- GUI A D E L E ITU R A PA R A O P R O F E S S O R Sonho de uma noite de verão Dionisio Jacob Baseado na peça homônima de William Shakespeare Capa Gonzalo Cárcamo Nível leitor A partir de 12 anos Anos escolares 7º e 8º Série Vermelha 176 páginas 2ª edição TEMAS Comédia / Mitologia grega / Teatro / Magia Dionisio Jacob nasceu em São Paulo, em 1951. Formado em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), é escritor e desenhista, tendo ilustrado algumas de suas histórias. Além de livros para crianças e adultos, também escreveu roteiros televisivos para programas como Castelo Rá-Tim-Bum e Cocoricó. Seu romance A espada e o novelo (Edições SM, 2009) recebeu o prêmio Orígenes Lessa, outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Para a coleção Barco a Vapor, também adaptou o libreto da famosa ópera A flauta mágica, de Wolfgang Amadeus Mozart. o autor desta versão adaptada William Shakespeare (Stratford-upon-Avon, 1564-1616) foi poeta, dramaturgo, ator e empresário teatral inglês. Pela qualidade e extensão de sua obra, é considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. Dentre suas peças mais conhecidas estão Hamlet, Romeu e Julieta, Rei Lear, Otelo e Macbeth. Seus 154 sonetos permanecem ainda hoje como exemplos de perfeição expressiva e formal na poesia inglesa. Há poucos documentos sobre sua vida, mas consta que, aos dezoito anos, ele desposou Anne Hathaway, com quem teve três filhos. Entre os anos de 1585 e 1591, não se tem notícia de suas atividades. Em 1592, várias de suas peças foram exibidas em Londres. Em 1599, foi inaugurado o Globe Theatre, de que Shakespeare foi próspero sócio. Sua última peça foi A tempestade, concluída em 1613, mesmo ano em que ele voltou a residir em sua cidade natal, onde permaneceu até a morte. A primeira coletânea de sua obra teatral foi feita em 1623 e trazia 36 peças, dezoito das quais inéditas. o autor da peça original Esta adaptação romanceada de Sonho de uma noite de verão, comédia de William Shakespeare, que se passa em Atenas, Grécia, durante o reinado de Teseu, é uma excelente porta de entrada para os jovens tomarem contato com a obra deste dramaturgo, tido como o mais influente de todos os tempos. Um dos principais eixos da trama recontada aqui é o casamento do soberano grego com Hipólita, rainha das amazonas. Em torno desse acontecimento desenrolam-se intrigas de amor entre dois casais de jovens, que se intercambiam de forma mágica e divertida. Os jovens são Hérmia, Lisandro, Helena e Demétrio. A jovem Hérmia ama Lisandro, embora tenha sido prometida por seu pai a Demétrio, que é o objeto de amor da melhor amiga, Helena. o livro Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob Paralelamente aos quiproquós palacianos, nos bosques e jardins ao redor de Atenas, há também as brigas de outro par amoroso, formado por Oberônio, rei dos elfos, e Titânia, rainha das ninfas. Ex-amantes que vivem às turras, ambos têm poderes sobrenaturais e representam um mundo anímico, relacionado aos fenômenos naturais. Além desses eixos entre os quais se alterna a narração, há ainda o núcleo dos artesãos, os quais almejam participar de um concurso para escolha do grupo de atores cuja peça será encenada no casamento de Teseu. Personagens secundários são Filóstrato, mestre de cerimônias responsável pela organização da festa real, e Travesso, demônio controlado por Oberônio, que chega a Atenas atraído pelo movimento geral de convidados para o casamento. INTERPRETANDO O TEXTO t e at r o , m e tat e at r o e r o m a n c e O texto original de Shakespeare é uma peça teatral, isto é, um texto que, embora possa ser fruído apenas como literatura, de modo autônomo, foi pensado para ser encenado em um palco, com atores que encarnem os personagens, atuando em cenas por meio das quais a ação se desenrolará diante da plateia. Assim, antes de trabalhar com os alunos a adaptação romanceada dessa peça, talvez seja útil explorar rapidamente as convenções do gênero dramático. Enquanto na peça o leitor ou espectador é levado a acompanhar a ação que ocorre à sua frente, no presente da leitura ou da encenação, na versão romanceada, ainda que restem muitos diálogos e momentos de interação direta entre os personagens, é decisiva a mediação do narrador, que impõe uma distância entre o leitor e os fatos por ele narrados, ocorridos em um passado próximo ou distante. O professor pode trabalhar essa diferença entre o mostrar (teatro) e o narrar (romance) por meio de um papo com a turma. Perguntas como “Quem já foi ao teatro?”, “Que tal a experiência?”, “Qual a diferença entre assistir a uma peça (ou a um filme) e ler um livro?” constituem um bom começo de conversa. Ainda no que se refere às convenções dramáticas, outro aspecto da peça passível de destaque é a presença, na história, 2 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob Mergulhando na temática m e tat e at r o Metateatro designa um gênero de peça cujo conteúdo contém elementos teatrais, o que não implica necessariamente a organização desses elementos como uma peça dentro da peça (como ocorre em Sonho de uma noite de verão), bastando que haja teatralização da realidade. Isso ocorre em outras peças célebres do próprio Shakespeare, como Hamlet e Macbeth. Na primeira, o príncipe da Dinamarca contrata uma trupe de atores incumbidos de executar a pantomima de um crime com o fito de desmascarar seu tio Cláudio, assassino do pai de Hamlet, que usurpou o trono e desposou a rainha Gertrudes. Já em Macbeth, embora não haja peça dentro da peça, vida e teatro se equiparam em uma fala do protagonista, depois de receber a notícia da morte da esposa (ato V, cena V). A metáfora do mundo como teatro/representação (somos todos atores, desempenhando à risca, sem saber, um roteiro escrito por outrem) retoma o motivo tradicional do “theatrum mundi”: Breve candeia, apaga-te. Que a vida É uma sombra ambulante: um pobre ator Que gesticula em cena uma hora ou duas, Depois não se ouve mais; um conto cheio De bulha e fúria, dito por um louco, Significando nada. (SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução: Manuel Bandeira. São Paulo: Cosac Naify, 2009.) Essa metáfora da vida como teatro reaparece em outras peças do bardo inglês, como O mercador de Veneza (“Entendo o mundo apenas como o mundo, Graciano:/ Um palco onde cada homem representa um papel,/ E o meu é bem triste”. O mercador de Veneza, ato I, cena 1. Tradução: Helena Barbas. Disponível em: <http://www.helenabarbas.net/traducoes/ Mercador_Veneza_WShakesp_HBarbas. pdf>. Acesso em: 1 ago. 2014) e Como gostais (“O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e mulheres, apenas atores. Eles saem de cena e entram em cena, e cada homem a seu tempo representa muitos papéis”. Como gostais, ato II, cena de elementos de metateatro (no caso, uma encenação dentro da encenação), elemento que se conserva na adaptação romanceada. Muitas das discussões que ocorrem nesse momento de forma cômica, principalmente nos diálogos entre Mestre Cunhas e Fundilhos, abordam temas importantes do fazer teatral, como a preocupação de Mestre Cunhas com a memorização das falas por atores analfabetos: “Mestre Cunhas [...] viu chegando para o primeiro ensaio os atores que conseguira reunir: um grupinho muito chulé de artesãos. Eram os mais iletrados entre eles. Alguns não liam nada, outros, apenas algumas palavras necessárias para o seu ofício. De modo que Mestre Cunhas deveria ler o texto para que eles decorassem as falas, porque era o mais habituado à leitura, embora não fosse nem de longe um erudito” (p. 45). Outro lance metateatral aparece nas opiniões de Fundilhos sobre o estilo interpretativo: “Morte, para ser boa, tem de ser gritada e chorada. E também babada, para impressionar mais ainda. Não pode ser de uma vez, assim, tchibum, como uma fruta caindo da árvore” (p. 154). Eis alguns exemplos de como o pensamento sobre o teatro, a linguagem e o estilo ajuda a marcar o caráter dos personagens: o histrionismo de Fundilhos e a prudência de Mestre Cunhas. Ainda a fim de demonstrar, no romance, as marcas de sua origem teatral, o professor pode destacar o fato de quase toda a ação transcorrer no espaço do bosque, embora o palácio e a cidade de Atenas também constituam cenários para a ação. A concentração de cenas em poucos espaços é uma limitação conveniente para textos destinados ao palco que se conserva na adaptação de Dionisio Jacob. Por fim, o professor pode estimular a classe a refletir sobre a finalidade das adaptações. Não seria melhor ler os textos na versão original, atentando para as peculiaridades de linguagem, estilo e gênero dos textos-fonte? Uma coisa não exclui a outra: adaptações não se opõem ao contato com o original. Muitas delas buscam conservar os traços de linguagem, gênero e estilo * Os destaques remetem ao item Mergulhando na temática. 3 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob 7. Tradução: Beatriz Viegas-Farias. Porto Alegre: L&PM, 2009). De qualquer maneira, o metateatro, bastante comum na dramaturgia barroca oitocentista – exemplarmente representado por obras de Shakespeare e do espanhol Calderón de la Barca (1600-1681) –, ressurge com força no século XX, em autores como o italiano Luigi Pirandello (1877-1936), o alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e o irlandês Samuel Beckett (1906-1989). Tal prática deve ser entendida em sentido lato, não se limitando ao tema da vida como cena, pressupondo antes uma reflexão radical sobre o lugar social do artista, sobre a adesão ou a distância em face das convenções de gênero, sobre a consciência da realidade como efeito ilusório, entre outras coisas. Na contemporaneidade, ela se manifesta sobretudo por meio da tendência a deixar expostos os andaimes da construção cênica, oferecendo ao público não apenas a história, mas um pensamento sobre a tarefa de representar que faz parte da própria representação. píramo e tisbe A lenda de Píramo e Tisbe teve origem na Babilônia. Ovídio a reconta em suas Metamorfoses. Píramo ama Tisbe, sua vizinha em uma vila na Babilônia. Eles conversam através de uma fenda no muro que separa as casas onde vivem, pois seus pais se opõem ao relacionamento entre os dois. Enamorados um do outro, combinam certa noite um encontro nos arredores da vila, onde há uma amoreira de frutos brancos. Tisbe chega primeiro. Enquanto espera, dela se aproxima uma leoa, com a boca ainda ensanguentada da presa que acabou de devorar. Em pânico, Tisbe foge e se esconde em uma gruta nas imediações. Na pressa, deixa cair seu véu. Com sangue nas presas, antes de sumir na floresta, a leoa dilacera o véu da jovem. Píramo chega, vê as pegadas da fera e, ao encontrar o véu de Tisbe ensanguentado, imagina logo o pior. Desesperado, o jovem se mata com a espada, e seu sangue respinga nas amoras. Quando Tisbe sai da gruta, vê Píramo morto e também se mata. Desse dia em diante, o fruto da amoreira tornou-se vermelho, em lembrança ao sacrifício dos amantes. dos textos em que se baseiam, podendo constituir um caminho de aproximação aos clássicos. o n d e a v i da r e a l e u m r e i n o e n c a n ta d o se mesclam Em Sonho de uma noite de verão, Shakespeare contrapõe um cenário realista (Atenas, ansiosa com a proximidade do grande evento, e o cotidiano do palácio) a outro mágico, habitado por espíritos e demônios (o bosque, reino presidido por Titânia e Oberônio). Em Atenas, há uma segunda divisão: de um lado, encontra-se a nobreza; de outro, os artesãos, pessoas comuns. O encontro entre esses universos ocorre justamente no concurso teatral, em que os artesãos apresentam sua versão para o mito de Píramo e Tisbe. A distância social entre a gente da corte e os artesãos fica mais evidente no final do livro, quando Mestre Cunhas se emociona diante do rei e da rainha, sob os olhares de toda a nobreza. Também no universo mítico do bosque há uma hierarquia, que espelha de certo modo a vida civil em Atenas. Elfos, fadas e sílfides estão sob as ordens de Oberônio e Titânia, seus senhores. Durante a peça, há influência recíproca entre os reinos: os elementais se preparam para que tudo esteja perfeito no dia do casório e os mortais, sob a ação de poções mágicas e feitiços, sofrem alterações de comportamento, não raro sucumbindo à insensatez. Tudo funciona muito bem, com grande rendimento cômico. Considerando uma plateia inglesa do século XVI, podemos até supor que o efeito pretendido pelo dramaturgo é levar a plateia para longe dos problemas cotidianos, donde a ambientação grega e o entrecho mágico, que separam radicalmente o tempo do espetáculo do tempo da vida concreta do público. fontes gregas e temas clássicos A história situa-se em Atenas, em um período impreciso, marcado pelo reinado de Teseu, personagem mítico sobre quem o texto diz que “deu à cidade uma legislação, criou assembleias, organizou os trabalhos” (p. 14). Tais indicações permitem a aproximação com a história de Atenas entre os séculos V e IV a.C., identificando o Teseu ficcional ao político Sólon (638-558 a.C.): “O povo reclamou reformas políticas e 4 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob sociais, cuja execução foi confiada a Sólon, convocado, em 594, como arconte e encarregado de reorganizar Atenas, na qualidade de reformador da constituição e legislador” (JARDÉ, A., A Grécia antiga e a vida grega. São Paulo: EPU/Edusp, 1977, p. 166). Sólon também criou as assembleias populares e iniciou a prática de pagar salário aos cidadãos que desempenhavam serviços públicos. Ao ambientar sua peça no mundo grego, Shakespeare retoma mitos da Antiguidade, certamente por ainda terem apelo para o público inglês contemporâneo do dramaturgo. Um desses mitos é o do rei civilizador, encarnado também por outros grandes personagens da Antiguidade, como Édipo (ver Édipo rei, de Sófocles) ou Ulisses (ver Odisseia, de Homero). São personagens que restabelecem a ordem social e combatem o caos representado pela ausência de instituições moderadoras e parâmetros éticos. São reis que elevam o desenvolvimento de seus Estados: “Teseu deu à cidade uma legislação, criou assembleias, organizou os trabalhos. Os cidadãos eram os mais livres de toda a Grécia. Com isso, a cidade foi enriquecendo e se tornando poderosa até nas armas. As ruas se transformaram em um permanente canteiro de obras, com muitos templos, ruas e praças sendo construídos. Para lá se dirigiam artistas, escultores, oradores, pensadores, dramaturgos, gente de todo tipo” (p. 12). Outro mito antigo que reaparece em Sonho de uma noite de verão é o das amazonas, povo de mulheres guerreiras cujo nome, segundo a etimologia popular, sinaliza o hábito, cultivado por elas, de amputar o seio direito para manejar melhor o arco e flecha (a-, “sem” + mazos, “seio”, em grego). No tempo de Shakespeare, o mito das amazonas havia sido reativado pelas descobertas no Novo Mundo, especialmente na América do Sul, com sua região amazônica, selvagem e desconhecida, conforme esclarece Sérgio Buarque de Holanda: “Contudo, a crença de que as amazonas viveriam em algum sítio do Novo Mundo tendia cada vez mais a robustecer-se. Já em 1504 tinham sido algumas delas avistadas em uma praia, a pouca distância, por sinal, da paragem onde Colombo tentara situar o Paraíso Terrestre. Não seriam autênticas amazonas essas combatentes, que faziam prodígios ao lado dos homens, ajudando-os na resistência ao invasor, com o auxílio de suas 5 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob h i p ó l i ta e a s n ova s a m a z o na s A menção a Hipólita faz pensar nas apropriações contemporâneas do mito das amazonas pelos movimentos “feministas” atuais. Se nas fontes gregas e na comédia shakespeariana a força agreste da rainha estrangeira acaba sendo “domesticada” pela “astúcia” grega (o que também faz eco, de certo modo, à humilhação de Titânia, tomada de amores por um pobre-diabo com cabeça de asno), hoje, saindo da literatura, nada arrefece o ímpeto guerreiro das novas bandeiras pela emancipação da mulher. Movimentos como o Femen (grupo de feministas ucranianas, fundado em 2009, famoso pelo topless de suas representantes em protestos públicos), a Marcha Mundial das Mulheres, a Marcha das Vadias, entre outros, articulam reivindicações as mais diversas sobre um fundo comum de questionamento do ideal civilizatório capitalista, patriarcal, machista, racista, homofóbico, desenvolvimentista e ecologicamente, planetariamente insustentável. Somam-se às antigas pautas feministas (igualdade de direitos, acesso à esfera pública, entrada no mercado de trabalho, equiparação salarial, defesa contra violência sexual etc.) o debate sobre as fronteiras de gênero na constituição da identidade, a luta pela legalização do aborto, pelo direito ao próprio corpo e diversas estratégias de empoderamento (empowerment) da mulher. No caso das meninas do Femen, a referência às amazonas é direta, já que as performers do grupo apresentam-se como novas amazonas (“FEMEN is the special force of feminism, its spearhead militant unit, modern incarnation of fearless and free Amazons”. Disponível em: <http://femen.org/about>. Acesso em: 1 ago. 2014), cujas principais armas são a nudez e o erotismo como forma não violenta de minar os fundamentos apodrecidos da cultura patriarcal. Embora criticadas por outras vertentes feministas, em função do discurso apoiado em uma suposta “essência” feminina, as militantes do Femen inserem-se na linhagem de Hipólita num cenário muito distinto do da “guerra dos sexos” presente em Sonho de uma noite de verão. m u n d o à s av e s s a s O tópico do mundo às avessas liga-se à figura de estilo conhecida como adynaton (impossível, em grego), que consiste num caso especial de hipérbole ou exageração, visando com frequência efeito humorístico. mortíferas flechas ervadas? De semelhante espetáculo, porém, onde o real e o fantástico parecem fundir-se, deveria nascer o ambiente mais propício ao mito” (HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 66-7). Nesse mito se baseia a personagem Hipólita, que fascina seus súditos por pertencer a uma estirpe selvagem. Como se sabe, os ingleses desbravaram os mares do Sul e conquistaram boa parte do Novo Mundo, concorrendo com espanhóis, portugueses, franceses e holandeses. Por isso, a questão de como civilizar outros povos devia representar algo razoavelmente importante naquele momento. a da n ç a d o s pa r e s O enredo de Sonho de uma noite de verão apresenta uma série extensa de personagens pareados: Teseu, protótipo do homem grego, e Hipólita, personificação do estrangeiro; Lisandro, tipo impulsivo, e Demétrio, mais sóbrio; Hérmia e Helena, jovens em busca do amor; Oberônio e Titânia, elementais geniosos, que se amam, mas não se aturam. Outro par poderia ser proposto, embora improvável, entre Filóstrato, mortal obcecado pela eficiência, e Travesso, demônio que se diverte semeando a confusão. No entanto, o principal distúrbio causado por Travesso decorre de um engano. Testemunhando a humilhação de Helena por Demétrio, Oberônio ordenou a Travesso que borrifasse nos olhos do mancebo uma poção que o faria se apaixonar pela primeira pessoa avistada (e que deveria ser Helena). O demônio, porém, asperge a poção nos olhos de Lisandro, que, despertado por Helena, cai de amores por ela – e o mundo vira de ponta-cabeça. A ideia de uma realidade fora dos eixos, de pernas para o ar, retoma o velho motivo do mundo às avessas. O crítico Ernst Robert Curtius, em Literatura europeia e Idade Média latina (São Paulo: Edusp/Hucitec, 1996), dá exemplos desse lugar-comum retórico: um burro que toca alaúde, um boi que dança, um carro na frente de animais que deveriam puxá-lo, uma lebre corajosa, um leão medroso. No caso de nossa história, o tecelão com cabeça de burro por quem uma linda ninfa se apaixona é um bom exemplo de mundo às avessas. 6 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob Ela se distingue da hipérbole genérica pelo caráter irrealista da acumulação que realiza, associando fatos incompatíveis e gerando um descolamento da realidade. Tal figura pode ser encontrada em obras de todos os gêneros, na poesia (sobretudo no surrealismo e no dadaísmo), no teatro e no romance, e até mesmo fora da literatura, na pintura (por exemplo, nas telas de René Magritte ou de Francis Bacon), nos desenhos animados, no cinema etc. Indicações de livros, filmes, músicas e sites livros Para o professor • ABEL, Lionel. Metateatro: uma nova visão da forma dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. Estudo fundamental sobre Hamlet, de Shakespeare, em que os personagens refletem sobre a condição cênica e as exigências dramatúrgicas. • HELIODORA, Barbara (Org.). O teatro explicado a meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008. Introdução à história do teatro em linguagem direta e acessível. • PEACOCK, Ronald. Formas da literatura dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. Ensaios sobre o drama como forma literária, abordando temas como meios de expressão, arte e experiência, o papel da música e da poesia na arte dramática. Para o aluno • JACOB, Dionisio. A espada e o novelo. São Paulo: Edições SM, 2009. Às vésperas da morte, o velho Laodemo reúne uma plateia ávida por ouvir aquelas que talvez sejam suas derradeiras histórias. Sobrevivente dos tempos heroicos, sua memória revive as façanhas de gente da estirpe de Jasão, Héracles e Teseu. CONVERSANDO COM OS ALUNOS a n t e s da l e i t u r a Por trás da cena Como sugerido anteriormente, a leitura do livro será precedida por uma sensibilização dos alunos para o mundo do teatro, o ofício do ator e o cotidiano de outros profissionais do palco. Depois de uma conversa inicial sobre as artes cênicas, o professor divide a classe em grupos e propõe aos alunos uma pesquisa sobre as profissões de dramaturgo/roteirista, ator, diretor, cenógrafo, iluminador, figurinista etc. As informações serão buscadas na biblioteca escolar, na internet e até por meio de entrevistas com o professor de Artes. Por fim, o resultado da pesquisa é partilhado por meio de painéis com a descrição de cada profissão (atribuições, cotidiano, exemplos), se possível, com material iconográfico de apoio, como fotos, ilustrações, plantas de cenário, croquis de figurino etc. Shakespeare no cinema Existem muitas adaptações cinematográficas das obras de Shakespeare. O professor pode selecionar uma ou duas delas para a turma ver e debater. O contraste entre uma tragédia, como Romeu e Julieta, e uma comédia, como Muito barulho por nada, pode ser um critério de seleção. A exibição de adaptações cinematográficas constituirá, dessa maneira, um preâmbulo à discussão da adaptação romanceada que os alunos lerão. durante a leitura Seminários O professor estimula os alunos expandindo alguns dos temas abordados ao longo da obra. Além dos aspectos ligados ao teatro, vale municiar a turma de informações sobre o mundo grego em que se situa a ação da narrativa. O tempo de Shakespeare, chamado período elisabetano, é outro tema de interesse. Os alunos podem então realizar outra pesquisa, comparando o teatro grego e o teatro elisabetano por meio de seminários. Divide-se a classe em dois grandes grupos, cada qual encarregado de um período (Grécia clássica e 7 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob • SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997. Assombrado pelo fantasma do pai assassinado, jovem príncipe se empenha em punir os responsáveis e honrar sua memória. • ______. Romeu e Julieta. Tradução: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Dois jovens de famílias rivais se apaixonam. Uma das mais conhecidas histórias de amor de todos os tempos. filmes • Muito barulho por nada (Much ado about nothing). Direção: Kenneth Branagh. Inglaterra, 1993. 111 min. A trama gira em torno do casal de namorados Cláudio e Hero. O melhor amigo de Cláudio, Benedito, está apaixonado pela bela e venenosa Beatriz, mas não admite seu amor por ela. • Ricardo III – um ensaio (Looking for Richard). Direção: Al Pacino. EUA, 1996. 112 min. A propósito do metateatro, o filme mistura a narração da célebre peça homônima com os bastidores da encenação (ensaios, conversas entre atores). • Shakespeare apaixonado (Shakespeare in love). Direção: John Madden. EUA, 1998. 124 min. Para vencer a falta de inspiração, Shakespeare inicia um romance secreto, e as palavras fluem como nunca. músicas Além das adaptações literárias, a peça de Shakespeare rendeu algumas adaptações musicais importantes no campo da música erudita. Nela baseado, o compositor alemão Felix Mendelssohn (1809-1847) compôs uma suíte musical formada por uma abertura – criada em 1826, quando ele tinha apenas 17 anos – e uma música incidental, da qual faz parte a célebre marcha nupcial. Tal marcha pode ser escutada no endereço seguinte, com o maestro Claudio Abbado regendo a Filarmônica de Berlim, em gravação de 2013: <http://youtu.be/0Oo4z37OUEI>. Inglaterra setecentista). Em seguida, os grupos se subdividem para levantar os autores mais representativos de cada época, as principais obras, os recursos técnicos, espaços de apresentação etc. Solstícios e outras efemérides Sonho de uma noite de verão se passa em uma noite de solstício. Trata-se de uma celebração do início do verão. Propõe-se aqui aos alunos uma investigação sobre os calendários e sua relação com os ciclos da natureza. Como se iniciou a prática de contar o tempo? Quais são os calendários conhecidos? O que marca o início de cada um deles? Como se relacionam com as estações do ano? Vestuário e tipos narrativos Supondo a ambientação grega da peça, qual seria a indumentária de Egeu e Hipólita, de Filóstrato ou Fundilhos? A ideia aqui é mostrar aos alunos que o vestuário traz marcas históricas e sociais. Como se vestem os trabalhadores? Como se vestem os nobres? Como fonte de pesquisa para realização desta atividade, sugere-se consulta ao livro Como seria sua vida na Grécia antiga?, de Fiona Macdonald (São Paulo: Scipione, 1996). d e p o i s da l e i t u r a Produção textual A fim de esmiuçar melhor as diferenças entre o gênero dramático e o gênero épico-narrativo, propõe-se aos alunos que escolham uma cena da peça original e a comparem com a versão romanceada, atentando para a passagem do discurso direto ao indireto, para a organização dos diálogos e para o papel desempenhado pelo narrador, no romance. Outra ideia de produção textual, explorando o discurso jornalístico, tomaria os acontecimentos narrados em Sonho de uma noite de verão para elaboração de uma pequena reportagem permeada por trechos de entrevista com os personagens da história. A reportagem deve incluir necessariamente título, “lead” (pequeno texto que resume os principais pontos de uma matéria) e texto principal. Recomenda-se subsidiar os alunos com modelos de reportagem jornalística, enfatizando aspectos estruturais desse gênero. 8 Sonho de uma noite de verão • Dionisio Jacob Mais recentemente, o compositor inglês Benjamin Britten (1913-1976) compôs uma ópera a partir da mesma obra. A ópera, que estreou em junho de 1960, pode ser vista também em uma encenação brasileira recente ocorrida em 2013, no Parque Lage, no Rio de Janeiro, com direção cênica de André Heller-Lopes e regência do maestro Roberto Tibiriçá, à frente da Orquestra Sinfônica Brasileira: <http://youtu.be/3neoPCqQIJk> (parte 1) <http://youtu.be/7Y8aRw8Yg7g> (parte 2). sites Alguns sites sobre grupos de militância em defesa das mulheres: <http://femen.org> <http://blogueirasfeministas.com> <http://marchamulheres.wordpress.com> elaboração do guia Aproveitando a menção ao mito de Hipólita e às amazonas modernas, uma terceira ideia de produção textual teria como ponto de partida a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Olympe de Gouges (pseudônimo de Marie Gouze). Escrito em 1791 como um protesto contra a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que não contemplava as mulheres, trata-se de um documento pioneiro de luta pela igualdade jurídica das mulheres. Tal documento foi ignorado pela Assembleia Nacional Francesa e praticamente esquecido após a morte de sua autora, condenada à guilhotina em 1793, até ser republicado na íntegra, em 1986, pela feminista Benoîte Groult. A tradução desse importante texto pode ser lida em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/ viewFile/911/10852> (acesso em: 8 ago. 2014). Aqui o exercício proposto aos alunos consiste na recriação desse documento, adaptando-o às circunstâncias históricas atuais. Vale pedir ajuda ao professor de História, bem como, no trabalho de reescrita da Declaração, ampliar o discurso em prol da igualdade entre os sexos na direção da igualdade entre os gêneros, refletindo não apenas sobre os direitos das mulheres, mas também sobre os direitos dos gays, das lésbicas, dos bi e transexuais. Iuri Pereira (graduado em Letras pela USP e mestre em Teoria Literária pela Unicamp; organizador de edições de obras de Gil Vicente e Gregório de Matos); edição Fabio Weintraub; revisão Marcia Menin. 9