Guia de Leitura

Propaganda
- GUI A D E L E ITU R A PA R A O P R O F E S S O R
Sonho de uma noite de verão
Dionisio Jacob
Baseado na peça homônima de William Shakespeare
Capa Gonzalo Cárcamo
Nível leitor A partir de 12 anos
Anos escolares 7º e 8º
Série Vermelha
176 páginas
2ª edição
TEMAS Comédia / Mitologia grega / Teatro / Magia
Dionisio Jacob nasceu em São Paulo,
em 1951. Formado em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), é escritor e desenhista, tendo ilustrado algumas
de suas histórias. Além de livros para crianças e adultos, também escreveu roteiros televisivos para programas como Castelo Rá-Tim-Bum
e Cocoricó. Seu romance A espada e o novelo (Edições SM, 2009)
recebeu o prêmio Orígenes Lessa, outorgado pela Fundação Nacional
do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Para a coleção Barco a Vapor, também adaptou o libreto da famosa ópera A flauta mágica, de Wolfgang
Amadeus Mozart.
o autor desta versão adaptada
William Shakespeare (Stratford-upon-Avon,
1564-1616) foi poeta, dramaturgo, ator e empresário teatral inglês.
Pela qualidade e extensão de sua obra, é considerado um dos maiores escritores de todos os tempos. Dentre suas peças mais conhecidas estão Hamlet, Romeu e Julieta, Rei Lear, Otelo e Macbeth. Seus
154 sonetos permanecem ainda hoje como exemplos de perfeição
expressiva e formal na poesia inglesa. Há poucos documentos sobre
sua vida, mas consta que, aos dezoito anos, ele desposou Anne
Hathaway, com quem teve três filhos. Entre os anos de 1585 e 1591,
não se tem notícia de suas atividades. Em 1592, várias de suas
peças foram exibidas em Londres. Em 1599, foi inaugurado o Globe
Theatre, de que Shakespeare foi próspero sócio. Sua última peça foi
A tempestade, concluída em 1613, mesmo ano em que ele voltou a
residir em sua cidade natal, onde permaneceu até a morte. A primeira coletânea de sua obra teatral foi feita em 1623 e trazia 36 peças,
dezoito das quais inéditas.
o autor da peça original
Esta adaptação romanceada de
Sonho de uma noite de verão, comédia
de William Shakespeare, que se passa
em Atenas, Grécia, durante o reinado de
Teseu, é uma excelente porta de entrada
para os jovens tomarem contato com
a obra deste dramaturgo, tido como o
mais influente de todos os tempos. Um
dos principais eixos da trama recontada
aqui é o casamento do soberano grego
com Hipólita, rainha das amazonas. Em
torno desse acontecimento desenrolam-se intrigas de amor entre dois casais de
jovens, que se intercambiam de forma
mágica e divertida. Os jovens são Hérmia, Lisandro, Helena e Demétrio. A
jovem Hérmia ama Lisandro, embora
tenha sido prometida por seu pai a
Demétrio, que é o objeto de amor da
melhor amiga, Helena.
o livro
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
Paralelamente aos quiproquós palacianos, nos bosques e
jardins ao redor de Atenas, há também as brigas de outro par
amoroso, formado por Oberônio, rei dos elfos, e Titânia, rainha das ninfas. Ex-amantes que vivem às turras, ambos têm
poderes sobrenaturais e representam um mundo anímico,
relacionado aos fenômenos naturais.
Além desses eixos entre os quais se alterna a narração, há
ainda o núcleo dos artesãos, os quais almejam participar de
um concurso para escolha do grupo de atores cuja peça será
encenada no casamento de Teseu. Personagens secundários são
Filóstrato, mestre de cerimônias responsável pela organização
da festa real, e Travesso, demônio controlado por Oberônio, que
chega a Atenas atraído pelo movimento geral de convidados
para o casamento.
INTERPRETANDO O TEXTO
t e at r o , m e tat e at r o e r o m a n c e
O texto original de Shakespeare é uma peça teatral, isto é, um
texto que, embora possa ser fruído apenas como literatura, de
modo autônomo, foi pensado para ser encenado em um palco,
com atores que encarnem os personagens, atuando em cenas
por meio das quais a ação se desenrolará diante da plateia.
Assim, antes de trabalhar com os alunos a adaptação romanceada dessa peça, talvez seja útil explorar rapidamente as
convenções do gênero dramático. Enquanto na peça o leitor
ou espectador é levado a acompanhar a ação que ocorre à sua
frente, no presente da leitura ou da encenação, na versão romanceada, ainda que restem muitos diálogos e momentos de
interação direta entre os personagens, é decisiva a mediação do
narrador, que impõe uma distância entre o leitor e os fatos por
ele narrados, ocorridos em um passado próximo ou distante.
O professor pode trabalhar essa diferença entre o mostrar
(teatro) e o narrar (romance) por meio de um papo com a turma.
Perguntas como “Quem já foi ao teatro?”, “Que tal a experiência?”,
“Qual a diferença entre assistir a uma peça (ou a um filme) e ler
um livro?” constituem um bom começo de conversa.
Ainda no que se refere às convenções dramáticas, outro
aspecto da peça passível de destaque é a presença, na história,
2
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
Mergulhando na temática
m e tat e at r o
Metateatro designa um gênero de peça
cujo conteúdo contém elementos teatrais,
o que não implica necessariamente a organização desses elementos como uma peça
dentro da peça (como ocorre em Sonho
de uma noite de verão), bastando que haja
teatralização da realidade. Isso ocorre
em outras peças célebres do próprio
Shakespeare, como Hamlet e Macbeth.
Na primeira, o príncipe da Dinamarca
contrata uma trupe de atores incumbidos
de executar a pantomima de um crime
com o fito de desmascarar seu tio Cláudio,
assassino do pai de Hamlet, que usurpou o
trono e desposou a rainha Gertrudes.
Já em Macbeth, embora não haja peça
dentro da peça, vida e teatro se equiparam
em uma fala do protagonista, depois de
receber a notícia da morte da esposa (ato
V, cena V). A metáfora do mundo como
teatro/representação (somos todos atores,
desempenhando à risca, sem saber, um roteiro escrito por outrem) retoma o motivo
tradicional do “theatrum mundi”:
Breve candeia, apaga-te. Que a vida
É uma sombra ambulante: um pobre ator
Que gesticula em cena uma hora ou duas,
Depois não se ouve mais; um conto cheio
De bulha e fúria, dito por um louco,
Significando nada.
(SHAKESPEARE, William. Macbeth.
Tradução: Manuel Bandeira. São Paulo: Cosac
Naify, 2009.)
Essa metáfora da vida como teatro reaparece em outras peças do bardo inglês,
como O mercador de Veneza (“Entendo
o mundo apenas como o mundo, Graciano:/ Um palco onde cada homem representa um papel,/ E o meu é bem triste”.
O mercador de Veneza, ato I, cena 1.
Tradução: Helena Barbas. Disponível em:
<http://www.helenabarbas.net/traducoes/
Mercador_Veneza_WShakesp_HBarbas.
pdf>. Acesso em: 1 ago. 2014) e Como
gostais (“O mundo inteiro é um palco, e
todos os homens e mulheres, apenas atores. Eles saem de cena e entram em cena,
e cada homem a seu tempo representa
muitos papéis”. Como gostais, ato II, cena
de elementos de metateatro (no caso, uma encenação dentro da
encenação), elemento que se conserva na adaptação romanceada.
Muitas das discussões que ocorrem nesse momento de forma
cômica, principalmente nos diálogos entre Mestre Cunhas e
Fundilhos, abordam temas importantes do fazer teatral, como
a preocupação de Mestre Cunhas com a memorização das falas
por atores analfabetos:
“Mestre Cunhas [...] viu chegando para o primeiro ensaio os
atores que conseguira reunir: um grupinho muito chulé de
artesãos. Eram os mais iletrados entre eles. Alguns não liam
nada, outros, apenas algumas palavras necessárias para o seu
ofício. De modo que Mestre Cunhas deveria ler o texto para
que eles decorassem as falas, porque era o mais habituado à
leitura, embora não fosse nem de longe um erudito” (p. 45).
Outro lance metateatral aparece nas opiniões de Fundilhos
sobre o estilo interpretativo:
“Morte, para ser boa, tem de ser gritada e chorada. E também
babada, para impressionar mais ainda. Não pode ser de uma
vez, assim, tchibum, como uma fruta caindo da árvore” (p. 154).
Eis alguns exemplos de como o pensamento sobre o teatro, a
linguagem e o estilo ajuda a marcar o caráter dos personagens:
o histrionismo de Fundilhos e a prudência de Mestre Cunhas.
Ainda a fim de demonstrar, no romance, as marcas de sua
origem teatral, o professor pode destacar o fato de quase toda
a ação transcorrer no espaço do bosque, embora o palácio
e a cidade de Atenas também constituam cenários para a ação.
A concentração de cenas em poucos espaços é uma limitação
conveniente para textos destinados ao palco que se conserva na
adaptação de Dionisio Jacob.
Por fim, o professor pode estimular a classe a refletir sobre
a finalidade das adaptações. Não seria melhor ler os textos na
versão original, atentando para as peculiaridades de linguagem,
estilo e gênero dos textos-fonte? Uma coisa não exclui a outra:
adaptações não se opõem ao contato com o original. Muitas
delas buscam conservar os traços de linguagem, gênero e estilo
* Os destaques remetem ao item Mergulhando na temática.
3
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
7. Tradução: Beatriz Viegas-Farias. Porto
Alegre: L&PM, 2009).
De qualquer maneira, o metateatro,
bastante comum na dramaturgia barroca
oitocentista – exemplarmente representado
por obras de Shakespeare e do espanhol
Calderón de la Barca (1600-1681) –,
ressurge com força no século XX, em
autores como o italiano Luigi Pirandello
(1877-1936), o alemão Bertolt Brecht
(1898-1956) e o irlandês Samuel Beckett
(1906-1989). Tal prática deve ser entendida
em sentido lato, não se limitando ao tema
da vida como cena, pressupondo antes
uma reflexão radical sobre o lugar social
do artista, sobre a adesão ou a distância
em face das convenções de gênero, sobre
a consciência da realidade como efeito
ilusório, entre outras coisas. Na contemporaneidade, ela se manifesta sobretudo por
meio da tendência a deixar expostos os andaimes da construção cênica, oferecendo
ao público não apenas a história, mas um
pensamento sobre a tarefa de representar
que faz parte da própria representação.
píramo e tisbe
A lenda de Píramo e Tisbe teve origem
na Babilônia. Ovídio a reconta em suas
Metamorfoses.
Píramo ama Tisbe, sua vizinha em uma
vila na Babilônia. Eles conversam através
de uma fenda no muro que separa as casas
onde vivem, pois seus pais se opõem ao
relacionamento entre os dois. Enamorados
um do outro, combinam certa noite um
encontro nos arredores da vila, onde há
uma amoreira de frutos brancos.
Tisbe chega primeiro. Enquanto espera,
dela se aproxima uma leoa, com a boca
ainda ensanguentada da presa que acabou
de devorar. Em pânico, Tisbe foge e se
esconde em uma gruta nas imediações. Na
pressa, deixa cair seu véu. Com sangue nas
presas, antes de sumir na floresta, a leoa
dilacera o véu da jovem. Píramo chega, vê
as pegadas da fera e, ao encontrar o véu
de Tisbe ensanguentado, imagina logo o
pior. Desesperado, o jovem se mata com a
espada, e seu sangue respinga nas amoras.
Quando Tisbe sai da gruta, vê Píramo morto e também se mata. Desse dia em diante,
o fruto da amoreira tornou-se vermelho,
em lembrança ao sacrifício dos amantes.
dos textos em que se baseiam, podendo constituir um caminho
de aproximação aos clássicos.
o n d e a v i da r e a l e u m r e i n o e n c a n ta d o
se mesclam
Em Sonho de uma noite de verão, Shakespeare contrapõe um cenário realista (Atenas, ansiosa com a proximidade do grande evento,
e o cotidiano do palácio) a outro mágico, habitado por espíritos
e demônios (o bosque, reino presidido por Titânia e Oberônio).
Em Atenas, há uma segunda divisão: de um lado, encontra-se a
nobreza; de outro, os artesãos, pessoas comuns. O encontro entre
esses universos ocorre justamente no concurso teatral, em que os
artesãos apresentam sua versão para o mito de Píramo e Tisbe.
A distância social entre a gente da corte e os artesãos fica mais
evidente no final do livro, quando Mestre Cunhas se emociona
diante do rei e da rainha, sob os olhares de toda a nobreza.
Também no universo mítico do bosque há uma hierarquia,
que espelha de certo modo a vida civil em Atenas. Elfos, fadas e
sílfides estão sob as ordens de Oberônio e Titânia, seus senhores.
Durante a peça, há influência recíproca entre os reinos: os elementais se preparam para que tudo esteja perfeito no dia do casório
e os mortais, sob a ação de poções mágicas e feitiços, sofrem
alterações de comportamento, não raro sucumbindo à insensatez.
Tudo funciona muito bem, com grande rendimento cômico.
Considerando uma plateia inglesa do século XVI, podemos até
supor que o efeito pretendido pelo dramaturgo é levar a plateia
para longe dos problemas cotidianos, donde a ambientação
grega e o entrecho mágico, que separam radicalmente o tempo
do espetáculo do tempo da vida concreta do público.
fontes gregas e temas clássicos
A história situa-se em Atenas, em um período impreciso,
marcado pelo reinado de Teseu, personagem mítico sobre
quem o texto diz que “deu à cidade uma legislação, criou
assembleias, organizou os trabalhos” (p. 14). Tais indicações
permitem a aproximação com a história de Atenas entre os
séculos V e IV a.C., identificando o Teseu ficcional ao político
Sólon (638-558 a.C.): “O povo reclamou reformas políticas e
4
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
sociais, cuja execução foi confiada a Sólon, convocado, em
594, como arconte e encarregado de reorganizar Atenas, na
qualidade de reformador da constituição e legislador” (JARDÉ, A.,
A Grécia antiga e a vida grega. São Paulo: EPU/Edusp, 1977, p. 166).
Sólon também criou as assembleias populares e iniciou a
prática de pagar salário aos cidadãos que desempenhavam
serviços públicos.
Ao ambientar sua peça no mundo grego, Shakespeare retoma
mitos da Antiguidade, certamente por ainda terem apelo para o
público inglês contemporâneo do dramaturgo. Um desses mitos
é o do rei civilizador, encarnado também por outros grandes
personagens da Antiguidade, como Édipo (ver Édipo rei, de
Sófocles) ou Ulisses (ver Odisseia, de Homero). São personagens
que restabelecem a ordem social e combatem o caos representado pela ausência de instituições moderadoras e parâmetros
éticos. São reis que elevam o desenvolvimento de seus Estados:
“Teseu deu à cidade uma legislação, criou assembleias, organizou
os trabalhos. Os cidadãos eram os mais livres de toda a Grécia.
Com isso, a cidade foi enriquecendo e se tornando poderosa
até nas armas. As ruas se transformaram em um permanente
canteiro de obras, com muitos templos, ruas e praças sendo
construídos. Para lá se dirigiam artistas, escultores, oradores,
pensadores, dramaturgos, gente de todo tipo” (p. 12).
Outro mito antigo que reaparece em Sonho de uma noite
de verão é o das amazonas, povo de mulheres guerreiras cujo
nome, segundo a etimologia popular, sinaliza o hábito, cultivado por elas, de amputar o seio direito para manejar melhor
o arco e flecha (a-, “sem” + mazos, “seio”, em grego).
No tempo de Shakespeare, o mito das amazonas havia sido
reativado pelas descobertas no Novo Mundo, especialmente
na América do Sul, com sua região amazônica, selvagem e
desconhecida, conforme esclarece Sérgio Buarque de Holanda:
“Contudo, a crença de que as amazonas viveriam em algum
sítio do Novo Mundo tendia cada vez mais a robustecer-se. Já
em 1504 tinham sido algumas delas avistadas em uma praia, a
pouca distância, por sinal, da paragem onde Colombo tentara
situar o Paraíso Terrestre. Não seriam autênticas amazonas
essas combatentes, que faziam prodígios ao lado dos homens,
ajudando-os na resistência ao invasor, com o auxílio de suas
5
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
h i p ó l i ta e a s n ova s a m a z o na s
A menção a Hipólita faz pensar nas apropriações contemporâneas do mito das amazonas
pelos movimentos “feministas” atuais. Se nas
fontes gregas e na comédia shakespeariana a
força agreste da rainha estrangeira acaba sendo “domesticada” pela “astúcia” grega (o que
também faz eco, de certo modo, à humilhação
de Titânia, tomada de amores por um pobre-diabo com cabeça de asno), hoje, saindo da
literatura, nada arrefece o ímpeto guerreiro das
novas bandeiras pela emancipação da mulher.
Movimentos como o Femen (grupo de
feministas ucranianas, fundado em 2009,
famoso pelo topless de suas representantes
em protestos públicos), a Marcha Mundial das
Mulheres, a Marcha das Vadias, entre outros,
articulam reivindicações as mais diversas
sobre um fundo comum de questionamento
do ideal civilizatório capitalista, patriarcal,
machista, racista, homofóbico, desenvolvimentista e ecologicamente, planetariamente
insustentável. Somam-se às antigas pautas
feministas (igualdade de direitos, acesso à esfera pública, entrada no mercado de trabalho,
equiparação salarial, defesa contra violência
sexual etc.) o debate sobre as fronteiras de gênero na constituição da identidade, a luta pela
legalização do aborto, pelo direito ao próprio
corpo e diversas estratégias de empoderamento (empowerment) da mulher.
No caso das meninas do Femen, a referência
às amazonas é direta, já que as performers do
grupo apresentam-se como novas amazonas
(“FEMEN is the special force of feminism, its
spearhead militant unit, modern incarnation
of fearless and free Amazons”. Disponível em:
<http://femen.org/about>. Acesso em: 1 ago.
2014), cujas principais armas são a nudez e o
erotismo como forma não violenta de minar os
fundamentos apodrecidos da cultura patriarcal.
Embora criticadas por outras vertentes
feministas, em função do discurso apoiado
em uma suposta “essência” feminina, as
militantes do Femen inserem-se na linhagem
de Hipólita num cenário muito distinto do
da “guerra dos sexos” presente em Sonho de
uma noite de verão.
m u n d o à s av e s s a s
O tópico do mundo às avessas liga-se à
figura de estilo conhecida como adynaton
(impossível, em grego), que consiste num
caso especial de hipérbole ou exageração,
visando com frequência efeito humorístico.
mortíferas flechas ervadas? De semelhante espetáculo, porém,
onde o real e o fantástico parecem fundir-se, deveria nascer o
ambiente mais propício ao mito” (HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso. São Paulo: Cia. das Letras,
2010, p. 66-7).
Nesse mito se baseia a personagem Hipólita, que fascina
seus súditos por pertencer a uma estirpe selvagem. Como se
sabe, os ingleses desbravaram os mares do Sul e conquistaram
boa parte do Novo Mundo, concorrendo com espanhóis, portugueses, franceses e holandeses. Por isso, a questão de como
civilizar outros povos devia representar algo razoavelmente
importante naquele momento.
a da n ç a d o s pa r e s
O enredo de Sonho de uma noite de verão apresenta uma série
extensa de personagens pareados: Teseu, protótipo do homem
grego, e Hipólita, personificação do estrangeiro; Lisandro, tipo
impulsivo, e Demétrio, mais sóbrio; Hérmia e Helena, jovens em
busca do amor; Oberônio e Titânia, elementais geniosos, que se
amam, mas não se aturam. Outro par poderia ser proposto, embora
improvável, entre Filóstrato, mortal obcecado pela eficiência, e
Travesso, demônio que se diverte semeando a confusão.
No entanto, o principal distúrbio causado por Travesso decorre de um engano. Testemunhando a humilhação de Helena
por Demétrio, Oberônio ordenou a Travesso que borrifasse
nos olhos do mancebo uma poção que o faria se apaixonar
pela primeira pessoa avistada (e que deveria ser Helena). O
demônio, porém, asperge a poção nos olhos de Lisandro, que,
despertado por Helena, cai de amores por ela – e o mundo
vira de ponta-cabeça.
A ideia de uma realidade fora dos eixos, de pernas para
o ar, retoma o velho motivo do mundo às avessas. O crítico
Ernst Robert Curtius, em Literatura europeia e Idade Média
latina (São Paulo: Edusp/Hucitec, 1996), dá exemplos desse
lugar-comum retórico: um burro que toca alaúde, um boi que
dança, um carro na frente de animais que deveriam puxá-lo, uma lebre corajosa, um leão medroso. No caso de nossa
história, o tecelão com cabeça de burro por quem uma linda
ninfa se apaixona é um bom exemplo de mundo às avessas.
6
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
Ela se distingue da hipérbole genérica
pelo caráter irrealista da acumulação que
realiza, associando fatos incompatíveis e
gerando um descolamento da realidade.
Tal figura pode ser encontrada em obras de
todos os gêneros, na poesia (sobretudo no
surrealismo e no dadaísmo), no teatro e no
romance, e até mesmo fora da literatura,
na pintura (por exemplo, nas telas de
René Magritte ou de Francis Bacon), nos
desenhos animados, no cinema etc.
Indicações de livros,
filmes, músicas e sites
livros
Para o professor
• ABEL, Lionel. Metateatro: uma nova
visão da forma dramática. Rio de Janeiro:
Zahar, 1968.
Estudo fundamental sobre Hamlet, de
Shakespeare, em que os personagens refletem sobre a condição cênica e as exigências dramatúrgicas.
• HELIODORA, Barbara (Org.). O teatro
explicado a meus filhos. Rio de Janeiro:
Agir, 2008.
Introdução à história do teatro em linguagem direta e acessível.
• PEACOCK, Ronald. Formas da literatura
dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
Ensaios sobre o drama como forma literária, abordando temas como meios de
expressão, arte e experiência, o papel da
música e da poesia na arte dramática.
Para o aluno
• JACOB, Dionisio. A espada e o novelo.
São Paulo: Edições SM, 2009.
Às vésperas da morte, o velho Laodemo
reúne uma plateia ávida por ouvir aquelas
que talvez sejam suas derradeiras histórias.
Sobrevivente dos tempos heroicos, sua
memória revive as façanhas de gente da
estirpe de Jasão, Héracles e Teseu.
CONVERSANDO COM OS ALUNOS
a n t e s da l e i t u r a
Por trás da cena
Como sugerido anteriormente, a leitura do livro será precedida por uma sensibilização dos alunos para o mundo do teatro,
o ofício do ator e o cotidiano de outros profissionais do palco.
Depois de uma conversa inicial sobre as artes cênicas, o professor divide a classe em grupos e propõe aos alunos uma pesquisa sobre as profissões de dramaturgo/roteirista, ator, diretor,
cenógrafo, iluminador, figurinista etc. As informações serão
buscadas na biblioteca escolar, na internet e até por meio de
entrevistas com o professor de Artes. Por fim, o resultado da pesquisa é partilhado por meio de painéis com a descrição de cada
profissão (atribuições, cotidiano, exemplos), se possível, com
material iconográfico de apoio, como fotos, ilustrações, plantas
de cenário, croquis de figurino etc.
Shakespeare no cinema
Existem muitas adaptações cinematográficas das obras de
Shakespeare. O professor pode selecionar uma ou duas delas
para a turma ver e debater. O contraste entre uma tragédia,
como Romeu e Julieta, e uma comédia, como Muito barulho por
nada, pode ser um critério de seleção. A exibição de adaptações
cinematográficas constituirá, dessa maneira, um preâmbulo
à discussão da adaptação romanceada que os alunos lerão.
durante a leitura
Seminários
O professor estimula os alunos expandindo alguns dos temas abordados ao longo da obra. Além dos aspectos ligados ao
teatro, vale municiar a turma de informações sobre o mundo
grego em que se situa a ação da narrativa.
O tempo de Shakespeare, chamado período elisabetano, é
outro tema de interesse. Os alunos podem então realizar outra
pesquisa, comparando o teatro grego e o teatro elisabetano
por meio de seminários. Divide-se a classe em dois grandes
grupos, cada qual encarregado de um período (Grécia clássica e
7
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
• SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 1997.
Assombrado pelo fantasma do pai assassinado, jovem príncipe se empenha em punir os
responsáveis e honrar sua memória.
• ______. Romeu e Julieta. Tradução:
Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
Dois jovens de famílias rivais se apaixonam. Uma das mais conhecidas histórias
de amor de todos os tempos.
filmes
• Muito barulho por nada (Much ado about
nothing). Direção: Kenneth Branagh. Inglaterra, 1993. 111 min.
A trama gira em torno do casal de namorados Cláudio e Hero. O melhor amigo de
Cláudio, Benedito, está apaixonado pela
bela e venenosa Beatriz, mas não admite
seu amor por ela.
• Ricardo III – um ensaio (Looking for
Richard). Direção: Al Pacino. EUA, 1996.
112 min.
A propósito do metateatro, o filme mistura
a narração da célebre peça homônima
com os bastidores da encenação (ensaios,
conversas entre atores).
• Shakespeare apaixonado (Shakespeare in
love). Direção: John Madden. EUA, 1998.
124 min.
Para vencer a falta de inspiração, Shakespeare inicia um romance secreto, e as
palavras fluem como nunca.
músicas
Além das adaptações literárias, a peça de
Shakespeare rendeu algumas adaptações
musicais importantes no campo da música
erudita. Nela baseado, o compositor alemão Felix Mendelssohn (1809-1847) compôs uma suíte musical formada por uma
abertura – criada em 1826, quando ele
tinha apenas 17 anos – e uma música incidental, da qual faz parte a célebre marcha
nupcial. Tal marcha pode ser escutada no
endereço seguinte, com o maestro Claudio
Abbado regendo a Filarmônica de Berlim,
em gravação de 2013:
<http://youtu.be/0Oo4z37OUEI>.
Inglaterra setecentista). Em seguida, os grupos se subdividem para levantar os autores mais representativos de cada
época, as principais obras, os recursos técnicos, espaços de
apresentação etc.
Solstícios e outras efemérides
Sonho de uma noite de verão se passa em uma noite de solstício. Trata-se de uma celebração do início do verão. Propõe-se
aqui aos alunos uma investigação sobre os calendários e sua
relação com os ciclos da natureza. Como se iniciou a prática de
contar o tempo? Quais são os calendários conhecidos? O que
marca o início de cada um deles? Como se relacionam com as
estações do ano?
Vestuário e tipos narrativos
Supondo a ambientação grega da peça, qual seria a indumentária de Egeu e Hipólita, de Filóstrato ou Fundilhos? A ideia
aqui é mostrar aos alunos que o vestuário traz marcas históricas
e sociais. Como se vestem os trabalhadores? Como se vestem os
nobres? Como fonte de pesquisa para realização desta atividade,
sugere-se consulta ao livro Como seria sua vida na Grécia antiga?,
de Fiona Macdonald (São Paulo: Scipione, 1996).
d e p o i s da l e i t u r a
Produção textual
A fim de esmiuçar melhor as diferenças entre o gênero
dramático e o gênero épico-narrativo, propõe-se aos alunos
que escolham uma cena da peça original e a comparem com
a versão romanceada, atentando para a passagem do discurso
direto ao indireto, para a organização dos diálogos e para o
papel desempenhado pelo narrador, no romance.
Outra ideia de produção textual, explorando o discurso
jornalístico, tomaria os acontecimentos narrados em Sonho de
uma noite de verão para elaboração de uma pequena reportagem permeada por trechos de entrevista com os personagens
da história. A reportagem deve incluir necessariamente título,
“lead” (pequeno texto que resume os principais pontos de uma
matéria) e texto principal. Recomenda-se subsidiar os alunos
com modelos de reportagem jornalística, enfatizando aspectos
estruturais desse gênero.
8
Sonho
de uma noite de verão
• Dionisio Jacob
Mais recentemente, o compositor inglês
Benjamin Britten (1913-1976) compôs
uma ópera a partir da mesma obra. A
ópera, que estreou em junho de 1960,
pode ser vista também em uma encenação brasileira recente ocorrida em 2013,
no Parque Lage, no Rio de Janeiro, com
direção cênica de André Heller-Lopes e
regência do maestro Roberto Tibiriçá, à
frente da Orquestra Sinfônica Brasileira:
<http://youtu.be/3neoPCqQIJk> (parte 1)
<http://youtu.be/7Y8aRw8Yg7g> (parte 2).
sites
Alguns sites sobre grupos de militância em
defesa das mulheres:
<http://femen.org>
<http://blogueirasfeministas.com>
<http://marchamulheres.wordpress.com>
elaboração do guia
Aproveitando a menção ao mito de Hipólita e às amazonas
modernas, uma terceira ideia de produção textual teria como
ponto de partida a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Olympe de Gouges (pseudônimo de Marie Gouze).
Escrito em 1791 como um protesto contra a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que não contemplava as mulheres, trata-se de um documento pioneiro de
luta pela igualdade jurídica das mulheres. Tal documento foi
ignorado pela Assembleia Nacional Francesa e praticamente
esquecido após a morte de sua autora, condenada à guilhotina
em 1793, até ser republicado na íntegra, em 1986, pela feminista
Benoîte Groult. A tradução desse importante texto pode ser lida
em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/interthesis/article/
viewFile/911/10852> (acesso em: 8 ago. 2014). Aqui o exercício
proposto aos alunos consiste na recriação desse documento,
adaptando-o às circunstâncias históricas atuais. Vale pedir ajuda
ao professor de História, bem como, no trabalho de reescrita da
Declaração, ampliar o discurso em prol da igualdade entre os
sexos na direção da igualdade entre os gêneros, refletindo não
apenas sobre os direitos das mulheres, mas também sobre os
direitos dos gays, das lésbicas, dos bi e transexuais.
Iuri Pereira (graduado
em Letras pela USP e mestre em Teoria
Literária pela Unicamp; organizador
de edições de obras de Gil Vicente
e Gregório de Matos); edição Fabio
Weintraub; revisão Marcia Menin.
9
Download