Direito, linguagem e revolução francesa

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Doutrina
DIREITO, LINGUAGEM E REVOLUÇÃO FRANCESA
(*)Luís Wanderley Gazoto
Monografia apresentada ao Mestrado em Direito e Estado da Universidade de Brasilia, disciplina de Sociologia Jurldica.
1. INTRODUÇÃO
Na opinião de muitos historiadores, a Revolução Francesa não se constitui
somente como marco divisor entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea, como
também foi o evento de maior importancia da humanidade, o qual ainda estaria produzindo seus frutos; pela primeira vez na história das revoluções humanas, não se tratava de mero golpe de Estado, pois, antes de intentar uma simples tomada de poder,
aspirava assentar uma ordem política e social completamente nova, sob cujos fundamentos se pretendia edificar uma verdadeira transformação da sociedade, capaz de
promover alterações irreversíveis no homem, no Estado e em suas inter-relações.
No âmbito jurídico, como não poderia deixar de ser, dado o caráter históricosociológico do Direito, a Revolução Francesa foi ainda mais radical, constituindo-se
na gênese de institutos da maior importância, tais como o constitucionalismo e o
legicentris mo.
Para instrumentalizar tais alterações sistemáticas, foi necessária a adoção de
uma nova metodologia e, principalmente, a criação de uma nova linguagem juridica,
1
não só alterando-se a extensão e a compreensão dos seus conceitos, mas também
criando-se novos termos, os quais, sem nos darmos conta disso, hoje fazem parte do
nosso vocabulário quotidiano.
Proceder a uma sucinta retrospectiva das principais alterações da linguagem
do Direito promovidas pela Revolução Francesa, bem como do seu emprego como
instrumento político-juridico, são os desígnios desse opósculo.
(*) Procurador da República
1
Sobre extensão e compreensão dos conceitos, v. MARITAIN Jacques, Elementos de Filoso.{ltl 2:
A Ordem dos Conceitos: L6gica Menor. Tradução de /lz.a das Neves. 1J• ed. Rio de Janeiro
(RJ): Agir, 1994, p. 46 e s.
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Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
2. O ILUMINISMO COMO FONTE FILOSÓFICA DA REVOLUÇÃO
Na trilha aberta pelos primeiros representantes do Humanísmo dos séculos XV
e XVI, como Giordano Bruno (1548-1600) Galíleu Galilei (1564-1642), respondendo à indagação sobre onde o homem vai buscar os elementos de seu conhecimento,
surgiram nos séculos seguintes duas principais correntes opositoras à filosofia teológica da Idade Média, a saber, o Empirismo e o Racionalismo.
O Empirismo é a doutrina que, negando a existência de princípios puramente
racionais, defende que o conhecimento humano deduz seus princípios e conteúdo
exclusiva ou predominantemente da experiência sensível. São expressões máximas
do Empirismo na Idade Moderna: Francis Bacon (1561-162~ Tomas Hobbes (15881679), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776).
Ao Empirismo contrapõe-se o Racionalismo, cujos seguidores advogam a preponderància da razão no processo cognoscitivo e que os fatos não são fonte exclusiva
de todos os conhecimentos. Esta doutrina teve como precursor René Descartes (!5961650), para quem somos possuidores, enquanto seres pensantes, de uma série de princípios evidentes, idéias inatas, que servem de fuodamento lógico a todos os elementos
com que nos enriquecem a percepção e a representação'. Destacam-se como
Racionalistas: Spinoza (1632-1677), Leibniz (1646-1716), Giambatista Vico (16681744) e Voltaire (1694-1778).
Tais correntes, posteriormente, foram fundidas no Criticismo, o qual, operando uma espécie de síntese progressista das teorias acima relatadas, somente atribui
validade aos métodos puramente racionais (Racionalismo) submetidos e comprovadosexperimentalmente(Empirismo).Assirn,paralmmanuelKant(l724-1804),omais
destacado criticista, o espírito humano jã possui certas formas condicionantes da apreensão sensível e o conhecimento está sempre bitolado pela medida humana. Para ele,
e
os conceitos sem as intuições são vazios; as intuições sem os conceitos são cegas.
O Empirismo, o Racionalismo e o Criticismo, quebrando a tradição patrística e
escolãstica', são escolas ditas antropocêntricas, ou seja, põem o homem no centro das
especulações filosóficas e cientificas. Para elas, o valor da ciência moderna não é
teorético, especulativo, metafísico, mas empirico e técnico. Essa é a epistemologia
adotada pelos filósofos das Luzes, ou do lluminismo, os quais, com suas idéias, fomentaram o espírito da elite intelectual da revolução burguesa.
3
4
30
Mais modernamente: Stuart Mill ( 1806-1873 ), Karl Marx ( 1818-1883) e Herbert Spencer ( 18201903 ), os quais tornaram-se mais conhecidos por terem se engajado em correntes derivadas do
Empirismo, como o 17Ulterialismo, naturalisnw etc.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito.11 .. ed. São Paulo (SP): Saraiva: 1986, p. 95.
Doutrina teal6gico-filos6fica dominante na Idade Média, dos séc. IX ao XVII, caracterizadas
sobretudo pelo problema da relação entre a fé e a razão, problema que se resolve pela dependência
da pensamento filosófico, representado pela filosofia greco-romana, da teologia cristã.
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Doutrina
A Revolução Francesa foi um solo fértil para a especulação filosófica em relação às mudanças políticas e sociais, e muitas tradições filosóficas devem-lhe sua existência. Nessa interação entre revolução e filosofia, as esperanças e idéias da inteligência européia apareceram re~resentadas na história da revolução, da qual ainda tiramos
lições a ser compreendidas . Não é exagerado dizer que, às vésperas da Revolução, a
Europa deve seus traços à obra e à ação dos filósofos. É uma realidade que deriva mais
dos textos e peregrinações dos pensadores do que da política concertada dos principes' .
2.1- Locke
O inglês John Locke nasceu em Wrington, Somerset, na Grã-Bretanha. em 29
de agosto de !632; interessou-se tanto pelo conhecimento filosófico como pelas questões de natureza política.
Na epistemologia, Locke tomou-se conhecido sobretudo como sisternatizador
do empirismo, enfatizando a primazia da experiência no con,hecimento e refutando a
filosofia racionalista de Descartes. A teoria do conhecimento de Locke foi exposta em
Ensaio Sobre o Conhecimento Humano (1690).
Locke foi também eminente teórico político e social, podendo ser chamado de
pai do liberalismo; sua obra inspirou os iluministas e revolucionários do século XVIII
e suas teses exerceram influência duradoura no pensamento ocidental.
Em !667, o filósofo ingressou na política, tomando-se um dos principais assessores de Lord Ashley, mais tarde nomeado conde de Shaftesbury. Entre 1675 e
1679, Locke residiu na França e, de volta à Grã-Bretanha, deparou-se com os problemas políticos decorrentes da sucessão de Carlos II. Após a queda de Lord Shaftesbury,
em 1683, Locke foi para os Países Baixos. Em 1689, com a ascensão de Guilherme de
Orange, Locke regressou a seu pais e, a partir de então, usufruiu de todo tipo de honraria e consideração, o que lhe permitiu dedicar-se à publicação de suas obras.
As idéias liberalistas de John Locke foram expressas na obra Dois Tratados
sobre o Governo (1690) e, por certo, somente puderam ser expostas em razão da instauração da monarquia parlamentar estabelecida por Guilherme de Orange.
A liberdade era, no pensamento de Locke, a essência da soberania política,
delegada por todos os cidadãos ao Parlamento. Como disse J. W. Gough, o contrato
social de Locke não é assim um contrato de governo entre o rei e o povo, como antes
sustentara Hobbes, senão um acordo entre individuas para formar um sociedade civil
5
OLIVER, Martin. História Ilustrada da Filoso}Ul. Traduçllo de Adriana Toledo Piza. São Paulo
(SP ): Mano/e, 1998, p. 92.
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e submetê-la à determinação da maioria, que a exerce através de pessoas singulares
7
mediante mandatos revogáveis •
A partir desse conceito de liberdade, que era expressão do direito natural das
pessoas, Locl<e condenava o absolutismo sob todas as suas formas e defendia o direito
de resistência do povo contra os governos tirânicos. Tal liberalismo deveria se refletir
não somente quanto aos direitos mais elementares como a vida, integridade qsica e de
expressão, mas também ao direito de propriedade, como hoje o entendemos . Assim,
fica fácil entender o atrativo exercido por suas idéias para a classe média francesa
promotora da Revolução Francesa.
2.2 - Voltaire
Se a terra natal do iluminismo é a Inglaterra, a terra da sua maturidade é a
França, onde adquiriu contom~s especificos, como o culto delirante da razão, a deusa
razão da Revolução Francesa.
François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire, nascido em Paris em 21 de
novembro de 1694, filho
de abastada família burguesa. De estilo sedutor, alerta e
10
muitas vezes malicioso , emprestou seu talento literário à causa iluminista, não só em
assuntos filosóficos, mas em teatro, prosa, poesia e história; juntamente com
Montesquieu, é um dos maiores expoentes da teoria liberal pré-revolucionária na França.
Voltaire ficou preso por 11 meses na Bastilha, sob a acusação de ser responsável por um panfleto satirico; mas, o que poderia parecer má sorte, acabou por lhe abrir
as portas dos meios intelectuais, pois aproveitou o tempo de prisão para criar sua
primeira tragédia, Édipo, em 1718.
A partir de 1726, em conseqüência de um desentendimento com o influente
duque de Rohan-Chabot, Voltaire foi obrigado a exilar-se na Inglaterra, onde, mais
6
BESNIER, Jean-Michel. A Europa dos Filósofos.lnFranfll Revolucionária. Org. Michel Vovelle.
Trad. Denise Bottman. São Paulo (SP): Brasiliense: /989, p. 39.
apud ENTERRIA, Eduardo Garcla de. La Lengua de los Derechos. La Formación del Derecho
Pdblico Europeo tras la Revolución Francesa. Madrid, Espanha: Alianza Editorial: 1995, p.
62.
10
32
Conforme Edward MacNali Burns e outros, em História da Civilização Universal. Trad.
Donaldson M. Garshagen. São Paulo (SP): Globo: 1997, vol. /, p. 490, o conceito de Locke
sobre propriedade era mais abrangente do que o atualmente empregado, pois envolvia nDo
somente os direitos reais, como também o direito à vida e à liberdade.
PADOVAN/, Umberto, e CASTAGNOLA. Luís. História da Filosofia. 17" ed. São Paulo (SP):
Melhoramentos: 1995, p. 339.
Ironizando a tirania polftica vigente, teria dito Voltaire: É proibido matar, e portanto todos os
assassinos são punidos, a menos que o façam em larga escala e ao som das trombetas. Edward
MacNall Burns e outros, em História da Civiliz.açilo Universal. Trad. Donaldson M. Garshagen.
São Paulo (SP): Globo: 1997, vol. I, p. 462.
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Doutrina
uma vez, tirando proveito de um revés em sua vida, escreveu um dos livros que mais
o projetaram, as Cartas Filosóficas ou Cartas sobre os Ingleses (1734). O livro foi
condenado pelas autoridades francesas, o que o obrigou a refugiar-se por dez anos no
castelo de Cirey, de sua amante, a marquesa du Châtelet
Em 1744 Voltaire voltou para Paris e, dois anos mais tarde, foi eleito para a
Academia Francesa; em 1750 aceitou convite do rei Frederico li o Grande, da Prússia,
para viver na corte de Potsdam. Todavia, em 1753, depois de um conflito com o rei,
retirou-se para uma casa perto de Genebra; em 1758 comprou o castelo e afazendade
Ferney, perto de Genebra, onde mstalou uma fábrica de tecidos e outra de relógios, e
ai ficou até o fim da vida, sem jamais abandonar sua atividade intelectual; retornou a
Paris em 1778, mas morreu logo em seguida.u
Nada obstante Voltaire não ter desenvolvido um sistema filosófico próprio, foi
um ídolo aos revolucionários devido à sua imagem de "filósofo engajado"- no livro
que lhe valeu o exílio por dez anos, as Cartas sobre os Ingleses, fez espirituosas com·
parações entre a liberdade inglesa e o atraso da França absolutista; era um verdadeiro
campeão da liberdade; além disso, defendeu a burguesia contra a aristocracia feudal e
anteviu a Revolução Francesa como revolução da burguesia.
2.3 - Montesquieu
Charles-Lcuis de Secondat, barão de La Brêde e de Montesquieu, nasceu em
18 de janeiro de 1689 no castelo de La Brêde, perto de Bordéus, França, membro de
uma família da aristocracia proviocial: muito embora seu pai fosse militar da guarda
do rei, seu avô e um tio paterno (Jean-Baptiste) ocuparam a função de presidente do
Parlamento de Bordéus, na qual, por herança, os sucedeu, sem muito entusiasmo entretanto; em 1714, entrou para o tribunal provincial de Bordéus, que presidiu de 1716
a 1726; cumpriu honradamente suas funções, porém, entediado e aborrecido, ele pró.
••
12
pno diZia nada entender de processos .
13
Em 1721, anonimamente, Montesquieu publicou sua obra Cartas Persas , na
qual relativizou os valores de uma civilização pela comparação com os de outra, muito diferentes; verdadeiro manual do Iluminismo, foi uma das obras mais lidas no século XVIII. Em razão dela, foi escolbido para a Academia de Letras francesa em 1725,
11
12
Barsa CD. São Paulo (SP ): Encyclopaedia Britannica do Brasil: 1997. Verbete Voltaire.
TRUC, Gonzague: na introdução da edição francesa de O Esp(rilo das Leis, de Montesquieu.
Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasma (DF): UnB: 1995, p.
XXV.
13
Cartas imaginárias de um persa que teria visitado a França e estranhado os castumes e
instituições vigentes.
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porém, baseando-se no relatório do Cardeal Fleury, que entendeu que a publicação de
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uma obra anônima era incompatível a um magistrado , o rei, em princípio, recusou a
sua aprovação, o que se deu somente em 1728, depois que Montesquieu formalizou
seu pedido de desculpas.
Montesquieu foi um dos fundadores da filosofia da história; seu humanismo é
o fundamento das suas Considerações sobre a Causa da Grandeza das Romanos e de
sua Decadência (1734), na qual, influenciado por Maquiavel, o escritor procura determinar as causas da grandeza e da queda das nações.
Mas a grande obra de Montesquieu estava por vir: somente em 1748 é que,
depois de 20 anos de meditação, publica O Espírito das Leis, na qual elabora conceitos sobre as formas de governo e o exercido da autoridade política que se tomaram
pontos doutrinários básicos da ciência política, Considera que cada uma das três formas possiveis de governo é animada por um principio: a democracia baseia-se na
virtude, a monarquia na honra e o despotismo no medo; rejeitando este último e afrrmando que a democracia só é viâvel em repúblicas de pequenas dimensões territoriais,
entende que o melhor sistema para a França seria a monarquia constitucional".
Ainda no Espírito das Leis, Montesquieu elabora a teoria da separação dos
poderes, acreditando que seria essa a melhor garantia da liberdade dos cidadãos e, ao
mesmo tempo, da eficiência das instituições políticas. Certamente, a teoria não lhe foi
original, pois teve seu nascedouro nas obras de Platão e Aristóteles, havia mais de
dois mil anos, e John Locke foi-lhe o primeiro expositor, mas Montesquieu teve o
mérito de ser seu grande sistematizador e divulgador".
Há quem entenda, porém, que a teoria da separação dos poderes de Montesquieu
não objetivava a implantação da democracia na França; assim, diz Edward MacNall
Bums:
Essa teoria favorita de Montesquieu não visava, por certo, facilitar a
democracia. Seu propósito, bem ao contrário, era o de impedir a supre·
ma absoluta da maioria, expressa, como normaúnente seria, pelos re·
presentantes do povo no corpo legislativo. Assim, as idéias de
Montesquieu atraiam tanto a nobreztJ quanto a classe média. A nobreztl
interpretava-lhe as obras como uma defesa de seus antigos privilégios
1
~
IJ
16
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Na verdade, Fleury já antevia que a relativizaçllo dos valores seria um risco para a tradição
religiosa e aos poderes eclesiásticos.
O modelo é a monarquia constitucional inglesa. Como Volta ire, Monte3-quieufez longas viagens
pela Europa e, de 1729 a 1731, esteve na Inglaterra, impressionado-se favoravelmente pelo
sistema.
MALUF, SAHJD. Direito ConstilucionoL 6" ed. São Paulo (SP ): Sugestões Literárias: 1972. p. 82.
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Doutrina
dignificados por Montesquieu como "liberdades". Os esta®s provinciais, onde nobres exerciam considerável poder polltico, eram os
órgãos constituí®s que agiriam como freio ao poder mondrquico. Já a
classe média acolhia com prazer um apoio teórico adicioMl que
substanciasse sua preferência por outra coisa além do absolutismo
monárquico e dtJ mercantilismo centraliza® do século XV/l/. 17
Nisso parece que Burns está com a razão; vejamos uma passagem de
Montesquieu no capítulo das leis em sua relação com a natureza do governo
monárquico do Espírito das Leis:
Há pessoas que imaginaram, 1ltl Europa, em alguns Estados, abolir
toda justiça dos senhores. Nlio percebiam que pretendiam fazer o que
fez o parlamento inglês. Aboli numa monarquia as prerrogativas dos
senhores, do clero, dtJ nobreza e das cidades e tereis um Estado popular
ou um Estado despótico. Os tribunais de um grande Estado europeu
golpeiam incessantemente, há muitos séculos, a jurisdição patriTfiCHiial
dos senhores e a eclesiástica. Não desejamos censurar tão sábios magistrados, mas deixamos ainda para ser decidido até que ponto a constituição, nesse caso, pode ser mudada. 18
Efetivamente, Montesquieu não foi o filósofo do povo - até mesmo Voltaire,
comentando O Espírito das Leis, o ironizou afumando que monarquia e despotismo
se assemelham a ponto de se confundirem; ainda, em seu Dicionário Filosófico, publicado em 1778, no verbete relativo à obra de Montesquieu assevera: já se disse que
a letra matava e o espírito vivificava, mas no livro de Montesquieu o esp(rito confun19
de e a letra nada ensina •
Todavia, é preciso compreender-lhe a grandeza de sua intenção; antes de
verberar radical e frontalmente contra a instituição oficial da monarquia francesa, o
que provavelmente levaria sua obra à inutilidade pela proscriÇão, empregando exemplos da história dos povos e querendo parecer mais um cientista do que um crítico,
11
11
1'
BURNS, Edward MacNali, e outros. Hist6rla da Civilização Universal. Trad. Donaldson M.
Garshagen. São Paulo (SP): Globo: 1997, vol.l, p. 491 .
O Espírito das Leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasília
(DF): UnB: 1995, p. U .
TR UC, Gonzague: na introduçllo da edição francesa de O Esp(rito das Leis, de Montesquieu.
Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasllia (DF): UnB: 1995, p.
XXV.
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Montesquieu ensinava indiretamente a ela como proceder para não sucumbir, sendo
que, para tanto, ao contrãrio de Hobbes, aconselhava a adoção de princípios democráticos, de procedimentos humanitãrios e de critérios razoáveis no exercício do poder.
De qualquer maneira, as teorias de Montesquieu exerceram profunda influência no pensamento político revolucionãrio, inspirando a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão francesa (bem como a Constituição dos Estados Unidos, de
1787), onde se estabeleceu como dogma constitucional a rígida separação dos poderes, nela tendo sido sentenciado que não teria constituição a sociedade que não a
assegurasse (art. 16).
Montesquieu morreu em Paris, em 10 de fevereiro de 1755, prestigiado, como
sempre.
2.4 • Rousseau
Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, Suíça, em 28 de junho de 1712;
em 1742 foi para Paris tentar a vida, mas até 1750 era conhecido apenas como músico.
Nesse ano, participou de um concurso literãrio promovido pela Academia de Dijon,
no qual dever-se-ia responder à questão se o progresso na cultura havia contribuído
para depurar os costumes; respondendo negativamente à hipótese, seu Discurso sobre
as Ciências e as Arres foi vencedor, o que lhe valeu, além da lâurea, uma fama polêmica por atacar as artes como instrumentos de propaganda e de obtenção de riqueza para
os ricos.
Foi só o começo. Em 1755, em seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade
entre os Homens, contestou a organização da sociedade da época, vendo a desigualdade e a injustiça como frutos da competição e da hierarquia mal constituida. No ensaio,
o autor afirma que a organização social corrompe a natureza humana e lhe sufoca o
. 1" .
potenc1a
Em 1761, Rousseau publicaJulie ou A nova Heloísa, romance que obteve muito
sucesso, no qual exaltou o direito da paixão, mesmo ilegítima, contra a hipocrisia da
sociedade. No ano seguinte, em Émile ou Da Educação, criticando os métodos de
aprendizagem da época, sustentou que o ensino deve visar mais à capacidade de
discernir do que o acúmulo de conhecimentos.
Todavia, O Conrrato Social, também publicado em 1762, foi a obra mais importante de Rousseau; nela, propõe um estado ideal, obediente à natureza humana,
resultante de consenso e garantidor dos direitos de todos os cidadãos.
20
36
Barsa CD. São Paulo (SP ): Encyclopaedia Britannica do Brasil: 1997. Verbete Rousseau,
JeanJacques.
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Doutrina
Rousseau desenvolveu urna concepção de soberania completamente diferente
da dos liberais-" enquanto Locke havia ensinado que somente uma parte do poder
soberano é cedida ao Estado, permanecendo a restante nas mãos do povo, Rousseau
sustentava que a soberania é indivísivel e que toda ela passara à comunidade quando
da constitnição da sociedade civil; mas seu governo é simplesmente o agente executivo do Estado, cuja função não consiste em formular a vontade geral, mas tão-somente
executá-la.
O Parlamento de Paris condenou tanto O Contrato Social quanto Émile, que
considerou repleto de heresias religiosas, o que forçou Rousseau a se exilar na Suiça;
lá encontrou novas dificuldades e viajou para a Inglaterra, onde o filósofo David Hume
o acolheu; no ano seguinte, após ter também se desentendido com Hume, regressou
incógnito à França.
Por seu romantismo e coragem critica, Rousseau poderia ter sido o filósofo do
povo, se esse tivesse oportunidade em conhecê-lo e discernimento para entender seu
pensamento.
Rousseau morreu na ilha dos Peupliers, França, em 2 de julho de 1778. Em 21
de dezembro de 1791, a Assembléia Constituinte francesa aprovou a realização de
uma estátua de Rousseau; em 11 de outubro de 1794, seus restos mortais são transferidos para o Panthéon.
2.5- Kant
Há quem af"trme que o conhecido rigor habitual de Kant só foi quebrado duas
vezes: quando da publicação do Contrato Social de Rousseau e pelo anúncio da Revo21
lução Francesa .
Para Kant, a Revolução Francesa representa o acesso do homem à sua maioridade e ela realiza o que a razão descobria na filosofia: a idéia do contrato originário.
Entrementes, não se pode conjugar o ideal revolucionário com a moral kantiana: sendo o contrato social um dever moral, ele não pode ser confundido com as sociedades
e os Estados reais, nascidos da violência e da coerção. O conceito de iguailÚlde kantiano
significa passividade na obediência às autoridades legitimas e, não obstante reclame
22
liberdade de expressão, não autoriza o direito de resistência •
Comentando alguns termos e passagens de Kant em sua Metafísica dos Costumes, Eduardo Garcia de Enterria diz que todos e cada um desses conceitos[... ] proce-
21
22
DUROZOI, Gérard; ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. Trad. Marina Appenzeller. 2"
ed. Campinas (SP): Papirus: 1996, p. 269.
SOUBBOTNIK, Michaifl.Kant, Fichte e Hegel; In FrançaRevoiucionária. Org. Michel Vovelie.
Trad. Denise Bottman. São Paulo (SP ): Brasiliense: 1989, p. 394.
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dem inequivocamente do instrumentário jurldico do Revolução Francesa[ ...]. É, pois,
uma leviandade intentar independizar a Kant do Revolução, do qual é melhor uma
clara teorizaçãofilos6fica seu conceito de Direito." Assim, parece que Kant, antes
de influenciar a Revolução Francesa, foi influenciado por ela.
2.6 - conclusão
Essa é a síntese do que, para o momento nos interessa. Obviamente, não existe
uma unidade monolitica no pensamento dos filósofos iluministas, nas palavras de
Emst Cassirer, a filosofia do iluminismo é algo muito diverso do que foi pensado e
ensinado pelos grandes mestres do período[...]. Ela não se destaca do soma do sucessão cronológica dessas opiniões porque, de um modo geral, ela nllo reside numa
doxologia, mas na arte e na forma de conduzir os debates de idéias. As forças espirituais que a governam só são perceptíveis na própria ação e no movimento continuo
do debate: somente a( será possível captar a pulsaçllo do vido interior do pensamento
. . 24
z'1ummzsta.
Efetivamente, a filosofia iluminista foi fundamental para a elaboração de um
senso comum antimetafísico, racional e humanista, e seus pensadores ofereceram aos
revolucionários as armas de uma crítica ao status quo, mas o reformismo é o limite da
ousadia politica da Europa dos filósofos.
3. A FORMULAÇÃO DOS CONCEITOS JUSNXTIJRALISTAS
Ao longo dos séculos sempre houve uma Intima correlação entre a idéia de lei
natural e a concepção dos direitos naturais do homem. Tais direitos, embora possam
não constar de um código, estão inscritos na consciência coletiva da humanidade, e
por isso têm sido invocados em toda a história, principalmente quando violados.
Bobbio afirma que não há uma unidade de pensamento entre as diversas correntes históricas jusnaturalistas; principalmente quanto à fonte desses direitos diz que
os direitos naturais dos gregos da antigüidade provinham do seu direito consuetudinário; na Idade Média, a fonte dos direitos seria o direito divino; e, modemamente, a
25
razão • Parece-me, todavia, que o direito natural grego também tinha fonte divina,
23
24
25
38
ENTERRIA, Eduardo Garcfa de. La Lengua de los Derechos. La Formaci6n del Derecho Público
Europeo tras la Revolución Francesa. Madrid, Espanha: Alianza Editorial: 1995, p. 88.
A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. 3• ed. Campinas (SP ): Unicamp: 1997, p. Vil.
BOBBtO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Trad. de Sérgio Bath. Brasma (DF): UnB: 1997,
p.3les.
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Doutrina
bastando lembrar a sempre citada passagem da tragédia Antigona, de Sófocles, na
qual a personagem que deu nome à obra assim se dirige ao rei Creonte, que quer
impedi-la de sepultar o cadáver do irmão: Mas toda a tua força é fraqueza, diante das
tácitas e imortais leis de Deus.
De toda forma, durante o Renascimento, por obra dos pensadores racionalistas,
como Descartes e Spinoza, começou a tomar vulto novamente a idéia de um direito
natural garantidor dos direitos essenciais do homem. Mas foi somente com o
Iluminismo, principalmente com John Locke, autor de Epistola de Tolerantia (1689),
que as idéias do direito natural racional ganharam vulto, adquirindo seus contornos
conceituais. A Ilustração generalizará esses conceitos jusnaturalistas e os deixará prontos para sua recepção sistemática, como chave de uma nova construção politica (e
aqui Locke e Rousseau serão essenciais) nas duas grandes revoluções modernas, a
26
americana e a francesa •
Por sua vez, os revolucionários assumirão o papel de estabelecer uma nova
linguagem do Direito como a linguado Direito Natural não abstrato, ou seja, a de um
Direito Natural declarado, expresso, positivo, que se revelou na obra resplandecente
da Assembléia, principalmente por intermédio da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional Francesa, em 26 de agosto de
1789, a qual proclamou em seus 17 artigos que todos os homens são iguais perante a
lei, com direitos naturais de liberdade de pensamento, de expressão, de reunião e associação, de proteção contra a prisão arbitrária e de rebelar-se contra o arbitrio e a
opressão.
O novo conceito de Direito Natural implicou na abstração de todos os laços
sociais e históricos em que se encontram os individuas, valorizando-se-os como titulares de direitos subjetivos. Assim, na universalidade desses novos direitos naturais,
deixaram de existir regras de direito hereditário, honorifico ou castiço. Nesse contexto, a Revolução Francesa foi essencial na fixação das novas concepções de liberdade,
democracia~ povo e outros conceitos.
3.1 - liberdade
Em Locke, a liberdade situa-se entre os "poderes humanos", ao lado do seu
próprio corpo, como a inquietude, o entendimento, a lei e a:Jociabilidade. Dai que a
liberdade não é só meio, mas condição da existência humana . Como visto, a liberda-
26
27
ENTERRÍA, Eduardo Garc(a de. La LengiUl de los Derechos. La Formtlción delDerecho Público
Europeo Iras la ReFolución Francesa. Madrid, Espanha: Alianza Editorial: 1995, p. 57.
MACEDO, Sflvio de. Curso de Filosofia Soeial. 2• edição. Rio de Janeiro (RJ): Freitas Bastos:
1977. p. 36.
R. Dout. Jurisp., Brasflia, (62): ll-75,jan.-abr. 2000
39
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
de era, no pensamento de Locke, a essência da soberania po11tica, "delegada" por
todos os cidadãos ao parlamento.
Rousseau, por sua vez, conceituou a liberdade sob três aspectos: a liberdade
natural, que tem por limites apenas as forças do indivíduo, a liberdade civil, que é
limitada pela vontade geral, e a liberdade moral, segundo ele, a única que torna o
homem verdadeiramente senhor de si, porquanto o impulso do mero apetite é escravi8
dão, e à obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdad/ •
Os conceitos oferecidos por Locke e Rousseau são totalmente divorciados daqueles da autoria de Hobbes e mesmo de Montesquieu, pois naqueles a 1iberdade
deixa de ser uma simples franquia frente ao poder, tomando-se um direito.
Sob essa inspiração, a liberdade ganhou definição no art. 4° da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão: A liberdade consiste em poder jazer o que não
prejudica os outros, de modo que o exercíCio dos direitos naturais de cada homem
não tem outros limites que não sejam os que garantem aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites não podem ser estabelecidos senão
pela lei.
A inversão da relação tradicional entre direitos dos governantes e obrigações
dos súditos é evidente - ao longo dos séculos, os códigos morais e jurídicos. foram,
desde os Dez Mapdamentos até às Doze Tábuas, conjuntos de regras imperativas que
estabelecem obrigações para os indivíduos, não direitos. Diversamente, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, primeiro há a afirmação de que os homens
têm direitos; depois, a de que o governo, precisamente em decorrência desses direitos,
.
. 1os29 .
obnga-se
a garantiPassou-se assim da liberdade individual, natural, à liberdade institucionalizada,
a qual não importou na desconstrução daquela, posto que a sua preservação é justamente o objetivo do sistema institucional coletivo.
3.2 - democracia
A democracia teve origem na Grécia clássica; Atenas e outras cidades-estados
implantaram um sistema de governo por meio do qual todos os cidadãos livres podiam
eleger seus governantes e serem eleitos para tal função, por um determinado período.
Todavia, só no século XVII começaram a ser elaboradas as primeiras formulações
teóricas sobre a democracia moderna. O filósofo britânico John Locke foi o primeiro
21
19
40
ROUSSEAU, J ean-J acques. O Contrtlto Social. Trad. Antonio de Pádua Danesi. ]• ed. São Paulo
(SP ): Martins Fontes: 1996, p. 26.
BOBB/0, Norberto. A Ertl dos Direitos. 9" ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro
(RJ): Campus: 1992, p. 101.
R. Dout. Jurisp., Brasflia, (62): 11-75, jan.-abr. 2000
Doutrina
a afinnar que o poder dos governos nasce de um acordo livre e recíproco e a preconizar a separação entre os poderes legislativo e judiciário.
Como vimos, em O Espírito das Leis, Montesquieu elaborou seus conceitos
sobre as fonnas de governo (republicano, monarquia e despotismo) e sobre o exercício da autoridade política (teoria da separação dos poderes), os quais se tomaram
pontos doutrinários básicos da ciência política, verdadeiros princípios que viriam a
servir como fundamento da democracia moderna:
Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberaM
no, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas
mãos de uma parte do povo, trata-se de uma Ariszocrada. O povo, na
democracia, é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súdito. O
povo só pode ser monarca pelos sufrágios, que constituem suas vontades. A vontade do soberano é o pr6prio soberano. As leis que estabelecem o direito de sufrágio são, portanto, fundamentais nesse governo.
Nos séculos XVIII e XIX, graças à Revolução Francesa, o tenno "democracia"
tomou-se sinônimo de soberania popular. Essas idéias assumiram fonnas mais preci30
sas sob o patriotismo populista de Robespierre, após a segunda revolução, em 1792 •
Durante a Revolução Francesa fonnularam-se propostas de organização e ação
destinadas a abolir o absolutismo e a instaurar uma nova ordem politica; procurou-se,
em vão, encontrar fonnas de organização politica e social que dotassem o sistema de
certa estabilidade, mas esse projeto foi abortado pelo surgimento de Napoleão e a
restauração do império.
Se o ideal democrático não foi atingido na França revolucionária, ao menos foi
responsável pela ampla difusão das suas idéias, não apenas nos estados europeus, mas
também na América. A Revolução Francesa não inventou a democracia nem conseguiu estabelecê-la, mas ela inventou o sistema intelectual que a tomou possível: o
"Estado de Direito'~'
3-3 - povo e nação
A noção de povo, como se sabe, já era conhecida na antigüidade clássica em
matéria de teoria política e de direito público e era utilizada no sentido de agrupamen-
JO
OL/VER, Martin. História Ilustrada da FilosorUI. Tradução de Adriana Toledo Piza. São Paulo
(SP): Mano/e, 1998, p. 92.
31
TROPER, Michel. Literatura e Poesia. In França Revolucionária. Org. Michel Vovelle. Trad.
Denise Bottman. São Paulo (SP): Brasiliense: 1989, p. 209.
R. Dout. Jurisp., Brasília, (62): ll·75,jan.·abr. 2000
41
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
to humano numeroso, cujos membros são ligados por laços históricos, culturais, econômicos e lingüísticos. Todavia, na época da Revolução Francesa, o termo "povo"
compreendia apenas a ralé, ou seja, os lavradores e os operários.
Nas assembléias revolucionárias de 1789, a equivocidade do termo tornou-se
pauta de discussão entre Sieyés e Mirabeau quando aquele, na sessão de 15 de junho,
propôs que o Terceiro Estado se chamasse "assembléia dos representantes da nação
francesa", enquanto Mirabeau preferia a expressão "assembléia dos representantes do
2
povo francês • Nesse ponto, prevaleceu a idéia de Mirabeau, como se vê logo no
exórdio da Declaração: Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional ... .
Entrementes, na ocasião, a ambigüidade do termo ''povo" ficou patenteada
quando argüiu-se sobre o sentido que ele deveria assumir, se o da antigüidade clássica, ou seja, como estamento geral da nação, ou o vigente, como plebe. Por isso, não
obstante a referida dicção preambular da Declaração, quando trata da soberania (art.
3. 0 ), preferiu o emprego do termo "nação": O princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação; nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emane expressamente dela.
O mesmo aconteceu na redação da Constituição de 3-14 de setembro de 1791,
que prescreveu: A soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritfvel. Ela pertence à Nação; nenhuma secção do povo, nenhum indivíduo pode atribuir-se o exercício dela (art. 1. 0 ),
Mas o termo "nação" também é ambiguo e, por certo, demasiadamente abstrato. Sob tal signo poderiam se acomodar os mais diversos regimes despóticos e
antidemocrâticos. Por isso, os jacobinos não se conformaram com sua adoção e, tão
logo assumiram o poder, determinaram a sua proscrição legislativa na nova declaração de direitos e na Constituição do ano I (que não foi posta em vigor por diversos
33
fatores de política interna e extema ), a qual estabeleceu que O povo soberano é a
universalidade dos cidadãos franceses (art. 7 .0 ); Ele nomeia diretamente seus deputados (art. 8°); delibera sobre as leis (art. 10).
Essa definição conceitual universalizado dada ao termo "povo" tinha a clara
fmalidade de excluir a nobreza e o clero de sua composição: o individuo que desse
estamento social fizesse parte, somente poderia exercer seus direitos políticos se incorporasse a essa universalidade, ou seja, através da criação da igualdade social, ipso
fato, excluiarn-se os estratos sociais privilegiados, eliminando-os.
Fábio Konder Comparato no prefácio de Quem é o Povo, de Friedrich Müller. Trad. Peter
Naumann. São Paulo (SP): Max Limonad: 1998, p. 18.
:u GILJSSEN,JoHN.lntroduçiio Histórico ao Direito.2a ed. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste
Gulbenkian: 1995. p. 433.
32
42
R. Dout.Jurisp., Brastlia, (62): ll-75,jan.-abr. 2000
Doutrina
Assim, a partir da Revolução Francesa, os conceitos de "nação" e de "povo" se
confundem, como também deveriam se fundir as diferenças sociais, ambos representando a totalidade dos cidadãos.
4. A PROPAGANDA POLÍTICA
De 1789 a 1792 a liberdade de expressão na França foi absoluta, o que permitiu que a eloqüência e a retórica se tornassem no mais importante instrumento político,
pois, não se constituindo os revolucionários em um grupo coeso, nem havendo bloco
ou facção que se impusesse pela força, o proselitismo seria a única via para a tomada
do poder.
Na fusão das palavras de Enterria e F. Furei, o poder está nas mãos de quem
preteruiefalar em nome do povo; o que quer dizer que o poder está na palavra, posto
que a palavra, pública por natureza, é o instrumento que revela o que queria pennanecer oculto [. .. ] e consiste em uma luta constante de palavras, únicas qualificadas
para apoderá-lo, mas rivais na conquista desse lugar evanescente e primordial que é
a vontade do povo. A Revolução substitui a luta de interesses pelo poder, uma compe34
tição de discursos pela apropriação da legitimidade.
Nessa fase revolucionária, a divulgação e a sustentação das idéias era a arma
mais importante à disposição de monarquistas e antimonarquistas, girondistas ou
jacobinistas. Todo discurso novo subverte hábitos no manejo da linguagem. Com efeito,
houve uma revolução lingüística porque a escrita mudou de mãos.
O contexto da comunicação tem seu peso nos discursos das assembléias, onde
a eloqüência foi intensa e magrúfica nas discussões entre Guadet e Robespierre, improvisações de Danton sobre a guerra e a justiça revolucionárias e princiPalmente a
habilidade discursiva de Vergniaud e Saint-Just no processo de Luis XVC.
4.1 - os livros e os almanaques
Os livros, na época, eram artigos de luxo, mas a necessidade de divulgação das
idéias fizeram proliferar as formas alternativas. Os prelos se multiplicavam por toda
parte e a necessidade fazia com que se empregassem de tipos gráficos já gastos e de
papéis de baixa qualidade. Assim, no reino da eloqüência, ganharam relevância as
34
35
ENTERRIA, Eduardo Garcia de. La Lengua de los Derechos. La Formación del Derecho Público
Europeo tras la Revolución Francesa. Madrid, Espanha: Alianza Editorial: 1995, p. 39.
GASPARD, Claire. Literatura e Poesia. In França Revolucionária. Org. Michel Vovelle. Trad.
Denise Bottman. São Paulo (SP): Brasiliense: 1989, p. 160.
R. Dout. Jurisp., Brasflia, (62): 11-75, jan.-abr. 2000
43
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
diversas formas de propaganda política, como os almanaques, os jornais, os panfletos,
os cartazes e as caricaturas.
Principalmente a partir de outubro de 1789 a atividade se intensificou: cada
condado tinha seu almanaque. Os almanaques revolucionãrios difundiam as Luzes da
Enciclopédia, as novidades técnicas e cientificas e a filosofia de Rousseau para os
sans-culottes, os quais, em razão da sua precária condição fmanceira, filiavam-se aos
grêmios de leitura e recorriam à leitura em voz alta nas tabernas, nos locais de trabalho
36
ou nas reuniões patrióticas •
4.2 - os jornais
Quanto aos jornais, não se sabe ao certo sobre a imprensa da província, mas
entre maio e dezembro de 1789 registram-se 184 novos jornais parisienses, mais do
que a totalidade dos que surgiram na década de 1770 em toda a imprensa européia de
lingua francesa. No inicio daquele ano, somente o Journal de Paris tinha circulação
diária, no final do ano, 23 diãrios surgem em Paris, ao lado de 8 trihebdomadãrios e 7
hebdomadãrios novos.
Essa explosão vem acompanhada por uma liberação das formas e conteúdos
dos jornais- tudo pode se tornar matéria A criação dos titulas reflete esse florescimento:
ao lado dos titulas antigos, aparecem os que especulam sobre o próprio acontecimento, como o Les Révolutions de Paris, ou os que revelam sua preferência política: L' Ami
du ~;uple, de Marat; L' Ami du roi; ou mesmo a sãtira irônica: Les Actes des Apôtres
etc.
4.3 - os panfletos
A panfletagem era uma prãtica comum no século XVIII, bastando lembrar que
Voltaire ficou preso por 11 meses na Bastilha, sob a acusação de ser responsável por
um panfleto satírico. No Antigo Regime, normalmente os panfletos eram anônimos e
representavam criticas àquele sistema; com o advento da liberdade de imprensa, fa.
ram empregados como o meio mais rãpido de difusão de noticias e idéias, agora não
mais anonimamente.
Um dos mais importantes panfletos da época foi o de Tomas Paine, intitulado
Os Direitos do Homem, que viria a ser a primeira defesa ampla e documentada da
36
37
44
GASPARD, Claire. Literatura e Poesia. In França Rel'olucionária. Org. Michel Vovelle. Trad.
Denise Bottman. São Paulo (SP ): Brasiliense: 1989, p. 164.
RETAT, Pierre. A Imprensa. In Franfa Rtl'olucionária. Org. Michel Vovelle. Trad. Denise
Bottman. São Paulo (SP ): Brasiliense: 1989, p. 187.
R. Dout. Jurisp., Brasflia, (62): 11-75, jan.-abr. 2000
Doutrina
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em duas partes, em 1791
e 1792, principalmente para rebater as criticas de Edmund Burke em sua obra Reflexões sobre a Revolução em França(1790).
Uma das modalidades de panfletos era o "manifesto", documento solene, normalmente subscrito por individuas que podiam protestar ou expor publicamente suas
idéias sem temor de retaliações ou perseguições, no qual declaravam suas intenções e
buscavam o apoio popular a elas. Foram muitos os manifestos ao tempo da Revolução, como, por exemplo: O Manifesto dos Iguais, que se deve a Sylvain Maréchal,
onde expõe a doutrina social de Babeuf consistente em uma elaboração teórica de uma
revolu~ão de caráter comunista, na qual a terra não poderia ser apropriável individualmente .
Em todas as publicações, a caricatura foi um importante instrumento de comunicação social; ela propõe um processo de marginalização- elabora retratos e a seguir
os apresenta como ridiculos e desajeitados, construindo o negativo da sociedade e
transformando-se em um lugar de liberação dos recalques, os quais permitiam ao homem revolucionário, pelo desdém a seus opositores, sentir-se diferente e superior."
S. A POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS
Jellinek defendeu a tese de que a primeira vez que se pretendeu "positivar" o
Direito Natural foi com os religiosos protestantes puritanos ingleses e holandeses nas
colônias norte-americanas, na Royal Charter, de Rhode Island, em 1663, sob a influ40
ência de Roger Williams, a partir de 1640 • Thdavia, foi Locke o primeiro teórico a
afirmar a necessidade de declarar o Direito Natural e subordinar o exercicio dos pode41
res do indivíduo, da sociedade e do governo a seus princípios •
Sob essa inspiração, empenharam-se os revolucionários franceses em repelir
as idéias de um direito divino e, sob a influência da Escola do Direito Natural, pre-
38
39
40
41
THOMAS, Jean-Paul. Os Socialismo sob a ReYolução Francesa. In França ReYolucionária.
Org. Michel Voyefle. Trad. Denise Bottman. São Paulo (SP ): Brasiliense: 1989, p. 446.
BAECQUE, Antoine de. Cartaz, Folheto e Caricatura. In FranfaRevolucionária. Org. Michel
Vovelle. Trad. Denise Bottman. São Paulo (SP): Brasiliense: 1989, p.l64
ApudENTERRIA, Eduardo García de. La Lengua de los Derechos. La Formaci6n del Derecho
Público Europeo tras la Revolución Francesa. Madrid, Espanha: Alianza Editorial: 1995, p.
54.
GAUTIER, Florence. As Declarações do Direito Naturall789-1793. In França ReYolucionária.
Org. Michel Vovelle. Trad. Denise Bottman. São Paulo (SP ): Brasiliense: 1989, p. 379.
R. Dout. Jurisp., Brasília, (62): ll-75, jan.-abr. 2000
45
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
tenderam desenvolver um sistema
jurídico positivo que colocaria o homem no centro
42
das considerações filosóficas •
Essa legislação nova em nada se equipara às leis antigas, as quais eram instrumentos de opressão e reforçadoras dos privilégios da nobreza. Aspirava-se que as
novas leis fossem leis de liberdade, aptas à prot)'Ção de uma nova ordem natural que
tem nessa liberdade seu constitutivo essencial. E manifesto que, frente à obscuridade
e to1peza das antigas leis opressoras, uma nova linguados direitos e da liberdade se
apresentará como uma das tarefas revolucionárias mais caracterizadas. Assim, prescreve o preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:
Os representantes do povo franc2s, reunidos em Assembléia Nacional,
tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos
direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da
co"upção do Governos, resolveram declarar solenemente os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados do homem, afim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre
permanentemente seus direitos e deveres [ ... ]
A positivação dos direitos naturais naturalmente implicou na necessidade da
determinação dos seus titulares, do seu objeto e alcance, bem como dos instrumentos
para sua proteção, o que representou um redescobrimento do direito objetivo como
fundamento do direito subjetivo; nada parecido com as teses de Hobbes (1588-1679),
considerado o pai do positivismo legalista moderno e da doutrina anaHtica do Direito,
para quem a lei é sempre um comando, uma ordem do soberano aos súditos, o qual
teria poderes para, a seu talante e ã sua conveniência, fazer e revogar leis.
Com a Revolução Francesa a lei passaria a ser vista como instrumento de liberdade e cri4~dora de felicidade enquanto garante supremo dos direitos do homem proclamados . Talvez isso pudesse representar um retomo à legislação da Idade Média,
quando então legislar significava verificar a existência de uma lei, autenticar o costume, ou seja, Direito e lei não44se confundiam e, sempre que essa não correspondia
àquele, seria considerada nula ; entrementes, a Revolução seria original quando nos
legou a idéia de um sistema juridico hermético baseado na legislação positiva.
O legicentrismo revolucionário se cristalizará na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, na Constituição de 1791 e, principalmente, na
42
DAVJD, RENt. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Trad. Herm(nio A. Carvalho.
3" ed. São Paulo (SP); Martins Fontes: 1996, p. 36.
43
ENTERRIA, Eduardo Garc{a de. LaLengua de los Derechos. La Formaci6n delDerecho Público
EuropeD. tras la Re11olución Francesa. Madrid, Espanha: Alianza Editorial: 1995, p. 79.
_,., FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislo.tivo. 3aed. Sllo Paulo (SP ): Saraiva:
1995, p. 33.
46
R. Dout. Jurisp., Brasflia, (62): 11-75, jan.--abr. 2000
Doutrina
codificação napoleônica, como uma técnica política e jurídica da maior relevância,
idealizada como instrumento de defesa do direito natural dos homens.
Como diz Renê David, a codificação constitui a realização natural da concepção mantida e de toda a obra compreendida desde há séculos nas universidades. Há
seis séculos. as universidades ensinavam um direito que elas apresentavam como um
modelo de justiça[... ] e por que não fazer do modelo de direito das universidades,
completado e clarificado pela escola do direito natural, o direito "positivo"', que será
aplicado pela prática das diferentes nações? [ ... ]A codificação é a técnica que vai
permitir a realização da ambição da escola do direito natural, expondo de modo
met6dico, longe do caos das compilações de Justiniano, o direito que convém à soci45
edade moderna.
Todavia, houve superexaltação dos atributos das leis: em 1790, a Assembléia
Nacional Constituinte Francesa decidiu que deveria ser redigido um único código
civil para todo o reino, simples e claro, de tal modo que todos poderiam compreendêlo, intentando um dia suprimir os tribunais e os advogados, pois, para os revolucioná46
rios, quando cada pessoa conhecesse o seu direito, ninguém o infringiria.
Dessa forma, teria Robespierre afirmado: Esta palavra da jurisprud~ncia dos
Tribunais, na acepçiio que tinha no antigo regime, nada significa de novo; deve ser
apagado de nosso idioma. Em um Estado que conta com uma Constituição, uma legislação, a jurispru~ncia dos Tribunais não é outra coisa do que a lei; assim há
47
sempre identidade de jurispru~ncía.
Não seria a primeira vez que fracassava o intento de tolher toda a autonomia
dos magistrados e jurisconsultos em face do Direito escrito; anteriormente, por volta
de 530 c:LC., Justiniano, o grande codificador e imperador romano bizantino, julgando
completo o Corpus Juris, não admitia os Comentários, nem outros quaisquer trabalhos elucidativos; conseguiu eliminar os editos dos pretores.;, entretanto, sequer durante o seu reinado logrou impedir a interpretação doutrinária .
Não se pode, entretanto, atribuir ao intento revolucionário um caráter de pura
frustração, muitas foram as suas conquistas democráticas, como, por exemplo, a possibilidade de revisão das sentenças por um tribunal de cassação criado em 27 de novembro I de dezembro de 1790, acrescido ao poder legislativo; ademais, quando
DAVID. RENt.. Os Grandes SlstelTUls do Direito Conlempor8neo. Trad. Herminio A. Carvalho. 3a
ed. São Paulo (SP): Martins Fontes: 1996, p. 51.
46
GILISSEN, JoHN.Introdução Histórica ao Direito. 2" ed. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste
Gulbenkian: 1995. p. 450.
41 KARAM. MUNIR. A Função Judicial. Maringá (PR): Livraria Bom Livro: 1985. p. 3.
48
CARLOS MAXIMILIANO PEREIRA DOS SANTOs, Hermeniutica e Aplicação do Direito. 14a ed. Rio
de Janeiro (RJ): Forense: 1994. p. 56.
45
R. Dout. Jurisp., Brasilia, (62): li M75, jan.Mabr. 2000
47
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
havia um problema significativo de interpretação da lei, de forma que seu texto não o
resolveria de forma inequívoca, o juiz deveria abster-se de se pronunciar e remeter a
questão à Assembléia como autora da lei, para que a resolvesse, sistema esse que se
49
denominou référé legislativo •
Tais sistemas de controle implicaram na obrigatoriedade de fundamentação da
sentença como meio de controle do arbítrio judicial; a reforma surge da justiça criminal - um edito de 8 de maio de 1788 impõe que a sentença " qualifique expressamente
os crimes e delitos". Por sua vez, aLei de Organização Judiciária, de 16-24 de agosto
de 1790, imporá às sentenças fazer constar o resultado dos direitos reconhecidos ou
comprovados pela instrução e os motivos que hajam determinado ao juiz.50
Efetivamente, a técnica da legalidade será uma herança definitiva da Revolução Francesa, como também o foram a separação dos poderes e o constitucionalismo.
Por fim, valho-me da transcrição das palavras de Enterrías' pertinentes ao tema,
onde deixa transparecer, relativamente ao legicentrismo, sua melancolia temperada
com a esperança de que as leis da atualidade retomem as funções para as quais foram
concebidas:
Hoje, dois séculos depois, nossa fé na Lei está, certamente, bastante
quebrantada. De Rousseau, buscando seu sonho libertador, temos vindo
a recair, inesperadamente, em Hobbes, na expressiva fórmula de
Dahrendorf, em um absolutismo legislativo regulador e opressor, à sua
vez gerador de incertezas e de anomia moral, e não propriamente no
esperado reino da liberdade. Porém, isso é uma conseqüência de que o
homem não encontrarA nunca soluções definitivas a seus problemas;
cada solução posta em marcha aparta sobre novo lote de problemas
próprios ... "Nunca se deixa a história acabada para sempre", disse
Dahrendorf. Hoje ninguém crê, como o fizeram Rousseau e logo Marx
e outros vários profetas, na possibilidade absoluta de vencer a alienação
humana com fórmulas sociais e polfticas determinadas. Porém, a Revolução sim, acreditou resolutamente e embarcou com isso a humanidade
em um caminho cujo curso continuamos todavia. Não é duvidoso, sem
embargo, que o nível histórico da consciência humana cresceu com isso
49
Jo
Jl
48
Tal sistema teve vigência arl que, por lei do ano Vlll e depois pelo próprio Código Civil de
1804, ort. 4°, ao juiz ficou vedado debcar de decidir por omissdo, obscuridade ou in suficiincia
do lei. O sistema da référé, porl m, somente deixou de existir formalmente em 1837_
ENTERIÚA, Eduardo Garcfo de. I.A Lengua th los Derechos.I.A Formaci6n dei Derecho Público
Europeo Iras la Reroluclón Francesa. Madrid, Espanha: Aiianza Edito rial: 1995 , p. 172-174.
Idem, ibidem, p. 124.
R. Dout. Jurisp. , Brasília, (62): 11 -75,jan.-abr. 2000
Doutrina
notavelmente. Em qualquer caso, não parece que tenhamos já outra alternativa que a de seguir regendo-nos por leis. Todo o problema é agora
melhorar sua qualidade [... J, renunciar a crer que os preceitos escritos
podem encerrarem suas malhas a totalidade da casuística da vida social, a qual, ademais, está afetada de um processo de mudança e evolução
constantes, e, correlativamente, na técnica aplicativa da lei e aceitar que
podem entrar em jogo outras fontes do Direito, especialmente os princípios gerais do Direito.51
6. CONCLUSÕES
Sem dúvida, paralelamente à Revolução Francesa existiu uma verdadeira revolução lingüística, e isso se explica naturalmente, primeiro porque ela representou
uma brusca mudança no Estado francês, alterando-se as estruturas básicas de um sistema milenar, mas principalmente porque, ao menos por um período, se teve liberdade
para falar, convencer e fazer prosélitos.
Os números da época são expressivos: em 1789 apenas 25% da população
francesa fala sua lingua oficial, em 1800 serão 75%. De 1789 a 1800 surgiram mais de
1.350 brochuras, o dobro do que fora publicado nos 150 anos anteriores". Somente
em 1790 se imprimem ?léxicos revolucionários, 70 até 1815. Entre maio e dezembro
de 1789 registram-se !84 novos jornais parisienses". Em 1798 a Academia de Letras
Francesa reimprime seu dicionário com um "Suplemento com as palavras novas em
55
uso desde a Revolução", com 418 novos verbetes .
A Revolução foi, desde suas origens, uma guerra de palavras, iniciada
difusamente pela filosofia iluminista, para, depois, ser travada na política pelos revolucionários das diversas facções, as quais, em princípio, disputavam o poder apenas
com base na argumentação e na retórica: quem ganhasse a batalha das palavras poderia ganhar o poder, pois seu discurso passaria a ser o discurso oficial.
Sobre esse aspecto, diz Enterría: A Revoluçll.o Francesa contribuiu à história
da cultura ocidental no terreno da linguagem jurídica com algo muito mais subs-
"
n
M
55
Sobre a inevitabÜidade das lacunas da lei, v. Miguel Reate. Nova Fase do Direito Moderno. 2"
ed. São Paulo (SP ): Saraiva: 1998, p. 124 e ss., onde o jusfil6sofo sugere alteraçães sisremdricas
nos diversos planos: legislativo, jurisdicional, hermenêutica etc.
BALIBAR, Renée. Você Fala Francês. In Franfa Revoluciondria. Org. Michel Vovelle. Trad.
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tancial do que um repertório léxico determinado, {...]legou um discurso inteiramente
novo para explicar as relações entre os homens e sua organização social e política
como matéria do Direito, discurso que expressa um sistema de conceitos original a
cujo serviço apareceu e se desenvolveu ao largo de dois séculos todo um "universo
léxicg" complexo e robusto absolutamente novo que cortou a talho a tradição histórica.
Os revolucionários acreditaram não somente em uma troca de regime político,
mas em uma verdadeira e profunda mudança no homem e na sociedade francesa;
assim, ao tentar introduzir novas idéias e novos hábitos em um povo, valeram-se de
novas palavras, refonnularam conceitos, positivaram nas leis os direitos naturais e
acabaram com o estilo gótico das leis velhas, promovendo, dessarte uma revolução na
linguagem.
Nada obstante, como disse Walter Jellinek, a palavra é um mau veículo do
pensamento; por isso, embora de apar2ncia translúcida, a forma não revela todo o
conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas ...; sob um só invólucro verbal se aconchegam e escondem várias idéias, valores mais
amplos e profundos
1
do que os resultantes da simples apreciação literal do texto.5
Por isso, a automatização do Direito pretendida pelos revolucionários se revelará tarefa impossivel. S6 o homem será capaz de dar sentido às leis, afmal não é o
sentido da nonna que se impõe ao jurista, mas é o jurista ~ue estabelece o sentido da
norma, de acordo com sua formação cultural e ideológica .
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