Linhas de Transmissão e Choques Elétricos em um Passarinho

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Revista Brasileira de Ensino de Fsica vol. 20, no. 4, Dezembro, 1998
339
Linhas de Transmiss~ao e
Choques Eletricos em um Passarinho
(Transmission Lines and Electric Shocks in a Bird)
Jose Arnaldo Redinz
Departamento de Fsica,
Universidade Federal de Vicosa,
CEP: 36571-000, Vicosa, MG
e-mail: [email protected]
Recebido 27 de Dezembro, 1997
Por que um passarinho pousado em um o da rede eletrica n~ao toma choque? Essa quest~ao
e abordada aqui sob o ponto de vista dos conceitos basicos de circuitos eletricos e linhas de
transmiss~ao. Consideramos separadamente os efeitos devidos a auto-capacit^ancia, as perdas
na resist^encia da linha e a diferenca de fase. Par^ametros reais de linhas de transmiss~ao s~ao
usados para demonstrar, com base nas equac~oes deduzidas para a voltagem ao longo da
linha, a aus^encia de choques eletricos sobre um passarinho.
Abstract
Why a bird resting in a wire of the electrical system doesn't receive a shock? This question is
adressed here by the point of view of the basic concepts of electric circuits and transmission
lines. We consider separately the eects due to the self-capacitance, to the losses in the
line's resistance and to the phase dierence. Real parameters of transmission lines are used
to show, based in the equations derived for the voltage along the line, the absence of electric
shocks in a bird.
I
Introduc~
ao
Por que um passarinho pousado em um o da rede
eletrica n~ao toma choque? Essa pergunta, sobre uma
constatac~ao obvia para qualquer pessoa que v^e um passarinho pousado nos os da rede de energia eletrica,
pode gerar respostas diversas, quase todas, ou completamente equivocadas, ou demasiado simplicadoras. O
passarinho n~ao toma choque porque e isolante, porque
ele n~ao fecha nenhum circuito, porque ele pousa com as
duas patas, porque a dist^ancia entre suas patas e muito
pequena. Essas s~ao algumas das respostas que, caso a
pergunta seja feita em uma sala de aula de eletromagnetismo, provavelmente ser~ao ouvidas e defendidas com
anco. A quest~ao, como pretendemos mostrar aqui,
envolve conceitos basicos de eletricidade tais como corrente eletrica, circuitos eletricos e linhas de transmiss~ao,
bem como detalhes dos efeitos da corrente eletrica sobre
um tecido vivo - o choque eletrico.
Iniciaremos fazendo um breve apanhado sobre a teoria das linhas de transmiss~ao e depois, consideraremos
a aplicac~ao dessa teoria a situac~oes reais simuladas
com dados obtidos na Companhia Energetica de Minas
Gerais (CEMIG).
Certamente estamos descartando de incio a resposta que classica o passarinho como um corpo
isolante. Essa alias pode ser apontada como a pior resposta entre todas as outras. Com certeza o tecido que
comp~oe o organismo das aves e bastante similar aquele
que comp~oe os seres humanos e todos nos ja tomamos
um choque eletrico para nos certicarmos de que estamos longe de sermos isolantes.
A sensaca~o do choque eletrico, que consiste, basicamente, em contrac~oes musculares e queimaduras, de-
340
pende exclusivamente do valor da corrente que atravessa o organismo e n~ao da diferenca de potencial a que
este esta submetido. Essa diferenca de potencial provocara um uxo de cargas apenas se as condico~es de (ou
falta de) isolamento permitirem. E sabido que podese perfeitamente trabalhar na manutenc~ao de linhas
de transmiss~ao energizadas (com cerca de 500 KV de
diferenca de potencial entre duas fases) sem que haja
risco de choque eletrico. Alem disso, o perigo que um
choque eletrico pode oferecer para aquele que o recebe
depende tambem do caminho que a corrente eletrica
percorre dentro do organismo e do intervalo de tempo
em que ele ocorre. Para os seres humanos, o choque
mais perigoso e aquele onde a corrente ui de um braco
para o outro, passando pelo musculo cardaco. Nesse
casos, uma corrente de apenas 10 mA pode provocar
uma parada cardaca. A sensac~ao de desconforto com
a passagem da corrente eletrica pelo organismo tem
incio quando a corrente atinge cerca de 5 mA, quando
comecam a ser sentidas contrac~oes musculares. Para
uma corrente acima de 100 mA podem ocorrer asxia
e queimaduras graves.
De fato, o par^ametro verdadeiramente importante
para determinar os efeitos de um choque eletrico deve
ser a densidade de corrente e n~ao apenas o valor da
corrente em si. Uma mesma corrente que percorra,
em duas situac~oes diferentes de contato, caminhos com
diferentes areas efetivas de tecido onde as cargas se
desloquem, deve produzir danos maiores na area menor.
Nesse sentido, um choque eletrico que percorre o caminho que vai de um braco ao outro, produz uma corrente
bastante concentrada na regi~ao do corac~ao . Por outro
lado, para um caminho que vai de um braco em direc~ao
ao ch~ao, passando pelas pernas, ainda que a corrente
fosse a mesma da situac~ao anterior, a densidade de corrente seria bem menor na regi~ao do corac~ao .
No que se segue consideraremos a situac~ao em que
um ser vivo, como, por exemplo, um passarinho, entra
em contato (direto) com um (e apenas um) dos os de
uma linha de transmiss~ao energizada, como ilustrado
na Figura 1. O caso em que houvesse o contato direto
em dois os simultaneamente, ou em um o e em um
objeto aterrado, n~ao precisa ser discutido. Mesmo para
uma linha de distribuic~ao residencial, onde a diferenca
de potencial entre fase e neutro e da ordem de 120 V,
haveria um choque eletrico com uma corrente da ordem de 100 mA, o suciente para provocar, conforme
o percurso da corrente e a durac~ao do choque, morte
instant^anea por parada cardaca e queimaduras graves.
Jose Arnaldo Redinz
Figura 1. Ilustrac~ao da situac~ao considerada nesse artigo:
um passarinho pousado em um dos os de uma linha de
transmiss~ao de dois ons com diferenca de potencial V(z,t)
e corrente I(z,t).
II. Linhas de Transmiss~ao
Para discutir os efeitos da rede eletrica sobre um
passarinho vamos inicialmente elaborar alguns conceitos relativos as linhas de transmiss~ao em geral.
Em geral, podemos dividir as linhas de energia
eletrica em linhas de transmiss~ao, que trazem a energia das usinas geradoras para as cidades, e linhas de
distribuic~ao que distribuem essa energia entre as diferentes cargas dentro da cidade. Nessas linhas o dieletrico
entre os os e, geralmente, o ar cuja condutividade e
da ordem de 10;14 ( m);1 em condic~oes normais de
temperatura e umidade. Os nveis de tens~ao entre duas
fases diferentes s~ao, tipicamente, de 138 KV a 500 KV
para as linhas de transmiss~ao e 220 V a 13,8 KV para as
de distribuic~ao . Essas tens~oes oscilam senoidalmente
no tempo com uma frequ^encia de 60 Hz. Os os condutores dessas linhas s~ao geralmente constitudos de
alumnio e aco e apresentam uma resist^encia eletrica
da ordem de 0,2 a 1,8 /Km.
Consideraremos uma linha de transmiss~ao formada
por dois os condutores retos, paralelos entre si, homog^eneos e muito longos. Cada um dos os possui uma
resist^encia eletrica por unidade de comprimento R /m
e uma auto-indut^ancia por unidade de comprimento L
H/m. Os dois os est~ao isolados um do outro por um
dieletrico que possui uma condut^ancia por unidade de
comprimento G ( m);1. O conjunto formado pelos
dois os separados por um isolante forma um capacitor,
que, suporemos, possui uma capacit^ancia por unidade
de comprimento C F/m.
Um circuito equivalente para a linha de transmiss~ao,
representando a conex~ao destes componentes (resistores, capacitor e indutores), esta mostrado na Figura 2.
Nesta gura representamos um comprimento innitesimal dz da linha. Este segmento da linha pode ser
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pensado como sendo constitudo por uma associac~ao
de dois resistores de resist^encia R dz representando as
perdas por efeito Joule nos dois os, um resistor de
condut^ancia G dz representando a conex~ao eletrica, entre os dois os atraves do dieletrico, um capacitor de
capacit^ancia C dz que representa o efeito do campo
eletrico de um o sobre o outro e duas bobinas de
indut^ancia L dz representando a inu^encia do campo
magnetico de cada um dos os sobre si mesmo (autoindut^ancia). Assim, a linha de transmiss~ao ca reduzida, do ponto de vista do eletromagnetismo, a uma
associac~ao sucessiva desses circuitos basicos.
Figura 2. Circuito eletrico equivalente a um segmento de
comprimento innitesimal da linha de transmiss~ao.
Para deduzir as equac~oes que governam os comportamentos da tens~ao e da corrente em uma linha de
transmiss~ao faremos o uso das leis de Kirchho. Por
hipotese assumiremos inicialmente que a tens~ao V e a
corrente I na linha s~ao func~oes da coordenada z (medida paralelamente a linha) e do tempo t.
Considere o ponto A1 na Figura 2. Suponha que
nesse ponto o potencial eletrico (em relac~ao a um referencial particular) seja V (A1 ) e a corrente I(A1 ). Se
caminharmos no sentido de A1 para A2 obtemos, segundo a lei das malhas (omitiremos aqui o argumento
t de V e I):
1)
V (A1 ) ; (R dz) I(A1 ) ; (L dz) @I(A
@t = V (A2 ) (1)
onde usamos a lei de Faraday para a forca eletromotriz
induzida em uma bobina de indut^ancia L dz. Da
mesma forma, para o caminho que vai do ponto B1
para o ponto B2 , obtemos
1)
V (B1 ) + (R dz) I(B1 ) + (L dz) @I(B
@t = V (B2 ) (2)
A lei dos nos aplicada ao ponto A1 fornece
I(A1 ) = IG + IC + I(A2 )
(3)
onde IG e a corrente (de fuga) que vai de um o para o
outro atraves do dieletrico e IC e a corrente de carga e
341
descarga do capacitor C dz formado pelos dois segmentos de o. Podemos usar ainda as equac~oes
I(A1 ) = I(B1 ) = I1
e I(A2 ) = I(B2 ) = I2 (4)
devido a continuidade da corrente na linha, ou seja, a
corrente que vai pelo o superior volta pelo o inferior.
Seja V1 a diferenca de potencial entre os pontos A1
e B1 , ou seja, V1 = V (A1) ; V (B1 ), analogamente para
V2. Subtraindo (2) de (1) resulta:
V2 ; V1 = ;2 R I ; 2 L @I1
(5)
1
dz
@t
Levando em conta agora, que o ponto A1 esta em uma
posic~ao z qualquer ao longo da linha e que o ponto A2
esta na posic~ao vizinha z + dz, podemos assumir que
@V
(z
t)
V2 = V1 +
dz
(6)
@z
e assim:
@V (z t) = ;R I(z t) ; L @I(z t)
(7)
@z
@t
que e a primeira equac~ao que obtemos para a linha
de transmiss~ao. Note que nessa equac~ao , por conveni^encia, redenimos o par^ametro R como sendo a resist^encia por unidade de comprimento da linha que e,
simplesmente, o dobro da resist^encia de um dos os. De
maneira analoga, L representa agora a indut^ancia por
unidade de comprimento da linha. Usando, na Equac~ao
(3) as relac~oes
IG = G V1
e
(Lei de Ohm aplicada a G)
(8)
@C V1
@V1
(9)
IC = dq(t)
dt = @t = C @t
onde q(t) e a carga no capacitor no tempo t, obtemos:
1
I1 = G V1 + C @V
(10)
@t + I2
Usando uma relac~ao analoga a (6) para as correntes,
qual seja:
t) dz
I2 = I1 + @I(z
(11)
@z
obtemos, nalmente,
@I(z t) = ;G V (z t) ; C @V (z t)
(12)
@z
@t
que e a segunda equac~ao para as linhas de transmiss~ao.
Em seguida, abordaremos dois casos em separado:
a linha sem perdas (R = G = 0) com corrente e tens~ao
342
alternadas e a linha com perdas com corrente e tens~ao
contnuas (independentes do tempo).
III. Efeitos da Linha Sobre um Passarinho
Se levarmos em conta as respostas a pergunta que
mencionamos no incio da nossa discuss~ao, vemos que
acredita-se que o passarinho n~ao toma choque por duas
raz~oes basicas: 1) ele n~ao fecha nenhum circuito pois
so toca em um o da rede 2) a dist^ancia entre suas
patas e muito pequena para que a diferenca de potencial existente entre elas, devido a queda de potencial
na linha (causada por sua resist^encia eletrica), seja suciente para provocar um choque eletrico. De fato, um
outro efeito que raramente e lembrado nas discuss~oes
e a diferenca de potencial entre as patas do passarinho
devido a diferenca de fase na tens~ao ao longo da linha.
Discutiremos aqui os tr^es efeitos separadamente. Inicialmente mostraremos que o passarinho n~ao necessita
tocar em outro o da linha ou em um objeto aterrado
para `fechar um circuito'. De fato, ele fecha um circuito
tanto quanto qualquer capacitor ligado a um circuito de
corrente alternada. A esse primeiro efeito denominamos
`Efeito Capacitivo'. Em segundo lugar iremos considerar o efeito da queda de potencial (DDP) ao longo da
linha devido as perdas produzidas por R e G. Neste
caso consideraremos que a tens~ao e a corrente s~ao independentes do tempo. Finalmente discutiremos o efeito
da diferenca de fase da tens~ao (e da corrente) ao longo
da linha. Para isso consideraremos uma linha ideal sem
perdas com tens~ao e corrente alternadas (senoidais).
III.1 O Efeito Capacitivo
No estudo deste primeiro efeito n~ao e necessario o
uso das equac~oes da linha de transmiss~ao obtidas anteriormente. A transfer^encia de carga devido ao contato entre o passarinho e a linha e analoga aquela que
ocorreria em uma situac~ao em que duas esferas condutoras de potenciais inicialmente diferentes se tocassem
e atingissem, atraves da transfer^encia de cargas entre
elas, o mesmo potencial eletrostatico nal. Aqui n~ao
temos uma situac~ao eletrostatica, ja que o potencial da
linha oscila no tempo e esta se encontra, de fato, eletricamente neutra. No entanto, a fonte de energia eletrica
conectada a linha `bombeia cargas constantemente de
tal forma a manter o potencial eletrico com amplitude
constante em cada ponto. Assim, qualquer objeto condutor que toque a linha devera ter, em cada instante,
o mesmo potencial do ponto de contato com a linha
Jose Arnaldo Redinz
(vamos desprezar aqui a dist^ancia entre as patas do
passarinho, essa sera considerada nas proximas sec~oes).
Para estimar a corrente a que o passarinho ca submetido devido ao simples contato com um dos os da
linha, assumirei que este funcione como uma placa de
um capacitor, a outra placa sendo a propria terra ou
mesmo o segundo o da linha. De fato n~ao necessitamos
procurar uma outra placa para esse capacitor, o conceito que estamos usando aqui e o de auto-capacit^ancia,
ou seja, a raz~ao entre a carga e o potencial de um objeto condutor. Esse capacitor sera constantemente carregado e descarregado, havendo um uxo de cargas oscilante no tempo deste para a linha. Para estimar o
valor desse capacitor, vamos admitir que o passarinho
possa ser aproximado por uma esfera condutora de raio
r. Sua capacit^ancia sera, portanto (ver "1] pag. 95)
C = 40 r
(13)
onde 0 e a permissividade eletrica do vacuo (bastante
proxima da permissividade eletrica do ar). Efetivamente, qualquer hipotese sobre a forma desse capacitor n~ao e determinante para as estimativas que pretendemos fazer aqui. N~ao e difcil mostrar que a autocapacit^ancia de um condutor de formato arbitrario sera
sempre da forma C = K0 l onde l e um comprimento
caracterstico desse condutor e K uma constante (4 no
caso da esfera). Nossa hipotese de um capacitor esferico
e apenas uma escolha sem implicac~oes marcantes sobre
nossas conclus~oes futuras. Se a carga no capacitor vale
q(t), a corrente sera dada por:
dCV (t)
dV (t)
IC (t) = dq(t)
(14)
dt = dt = 40 r dt
onde V (t) e o potencial da placa (que e o mesmo do
ponto da linha onde o passarinho esta pousado) em
func~ao do tempo. Vamos assumir um comportamento
senoidal para esse potencial, ou seja
V (t) = V0 sen(wt)
(15)
que e o comportamento usual em uma linha real de
transmiss~ao. Assim
IC (t) = 40 rV0 w cos(wt)
(16)
A amplitude dessa corrente e IC 0 = 40 rV0 w.
Consideremos um caso real porem extremo, o contato
com uma linha de transmiss~ao com potencial fase-terra
da ordem de 500 KV (5 105V ) oscilando com uma
frequ^encia de 60 Hz. Para a constante 0 adotaremos
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o valor aproximado 0 ' 9 10;12 F/m. Para o `raio'
do passarinho adotaremos (como ordem de grandeza)
r ' 0 1 m. Com esse valores obtemos uma amplitude
para a corrente de contato
IC 0 ' 2 mA
(17)
Esse resultado mostra um valor de corrente que n~ao
pode ser desconsiderado nas discuss~oes, ja que seria
suciente para provocar contrac~oes musculares. No
entanto, para essa situac~ao particular, essa corrente
n~ao afeta o organismo do passarinho. Como discutimos anteriormente, devido ao fato de que essa corrente
n~ao possui um caminho preferencial no organismo (pela
aus^encia de um segundo ponto de contato), a densidade
de corrente em qualquer ponto sera bastante baixa, com
a corrente se concentrando principalmente na superfcie
da pele. Dessa forma, n~ao havera a sensac~ao de choque
eletrico devido ao simples contato com um dos os da
linha de transmiss~ao, apesar de haver corrente eletrica
uindo constantemente da linha para o corpo do passarinho. Essa situac~ao e analoga aquela onde uma pessoa que esta de pe sobre uma plataforma isolante toca
em um gerador de Van de Graa (ver, por exemplo,
"1]) e ca com os cabelos todos de pe sem acusar a
sensac~ao de choque eletrico. No instante do toque, ha
uma corrente que vai do gerador para a pessoa, no entanto, essa ui quase que exclusivamente pela superfcie
da pele e n~ao provoca contrac~oes musculares. Se, por
outro lado, houvesse o toque de outra parte do corpo
em um ponto aterrado, a corrente uiria imediatamente
para esse ponto, percorrendo o menor caminho, o que
incluiria, com certeza, partes internas do organismo e,
por conseguinte, o choque eletrico seria inevitavel.
III.2 A DDP Gerada Pela Resist^encia da Linha
Consideraremos uma linha com perdas submetida
a corrente e tens~ao contnuas. As equac~oes (7) e (12)
cam:
@V (z) = ;R I(z)
(18)
@z
e
@I(z) = ;G V (z)
(19)
@z
Derivando (18) em relac~ao a z e usando a equac~ao (19)
obtemos:
@ 2 V (z) = R G V (z)
(20)
@z 2
cuja soluc~ao geral e da forma:
pRGz
V (z) = A e
pRGz
+ B e;
(21)
343
com a condic~ao inicial V (0) = V0 . Uma soluc~ao analoga
para I(z) pode ser obtida das equac~oes acima. Para
que tenhamos uma soluc~ao sicamente aceitavel para
V (z) devemos impor ainda que V (z ! 1) ! 0, ja que
n~ao esperamos que as perdas na linha aumentem o potencial eletrico a medida que nos afastamos da fonte.
Portanto, camos com:
pRGz
V (z) = V0 e;
(22)
que tem a forma mostrada na Figura 3. A corrente I(z)
na linha
p sera, nesse caso, simplesmente V (z)=Z0 onde
Z0 = R=G e a imped^ancia caracterstica da linha.
Figura 3. Diferenca de potencial entre as duas patas de um
passarinho devido as perdas causadas pelas resist^encias R e
1/G na linha. e a dist^ancia entre as patas.
Portanto, devido a esse efeito de decaimento da
tens~ao ao longo da linha, caso o passarinho toque simultaneamente em dois pontos do mesmo o, um em
uma posic~ao z e outro em uma posic~ao mais distante
z+ (com > 0), este caria submetido a uma diferenca
de potencial 4VRG dada por:
4VRG = V (z) ; V (z + ) = V0 e;
pRG z
pRG (1 ; e;
)
(23)
Admitindo que os cabos da linha de transmiss~ao sejam constitudos de alumnio e aco, com area de seca~o
transversal S = 100 mm2, sua resist^encia tpica sera da
ordem de R=0,4 /Km. O dieletrico entre os os e o
ar cuja condut^ancia por unidade de comprimento pode
344
Jose Arnaldo Redinz
ser estimada pelo valor da sua condutividade que e da
14 ( m);1. Dessa forma, obtemos para
ordem de 10;p
essa situac~ao RG ' 2 10;9 m;1. Admitindo que a
dist^ancia entre as patas de um passarinho normal e da
ordem de 0,1 m, obtemos, nalmente (para z ' 1)
4VRG ' 10;4 V
(24)
para uma linha de transmiss~ao com V0 = 500 KV . Essa
e uma tens~ao muito baixo para provocar um choque
eletrico. De fato, se considerarmos as mesmas condico~es
anteriores, para que o passarinho casse submetido a
uma diferenca de potencial de 100 V (e tomasse um
bom choque), as suas patas deveriam tocar em pontos
distantes 100 Km um do outro.
III.3 A DDP Gerada Pela Diferenca de Fase
Consideraremos uma linha sem perdas, ou seja,
R = G = 0. As equac~oes (7) e (12) cam:
@V (z t) = ;L @I(z t)
(25)
@z
@t
e
@I(z t) = ;C @V (z t)
(26)
@z
@t
Derivando a equac~ao (25) em relac~ao a z e usando a
equac~ao (26) obtemos:
@ 2 V (z t) = L C @ 2 V (z t)
(27)
@z 2
@t2
Nessa deduc~ao supusemos que a func~ao I(z t) e bem
comportada de tal forma que possamos inverter a ordem de derivac~ao (nas variaveis z e t) sem alterar o
resultado nal. De maneira analoga, podemos obter
uma equac~ao similar para I(z t)
@ 2 I(z t) = L C @ 2 I(z t)
(28)
@z 2
@t2
As equac~oes diferenciais (27) e (28) s~ao casos particulares (unidimensionais) da equac~ao da onda cujas
soluc~oes t^em a forma:
f(z t) = G1(t ; kz) + G2(t + kz)
(29)
onde G1 e G2 s~ao func~oes quaisquer (sucientemente
diferenciaveis), que representam ondas que se propagam
no sentido de z > 0 (G1p) e z < 0 (G2) com velocidade v
dada por v = 1=k = 1= LC). Se admitimos que a fonte
de energia eletrica que alimenta a linha se encontra em
z = 0, as soluc~oes sicamente aceitaveis ser~ao aquelas
que se propagam no sentido de z > 0. As ondas que
se propagam no sentido contrario representariam, nesse
caso, ondas reetidas que poderiam ocorrer em descontinuidades ao longo da linha como, por exemplo, interrupc~oes ou emendas. Estamos admitindo uma linha
homog^enea e innita e portanto essas ondas reetidas
n~ao existir~ao. Uma soluc~ao particular que reete bem
o caso real de uma linha de transmiss~ao e
V (z t) = V0 sen w(t ; z=v)
(30)
onde w e a freq$u^encia de oscilac~ao da tens~ao. Note
que nesse caso, como estamos desprezando as perdas na
linha, n~ao havera nenhuma atenuaca~o da tens~ao ou da
corrente a medida que nos afastamos da fonte (z = 0).
Esses sinais eletricos v~ao simplesmente se propagar ao
longo da linha, transportando a energia gerada pela
fonte. A corrente I(z t) na linhapsera, nesse caso, simplesmente V (z t)=Z0 onde Z0 = L=C.
Pode-se mostrar que para uma linha de transmiss~ao
arbitraria (sem perdas) (ver problema 6.5 de "2]) vale a
relac~ao :
LC = diel diel
(31)
onde diel e diel s~ao as constantes caractersticas, permeabilidade magnetica e permissividade eletrica, do
meio dieletrico entre os condutores. Assim, a velocidade
de propagac~ao das ondas de tens~ao e corrente na linha e
a mesma da propagac~ao da luz no meio dieletrico, nesse
caso, o ar. Dessa forma, teremos v ' 3 108 m=s. Portanto, o comprimento de onda das ondas de tens~ao e
corrente sera:
= v T ' 5000 Km
(32)
onde T e o perodo das oscilac~oes da tens~ao e da corrente (usamos f=60 Hz). Assim, para que um passarinho casse submetido a uma diferenca de potencial de
V0, a amplitude da tens~ao na linha, a dist^ancia entre
suas patas deveria ser da ordem de =4, ou seja, 1250
Km (ver ilustrac~ao na Figura 4). Assim, o efeito da
diferenca de fase sera insuciente para provocar qualquer sensac~ao de choque eletrico em um passarinho devido a pequena dist^ancia entre suas patas.
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Figura 4. Diferenca de potencial entre as duas patas de um
passarinho devido a diferenca de fase da tens~ao ao longo da
linha. e a dist^ancia entre as patas.
IV. Conclus~oes
Fizemos estimativas numericas para os efeitos
provocados por uma linha de transmiss~ao sobre um
passarinho que repousa em um de seus os. Levamos em conta, separadamente, tr^es efeitos importantes,
o efeito capacitivo, o efeito devido as perdas nas resist^encias e o efeito devido a diferenca de fase. Em
uma situac~ao real esses efeitos ocorrer~ao simultaneamente. As soluc~oes das equac~oes para V e I na linha
ser~ao func~oes oscilantes (ondas) com amplitudes que
decaem ao longo da linha (ver, por exemplo, "3]). Escolhemos a estrategia de separar os efeitos resistivos dos
efeitos gerados pela diferenca de fase para aumentar a
clareza e simplicar a analise matematica das soluc~oes.
Concluimos que a aus^encia de choques eletricos sobre
o passarinho pode ser atribuda ao fato de que este
n~ao fecha nenhum circuito, no sentido de que toca em
apenas um o da linha, e/ou a reduzida dist^ancia en-
345
tre suas patas, desde que levemos em consideraca~o as
peculiaridades das linhas de distribuic~ao e transmiss~ao
reais. Com base no que foi discutido aqui, n~ao e muito
difcil mostrar que se a freq$u^encia da rede fosse muito
maior do que os atuais 60 Hz (como numa linha de
telecomunicac~oes , por exemplo) ou se o material que
comp~oe as linhas fosse um condutor de baixa qualidade
(independentemente da utilidade pratica dessas escolhas), a realidade poderia ser diferente. Enm, procuramos mostrar que a aus^encia de choques eletricos n~ao
e uma impossibilidade fsica (como a frase `ele n~ao fecha
nenhum circuito' parece supor) mas uma conting^encia
dos par^ametros reais das redes eletricas. Alem disso,
acreditamos que esse exemplo, do passarinho pousado
na rede eletrica, e bastante interessante para fomentar
a discuss~ao, em uma classe de eletromagnetismo, da
aplicac~ao do formalismo a uma situac~ao real e, em particular, dos perigos que a corrente eletrica oferece para
o organismo de um ser vivo.
Agradecimentos: O autor agradece as informac~oes
tecnicas fornecidas pelo Engenheiro Chefe da
CEMIG/Vicosa, Caio Cesar Raposo.
Refer^encias
References
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Fsica 3 - Eletromagnetismo, 4a edic~ao , LTC Editora
S. A. 1996.
2] Jackson J. D., Eletrodin^amica Classica, 2a edic~ao ,
Guanabara Dois 1983.
3] Ramo S. e Whinnery J. R., Fields and Waves in Modern Radio, John Wiley & Sons, New York, 1953.
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