ADI 3.510/DF segundo Aristóteles. O que contribui para causar dificuldade quanto a esse termo é que o estagirita costuma usar muitos exemplos, que acabam sendo mal interpretados e usados fora de seu contexto, fazendo com a que a potência seja incorretamente tomada por uma mera possibilidade. Tenha-se presente o comentário de Julián Marías mostrando em Aristóteles a divisão do ser segundo a potência e o ato, ao dizer que um "ente pode ser atualmente ou apenas uma possibilidade. Uma árvore pode ser uma árvore atual ou uma árvore em possibilidade, por exemplo uma semente. A semente é uma árvore, mas em potência, como a criança é um homem, ou o pequeno, grande. Mas é preciso ter em mente duas coisas: em primeiro lugar, não existe uma potência em abstrato, uma potência é sempre uma potência para um ato; isto é, a semente tem potência para ser carvalho, mas não para ser cavalo, nem sequer pinheiro, por exemplo; isso quer dizer, como afirma Aristóteles, que o ato é anterior (ontologicamente) à potência; como a potência é potência de um ato determinado, o ato já está presente na própria potencialidade" (História da filosofia. Martins Fontes , 2004. pág. 75). Além disso, o termo "ÕúvauiÇ" (dínamis) pode ser encontrado em uma dupla conotação. Uma, como fonte de mudança de algo ou de si mesmo, um movimento. Outra, e esta sim a potencialidade, como um fator de atualização, um ato. Essa distinção é bem fixada pela Filosofia. Assim, José Ferrater Mora assinala que como é "típico do Estagirita, acumulam-se os significados e os exemplos (...). Ainda aí, sem prejuízo, são várias as significações de 'potência'. Sobretudo, existem duas. Segundo uma, a potência é o poder que tem uma coisa de produzir uma mudança em outra coisa. Segundo outra, a potência é a potencialidade residente em uma coisa de passar a outro estado. Esta última significação é a que Aristóteles considera como a mais importante em sua metafísica" (Dicionário de filosofia T. II, Buenos Aires: Ed. Sul Americana, 1971. pág. 459). O mesmo indica Nicola Abbagnano, mostrando que o conceito "implica uma ambigüidade fundamental porque pode ser entendido: A) como possibilidade; B) como preformação e portanto predeterminação ou preexistência do atual" (Dicionário de filosofia. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1970. pág. 751). Para a ADI 3.510/DF Stanford Encyclopedia of Philosophy, "a 'dínamis' nesse sentido não é o poder de algo para produzir uma mudança, mas uma capacidade de estar em um estágio diferente e mais completo" (Disponível em: <http://www.science.uva.nI/~seop/entries/aristotle-metaphysics/#ActPot>). O texto de Anne Fagot-Largeault (Embriões, Células-Tronco e Terapias Celulares: Questões Filosóficas e Antropológicas, in Revista de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. 18a ed, 2004. pág. 234), mencionado pelo Ministro Carlos Britto, na minha avaliação, revela essa dificuldade conceitual entre as duas conotações de "potência". É que não tenho por compatível, na perspectiva aristotélica, a afirmação de que a atualização é promovida por outrem de fora. A atualização, na verdade, está no próprio ente. É ato próprio, independente. Isso quer dizer que o embrião, mesmo in vitro, não se reduz a algo que depende de uma interferência externa para a sua transformação, como a madeira, ou o mármore, caso em que, de fato, nada obrigaria a essa atualização. O embrião não é um objeto de transformação, mas o sujeito de sua própria atualização. A fertilização in vitro não lhe retira a potência, mas apenas o meio em que no atual estado da ciência pode se atualizar. Penso que o próprio Aristóteles revelou o alcance dos dois sentidos, deixando clara a diferença. A escolha adequada de um trecho da Metafísica onde os dois sentidos são abordados permite uma fácil distinção entre um e outro: "7. É necessário, contudo, distinguir quando uma coisa particular existe em potência, e quando não, uma vez que ela não existe a qualquer tempo e em todo tempo. Por exemplo, é a terra potencialmente um homem? Não, exceto quando já se tomou sêmen, e talvez nem mesmo nessa ocasião, tal como nem tudo pode ser curado pela medicina, ou até mesmo pelo acaso; havendo algum tipo definido de coisa que disso é capaz, sendo isso o que é saudável em potência. A definição daquilo que, como um produto do pensamento, vem a existir em ato, a partir da potência existente, é que quando foi desejado, se não houve o impedimento de qualquer influência externa, instaura-se; e a condição no caso do paciente, isto é, na pessoa que está sendo curada, é que nela nada deve obstar o processo. Assim, também, uma casa existe em potência se nada na coisa que sofre a ação, isto é, na matéria, a impede de vir a ser uma casa, e se não há ADI 3.510/DF nada que tenha que ser acrescentado ou subtraído, ou alterado: isso é potencialmente uma casa. E analogamente em todos os demais casos nos quais o princípio gerador é externo. E em todos os casos em que o princípio gerador está contido na própria coisa, uma coisa é em potência uma outra quando - se nada externo o impede - tomar-se por si mesma a outra. Por exemplo, o sêmen não é ainda em potência um ser humano, pois necessita adicionalmente sofrer uma alteração em algum outro meio. Mas quando, devido ao seu próprio principio gerador, chegou a reunir os atributos necessários, nesse estado é então um ser humano em potência, ao passo que no estado anterior necessitava de um outro princípio; tal como a terra não é ainda potencialmente uma estátua, porque precisa sofrer uma mudança antes de tornar-se bronze" (Metafísica. Bauru: EDIPRO, 2006. pág. 236). Essa perspectiva aristotélica, por exemplo, contraria a afirmação de que o fato de estar o embrião in vitro, posto que valioso por si mesmo, se assim permanecer, jamais será alguém. De fato, Aristóteles tem serventia para afastar essa idéia de que o embrião congelado não será alguém fora da recepção uterina. É possível dizer o contrário, ou seja, quando há a fecundação ele já é, e se há interrupção do que é, aí sim, ele não será. Ele já é ser porque foi gerado para ser, não para não ser. O embrião não é ente que se transmuda para além de sua essência. É o próprio ser em potência e, sobretudo, em essência, em ininterrupta atualização que em seus primeiros estágios e, mesmo em cultura, é representada por suas sucessivas divisões. Como bem expõe Aristóteles, a atualização somente deixará de se verificar se algo externo se interpuser ao processo. O desenvolvimento do embrião é contínuo e progressivo. Nesse sentido a intervenção do Dr. Dalton Luiz de Paula Ramos na audiência pública (fl. 1.063) ao afirmar que o desenvolvimento do embrião "é progressivo porque, se oferecermos a ele as condições necessárias, o amparo, a acolhida de que precisa, ele sempre passará para o estágio seguinte. Ultrapassada uma etapa de desenvolvimento, passa, em condições norvais, à etapa seguinte, sem regressos; evoluções que vão compor uma biografia". O coração e o sistema circulatório existem porque estão presentes no Página 51 ADI 3.510/DF embrião em potência; os movimentos somente são possíveis porque os membros já existem na essência do embrião, assim como as propriedades da fala e tudo o mais que forma e caracteriza o ser humano relacional. Da mesma forma, a estrutura neural existe porque há no embrião em potência. Dizer o contrário, na minha avaliação, é contrariar a própria natureza das coisas. Procura-se achar abrigo com relação ao tema que está em julgamento na legislação sobre a morte cerebral. Mas, embora o nascer e o morrer sejam processos da existência humana, não creio que se deva confundi-los. De todos os modos, poucos se dão conta da enorme controvérsia em torno do diagnóstico de morte cerebral a partir da introdução do termo "coma dépassé", coma irreversível, introduzido por MoIlaret e Goulon em 1959. Basta ler o estudo oriundo da Clínica Mayo advertindo para erros de diagnóstico de morte cerebral diante de circunstâncias outras que não são reconhecidas, como a hipotermia ou a intoxicação por drogas (WIJDICKS, Eelco F.M. The diagnosis of brain death. Department of Neurology, Neurological Intensive Care.). No Brasil, a Lei n° 9.434, de 1997, atribuiu ao Conselho Federal de Medicina a definição dos critérios para diagnóstico da morte encefálica. E este regulou a matéria com a Resolução n° 1.480, de 1997, estabelecendo que a morte cerebral "deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa reconhecida" (art. 3°), com os parâmetros clínicos assim definidos: ''coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia" e mencionando exames complementares a serem observados. Vê-se, portanto, que esses passos adiante no domínio científico da vida e da morte não são dados sem o estabelecimento de regras com a previsão possível, na melhor dimensão da humildade do cientista no trato desse mistério. Aliás, a utilização da analogia entre vida cerebral e morte cerebral não é mais que a representação de uma posição preconcebida acerca da dualidade do homem no corpo e no pensamento. Essa dualidade, implícita na herança cartesiana, deve, porém, ser superada. O homem é complexo, mas uno. Sua compreensão exige uma visão que não o divida, como assinalou Edgar Morin: "(...) a compreensão Página 52 ADI 3.510/DF complexa do ser humano não aceita reduzir o outro a um único aspecto e o considera na sua multidimensionalidade" (op. cit., pág. 114). Outra coisa é dizer que o homem reúne um complexo de sistemas. Como escrevi em outra oportunidade, sendo indivíduos, "sem dúvida, existe uma massa corporal de células geradas de outros indivíduos da mesma espécie animal. Enquanto células todos são, também energia, e a massa corporal vive e se mantém porque diversos sistemas de células, geradas da reunião de gametas, são produzidos a partir do momento em que ocorre a chamada fecundação e dão origem aos órgãos que mantêm o funcionamento sistêmico do corpo. Antônio Damásio, no livro O Erro de Descartes, tratando de organismos, corpos e cérebros, escreve que 'qualquer que seja a questão que possamos levantar sobre quem somos e por que somos como somos, uma coisa é certa: somos organismos vivos complexos, com um corpo propriamente dito ('corpo', para abreviar) e com um sistema nervoso ('cérebro', para abreviar)', possuindo o organismo uma estrutura e miríades de componentes com numerosos órgãos combinados em sistemas" (Estudos de direito público e privado, págs. 286/287). A questão em torno da natureza do embrião autoriza desafiar, desde logo, a comparação que se procura fazer entre o embrião gerado em processo de fertilização in vitro e o embrião implantado no útero, ao argumento de que, sem este, não há vida possível. Essa interessante visão do problema está bem enunciada com claridade notável pela séria, respeitada e reconhecida pesquisadora Patrícia Pranke, Professora da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e sócia fundadora do Instituto de Pesquisa com Células (in O Terceiro Elemento da Vida, texto ainda não publicado). Neste precioso trabalho acadêmico, ela escreve que a "implantação, e conseqüente gestação, só ocorre graças às moléculas que existem no útero. A gravidez é a sintonia entre o embrião e o próprio útero da mulher. A ovulação prepara o útero para receber o embrião. Tanto que, se o embrião gerado in vitro, crescido até o quinto dia, não for introduzido no corpo feminino enquanto organicamente o útero estiver preparado, e for introduzido no organismo da mulher dias mais tarde, a implantação não ocorre. Ou seja, aquele embrião só tem a potencialidade de se transformar em um bebê se for introduzido no útero em condições favoráveis de