O comportamento e os vetores da doença de Chagas

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O comportamento e os vetores da doença de Chagas
Marcelo Lorenzo
Laboratório de Triatomíneos e Epidemiologia da Doença de Chagas, Centro de Pesquisas René Rachou – Fiocruz,
30190002, Belo Horizonte, MG, Brasil
E-mail: [email protected]
Há quase 100 anos Carlos Chagas apresentava ao mundo a sua genial descoberta sobre o ciclo
do Trypanosoma cruzi e a sua transmissão através das fezes de triatomíneos, insetos hematófagos conhecidos como
barbeiros. Hoje, apesar de muitos estudos terem sido realizados, ainda restam importantes aspectos completamente
desconhecidos sobre a biologia e, especificamente sobre o comportamento dos insetos vetores deste parasito que afeta
a saúde de milhões de pessoas no continente americano.
Comportamento pode ser definido como movimento de partes do corpo ou do indivíduo como um todo, ou
ainda, de grupos de indivíduos, e as bases fisiológicas desse movimento. Os triatomíneos, como todos os animais
com capacidade de se movimentar, possuem um repertório de comportamento variado, que está relacionado com a
obtenção de recursos importantes para a sua vida, tais como: alimento, abrigo, parceiro sexual e até proteção contra
predadores. Existem numerosos trabalhos, publicados por pesquisadores de diversos países, que têm analisado alguns
aspectos do comportamento desses insetos, principalmente de Triatoma infestans e Rhodnius prolixus, que são os dois
principais transmissores da doença de Chagas. Entretanto, para o restante das mais de 130 espécies que também
podem transmitir a doença, muito pouco tem sido estudado.
A procura de alimento é uma parte central do comportamento do animal, já que a falta desse recurso afeta
seriamente a sua capacidade de reprodução e, em casos extremos, a sua própria sobrevivência. Os triatomíneos são
insetos hematófagos, isto é, se alimentam fundamentalmente de sangue. Estes insetos procuram obter seu alimento
preferencialmente de animais de sangue quente, como mamíferos e aves, mas eventualmente (ou dependendo da
espécie, habitualmente) podem se alimentar de sangue de répteis e anfíbios e ainda, de hemolinfa de insetos (fluido
presente em invertebrados com funções semelhantes às do sangue). Além disso, as fêmeas de triatomíneos precisam
se alimentar de sangue, fonte de proteínas e demais nutrientes, para que possam produzir ovos. Os estádios imaturos
precisam dele para poder se desenvolver. Para encontrar os animais que atuam como fontes de sangue, que são
chamados de hospedeiros, os triatomíneos procuram “pistas” da sua presença no ambiente, tais como o calor, o CO2,
os odores e a umidade que seus corpos emitem e, talvez, outras pistas ainda desconhecidas pela ciência (mas não
pelos triatomíneos). Alguns destes sinais, como por exemplo, certos odores, podem atraí-los a vários metros de
distância. Outros, como o calor, somente serão percebidos se os triatomíneos estiverem próximos ao hospedeiro. É
possível que os adultos, que possuem asas e são capazes de voar, possam se orientar a distâncias bem maiores
mediante o uso de odores do hospedeiro transportados por correntes de ar.
Uma vez que os triatomíneos entram em contato com os hospedeiros, precisam picá-los. Isto é, precisam
encontrar um vaso sanguíneo sob a pele do hospedeiro e entrar com o extremo das suas peças bucais dentro do vaso
para poder sugar o sangue. Aparentemente, para detectar as pequenas variações de temperatura presentes nas regiões
da pele que se encontram sobre os vasos sanguíneos, os triatomíneos usam suas antenas (que apresentam receptores
de calor na superfície). Uma vez detectada a variação de temperatura, esses insetos estendem sua probóscide e
perfuram a pele do hospedeiro, produzindo uma pequena lesão. Isso poderia fazer com que fossem percebidos pelo
hospedeiro antes mesmo que a alimentação fosse iniciada. A conseqüência mais provável seria a sua morte. Para que
isso não ocorra, eles injetam saliva que contém uma variedade de substâncias, algumas das quais atuam como
anestésicos. Outras das substâncias injetadas junto com a saliva inibem as respostas de coagulação sanguínea. Isto
leva a ingestão de sangue rápida, que resulta indolor para o hospedeiro. Os triatomíneos sugam grandes quantidades de
sangue que, dependendo da sua fase de vida, podem atingir volumes equivalentes a 10 vezes o seu próprio peso
corporal. E isso tudo, em menos de 30 minutos!
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Quando os triatomíneos chegam ao estádio adulto, outro fator além da alimentação se torna prioritário. Nesta
fase da vida, a maioria dos animais mostra uma série de comportamentos inatos, instintivos, que levarão a buscarem
o acasalamento. Isto é fundamental para que eles possam deixar descendência, objetivo único da reprodução sexual.
O comportamento sexual dos machos e fêmeas de triatomíneos difere significativamente. Os machos mostram um
comportamento ativo através do qual tentam copular “saltando” em cima de outros insetos da espécie que passam na
sua frente. Enquanto isso, as fêmeas não demonstram nenhum comportamento específico de procura. No entanto, elas
são capazes de aceitar ou rejeitar a tentativa do macho, que, em muitos casos, poderá simplesmente ir embora sem
conseguir o seu objetivo. Por que o macho pode ser aceito ou rejeitado? Ainda não se sabe ao certo, mas é provável
que as fêmeas avaliem informações relacionadas com a qualidade dos machos e, portanto possam estimar quão bons
serão os descendentes que o casal irá produzir. Nesta interação os insetos parecem usar odores para se encontrar e
reconhecer se o parceiro é da mesma espécie, mas esse é um aspecto muito pouco conhecido.
Estes insetos, cuja biologia pode nos parecer interessante, são muito relevantes para os homens devido ao fato
de que lhes transmitem uma doença. Eventualmente, eles podem estar infectados pelo T. cruzi, um parasito que
desenvolve parte da sua vida no intestino dos triatomíneos e é eliminado junto com as suas fezes. No momento da
alimentação destes insetos pode ocorrer a liberação de formas infectantes do parasito sobre a pele de um hospedeiro
suscetível. Neste caso, poderá haver a contaminação do animal e o desenvolvimento de uma nova fase do ciclo do
parasito neste hospedeiro vertebrado. Quando este hospedeiro é o homem, a doença de Chagas poderá se desenvolver.
E como ocorre esse encontro dos triatomíneos com os humanos? Em algumas situações, o encontro é acidental,
uma vez que a maioria das espécies conhecidas vive em ambientes silvestres. Mas na maior parte dos casos trata-se de
uma situação característica que se repete em diversos países da América Latina, que se estendem desde o México à
Argentina, passando pelo Brasil. Algumas poucas espécies de triatomíneos têm a capacidade de entrar nas
habitações humanas, e se desenvolver nestes ambientes. Isso acontece quase exclusivamente em regiões rurais onde
é extremamente comum encontrar casas de taipa de manutenção precária. Nestas casas, os insetos encontram
abundantes esconderijos para se refugiar durante as horas do dia. Aquelas espécies que parecem ser mais ecléticas,
isto é, que ingerem sangue de diversos tipos de hospedeiros, parecem ter uma maior facilidade para se desenvolver nos
ambientes humanos. Nestes locais, é possível encontrar diversas fontes de alimentação, entre elas, o homem,
cachorros, gatos, galinhas, porcos e gado. Essa variedade de hospedeiros e esconderijos oferece condições ideais para
certos insetos hematófagos. Mas a alimentação abundante não é suficiente para os insetos se estabelecerem em um
local. A maior parte das espécies não consegue se desenvolver dentro ou próximo das habitações humanas por diversos
motivos. Um aspecto importante parece ser o comportamento chamado de fototaxia negativa. Em palavras mais simples
isso significa que os triatomíneos evitam a luz e esta característica teria um papel importante no estabelecimento dos
insetos em determinados locais. Os principais vetores da doença de Chagas evitam intensamente sair dos seus
esconderijos nas horas de luz. Esses esconderijos lhes oferecem proteção e um microclima adequado. E os triatomíneos
têm preferências muitos definidas por locais com temperatura e umidade relativa específicas. Cada espécie
aparentemente tem a sua. Então, somente quando a escuridão reina no local, eles saem dos abrigos e procuram por
aquilo que precisam. Fundamentalmente, procuram seus hospedeiros para poder se alimentar. E seus hospedeiros, nas
condições normais de muitas casas de taipa de diversas regiões rurais da América Latina, não podem vê-los por falta de
luz. E das frestas da taipa poderão sair inúmeros triatomíneos, quando se tratar de espécies que colonizam o ambiente
humano. Há muito tempo que os ecólogos indicaram que somente assim pode acontecer o grande número de casos que
conhecemos na América Latina. Somente através do convívio permanente com grandes números de triatomíneos é que
a transmissão do T. cruzi se torna freqüente e pode ter um importante impacto epidemiológico. A solução é eliminar
estes insetos dos ambientes humanos para evitar a transmissão. Ou melhor, garantir que essas condições de vida não
existam nos ambientes humanos.
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