J. Bras. Nefrol. 1998; 20(2): 133-135 133 Ponto de Vista Histórico: Bioética Coordenadora: Regina C.R.M. Abdulkader Entrevistadora: Marli Cavalheiro Gregório Prolongar a vida ou prolongar a morte? Como chefe da Unidade de Terapia Intensiva da Disciplina de Nefrologia do Hospital das Clínicas da FMUSP e da UTI do Hospital Sírio Libanês, o Dr. Paulo Cesar Ayroza Galvão, é de opinião que a postura ética deve estar presente não só nas atividades profissionais, mas em todos os momentos. Na Medicina é fundamental que o profissional tenha um pensamento e uma postura ética em todas as atitudes e, principalmente, enquanto médico, seja na terapia intensiva, na diálise ou no consultório. “Acho que a conduta ética de uma pessoa é resultado de sua formação familiar, religiosa e cultural. Por isso o comportamento de diferentes sociedades é diverso”. Atuando como médico-intensivista e nefrologista, o Dr. Ayroza Galvão assinala que as UTIS talvez sejam as unidades em que o médico tenha mais problemas éticos. “Quando um paciente vai para uma UTI as condutas éticas de todos os profissionais ali envolvidos estão mais presentes”, diz ele. Também é nas UTIS que o médico, diariamente, enfrenta situações onde ele deve tomar decisões. “Todo dia tem um paciente que suscita alguma dúvida do ponto de vista ético. São os pacientes com câncer, os doentes terminais, como os portadores do HIV e com insuficiência renal crônica, e pacientes idosos com doenças neurológicas, com seqüelas graves, que criam situações em que o médico, antes de qualquer decisão, tem de considerar a sua posição ética”. Ele enfatiza que em todos os casos o médico deve sempre tomar as grandes decisões em comum acordo com a família. Para isso é necessário que esta seja informada do quadro real de seu parente. “Uma situação muito ruim em UTI é aquela em que o médico pensa em deixar de acrescentar novos medicamentos ao tratamento e, muitas vezes, deixa que a família tome essa decisão. Acho isso muito complicado porque o médico não deve deixar para a família essa responsabilidade. A família pode ajudar, mas a palavra final deve ser do especialista. Quero deixar bem claro que estamos falando de pacientes nos quais o médico tem alguma dúvida a respeito do prognóstico. Mas na maior parte dos casos não existem dúvidas”. O médico não deve decidir sozinho Quando se fala do paciente ter o direito de saber da situação real de sua saúde, o Dr. Ayrosa Galvão acentua que esse aspecto legal deixa o médico muito vulnerável, pois tanto o Código Civil como o Código de Ética Médico são muito vagos. “O Código de Ética decifra algumas coisas mas é vago, porque comenta sobre o bem-estar físico e psíquico do paciente, abusando da palavra dignidade (morrer com dignidade). Por outro lado, assinala que o médico deve usar todo o arsenal e esforço terapêuticos para salvar uma vida. Mas, como posso usar tudo o que for possível se existem situações em que utilizar tudo isso vai resultar na perda de dignidade e num sofrimento maior do paciente?”. Por isso, o Dr. Ayrosa Galvão considera que os dois códigos não esclareçam totalmente o assunto e não deixam os profissionais seguros. Não por falha dos códigos, mas pela complexidade da situação. Na opinião dele, o médico deve agir conforme sua consciência e responder por isso. Ele cita o caso de um doente renal em que o médico já acompanhe e conheça seu histórico, e que tenha seu caso já discutido exaustivamente, se esse paciente decidir — não sob forte emoção ou tensão — que não quer fazer diálise, porque sabe que uma hora ou outra seu rim vai parar de funcionar, o seu direito deve ser preservado. “Acho que o médico deve tomar uma decisão, seja qual for, de acordo com o seu conhecimento técnico e segundo todos os aspectos humanísticos que envolvam o relacionamento médico-paciente. Dependendo da situação, acho plenamente aceitável que se o paciente não quiser dialisar seja respeitada a sua escolha. Acho que essa é uma postura ética do médico. O fato de o profissional propor um tratamento dialítico e o paciente não aceitá-lo, não implica na ruptura da rela- 134 J. Bras. Nefrol. 1998; 20(2): 133-135 ção médico paciente, pois o paciente pode receber um tratamento conservador”. Segundo o Dr. Ayroza Galvão, os americanos lidam melhor com esse tipo de situação. Existem trabalhos científicos mostrando que pacientes que optaram em parar a diálise continuam sendo acompanhados por seu médicos, que lhes dão conforto. Ele entende que a finalidade do médico não é a cura da doença, mas o bem-estar físico, psíquico e social do paciente. Se o médico conseguir curar, melhor ainda. Perguntado sobre o relacionamento dele médico intensivista com o nefrologista, do ponto de vista ético, o Dr. Ayroza Galvão observa que a “ética não respeita especialidade. A Ética na saúde é muito importante, mas acho que carecemos discutir Ética numa série de outras situações”. Segundo ele, a postura ética do médico existe enquanto profissional e cidadão. “Não existe um comportamento ético enquanto intensivista ou nefrologista. Existe uma conduta ética frente ao paciente. Não há conflitos, pois há uma junção do cidadão com o médico-intensivista e o nefrologista. Por isso, a postura ética de cada pessoa varia um pouco, porque estão envolvidos nessa ética não só a tecnologia e o conhecimento médico, mas também o caráter e a formação humanística e religiosa”. Respeito com o paciente ‘Vejo que a Ética está intimamente embricada com a profissão, porque entendo por Ética basicamente o respeito com o paciente. Tudo tem que ser feito no sentido de preservar a saúde. Num hospital-escola onde se tem que ensinar e fazer pesquisa a Ética se reveste de uma importância maior, pois temos que ensinar ao aluno desde o princípio que ele tem de respeitar o paciente. Quanto ao pesquisador, ele não pode infringir certos princípios éticos”. A afirmação é do professor-titular da Disciplina de Anestesiologia, Prof. Dr. José Otávio Costa Auler Jr., também diretor da Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Segundo o professor, um grande problema ético são algumas escolas médicas, que “não têm a menor condição de funcionar, pois não têm um corpo docente estruturado, não fazem pesquisa e algumas sequer têm um hospital-escola. Como o aluno vai aprender?”, questiona ele, pois considera que para ensinar e formar um profissional é preciso que a instituição tenha condições. Ele cita o caso recente de um novo curso médico na cidade de Santos, em que todos os pareceres foram desfavoráveis, mas mesmo assim o curso foi aberto. Para o Prof. Dr. Auler Jr., vários fatores influenciam na postura ética do médico, que de algumas décadas para cá “tornou-se um bem da sociedade. O médico deixou de ter uma função mística, como tinha no passado, para desempenhar uma função eminentemente técnica. É como se fosse um objeto de consumo. Tornou-se muito comum, levando-o a ser um assalariado”. O professor considera que essa mudança, além de outros fatores, como os baixos salários, acabam influindo na conduta ética do profissional. Por precisar ter vários empregos, o médico atualmente “não tem tempo para ver o doente, ele se baseia mais em exames. Sem falar que o diagnóstico ficou mais difícil, porque, dependendo da escola que esse profissional cursou, ele nunca teve sequer contato com um paciente”. Ele assinala que essa situação ocorre não porque o médico não quis aprender, mas porque não lhe foi ensinado. O professor acrescenta que infelizmente quem vai punir o médico é a sociedade, pois à medida que a população é mal atendida, ela se posiciona contra o profissional, já que é mais difícil ser contra uma estrutura hospitalar. “Muitas vezes o Código de Ética Médica exige muito do médico, mas não exige da estrutura hospitalar e ambulatorial”. O Prof. Auler Jr. acrescenta que é comum nos dias de hoje um médico atender um grande número de pacientes em condições inadequadas. E pergunta: “É ético o médico prestar atendimento sem ter condições de trabalho? Será que alguém o está forçando a atender ou ele deveria fechar essa unidade? Eticamente seria correto não dar atendimento, mas por outro lado ele não pode deixar uma pessoa morrer. Então atende do jeito que é possível”, ressalta ele. Até onde é ético prolongar a vida? Com todos os equipamentos de alta tecnologia disponíveis, atualmente é possível prolongar a vida por mais tempo do que o próprio organismo gostaria. É ético utilizar os procedimento de reanimação para prolongamento da vida ou da morte? Para esta pergunta o Prof. Auler Jr. é de opinião que se por um lado não se pode interromper a vida, mesmo de um paciente terminal, por outro, até quando pode-se prolongar a vida?, questiona ele. “Existe entre esses dois pontos uma área J. Bras. Nefrol. 1998; 20(2): 133-135 nebulosa, em que o médico transita. “É evidente que quando se depara com um paciente em que o sistema circulatório está sustentado por drogas, o pulmão por aparelhos, e os rins estão sustentados por processos dialíticos, estatisticamente a chance desse paciente, que está com falência de múltiplos órgãos, é de 100% que vai morrer. É só uma questão de tempo, mas o médico fica amarrado, porque ele não pode interromper o tratamento”. Ele acrescenta que essa questão deveria ser regulamentada, pois não se pode deixar para o médico decidir sozinho, porque está sendo transferida uma responsabilidade que não deve ser só dele. Uma medida dessas deve ser apoiada em dados estatísticos e científicos, principalmente devido ao suporte de aparelhos hoje existentes, que possibilitam o prolongamento da vida por muito tempo. “Não existe uma legislação clara que defina em quais situações o médico estaria autorizado a descontinuar o tratamento”, argumenta ele. Em alguns países da Europa e nos Estados Unidos já existe a orientação para não reanimar o paciente em casos de parada car- 135 díaca ou outro evento agudo. “Existe uma legislação ética, dentro dos próprios hospitais, que faculta ao médico não estender o tratamento. Acho que já estamos no momento de rever isso. A meu ver essa postura poderia partir das universidades e dos hospitais-escolas que encaminhariam uma proposta ao Legislativo via Conselhos Regionais e Federal de Medicina para que houvesse uma regulamentação nesse sentido”. O professor assinala que há informações não oficiais que muitos países não estão adicionando ao tratamento novos processos. A doença segue o seu curso e com isso não está se fazendo a eutanásia, mas também não se acrescenta mais nada ao tratamento. Até onde é ético prolongar a vida. “Acho complicado, não sei se é ético, mas vejo isso mais como uma questão de respeito à pessoa que está nessa condição, pois o médico é formado e direcionado para preservar a vida. Sempre. Então quando se fala em não prolongar a vida, o médico leva um choque, pois sempre lhe foi ensinado o contrário”. O professor entende que esse é mais um problema cultural do que ético e, principalmente, de regulamentação.