. (Cf. Park Honan. “Shakespeare. Uma vida”. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 75.) O ensino da retórica no tempo de Shakespeare • As cinco faculdades do orador: invenção, disposição, elocução, memória e pronúncia. • “Devemos falar numa linguagem que faça todo o possível para colocar o acontecimento em questão diante dos olhos de nossos ouvintes”- Cícero • “O orador mais capaz de evocar mentalmente essas imagens das coisas é que revelará ser, de longe, o mais poderoso na produção de efeitos emocionais”- Quintiliano. RETÓRICA • Arte de persuadir. • Etos e patos: o caráter do orador e a emoções do público. • Razão e sentimento inseparáveis. • Docere - Delectare - Movere (Cícero). • Docere: instruir/ argumentativo. • Delectare: agradar/ dar prazer. • Movere: Comover/ impressionar. • Funções da retórica: persuasiva, hermenêutica, heurística. • Persuasiva: convencer (Retórica). • Hermenêutica: compreender (Gramática). • Heurística: descobrir/inventar (Diálética). Os anos de desenvolvimento 1582-1595 • Casou-se com Anne Hatha Way em 27/11/1582, aos 18 anos, ela aos 25. • Ela estava grávida de Suzanne, nascida em maio de 1583. • Mestre-escola em Stratford-on-Avon. • Mais dois filhos, gêmeos: Hamnet e Judith, nascidos em 02/02/1585. • Abandonou - provavelmente em 1585 - mulher e filhos. • 1585-1592: período sem registros. • 1592: ator em Londres. • De “João Ninguém” a “Shakes-scene”. Os primeiros anos de Londres 1588-1598 • As primeiras peças: “A Comédia dos Erros” e “Dois Fidalgos de Verona” (c. 1593). • Os poemas “Rapto de Lucrécia”e “Vênus e Adonis” - 1593/94. • Entra, ou trabalha, na companhia de Burbage, no Lord Chamberlain’s Men, e no Rose de Philip Hewslowe. • Peças históricas (1592-1599): Henriques e Ricardos. • Os grandes autores do período: Kit Marlowe (1564-1593) e Thomas Kyd (1558-1594). • O sucesso nas comédias e tragédias. • 1596: o pai reabilitado, com brasão e título. • O novo, e moderno, teatro: The Globe. Globe Theatre • Fundado em 1599, o maior e mais confortável teatro de Londres na época de Elizabeth I. • Capacidade: 2000 pessoas. • Proprietários: Richard Burbage, Will Kemp, Lord Chamberlain’s Men e...William Shakespeare. • Primeira peça de Shakespeare montada no Globe: “Júlio César”, em 1599. • Lema: Totus mundus agit histrionem. • “O mundo é todo um palco”. • Incêndio em 1613, aberto um ano depois. • Fechado em 1642 pelos puritanos. • Reconstruído, e reinaugurado, em 1999. • Hoje: The International Shakespeare Globe Centre. Os anos de apogeu 1596-1606 • O apogeu, o sucesso, o dinheiro. • “Romeu e Julieta”- 1595/96. • As comédias: “Noites de Reis”, “Muito Barulho por Nada”, “Como Gostais” - 1597-1603. • As peças históricas: “Júlio César” e “Henrique V’ - 1599. • A morte do único filho: Hamnet, em 1596. • A obra-prima: “Hamlet” - 1599-1601. • “Otelo”- 1604. “Rei Lear”- 1605. • 1603: morte de Elisabeth I. • Sobe ao trono James I, dinastia Stuart. • Para o novo rei não dormir: “Macbeth” - 1606. O caminho de volta 1607-1616 • A peça histórica da maturidade: “Coriolano” 1607/08. • A comédia testamento: “A Tempestade”- 1611. • Escreve peças em co-autoria com John Fletcher: “Henrique VIII” (1613) e “Dois Nobres Parentes”(1614) • William Shakespeare morre em 23 de abril de 1616. Sepultado na igreja de Stratford. • Testamento: propriedade a Susanne, 300 libras a Judith, doações a atores e a “segunda cama” a ex-mulher Anne Hath Way, que viveu mais sete anos. Post-mortem - 1616- 1623 • O epitáfio, atribuído a ele mesmo: • “Bom amigo, por amor de Jesus abstende-vos./De escavar a terra aqui contida./ Abençoado o homem que poupa estas pedras./E amaldiçoado aquele que tocar os meus despojos”. • O primeiro monumento: busto de Shakespeare Igreja da Santíssima Trindade, Stratford-on-Avon 1623. • Publicação do “The First Folio”, obras completas, peças e poemas, com apresentação de Ben Jonson, em 1623. • Em 1765, Samuel Johnson publica as obras de Shakespeare com um prefácio que é considerado um dos maiores ensaios de crítica de todos os tempos. • Who is Shakespeare? Quem é Shakespeare? • • • • • • • Who is Sakespeare? ... Literalmente, um homem de seu tempo. Que conseguiu elaborar metáforas e mitos, Imitar sem copiar seus modelos, Ultrapassar a dimensão do tempo/espaço. Alcançar perenidade e universalidade. Sendo, e pertencendo, à história, portanto. • ...All’s well that ends well... Quem é Ricardo III da peça de Shakespeare? • Um personagem ficcional. • A peça foi escrita entre 1592 e 1593, após Shakespeare ter concluído as três peças sobre Henrique VI. • A base pode ter sido livro de Thomas More: The life of Richard III (1513). • No livro, Ricardo III é descrito como vilão e fisicamente deformado, corcunda, associando sua condição física ao seu caráter... RICARDO III, A PEÇA (Conforme Harold Bloom) • “O certo é que Ricardo III é um mestre da paródia – faz paródia a Marlowe, às convenções cênicas e a si mesmo. • “Eis o segredo de seu irresistível fascínio, o grande poder que o personagem exerce sobre o público e sobre os demais integrantes do drama no qual está inserido é uma mistura de fascínio e terror, elementos indistinguíveis no sadomasoquismo em que o personagem seduz Lady Anne, cujo pai e sogro ele mata.” (Harold Bloom. Shakespeare, a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pág. 100.) RICARDO III, A PEÇA (Conforme Harold Bloom) • “O prazer sádico como manipula Anne (e outros) advém de um exagerado naturalismo cético, em nada comparável ao de Montaigne, talvez, ao de Marlowe. • “O ceticismo de Ricardo exclui a piedade; seu naturalismo nos torna feras. • “Embora mais grosseiro do que Iago e Edmundo, Ricardo é o precursor de ambos, especialmente, no constrangimento de seu triunfo.” (Harold Bloom. Shakespeare, a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pág. 100.) RICARDO III, A PEÇA (Conforme Harold Bloom) • ...“A energia de Ricardo é mais que teatral, seu triunfo se mescla a ‘teatralismo’ e se torna uma celebração de Shakespeare ao teatro e à sua própria arte, que florescia com rapidez. • “Ter inventado Ricardo é ter criado um monstro, um monstro que seria refinado até que Shakespeare inventasse o humano, em cujo processo Iago, para a alegria e tristeza de todos, há de desempenhar um papel absolutamente central.” Harold Bloom. Shakespeare, a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, pág. 109.) Os argumentos clássicos na comédia e na tragédia • Tragédia Comédia COMÉDIA • • • • • • Do grego “procissão alegre”. Três critérios de oposição à tragédia: 1. Personagens de condição modesta; 2. Desenlace feliz; 3. Provocar o riso. Heróis inferiores ao público, terrenos, limitados, mesmo que personalidades públicas. • Motor: quiprocó. TRAGÉDIA • Do grego “canto do bode”. • “A tragédia é a imitação de uma ação de caráter elevado e completo, de uma certa extensão, numa linguagem temperada com condimentos de uma espécie particular conforme as diversas partes, imitação que é feita por personagens em ação e não por meio de uma narrativa; e, que provocando piedade e terror, opera a purgação própria de semelhantes emoções.” • - Aristóteles, Poética. O HUMOR EM RICARDO III • Um super-vilão que se transforma em personagem trágico, mas Ricardo III pode às vezes ser cômico. • “Ricardo III, a encarnação do mal, tem seu aspecto cômico quando ele toma consciência de sua própria iniqüidade, da dissolução de seu ser, do qual fazia o centro do mundo: ‘Então, fujamos... O quê? Fugir de mim? Boa razão! Por quê? Por medo de que eu não castigue a mim mesmo... Quem? Eu mesmo! Bah! Mas eu me amo!... Por quê? Por um pouco de bem que fiz a mim próprio? Oh, não! Ai de mim! Eu me execrarei antes pelas abomináveis ações que cometi. Sou um celerado!... Mas, não, minto, não o sou. Imbecil, fala, pois, bem de ti mesmo... Imbecil, não te adules’. Incoerência, inconsistências da pessoa, da identidade, mesmo a mais consolidada, que se dissolve como sonho, que se dá conta que a vida não é mais que um devaneio. ‘Meu reino por um cavalo’. Como terminar de forma mais derrisória?” (Georges Minois. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003, pág. 314.) RICARDO III NO CINEMA Atores que o representaram no cinema • • • • Frederick Warde, 1912. Lawrence Olivier, 1955. Ian McKellen, 1997. Al Pacino, 1997. Quem foi Ricardo III? • • • • • • • • • Um personagem histórico. Viveu pouco: 1452-1485. 33 anos. O último Plantageneta. Contemporâneo da “Guerra das Duas Rosas” (1450-1485). Luta entre as famílias York (rosa branca) contra Lancaster (rosa vermelha) para definir quem governaria a Inglaterra. Governou em clima de guerra civil entre 1483 e 1485. O animal de seu escudo era um javali branco... Morreu em batalha defendendo seu reinado, após traição de vários nobres. Batalha de Bosworth Batalha de Bosworth • Agosto de 1485. • Na história, como na peça, derrota e morte de Ricardo III, em batalha. • Mas a invasão comandada por Richmond se deu bem antes, em outubro de 1483. • Na peça, a frase mais célebre: • “- Meu reino por um cavalo!” Quem é Ricardo III da História? • Otto Maria Carpeaux, um importante intelectual austríaco que se exilou no Brasil devido à perseguição nazista nos anos 1930, assim escreveu sobre a relação entre a peça e o personagem histórico: • “(Shakespeare) não chegou a eliminar as calúnias que a historiografia oficial da dinastia Tudor lançara contra Ricardo III.” (Otto Maria Carpeaux. “Sobre o teatro político”. In: Ensaios Reunidos. Vol. II. 19461971. Rio de Janeiro: Univercidade Editora/ Topbooks, 2005, pág. 683.) Quem é Ricardo III da História? • Em outro texto, Otto Maria Carpeaux foi ainda mais explícito: • ...”Shakespeare teve conhecimento apenas fragmentário e desfigurado das teorias políticas de Maquiavel. • “Nesse sentido criou Shakespeare seu grande maquiavelista: Ricardo III. • “Num livro que fez sensação (Richard III, 1956), o historiador P. M. Kendall demonstrou (tese que outros já antes defenderam) que o Ricardo III de Shakespeare não é o da realidade histórica.” (Otto Maria Carpeaux. “A política, segundo Shakespeare”. In: Ensaios Reunidos. Vol. I. 1942- 1978. Rio de Janeiro: Univercidade Editora/ Topbooks, 1999, pág. 781.) Quem é Ricardo III da História? • “O rei foi um maquiavelista de verdade, isto é, o executor impiedoso de uma necessidade histórica: • “exterminou os resíduos do feudalismo para unificar a nação. • “O Ricardo III de Shakespeare é, porém, um “maquiavelista” no sentido lendário, isto é, um tirano sangrento, um assassino de intenções diabólicas. • “Mas não foi Shakespeare quem inventou essa falsa imagem do rei. (Otto Maria Carpeaux. “A política, segundo Shakespeare”. In: Ensaios Reunidos. Vol. I. 1942- 1978. Rio de Janeiro: Univercidade Editora/ Topbooks, 1999, pág. 781.) Quem é Ricardo III da História? • “ Tratava-se de uma tese histórica oficial em que se baseavam os direitos (bastante duvidosos) da dinastia Tudor: de Henrique VIII e da própria rainha Elisabeth. • “A dinastia tinha criado e inculcado na consciência da nação inglesa de que foram os Tudors que, depois do reinado sangrento de Ricardo III, pacificaram o país. • “Shakespeare, assim como todos os contemporâneos, aceitava esse Tudor Myth, que foi, aliás, mais que um mito pseudo-histórico. • “Foi uma completa doutrina política. • “Para fortalecer o poder da dinastia, ensinou-se ao povo o horror a toda e qualquer rebelião e guerra civil (por isso, os revolucionários democráticos nas peças de Shakespeare são malfeitores ou imbecis).”(...) (Otto Maria Carpeaux. “A política, segundo Shakespeare”. In: Ensaios Reunidos. Vol. I. 19421978. Rio de Janeiro: Univercidade Editora/ Topbooks, 1999, pág. 781.) Quem é Ricardo III da História? • (...) • “Os críticos que pretendem encontrar em Shakespeare o democratismo ou o antidemocratismo de tempos mais modernos, cometem anacronismos. • “Mas tampouco tem razão aqueles que confiam, para a interpretação, nas leituras político-históricas do poeta. • “Certo, Shakespeare, como homem de seu tempo e do seu país, usa o “mito dos Tudors”. • Mas quem acredita nesses mitos, não é ele, e, sim, seus personagens.” (Otto Maria Carpeaux. “A política, segundo Shakespeare”. In: Ensaios Reunidos. Vol. I. 1942- 1978. Rio de Janeiro: Univercidade Editora/ Topbooks, 1999, pág. 781.) O QUE SABIA SHAKESPEARE? • “Shakespeare provavelmente jamais viu o mar e, como afirmam os antigos comentadores, jamais contemplou com os próprios olhos um campo de batalha. • “Não conhecia a geografia. Punha a Hungria à beira do mar. Proteu toma um navio para ir de Verona à Milão e, pior ainda, espera a maré! Florença é igualmente, para Shakespeare, um porto marítimo.” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 44.) O QUE SABIA SHAKESPEARE? • “Shakespeare não conhecia a história. Seu Ulisses lê Aristóteles, e Tímon de Atenas refere-se a Sêneca e Galeno. • “Shakespeare não conhecia a filosofia, nada compreendia de arte militar, mistura os costumes de diversas épocas. • “Soa um relógio em Júlio César, uma criada desata o espartilho de Cleópatra, canhões disparam tiros de pólvora no tempo de João Sem Terra.” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 44.) O QUE SABIA SHAKESPEARE? • “Shakespeare não viu o mar, nem a batalha, nem a montanha; não conhecia nem a história, nem a geografia, nem a filosofia. • “Mas ele sabia que no Grande Conselho, depois de Ricardo falar, o nobre Lorde Hastings seria o primeiro a tomar a palavra e pronunciaria contra si mesmo uma sentença de morte...” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 44.) SHAKESPEARE, NOSSO CONTEMPORÂNEO? • “Que belo mundo...Mas, que mundo? O de Ricardo III? O de Shakespeare? Ou talvez o de hoje? De que mundo falava Shakespeare, qual época queria mostrar? • “O século dos barões feudais, massacrando-se uns aos outros? • “Ou quem sabe, o reinado da boa, prudente e piedosa rainha Elisabete, que mandou decapitar Maria Stuart quando Shakespeare tinha vinte e três anos e enviou ao cadafalso mil e quinhentos ingleses, doutores em teologia e doutores em direito, chefes de exército, bispos, grandes juízes?” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 46.) SHAKESPEARE, NOSSO CONTEMPORÂNEO? • “Que belo mundo...Mas talvez Shakespeare mostrasse um mundo em que apenas muda os nomes dos reis, mas no qual o Grande Mecanismo é sempre o mesmo...” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 47.) Shakespeare e Ricardo III Relação entre história e ficção Vimos o que Aristóteles escreveu: • “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; • ...”é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: • ...”o que é possível segundo a verossimilhança e necessidade.” (Aristóteles. Poética. Livro IX, 50. Tradução de Eudoro de Souza. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Editora Abril, 1973, pág. 451.) Shakespeare e Ricardo III • “Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem versos ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – • ...” diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as coisas que poderiam suceder.” (Aristóteles. Poética. Livro IX, 50. Tradução de Eudoro de Souza. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Editora Abril, 1973, pág. 451.) Shakespeare e Ricardo III • “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (Aristóteles. Poética. Livro IX, 50. Tradução de Eudoro de Souza. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Editora Abril, 1973, pág. 451.) A verdade e a mentira no palco, conforme Samuel Johnson, 1785. • “É mentira que uma representação seja confundida com a realidade, que uma fábula dramática tenha alguma vez realmente acontecido, ou, por um único instante, que se tenha nela jamais acreditado...” • “A verdade é que os espectadores estão sempre de posse de suas faculdades e sabem, do primeiro ao último ato, que o palco é apenas um palco e que os atores são apenas atores...” (Samuel Johnson. Prefácio a Shakespeare. Tradução, estudo e notas de Enid Abreu Dobránszky. São Paulo: Iluminuras, 1996, pp. 49-50) Ricardo III da história e Ricardo III de Shakespeare • É por isso que sempre haverá uma nova leitura das peças de Shakespeare. • Por isso, é sempre um prazer renovado ter o privilégio em assistir uma montagem nova, e bem cuidada, de um mesmo texto. • É sempre um novo olhar sobre a condição humana e seus percalços. • Ricardo III não é só da história ou de Shakespeare... • Ricardo III é humano, contemporâneo nosso... Mesmo que isso possa provocar calafrios... • Aproveitem!!! Para terminar: • Como escreveu Agamenon sobre Shakespeare em O Globo (12/10/2003): • - “...É impossível fazer um Hamlet sem quebrar os ovos!!!...” BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR (ALÉM DA JÁ CITADA) • FEIJÓ, Martin Cezar. “O Carnaval na Tragédia. Shakespeare e a cultura popular”. Revista FACOM, Ano II, nº 3, dezembro de 1997. • HELIODORA, Bárbara. O homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2005. • KERMODE, Frank. A linguagem de Shakespeare. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Record, 2006. • MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 2001. • NORWICH, John Julius. Shakespeare’s kings. London: Penguin Books, 1999. • SACCIO, Peter. Shakespeare’s english kings. History, Chronicle and Drama. Oxford: Oxford University Press, 1977. • SPURGEON, Caroline. A imagística de Shakespeare. Tradução de Bárbara Heliodora. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BIBLIOGRAFIA • E, CLARO!!! • TODAS AS PEÇAS DE SHAKESPEARE, • NO ORIGINAL, SE POSSÍVEL, • E NAS MAIS VARIADAS TRADUÇÕES!!!