ISSN 0102-1788 Revista da Escola Superior de Guerra Revista da Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro, Ano XVI, n o 38, 1999 Revista da Escola Superior de Guerra (Fortaleza de São João – Urca – Rio de Janeiro – RJ – Brasil – CEP: 22291-190) Diretor-Presidente: Editor Responsável: General-de-Divisão César de Mello Lira Carlos Patrício Freitas Pereira Editoração Eletrônica: Diretor Vice-Presidente: Ademir Pereira Palma Contra-Almirante Foto Capa: Antonio Carlos da Câmara Brandão Sérgio Antonio Rohl Diretor-Secretário: Impressão: Coronel Professor Jorlen Gráfica e Editora Ltda Celso José Pires Tiragem: 1.500 exemplares Os conceitos expressos nos trabalhos são de responsabilidade dos autores e não definem uma orientação institucional da Escola Superior de Guerra. Editoração: Nossa Capa: Escola Superior de Guerra Divisão de Biblioteca, Intercâmbio e Difusão – DBID Revista da Escola Superior de Guerra – V.1, no (dez. 1983) – Rio de Janeiro: ESG. Divisão de Documentação, 1983 – v.; 21,59cm – Semestral ISSN 0102-1788 1. Segurança Nacional – Periódicos. 2. Poder Nacional – Periódicos. 3. Ciência Militar – Periódicos. I. escola Superior de Guerra (Brasil). Departamento de Estudos. Divisão de Documentação. CDU – 32(81) (05) CDU – 320.981 Índice TESTEMUNHOS EDITORIAL 7 Celso Pires PALAVRAS DO COMANDANTE 10 Carlos Patrício Freitas Pereira BRASIL 500 ANOS – ESG 50 ANOS 13 Sérgio Xavier Ferolla A GLOBALIZAÇÃO E NÓS À GUISA DE INTRÓITO 19 Oswaldo Muniz Oliva OS MILITARES E A POLÍTICA 36 Hernani G. Fortuna REPENSANDO A ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA COMO A VEJO APÓS ANOS 48 Valbert Lisieux Medeiros de Figueiredo KOSOVO, ALGO NOVO 52 Luiz Sanctos Döring "O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES" A CIVILIZAÇÃO UNIVERSAL E AS NOVAS CIVILIZAÇÕES 71 Francisco de Assis Grieco POTÊNCIAS ASCENDENTES O CAMINHO DA P AZ NO 3 o MILÊNIO 89 Marcos Henrique C. Côrtes PRINCÍPIOS DE SOBERANIA E AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS NA POLÍTICA INTERNACIONAL 107 Ives Gandra da Silva Martins GLOBALIZAÇÃO INTERNALIZAÇÃO DA INTERNACIONALIZAÇÃO 117 Jaime Rotstein DESEQUILÍBRIOS URBANOS – DESIGUALDADES SOCIAIS E INTEGRAÇÃO SOCIAL 123 Jarbas Passarinho O RELACIONAMENTO CIVIL – MILITAR 133 Jorge Calvario dos Santos AMÉRICA DO SUL: VOCAÇÃO GEOPOLÍTICA 165 Therezinha de Castro OS 50 ANOS DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA Cláudio Vianna de Lima 189 REFLEXÕES SOBRE O MÉTODO DE PLANEJAMENTO DA AÇÃO POLÍTICADAESG 192 Ivan Fialho CIMEIRANO RIO DE JANEIRO 204 CEE O CONFLITO NOS BALCÃS – ACRISE NO KOSOVO 220 Marcio Bonifácio Moraes ANOVA ESTRATÉGIADAOTAN 247 Carlos Meira Mattos CHINAX EEUU: BIPOLARIDADE DO SÉCULO XXI 251 Manuel Cambeses Júnior CICLOS HEGEMÔNICOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA 255 Marcos Oliveira BRASIL: ETERNO PÁIS DO FUTURO 264 Carlos Syllus GEOINTERVENÇÃO 280 Elton Fernandes e Darc Costa AECONOMIA BRASILEIRA: DACRISE CAMBIAL À RECUPERAÇÃO 297 Julio Dolce e George Dolce HOMENAGEM Celso Pires 317 MEMÓRIAS CRIAÇÃO DAESCOLA SUPERIOR DE GUERRA 321 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS QUE ORIENTARAM A CRIAÇÃO DAESG 324 CINQUENTENÁRIO DAESG 326 Therezinha de Castro Testemunhos EDITORIAL Celso Pires (*) “Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram, mas pela astúcia que têm certas coisas passadas”. (Guimarães Rosa) Não basta o tempo para determinar a tradição. O mundo da inteligência não deixa escapar, ora ostensivo, ora disfarçado, o determinismo ético que atua na formação dos recursos humanos de uma Nação. O seu desenvolvimento, já foi dito em outras épocas, não surge apenas pela civilização material, senão na cultura moral e intelectual da sua sociedade. Há um destino. Há um caminho. Poderíamos defini-los pela devoção com que se anuncia os cinqüenta anos da ESG. Toda Instituição – organização viva – intui, sente e incorpora o seu existencial. Na consciência desse momento de fé e afirmação entende-se que uma das formas da perenidade constitui a valorização continua da idéia inspiradora. A sua criação – Lei nº 785 de 20 de agosto de 1949 - não foi um episódio. Significa, ao contrário, o início de uma época. E não se pode deixar de enaltecer para compreender sua influência, que o tempo assegura a dimensão histórica e exalta o passado como evolução espiritual. No marco definidor de uma concepção, costuma-se reconhecer que idéias convertidas em atos são a maneira de se processar a transformação de um país. Essas idéias serão tão visíveis quanto permitam conferir os fatos celebrados no futuro – senso da história – questão preliminar e curial. É certo que a Escola Superior de Guerra surgiu da experiência da Força Expedicionária Brasileira, na 2ª Guerra Mundial, diante da aplicação do conceito de “guerra total” ou como se preocupava o Almirante Castex sobre a “unidade da guerra” – que apresentava outros tipos de ações planejadas, coordenadas e dirigidas . As nações beligerantes teriam a integralidade dos seus recursos envolvidos no conflito. Era a consciência do Poder Nacional. Percurso de análise, reinterpretações, novas tendências para os quadros teóricos da realidade brasileira. Tomados todos os fatores em consideração, tal problemática teve sua conseqüência: a necessidade de se criar no Brasil um instituto de grande envergadura intelectual, compatível com o avanço do mundo moderno. Muda-se a mentalidade, mantendo os componentes primordiais do organismo da nação: o homem, a terra e as instituições. A Ciência Política exige respeitabilidade, em toda pluraridade de fórmulas e mostra a transcendência da filosofia de uma Instituição. Entretanto, não são os rigores dos tratados que especificam dogmaticamente sua interpretação, mesmo o espaço do procedimento. Podem possibilitar a perspectiva dos propósitos e o perfil do sistema de valores. O constante aprimoramento – destinação e dimensão qualitativa desta Escola – privilegia e situa os seus fundamentos nos valores que provêm do passado e vêm se consolidando, mantendo a crença, além de construir herança intelectual requisito que se vai documentando na sucessividade das épocas. Eis o comprometimento da infinitude da inteligência: não se mede nem se pode limitar. Não admira, pois, que o preenchimento dos fins, nessas cinco décadas, se inspiraram em equacionar problemas gerais e oferecer subsídios às atividades básicas do Brasil, através da aplicação de métodos do processo decisório e da racionalidade do conhecimento político e estratégico. Longo mergulho na busca do progresso, da justiça social e do bem comum – uma peregrinação fundada de esperança. Os caminhos são vastos. Devem ser percorridos bem. Missões foram assumidas e cumpridas. É o amanhã das construções que superam os problemas reclamados pela conjuntura nacional. Virão etapas importantes que envolvem a responsabilidade de todos – processo de aperfeiçoamento nas atividades participativas. Para tanto, torna-se lícito enfatizar que a ESG tem se mantido, intransigentemente fiel aos princípios da sua criação. Transigir seria desfigurar, desnaturar e precipitar-se nos riscos dessa infidelidade, o que levaria a exigir o equilíbrio prudencial que se impõe às propostas de modificação que a descaracterizasse. Dos seus cursos emana a vocação de servir com inteligência – lição das coisas vivas, forma de classificar corretamente a pesquisa dos fatos e a própria interpretação deles, de acordo com a transcendência dos conceitos, fundamentais para o entendimento do interesse nacional, sem improvisações. O seu discurso não dissocia o método da doutrina. Esta, sendo normativa, compreende regras que irão orientar a ação, firmando conceitos originais e próprios, sem confundir-se com a política, que determina objetivos, linhas de ação, porquanto a estratégia seleciona e utiliza a melhor arte e os melhores meios entregues pelo poder nacional para tornar eficaz a sua aplicação, sem esquecer que, no passado, era a guerra que envolvia a estratégia; hoje é a estratégia que engloba a guerra. Os testemunhos proclamam a capacidade cultural da nossa Escola. Ela caminha sempre adiante, atenção permanente na trilha definida e insofismável do destino. Muito haveria que dizer para ressaltar o seu generoso idealismo. Deve-se, no entanto, considerar o espaço editarialista. Cinqüentenária. Lembremo-nos de que a ESG é o penhor supremo dos fundadores. Nesse momento de comemoração, a Pátria se instala em nosso espírito de continuadores. Assim sempre será, todos na mesma verdade, numa forma precisa e justa: dedicação, fé e confiança. PALAVRAS DO COMANDANTE Carlos Patrício Freitas Pereira (*) Escola Superior de Guerra, 50 anos! Há muito o que comemorar... São cinqüenta anos de realizações que têm como ponto de partida o entusiasmo de alguns idealistas. Os generais César Obino, Cordeiro de Farias, Juarez Távora e tantos outros pensaram com grandeza no futuro do Brasil. O que era o Brasil naquela época? Um grande país agrícola com imensas áreas despovoadas, desprovido de ligação terrestre entre importantes regiões, a população relativamente pequena concentrada ao longo do litoral e rios, elevado analfabetismo e poucas escolas... Apesar do tamanho, pouca expressão internacional, mesmo no cenário regional. Como é o Brasil de hoje? O crescimento foi notável! Estamos entre as maiores economias do mundo, com crescente importância no âmbito internacional e com enorme potencial ainda a ser desenvolvido, ou seja, estamos gradativamente construindo o que pensadores do pessado apontavam como destino de grandeza. Para a construção deste Brasil que conhecemos, a Escola Superior de Guerra tem sido um dos atores importantes. É um instituto de estudos estratégicos onde, desde os primórdios, reuniram-se brasileiros de diferentes segmentos da sociedade para estudar os fatos contemporâneos, avaliar as diferentes conjunturas, examinar o desenvolvimento das potencialidades e pensar nas soluções para o futuro do Brasil. Os conhecimentos desenvolvidos pela Escola Superior de Guerra, de cunho acadêmico e estratégico, multiplicaram-se pelas Forças Armadas e serviram de inspiração para suas escolas de estudos de alto nível. Foram também exemplo para a criação de outros centros de estudos estratégicos pelo Brasil afora, o que atualmente vem apresentando novo impulso em face da ordem internacional decorrente do fim da Guerra Fria. Os conceitos básicos foram elaborados de acordo com as características de nosso povo e de nosso idioma. Os trabalhos realizados na Escola Superior de Guerra possibilitaram uma visão nacional sobre temas complexos e têm se mostrado flexíveis para adaptar-se às evoluções das conjunturas nacional e internacional. Importante elo entre civis e militares, a Escola habilita quadros de alto nível para assessoria e direção de organizações públicas e privadas, especialmente no tocante à formulação de políticas, estratégias e à elaboração de planejamentos estratégicos. Promove encontros com diferentes segmentos da sociedade e mantém contato com todas as regiões do País por intermédio da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra. Faz intercâmbio com estabelecimentos congêneres, nacionais e estrangeiros, ao receber visitas e realizar viagens de estudos. Na presente conjuntura, há um fato novo: a criação do Ministério da Defesa, para o que a Escola Superior de Guerra contribuiu com muitos trabalhos ao longo de sua existência. No momento estão sendo desenvolvidos estudos para determinar os caminhos mais adequados à essa nova inserção, com visão prospectiva para as primeiras décadas do século XXI. Permanece entre todos os atuais integrantes da Escola a convicção de que ela deve prosseguir na sua histórica tarefa de ampliar e aperfeiçoar conhecimentos de quadros dirigentes civis e militares, bem como deve permanecer o papel consultivo de órgãos governamentais. O Centro de Estudos Estratégicos abre um novo caminho para coordenar pesquisas e estudos abrangentes, que podem contribuir para o futuro em parceria com entidades congêneres. Por isso tudo, há muito o que comemorar... Foram 50 anos de um verdadeiro mutirão em prol do Brasil. A conjuntura atual, cheia de incertezas e sem nítidos contornos prospectivos, sugere que voltemos ao passado para inspirar-nos: nossos antecessores acreditaram no futuro e conseguiram o notável resultado que hoje testemunhamos. Enormes potencialidades permanecem à nossa frente, desafiando a capacidade de nossas elites dirigentes. Cabe-nos, com fé no Brasil, contribuir para essa caminhada. (*) General-de-Divisão, Comandante da Escola Superior de Guerra BRASIL 500 ANOS – ESG 50 ANOS Sérgio Xavier Ferolla(*) A missão síntese da Escola Superior de Guerra é pensar Brasil. Poucas lideranças do nosso País compreenderam o significado da formação de uma consciência nacional, capaz de contra-argumentar e reagir, se necessário, frente às pressões internas e, principalmente, externas, cada vez mais influentes no mundo atual, buscando denegrir o conceito de EstadoNação, em benefício de interesses de toda ordem, mas em tempo algum, do interesse maior da sociedade brasileira. Lapidarmente sintetizado em seus Fundamentos Doutrinários, “inspira-se a ESG nos valores da preeminência da pessoa, da liberdade individual e da igualdade e fraternidade entre os homens, adotando como alvo social o conceito do bem comum, ideal de convivência que, transcendendo a busca do bem estar, construa uma sociedade onde todos tenham condições de plena realização de suas potencialidades e do exercício consciente de valores éticos, morais e espirituais”. Assim, quando se fala em Segurança e Desenvolvimento, a despeito das dificuldades e ambigüidades, o Estado brasileiro obriga-se, diante das novas realidades, a tentar desenvolver uma estratégia de progresso econômico, social, político e cultural, aliada a uma capacidade de atuação das Forças Armadas suficiente e capaz de inibir quaisquer intenções de desrespeito às regras da convivência internacional e da soberania. Dentro do que chegou a ser chamado de “a nova ordem mundial”, todos esses princípios passaram a enfrentar óbices quase que insuperáveis, frente a uma realidade internacional manipulada por estruturas hegemônicas que, pela força do poder econômico e militar, buscam impor às nações soberanas suas visões deformadas dos melhores rumos para a humanidade. Em um excelente trabalho recentemente publicado, “500 anos de periferia”, o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), do Ministério das Relações Exteriores, retrata de forma precisa e didática a evolução do cenário internacional ao longo dos 500 anos da história do nosso País e os óbices sempre atuantes em detrimento do desenvolvimento nacional. No século XVI, as diversas regiões da América Latina passaram a ser domínios das potências européias da época, Espanha e Portugal, que “ao não acompanharem o ciclo da evolução capitalista, passaram a sobreviver não pelas suas forças produtivas, mas principalmente pela espoliação colonial”. Forçadas pela irrealidade de suas políticas, viram-se obrigadas a assinar tratados perniciosos com a Inglaterra, como o de Methuen, enquanto impunham às colônias “regime de monopólio comercial e de proibição de desenvolvimento industrial e cultural”. Como decorrência, particularmente para o Brasil, ao conquistarem a independência, as ex-colônias “rapidamente se colocaram sob a proteção inglesa, assumindo um status semicolonial, devido aos tratados celebrados”. Tal processo de dominação evoluiu para outros atores, como conseqüência das duas Grandes Guerras e, especialmente após 1945, a liderança dos Estados Unidos firmou-se no cenário internacional. Em sua análise fundamentada e cautelosamente imparcial, o autor situa o Brasil como um “grande país periférico” e esclarece que “grandes Estados periféricos são aqueles países não desenvolvidos, de grande população e de grande território, não inóspitos, razoavelmente passíveis de exploração econômica e onde se constituíram estruturas industriais e mercados internos significativos. O cenário e a dinâmica em que atuam os grandes Estados periféricos não são novos e imparciais, mas se organizam em torno de estruturas hegemônicas de poder político e econômico”. O autor distingue com clareza o conceito de estruturas hegemônicas e de Estado hegemônico, este como “o Estado que em função de sua extraordinária superioridade de poder econômico, político e militar em relação aos demais Estados, está em condição de organizar o sistema internacional em seus diversos aspectos, de tal forma que seus interesses de toda ordem sejam assegurados e mantidos, se necessário pela força, sem Potência ou coalização de Potências que possam impedi-lo de agir”. E acrescenta que “o conceito de estruturas hegemônicas é mais flexível e inclui vínculos de interesse e de direito, organizações internacionais, múltiplos atores públicos e privados, a possibilidade de incorporação de novos participantes e a elaboração permanente de normas de conduta; mas no âmago dessas estruturas estão sempre os Estados nacionais”. Exemplifica como estratégia de preservação e expansão das estruturas hegemônicas de poder as organizações internacionais sob seu controle, tais como o Conselho de Segurança da ONU, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o Grupo dos Sete (G-7), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Européia, o North American Free Trade Association (NAFTA), a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros. Tais Organizações exercem um papel estratégico na “elaboração de ideologias e de sugestões políticas, a serem seguidas pelos governos dos Estados periféricos, já que, por razões óbvias, os governos dos países centrais não levam em consideração as sugestões de políticas quando são, muito raramente, feitas por tais agências”. Suas ideologias são elaboradas de forma a serem “percebidas como neutras, desinteressadas, ou melhor ainda, de interesse geral, imparciais, verídicas e verossímeis”. Sempre que a realidade demonstra o contrário, “são substituídas por outras ideologias que desmentem, ridicularizam e se apresentam como novas e agora sim, verdadeiras”. “Assimiladas pelos meios de comunicação dos países periféricos e por suas elites cooptadas, são apresentadas às populações periféricas como científicas, imparciais, benéficas e únicas”. A tal estratégia se soma “à formação, nos países da periferia, de elites e de quadros simpáticos e admiradores das estruturas hegemônicas de poder”. “Tais indivíduos se tornam elementos de grande importância para as estratégias de preservação das estruturas hegemônicas, na medida em que vêm a ocupar posições de destaque na vida pública e privada dos países da periferia”. A participação da maioria dos países da periferia nos organismos internacionais faz-se essencial, para dar legitimidade e validade universal às normas estabelecidas e à eventual aplicação de sanções “internacionais” contra os infratores. “No centro das estruturas hegemônicas se encontram as Grandes Potências e, dentre elas, a Super Potência – Os Estados Unidos da América do Norte –, o único Estado com interesses econômicos, políticos e militares em todas as áreas da superfície terrestre, na atmosfera e até no espaço sideral, e o grande responsável pela criação das estruturas hegemônicas que lideram”. Em termos mundiais, “a grande estratégia militar dos Estados Unidos poderia ser resumida na idéia de manter a hegemonia militar adquirida na Segunda Guerra Mundial, em termos de presença e de liderança tecnológica, de modo a garantir a expansão econômica pacífica dos interesses americanos, o bem estar e a segurança da sociedade americana”. “A estratégia política americana para a América Latina tinha e tem como objetivo principal manter e preservar a Doutrina Monroe e estruturar um organismo hemisférico que legitime as intervenções militares americanas, quando estas se fizerem necessárias”. Solidificando os conceitos doutrinários da ESG, afirma ainda que “a despeito dos argumentos sobre o gradual desaparecimento do Estado e de sua substituição por organizações não governamentais ou pelas grandes empresas transnacionais, o fato é que o Estado foi, é, e continuará a ser o principal ator do sistema internacional”. “A nenhum analista, norte-americano ou não, que anuncia o “fim do Estado nacional”, ocorre imaginar ou sugerir que o Estado norte-americano esteja em vias de desaparecimento”. Ao transcrever os conceitos fundamentais analisados pelo autor em seu magistral trabalho “500 anos de periferia”, buscamos enfocar alguns pontos doutrinários da ESG, frontalmente contestados pela atual estrutura dominante internacional. Em 1949, com uma nítida percepção da realidade mundial ao final da 2ª Grande Guerra e “de seus desdobramentos mutantes por definição e causalidade, surgia o trabalho, abnegado e esclarecido, de um punhado de brasileiros eméritos com vistas ao advento de entidade destinada a realização de altos estudos de política e estratégia”. Nesse ano de 1999, já no limiar do Século XXI, mais do que nunca estão válidos os fundamentos doutrinários da ESG, elaborados e aperfeiçoados ao longo dos cinqüenta anos de frutíferos trabalhos. O quadro permanente e os estagiários da ESG e ADESG, refletindo uma síntese do tecido social brasileiro, bem como todos os cidadãos atentos aos valores da nossa pátria, em busca de uma nação justa e soberana, deverão prosseguir labutando pela formação de uma consciência nacional imune às investidas da mídia comprometida, das falsas elites e pretensos intelectuais, habilmente preparados para atuar no jogo do poder internacional, em detrimento dos reais anseios da nossa sociedade. Não nos interessam modelos importados, por mais elaborados que se apresentem e qualquer que seja sua origem, uma vez que não atendam a um princípio fundamental – o interesse nacional. O desenvolvimento de uma nação não se mede tão-somente pelas variáveis comuns das estatísticas econômicas, mas principalmente pela existência de um clima de liberdade e de igualdade de oportunidades para todos os cidadãos e pela capacidade de atendimento às necessidades de alimentação, trabalho, saúde, educação e segurança de seu povo. O debate em torno do Estado versus mercado, o radicalismo “neoliberal” contra o denominado estatismo perde sentido, diante da realidade concreta do País. Trata-se de uma discussão falsamente ideológica e movida por interesses particularistas. É ridículo falar-se em tamanho do Estado, quando a questão está na sua natureza e função. Todos esses fatos reforçam a necessidade de uma postura de cautela, com a definição de um Projeto Nacional, que estabeleça os objetivos almejados pela sociedade, segundo um modelo próprio de desenvolvimento, com base nas vocações e características do nosso país e não atrelado e dependente das soluções alienígenas, quase sempre encaminhadas para o atendimento de interesses subalternos. Contrariamente à falácia dos defensores dos falsos conceitos de modernidade, quase sempre orientados por interesses alienígenas e impatrióticos e manipulados pela mídia, formando a opinião de considerável massa de desavisados e/ou alienados para com as questões nacionais, as agruras da realidade mostram que, nessa era de incertezas, os povos sentem e suas elites devem por força reconhecer que é ainda no instituto do Estado-Nação que repousam as maiores esperanças de conseguir a satisfação de suas necessidades e aspirações. (*) Ten.-Brig.-do-Ar SÉRGIO XAVIER FEROLLA Ministro do Superior Tribunal Militar Ex-Comandante da Escola Superior de Guerra A GLOBALIZAÇÃO E NÓS À GUISA DE INTRÓITO Oswaldo Muniz Oliva(*) Muito se tem escrito sobre a globaliza ção. Também eu preocupo-me com ela. Por isso, venho desenvolvendo palestras e promovendo debates com públicos diferenciados, nestes últimos anos. Por sinal, a cada ano e a cada evento significativo que ocorre em nível internacional, mais nítido se apresenta aquele processo e mais definidos ficam os perfis dos que os conduzem e que dele se beneficiam. A ESG, por ser uma Casa onde se estuda o Poder, apresenta-se como dos melhores intérpretes para o que ocorre. Tanto isto é verdade que, ao observar-se a aplicação do mega Poder Militar, que ocorre em Kosovo, aqueles que aqui freqüentam compreendem ser tal ação um braço do todo que, do mesmo modo, atua no campo econômico, propondo e impondo regras gerais ao comércio mundial, tal como lhe convém. Já se torna clara (e, incrível, aceita por muitos brasileiros) a intenção de regular o direito dos povos e restringir as soberanias nacionais, a seu bel-prazer. Também é nítida a percepção, no campo psicossocial, da maciça e coerente onipresença, na mídia mundial, do noticiário – sob inúmeras formas – que é despejado, dia à dia, sobre todo o mundo, naturalmente, aqui traduzido e repetido. Por tudo isso coloco este escrito como um tributo à ESG, pelos seus cinqüenta anos e por ser o que é: centro gerador de estudos sérios e desenvolvidos com liberdade, equilíbrio, honestidade intelectual e amor ao Brasil. Merece todo nosso apoio e compreensão face às dificuldades de ordem material e outras que enfrenta no momento, possivelmente, não desligadas dos interesses que a Globalização traz embutidos, mas não tão disfarçados. O Cenário Presente 1. O Brasil foi e ainda está envolvido pelas vagas do verdadeiro maremoto argentário que o atingiu, conseqüente a hábil utilização de regras globais e ao emprego oportuno de tecnologia moderna das telecomunicações e da telemática. Tudo isso que está acontecendo é devido à nossa negligente integração ao processo de globalização. Despreparados, ingenuamente ou não, abrimos todas as nossas defesas e fomos engolfados, muito pelas características próprias daquele processo, é verdade, mas muito mais pelos erros acadêmicos de interpretação e ação por nós cometidas, sem qualquer precaução, quanto a salvaguardas que protegessem nossos interesses, nosso patrimônio e nossos programas. A ação equivocada do Estado brasileiro somada à desatenção leviana de nossa sociedade, induzida a aceitar posições e atitudes que não eram do seu interesse maior, e, do que se está percebendo tardiamente, conduziram-nos a uma situação aflitiva, quase desesperadora. Não há como continuarmos a nos iludir: a globalização veio para ficar e nossos erros – com dívidas conseqüentes – deverão ser purgados e corrigidos. Há que reduzir o ônus sobre nosso povo e reverter essa situação, com a urgência máxima possível. Inegavelmente, não poderíamos voltar as costas para o mundo, o qual cada vez mais, é um mundo só, a não ser que não existissem outras soluções ao nosso dispor. Pior que tal atitude, porém será a de ficarmos estáticos e continuarmos a ser engolidos, no ritmo frenético atual, sem qualquer reação em defesa do interesse nacional, o interesse de nós todos brasileiros. A compreensão da globalização, inclusive nas sutilezas das regras da Organização Mundial de Comércio e nas dos países e grupos poderosos e dos nossos parceiros, fornecerá informações e apontará alternativas para que possamos salvar-nos e voltarmos a trilhar nossos caminhos de grandeza, mediante a retomada de Desenvolvimento. 2. De início há necessidade de compreender-se que, hoje o mundo é regido por uma verdadeira ideologia geopolítica: a política de Poder em que se destacam as chamadas “leis do mercado”. Não está ela escrita mas é possível a sua dedução (Quadro 1). Politicamente, cada vez mais, a Comunidade Européia busca escapar da hegemonia norte-americana o que ainda não logrou alcançar; no entanto, tem conseguido alcançar boas posições nos organismos mundiais. Economicamente, há razoável grau de equilíbrio entre os grandes e médios Pólos de Poder (Quadro 2). As demais nações gravitam em torno dos grandes, conforme lhes é possível. Na verdade ocorre uma luta (nem sempre surda) entre as nações (Quadro 3). Nessa disputa, os grandes manipulam quase todos os instrumentos de Poder (Quadro 4). O Grande Centro de Poder é o Grupo dos Sete Grandes, com majoritária posição americana (G-7). Militarmente, a hegemonia norte-americana é absoluta. A Rússia (mais alguns satélites) é grande potência nuclear mas sua situação econômica afeta, de forma crescente, seu poderio militar e mesmo sua postura na política mundial. Do ponto-de-vista científico-tecnológico, a disputa é brutal, entre os grandes; cada grupo é prevalente em algumas áreas vitais. Os países restantes são totalmente dominados ou buscam – os que apresentam condições para isso – especializar-se em alguns segmentos do mercado. No que concerne ao campo psicossocial, os grandes não admitem mexer em seu “status quo”; no máximo pretendem e buscam melhorar o padrão de vida de suas parcelas menos favorecidas, para melhorar sua média a qual já é boa. Logo, os países que estão abaixo do equador, somente receberão produtos excedentes. Quanto a recursos financeiros, virão sob condições que não afetem a vida dos poderosos, isto é, pelo menos pagarão juros de mercado. Assim, fica óbvio que, só com planejamento próprio, inovador e muito trabalho interno, poderão as demais nações equilibrarem suas situações. 3. Comporta atentarmos para algo que, ante o tumulto financeiro que nos aflige, tem passado desapercebido para muitos. É público que fluxos financeiros circulam pelo mundo não como dinheiro vivo, mas como créditos e débitos que vão e voltam pelos computadores: é a famosa “ciranda financeira”. Esse jogo, que poucos dominam perfeitamente, tem processado a transferência da propriedade de empresas e de grupos empresariais. Mas, e isto é o que queremos salientar, os produtos, industrializados ou não, obrigatoriamente, circulam por vias de transporte que não são eletrônicas. Pelo (Quadro nº 5), poderemos verificar o seguinte: Nos séculos XIX e XX o comércio mundial circulou, majoritariamente, pelo ATLÂNTICO NORTE. O BRASIL a ele integrou-se, tendo que remeter seus produtos por longas rotas marítimas. Esteve sempre em desvantagem. No próximo século, o grande volume de mercadorias circulará entre a Ásia e a costa oeste americana. O segundo volume de mercadorias circulará pelo ATLÂNTICO NORTE. O BRASIL ao que tudo indica, continuará em situação de inferioridade em relação a essas duas grandes rotas marítimas. Salta a vista, porém, que o BRASIL tem excelente posição na AMÉRICA DO SUL, se decidir utilizar rotas terrestres, por vias interiores. O uso de introvias, ferrovias bem dirigidas e rodovias complementares se inteligentemente traçadas, facilitarão, em muito, o acesso aos países andinos bem como a portos do PACÍFICO, no CHILE e no PERU. Haverá oportunidade de comércio da origem com pontos intermediários, tanto no Brasil, quanto naqueles países, antes de ser alcançado o oceano e vice-versa. O mesmo ocorrerá, se buscarmos ligações com Colômbia e Venezuela, na direção do Caribe. O oceano ATLÂNTICO coloca-nos em posição vantajosa em relação ao MERCOSUL e à ÁFRICA ocidental, em especial a Angola, Namíbia e África do Sul, e, em boa situação na direção do golfo do MÉXICO. Ficam assim evidentes as grandes linhas a serem seguidas pela geopolítica brasileira. Não está claro, porém, que lideranças econômicas e a área pública que cuida de nosso comércio exterior estejam dando prioridade a exploração destas reais vantagens comparativas. De modo geral – pelo processo histórico e pela formação auferida em escolas americanas e européias, só raciocinam com os dois grandes mercados para os quais sentem-se atraídos e com os princípios e regras deles. Por tudo isso, cresce a importância de que novos parâmetros sejam introduzidos na formulação e condução de nosso comércio exterior. O primeiro deles é o de que o COMÉRCIO EXTERIOR não pode ter sua política elaborada somente pelo MRE. O segundo parâmetro é o de que deverá caber ao empresaria-do brasileiro influenciar decisivamente nas grandes linhas de uma nova política de comércio exterior, contando, é verdade, com o assessoramento político-diplomático do Itamarati; não ao contrário como sempre ocorre. As instituições privadas brasileiras de expressão (não confundi-las com filiais de empresas multinacionais, as quais também participam de nosso Desenvolvimento), sob a ética exclusiva de nossos interesses, devem com urgência, fazer-se presentes nos planejamentos e nas negociações, eis que são, do mesmo modo, expressões naturais e legítimas da voz da sociedade junto ao Estado. 4. Com o processo de privatização a que estamos sendo submetidos – componente apresentada como essencial à globaliza-ção, nada nos tem sido facilitado. Em contrapartida, o que assistimos é a descontrolada desnacionalização de nossas empresas públicas e privadas, o que já ultrapassou a casa dos 50% e, a crescente ampliação de nossas dívidas. O desdobramento natural dessa postura é que nosso mercado interno passou a ser também “deles”, sem que os “deles” sejam também “nossos”. Nossos órgãos públicos financiam essas transferências e, para o dinheiro envolvido, a Nação lhes oferece convenientes garantias. A estratégia do governo já elevou a dívida total para cerca de 500 bilhões de dólares. Com isso, agrava-se o serviço correspondente, insuportável e crescente encargo sobre nosso povo, pois foi tomado emprestado em seu nome. Acreditaram os que nos dirigem que, por lógica e ética, os mercados dos beneficiários por nossa atitude liberal, unilateral, infantil e quase suicida abrir-se-iam, automaticamente, a nossos produtos. Nada disso ocorreu nem ocorrerá, pelos indícios que se nos apresentam, seja qual seja o continente para o qual nos voltemos. É verdade que temos recebido empréstimos os quais permitem que não nos afoguemos, mas não dão suporte a caminhos para um progresso sólido em benefício de nosso povo. Quer parecer que convém sejamos mantidos nessa situação pantanosa, para que não cresçamos, passando de competidor indesejável a dependente útil. JOSÉ BONIFÁCIO e ANTÔNIO CARLOS ANDRADA E SILVA devem estar a tremer em seus túmulos, ao verem repetir-se o que combateram nos albores de nossa independência. 5. A crise econômico-social, em que nos encontramos, traduz-se em grande número de óbices expressivos a exigirem providências; entretanto, ações imediatas e de curto-prazo não podem nem devem ser tomadas sem que saibamos avaliar suas repercussões a médio e longo prazos, sobre nós próprios. Em outras palavras, não podemos mais destruir os remanescentes grandes centros de Poder Nacional como Petrobrás e Banco do Brasil e hipotecar o futuro de nosso povo para aliviarmos o presente. É indispensável que a nação e seus dirigentes conscientizem-se de que presente, futuro próximo e futuro afastado estão entrelaçados mesmo. Não ficará impune, para nosso povo o continuado transferir de Centros de Poder Estratégicos para as mãos de estrangeiros. 6. O erro de hoje será a causa do prejuízo para outras gerações. 7. Urge a conscientização da população e a articulação de ações conjuntas por parte das entidades representativas, em especial, empresariais e de empregados. Só assim teremos condições para influenciar, de forma preponderante e em tempo útil, as decisões e prioridades que o Estado pretenda tomar, em qualquer de seus Poderes, em todos os níveis de responsabilidades (Federal, Estadual e Municipal), e, alertamos, tomadas todas em nosso nome. Impõe-se estudarmos formas diretas e/ou indiretas de proteção aos produtos nacionais contra predatória concorrência externa, sem que isto represente ausência de exigência de qualidade e preço a nossos produtos, ao contrário. Ao mesmo tempo deveremos atuar em defesa de nossos empresários e contra a predação internacional. Entre outras palavras, deveremos valorizar, fortalecer e ampliar nosso mercado interno, o qual em última análise somos todos nós brasileiros (quadros 6, 7 e 8). O papel do Estado, em, especial da União, é preponderante senão essencial: há que criar condições para o surgimento de empresas e produtos nacionais competitivos que reduzam o dispêndio excessivo em dólares, como hoje ocorre. A redução de despesas externas e a geração de empregos serão alcançados com razoável rapidez e aliviarão nossa balança comercial. Por outro lado ampliarão nosso Produto Interno Bruto e redistribuirão a riqueza para novas parcelas da população que retornarão ao mercado de trabalho. O alívio da pressão fiscal e de impostos sobre pequenas e médias empresas, inegavelmente, é uma trilha que poderá ser alargada com medidas inteligentes e objetivas, as quais com presteza gerarão a ampliação e a acumulação de riqueza nacional. Deveremos buscar fórmulas de reciprocidade: aqueles que nos vendem muito, deverão, também, comprar-nos muito! Quem nada nos compra, nada nos venderá! Aqueles que utilizarem “dumpíng” deverão ter seus produtos cerceados no acesso ao mercado interno. Essas posições deverão manifestar-se em todas as áreas de atuação: política, econômica e comercial, científica e cultural, tecnológica e mesmo militar. Deveremos pressionar a área pública até que a mesma se sensibilize e aceite nossas proposições. 8. Como exemplo do que ainda poderá ameaçar-nos, ao arrepio das normas internacionais da OMC, às quais deveria respeitar, a AMÉRICA DO NORTE ameaça taxar brutalmente e já o vem fazendo, produtos para os quais os seus perdem em competição igual. É didático o caso da banana da América Central – propriedade de dois grupos norte-americanos. Sentindo dificuldades para seu ingresso na EUROPA, tiveram em seu socorro, às claras, o rápido suporte governamental com ameaças e medidas de sanções imediatas sobre inúmeros produtos europeus. No caso, não interessa saber quem tem razão. Um Estado forte e ágil apoia suas empresas. ESTE É O GRANDE ENSINAMENTO. Este comportamento dos grandes não é novidade: foi sempre assim. O que ocorre hoje é que tais ações são muito mais às claras. Nunca sentimos enquanto fomos de pouca expressão mundial e o mundo era bi-polarizado. Com todas as dificuldades presentes estamos entre as quinze maiores economias mundiais. Por isso ao observarmos tais ações estratégicas fortes, é forçoso reconhecer que as mesmas decorrem do somatório do poder da iniciativa privada com o do Estado: é isto a que se chama de Emprego Do Poder Nacional. Embora poucos o avaliem – pelo pessimismo e pela alienação imperantes – o BRASIL, com o MERCOSUL, constitui o maior mercado ainda não integralmente dominado, seja pelo NAFTA seja pela COMUNIDADE EUROPÉIA. Caso não consigamos espaço fora do MERCOSUL, deveremos fortalecê-lo e expandi-lo em proveito de seus membros. Por tudo isso, preconizamos que a sociedade brasileira se articule e se organize para poder aplicar o seu poder, seja ante o Estado brasileiro, quando este ferir os seus legítimos direitos de cidadania, seja unindo esses dois poderes para defender qualquer campo ou interesse nacional, quando atingido ou ameaçado por pressões com origens internas (o que por vezes ocorre), externas ou combinadas. A compreensão do que seja o valor do Poder Nacional pode ser alcançada com mais um exemplo destes dias: o governo americano decidiu, ameaçou e fez executar ataques militares aéreos contra a Iugoslávia. Quem poderá ou irá auxiliá-la nesta emergência se a NATO endossou a decisão americana coonestando-a? Não cremos que a Rússia ultrapasse protestos e ações inócuas. Incontinente a mídia internacional com a nossa em seguimento, mostrou o que quis e como convinha ao governo americano. Mas se fosse contra a Comunidade Européia, (como no caso da banana) ocorreriam represálias militares também? A NATO daria suporte ao poder militar norte-americano? E se fosse contra o Brasil, condenado, por hipótese por “prejuízos ao meio ambiente”? ou Por causa da “Nação Ianomami”? Receberíamos alguma ajuda militar ou de qualquer ordem? De quem? Qual a estatura de que o Brasil, isoladamente, dispõe nesse quadro, para dissuadir eventuais intervenções externas, militares e outras? Se o MERCOSUL for consolidado nossas posições serão reforçadas? Mas, se o MERCOSUL fracassar, como deveremos agir? É pois, com visão estratégica geopolítica, ampla e global que deveremos atuar. Brasil por sua vastidão e população, mesmo sem contar com as outras nações da América do Sul (na pior hipótese e se estas não o desejarem) ainda é o maior mercado disponível do mundo. O grande segredo, sem que se abandone o comércio internacional como acima caracterizado, será promover a expansão geográfica e econômica de seu mercado interno próprio. GEOPOLÍTICA MUNDIAL (DEDUZIDA) OBJETIVOS RESTRIÇÃO ÀS SOBERANIAS NACIONAIS NEUTRALIZAÇÃO DOS PODERES NACIONAIS INTERNACIONALIZAÇÃO DOS MERCADOS INTERNOS (DOS OUTROS) PROTEÇÃO DISSIMULADA E HÁBIL DOS MERCADOS INTERNOS (PRÓPRIOS) ESTRATÉGIAS GLOBALIZAÇÃO (INTERNET) PRIVATIZAÇÃO REDUÇÃO DOS ESTADOS – ALVO APOIO A "DIREITOS" DAS MINORIAS CONTESTADORAS DAS NAÇÕES-ALVO MANEJO E CONTROLE DOS RECURSOS FINANCEIROS INTERNACIONAIS COMBATE A TRABALHO "ESCRAVO" E DE MENORES "DEFESA" DO MEIO AMBIENTE COMBINAÇÃO DE PRESSÕES INTERNACIONALIZAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS AÇÃO INDIRETA E CONSTANTE POR QUANTIDADE CRESCENTE DE ONG PÓLOS DE PODER USA / NAFTA GRANDES COMUNIDADE EUROPÉIA JAPÃO / ÁSIA RÚSSIA CHINA BRASIL / AMÉRICA DO SUL MÉDIOS ISRAEL / ÁRABES ÍNDIA PASQUISTÃO INDONÉSIA E AUSTRÁLIA LUTA ENTRE NAÇÕES (NEM SEMPRE SURDA) GAR AN TIA FU TUR A 1. 2. MATÉRIAS PRIMAS CATIVAS MERCADOS DISPUTA POR CAPITAIS 3. 4. TECNOLOGIAS ESPECIAIS 6. SATÉLITES 7. MÍSSEIS 8. ENERGIA NÚCLEAR 9. BIOTECNOLOGIA 10. INFORMÁTICA 5. TELEINFORMÁTICA (REDE INTERNET) 6. DOMÍNIO DAS INFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS G7 OEA ONU BM OTAN INSTRUMENTOS DE PODER MÍDIA OMC ONG BID MERCADO INTERNO DE TRABALHO DE INVESTIMENTO MERCADO INTERNO DE SUPRIMENTO DE CONSUMO MERCADO INTERNO FINALIDADE PRIORITÁRIA GERAR EMPREGOS GERAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZA ACIONAMENTO DO DESENVOLVIMENTO AUMENTO DE PRODUÇÃO ACIONAMENTO DO DESENVOLVIMENTO AUMENTO DE CONSUMO MERCADO INTERNO NECESS IDADES DESPESAS SALÁRIO S UPRIMENT OS EMPR EGO RECE ITAS CUST O IMPOSTOS INVEST IMENT O LUCRO EMPR ESA NO BRASIL EMPR ESA NO EXTERIOR DESE MPRE GO NO BRASIL CUSTE IO IMPOSTOS LUCRO EMPR EGO NO EXTERIOR (*) General de Exército e Ex-Comandante da Escola Superior de Guerra OS MILITARES E A POLÍTICA Hernani G. Fortuna(*) “A guerra é um fenômeno da paz, assim como a morte é um fenômeno da vida” Rui Barbosa – Cartas da Inglaterra A inserção do Brasil da América do Sul resulta de uma imensa fronteira terrestre que recebe estímulos de dez países, alguns ainda com efeitos mais recentes dos colonizadores do Primeiro Mundo e estamos falando aqui das três Guianas. Por outro lado, há uma imensa fronteira líquida mergulhada no Atlântico e, a partir da qual, se identifica uma concepção estratégica hodierna que assegure uma capacidade de defesa, basicamente alicerçada em instrumentos de dissuasão, visando a preservar um patrimônio representado pelo triângulo geopolítico brasileiro, por uma plataforma continental e por uma ZEE indispensáveis ao processo do desenvolvimento e da segurança nacionais, sem esquecer o pioneirismo de uma presença marcante na Antártica. Há necessidade de definir-se com clareza os interesses nacionais e os objetivos estratégicos da Nação Brasileira. Essa definição foi feita, com rara felicidade, logo após a Independência, e se explicitava na preservação da nova condição política, na fixação de novas fronteiras e no desenvolvimento da economia através da participação no comércio internacional. A lucidez de José Bonifácio levou à criação imediata dos Ministérios da Justiça, da Marinha e do Exército, visando à integridade do patrimônio nacional, onde a Amazônia já preocupava o Poder Central pelo seu isolamento e distância. Se a presença do estamento militar foi decisiva para a integração do território nacional do BrasilColônia, essa presença não foi menor nos períodos do Brasil-Império e do Brasil-República. Podemos afirmar que a história da Nação Brasileira é quase a história de suas Forças Armadas, presentes em todos os acontecimentos que antecederam à Independência e que a sucederam, seja no Império ou na República. De Norte a Sul, no Império, a Cabanagem, a Balaiada, a Sabinada, a Praieira, a Farroupilha e as lutas externas no Cone Sul foram decididas pela presença militar na política e nos campos de batalha. Consideramos correto que a República foi o divisor de águas no desenvolvimento militar e na vida política e institucional do País, após uma longa caminhada de 67 anos de Império. A classe política, então detentora do Poder Civil, isolou e desprestigiou o Exército, criando antagonismos e separando os “casacas” dos militares. Essa separação veio no bojo de medidas como: a) afastamento dos militares das posições de influência política; b) redução à metade dos efetivos do Exército; c) criação da Guarda Nacional; e d) geração de dificuldades no convívio militar. Essas medidas já haviam sido precedidas, na pacificação do Império e nas lutas do Cone Sul, por situações constrangedoras como atraso no pagamento dos vencimentos, incerteza e irregularidade nos fornecimentos logísticos e angústia na entrega de equipamentos. A Guerra do Paraguai influenciou a oficialidade brasileira e ali se consolidaram os sentimentos de honra, dever e lealdade, alguns, dentre tantos outros sentimentos, que constituem o espectro da virtude militar que lhe é transmitida ao longo de toda uma vida. John Schultz no Brasil Monárquico da História Geral da Civilização Brasileira – Tomo 2, cita às páginas 252. “O corpo de oficiais emergia da guerra do Paraguai com um sentimento de unidade corporativa, um novo sentido de sua importância, uma amargura para com os civis e, talvez, com uma visão do mundo mais ampla. Os Oficiais contrastavam seus sacrifícios e os de seus homens com a corrupção dos políticos e tiravam daí as amargas conclusões que deveriam guiá-los em suas atividades políticas no após-guerra.” O Império deixava de existir, a República estava proclamada e era urgente a passagem do Estado unitário para o Estado federativo. O Governo Provisório, com Deodoro e Rui Barbosa à frente, mostrava que queria correr contra o tempo. Os aspectos de indisciplina no Exército, não extirpados por Benjamin Constant, fizeram que Floriano Peixoto, militar de carreira, herói do Paraguai, fosse nomeado para a pasta da Guerra aos 61 anos de idade. Na elaboração da 1a Constituição Republicana de 1891, a presença de Deodoro e Rui Barbosa foi uma constante. A respeito da imunidade dos senadores e deputados, no Art. 22, assim se manifestou Deodoro: “O homem sério, verdadeiro e de caráter nobre, não admite o disposto neste artigo”. Rui Barbosa elaborara o mandamento constitucional que eliminaria qualquer possibilidade de dissolução do Exército, o que tantas vezes tentou a monarquia. “As forças de Terra e Mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria, no exterior, e à manutenção das leis no interior”. Essa premissa foi acrescida por outra cláusula “A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais”. A 15 de setembro de 1890, foram realizadas as eleições para o Congresso Constituinte. Da mensagem que Deodoro transmitiu à Assembléia Constituinte são aqui explicitados trechos importantes: - Não se mudam instituições para persistir em defeitos inveterados. - Nas revoluções em que preponderam os privilégios sobre a trilogia sagrada do direito, da justiça e da liberdade, os povos visam, antes de tudo, melhorar as condições, fortalecer o império das leis e reivindicar o papel que lhes cabe na sociedade. - Viemos de um passado de opressivas desigualdades sociais e de um regime onde o império da lei se achava falseado. Deodoro foi eleito como 1o Presidente da República com 129 votos contra 79 dados a Prudente de Morais, e Floriano foi eleito com 153 votos contra 57 dados ao Almirante Wandenkolk. Como 2o Presidente da República, o Marechal Floriano demonstrou notável acuidade política, que tanto faltou a Custódio de Mello, a Saldanha da Gama, a Eduardo Wandenkolk e ao próprio Deodoro da Fonseca. Não pôde administrar, não permitiram que o fizesse. Combateu, guerreou, venceu, mas não foi magnânimo na vitória. Entretanto, o período de Floriano traz em seu bojo dois ensinamentos fundamentais: - Não existe mal pior para uma Nação do que a guerra civil; - Forças Armadas unidas e fortes são fatores imprescindíveis ao respeito das instituições, à estabilidade política e à segurança nacional. Na República Velha, vigia o equilíbrio político do eixo São Paulo-Minas Gerais e, apenas, um militar chegaria novamente à Presidente da República, na figura do Marechal Hermes da Fonseca. Somente em 1930, surgia um novo Governo Provisório com a revolução que se inicia no Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba. A alma popular confraternizava com os representantes das Forças Armadas e, dentre as idéias centrais do programa de reconstrução nacional, podemos destacar a “remodelação do Exército e da Armada de acordo com as necessidades da defesa nacional”. A revolução paulista de 1932 é inesperada e singular, e o situacionismo reinante, em Minas Gerais e Rio Grande do Sul, apoia Getúlio Vargas, derrotando o movimento paulista. A Lei de Segurança Nacional, de 4 de abril de 1935, não conseguiu evitar a Intentona Comunista de novembro desse ano, quando, mais uma vez, as Forças Armadas sufocaram uma rebelião dentro de seu próprio seio e que poderia trazer para o país conseqüências graves e imprevisíveis. Finalmente, o Estado Novo, de 10 de novembro de 1937, interrompe qualquer possibilidade de vigência da Constituição de 1934 e uma nova Assembléia Nacional Constituinte só seria concretizada em 1946, após a 2a Guerra Mundial, que trouxe como conseqüência imediata a queda de Getúlio Vargas do Poder. A participação efetiva do Brasil nesse conflito mundial trouxe profundas alterações à vida político-institucional da Nação, que assistiu a marcos históricos, como a Carta das Nações Unidas e a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no plano internacional, e à implantação da Democracia de direito, através da Constituição Federal de 1946, no plano nacional. Nesse contexto, firmou-se o entendimento de que o desenvolvimento brasileiro dependia da identificação e da superação dos óbices que o entravavam, e a forma adequada de acelerar esse desenvolvimento seria o trabalho em conjunto, através de um método de planejamento para uma ação política que teria como moldura a visão realista da conjuntura nacional e internacional e a natural inserção do Brasil nesse cenário, na busca contínua de uma sociedade ética, moral e justa. Se a classe política atendeu a esses parâmetros, através da promulgação de uma Constituição moderna, em 1946, onde constituintes como Afonso Arinos, Milton Campos e Raul Pila, emprestaram o brilho de sua projeção política e jurídica, as Forças Armadas, ungidas pela presença heróica e marcante nos campos da Itália e no Atlântico, impregnaram o ambiente nacional com os perfis de Chefes como Castello Branco, Mascarenhas de Moraes, Juarez Távora, Eduardo Gomes, Soares Dutra, Ary Parreiras e Rubem Cox. O General Eurico Gaspar Dutra foi eleito Presidente da República, pelo voto direto, para o quadriênio 1946 – 1950. A eleição de Getúlio Vargas, em 1950, viria a gerar conflitos permanentes na ordem política, social e militar do País, em toda a extensão de seu mandato, não concluído e interrompido com seu suicídio em 1954. O término da 2a Guerra Mundial evidenciou que, ao imenso esforço nela empregado, não se seguiu a paz desejada e que, entre as potências beligerantes, ocorreu, simplesmente, a mudança da relação amigo-inimigo. Os dois grandes aliados durante a guerra – Estados Unidos e União Soviética – se tornaram antagonistas; o mapa político da Europa foi profundamente modificado e o conflito armado foi substituído pelo conflito ideológico, com o emprego da guerra psicológica e de outros ingredientes no que se chamou guerra fria e confronto Leste-Oeste. A década de 1954 – 1964 foi dominada, no Brasil, pela presença constante das duas ideologias contidas no confronto Leste-Oeste, interpretadas aos sabores da conveniência da classe política e das convicções das Forças Armadas, onde a Escola Superior de Guerra, criada em 1949, e que, ao contrário das Escolas de Altos Estudos das Forças Singulares, não era destinada, exclusivamente, a militares, mas, também, a civis de atuação relevante na orientação da política nacional. A constituição liberal e democrática de 1946 não conseguiu dar estabilidade ao regime político, duramente testado naquela década de 54 a 64. Houve a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitchek, em 1955, neutralizada pelo General Henrique Lott; a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, com nova intervenção das Forças Armadas para assegurar a subida de João Goulart ao poder e, finalmente, a deposição do próprio João Goulart, em 31 de março de 1964, após um conturbado período, onde o Congresso estava sendo violentamente pressionado a votar reformas de base, de cunho nitidamente populista – marxista e que não atendiam aos interesses nacionais. As Forças Armadas foram envolvidas nesse cenário; tiveram seus alicerces basilares de hierarquia e disciplina erodidos com a participação direta de seu Comandante Supremo que tentou subverter aquelas premissas, utilizando um diálogo direto com graduados e subalternos, em detrimento das lideranças e chefias, legitimamente constituídas ao longo de décadas de profissionalismo e dedicação exclusiva aos interesses da Pátria. A eleição de Castello Branco pelo Congresso Nacional, inclusive com o voto de Juscelino Kubitchek, dirimiu as concepções conflitantes sobre aquilo que estava sendo considerado, por muitos, como o bem comum. Não é de hoje que alguns sonham com a possibilidade de transformar o mundo, deste o mito de Prometeu, até a criação de utopias como a de Platão e a de Tomas Morus. Castello Branco tinha o perfeito conhecimento de que nenhuma forma de organização econômico-social eliminou as carências ou extinguiu a pobreza. Assim, procurou efetivar o processo de racionalização da ação política, visando à modernização do País e à aceleração de seu desenvolvimento, aspirações de ponderáveis parcelas das elites civil e militar e que as práticas, então vigentes, estavam longe de alcançar. Firmava-se, também, a convicção de que a racionalidade deveria estender-se a todos os processos da ação política, tanto na esfera da segurança quanto na do desenvolvimento. Castello revolucionou o panorama político, econômico, social e tecnológico com que se deparou ao assumir o Poder e, aqui, estão alguns dos fatos e medidas que corroboram aquela afirmação. Os partidos políticos foram estimulados a construir uma estrutura partidária que permitisse as alternâncias de poder sem conchavos e acordos espúrios. Foram criados o Banco Nacional de Habitação, o Programa de Ação Especial para o Desenvolvimento, o Banco Central, que nunca existiu no Brasil, as estruturas para uma participação efetiva na comunidade financeira internacional, os fundamentos para uma reforma agrária justa, através do Estatuto da Terra, um programa permanente de estabilização econômica com um combate sistemático à inflação, a disseminação no psicossocial da sociedade da necessidade de existir um sistema de poupança que alavancasse o processo de desenvolvimento e crescimento do PIB e, finalmente, o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço, lacuna há muito existente na legislação trabalhista. O desenvolvimento tecnológico permitiu que fossem estabelecidas novas matrizes de energia, transporte e telecomunicações. Em 1964, nenhuma capital brasileira conseguia comunicação em telefonia com os eixos de decisão no Rio, São Paulo ou Brasília. Foi realizado um esforço extraordinário para inserir o Brasil no contexto de nações com maior grau de prosperidade, via pesquisa e desenvolvimento e ciência e tecnologia. No campo institucional, foi promulgada a Constituição de 1967, um excelente trabalho de nível político e jurídico que se mostraria muito superior, em seu conjunto, à Constituição elaborada, mais tarde, em 1988. Castello cometeu um grave erro ao limitar o seu próprio mandato a um período de apenas 3 anos. Tivesse um pouco mais de tempo para concluir seu governo – cinco ou seis anos – e feita a transferência de Poder à classe política, a história brasileira teria sido bem diferente nos últimos trinta anos. A permanência dos militares no Poder foi longa demais e as condições que existiram em 1985 estavam bem mais degradadas que aquelas que, provavelmente, estariam presentes ao final da década de sessenta. Apesar de tudo, o Brasil ao final de 1973, crescia a 14% ao ano, tinha uma inflação de 1% ao mês, uma dívida externa bruta de US$ 12 bilhões e reservas de US$ 6 bilhões, estando com seu PIB entre os oito maiores do planeta. Os indicadores sociais, nem de longe, se aproximavam dos índices, hoje existentes, onde a miséria e o desemprego geram a violência, destroem os valores e matam as esperanças de 60% de excluídos da população brasileira que não têm acesso à educação, à saúde, à justiça e à segurança. De 1974 a 1984 o País enfrentou cenários adversos como os dois choques de petróleo e a subida do nível de juros internacionais onde as taxas da “Libor” e da “Prime-rate” chegaram a 20% ao ano, tornando crítica a administração da dívida externa brasileira com déficits acentuados em suas transações correntes. Essas dificuldades não impediram uma abertura gradual e positiva no campo institucional, quando foram estabelecidas as bases de uma anistia ampla geral e irrestrita que culminou com a transferência do Poder à classe política em março de 1985. A partir daí, estabeleceu-se um sentimento de antagonismo, intolerância, preconceito e revanchismo, constantes, entre a classe política e o estamento militar, o que não foi alterado até os dias atuais. O comportamento da mídia só fez acelerar esses sentimentos que não enobrecem e não constroem a sociedade que todos gostaríamos de participar. A Constituição de 1988 perdeu uma oportunidade magnífica de reverter esse quadro, porém, demonstrou que era difícil de assimilar os princípios que regeram a anistia. É uma Constituição onde prevalecem os direitos e escasseiam os deveres, que enfraquece a União e permite a criação de Estados e municípios que não têm a menor condição de se auto-sustentarem, vivendo de doações e participações de uma tributação anárquica onde cerca de sessenta encargos e tributos tornam o País inadministrável, a sonegação elevada e os orçamentos meras obras de ficção autorizadas. Não fora esse o quadro verdadeiro em que vive o País, não estaria o Governo Federal empenhado em obter a Reforma do Estado a nível patrimonial, administrativo, previdenciário, fiscal e tributário. A Constituição de 1988 transformou os militares em servidores da União, esquecendo-se que pertencem às instituições nacionais permanentes, Marinha, Exército e Aeronáutica e que o perfil da profissão militar é a defesa da Pátria, tendo por isso peculiaridades inigualáveis com outras categorias. Nenhuma Constituição brasileira anterior, desde a de 1891, passando pelas de 1934, 1937, 1946 e 1967, deixou de considerar os militares com uma destinação constitucional específica. Dez anos foram necessários para que a emenda constitucional no 18 de 1998 corrigisse essa aberração existente na Constituição de 1988, embora não fossem alterados os conceitos distorcidos de “militares” nos estados federativos e no Distrito Federal. Esse não foi um caso isolado, pois deste 1985, quando o Poder civil assumiu os destinos do País, o estamento militar perdeu prestígio político, viu sua participação no orçamento da União diminuir, ano após ano, e seus vencimentos foram duramente atingidos, representando, hoje, a metade daquilo que lhe era devido em 1990. Essa não foi uma medida de caráter geral, pois outras categorias dos quadros da União foram privilegiadas, ou beneficiadas como o Corpo Diplomático, a Receita Federal, a Secretaria de Assuntos Estratégicos, a Polícia Federal, os Setores de Planejamento, Orçamento e Finanças e Cargos de Chefia e Assessoramento Superior em todos os Ministérios. Essa situação, também, beneficiou os integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário. Estabeleceu-se uma anarquia salarial no País, justificada pela necessidade de premiarem-se setores estratégicos onde, evidentemente, os militares não se enquadravam, numa ótica absurda, que mantinha os mesmos antagonismos, preconceitos e revanchismos do passado recente. Nestes últimos treze anos, nenhuma concepção política e nenhum conceito estratégico nacionais foram elaborados, visando à segurança, incluída aqui a defesa da Nação Brasileira. A política de Defesa Nacional, recentemente divulgada, é tímida, incompleta e não consegue enxergar possibilidades de conflitos no mundo pós-bipolar onde a ascensão solitária e hegemônica dos Estados Unidos trouxe-nos a globalização que está transformando, profundamente, as relações internacionais. Estamos falando aqui das transformações do “trade”, das finanças, do emprego, das migrações e da tecnologia, emoldurando o conceito de um Estado Virtual que, ao invés de acumular terra, capital e trabalho, preocupa-se com a estratégia e investe na qualificação de seus integrantes, visando à competição internacional. A globalização diminui, dessa forma, o poder dos Estados-Nação e a segurança e o governo estão progressivamente, subordinados a decisões que ultrapassam as fronteiras de cada país particular. Entretanto, as prioridades nacionais continuam subordinadas ao jogo político das ambições partidárias. Quando o perfil da sociedade brasileira apresenta 8% em sua elite, 2% de emergentes, 14% de remediados, 13% de decadentes e 63% de excluídos, o Governo hipoteca a reforma do Estado, visando sua reeleição, norma que nunca existiu na tradição institucional brasileira. Essa reforma, se votada corretamente, permitiria o equilíbrio fiscal e a reorganização das contas públicas, hoje estraçalhadas sob o peso de um déficit gigantesco onde as dívidas interna e externa atingem a valores nunca antes alcançados. Enquanto isso, o Ministério da Defesa é arquitetado de forma açodada, visando a afastar, ainda mais, a pouca ou nenhuma influência que os Ministérios Militares, eventualmente, possam reter na solução dos problemas nacionais. Novamente, o preconceito, o antagonismo e o revanchismo se fazem presentes, distorcendo a visão de uma medida que em nada contribuiu para o aprimoramento das Forças Armadas em nenhum país latino-americano. A América do Sul continua plena de contenciosos onde os mais importantes situam-se entre a Venezuela e a Guiana pela posse da bacia do Essequibo; entre a Venezuela e a Colômbia pelo litígio do Golfo da Venezuela; entre o Peru e o Equador pela questão da Serra do Condor; entre o Chile, Peru e Bolívia pela guerra do Pacífico quando a Bolívia perdeu a sua saída para o mar e o Peru os territórios que, hoje, estão na região norte chilena; entre a Bolívia e o Paraguai, onde ainda existem resíduos gerados pela guerra do Chaco; entre o Chile e a Argentina pelo canal de Beagle; e, entre a Argentina e a Inglaterra, pela posse definitiva das Malvinas. O Brasil não tem um contencioso definido nem problemas de fronteiras, porém, continua a apresentar problemas nas fronteiras. A região Amazônica, com seu imenso arco setentrional desde Tabatinga até o Amapá, apresenta uma vulnerabilidade apreciável às questões do narcotráfico, guerrilhas ideológicas e contrabando de armas que se desdobram a partir dos países vizinhos para o território brasileiro. Outras questões como a demarcação de terras indígenas, preservação ambiental, biodiversidade, províncias minerais extremamente nobres, elevada reserva de água doce e grande potencial energético determinam uma preocupação constante com o território amazônico, onde os Sistemas de Proteção e Vigilância, em implementação, têm vícios na origem de suas concepções, já que a satelitização desses sistemas deixou de ser monopólio nacional pela privatização da Embratel e os vetores avançados de sensoreamento não têm uma interação adequada com as plataformas onde serão instalados. Os militares sentem, hoje, o resultado de uma política iniciada há treze anos, onde a participação decrescente nos orçamentos fiscais da União e a degradação crescente de seus proventos e vencimentos, procuram turbar o caminho da modernização e do profissionalismo que sempre souberam perseguir. A história da Nação Brasileira confunde-se, entretanto, com a história de suas Forças Armadas, que saberão ultrapassar todas as dificuldades e vicissitudes do presente, buscando mais uma vez, como tantas fizeram no passado, assegurar a nossa independência, soberania, liberdade e segurança. REPENSANDO A ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA COMO A VEJO APÓS NOVE ANOS Valbert Lisieux Medeiros de Figueiredo(*) “Nada há de permanente, exceto a mudança”(Heráclito, 450 a.C.) Sim, repensando a Escola Superior de Guerra, em face da imperiosa necessidade deste trabalho, é a palavra de ordem devido às grandes mutações do mundo atual. O momento é este, quando se faz nova estrutura para as Forças Armadas em função da criação do Ministério da Defesa e quando se festejam suas Bodas de Ouro. Criada pela preocupação com a Segurança Nacional, é, inicialmente, dirigida por alguns daqueles remanescentes do Tenentismo, ainda cheios dos ideais renovadores de então e inspirados por um sentimento democrata, fortalecido pela participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, não poderia a Escola Superior de Guerra deixar de pensar em renovação e democracia. Surge, assim, a mais antiga instituição governamental de Estudos Estratégicos, de idéias, de pensamento livre, procurando conhecer os interesses e aspirações Nacionais com o intuito de buscar o Bem Estar Social para a Nação. É com estes mais altos e nobres desígnios que vejo a nossa Escola e é assim que ela tem se comportado neste cinqüenta anos de vida. Se, inicialmente, era prevista para estudar a Segurança Nacional, logo verificou ser impossível fazê-lo sem o devido estudo do Desenvolvimento, tão forte é a dependência dos dois temas. Cabe a transcrição do Paginário da Escola Superior de Guerra: Doutrina – 1989 (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA – 2000): “A razão de ser Escola Superior de Guerra é o estudo do Brasil, buscando conhecê-lo melhor para melhor serví-lo. A Segurança Nacional é tema fundamental e o estudo do Desenvolvimento – nele inserida a Justiça Social – é indispensável pela interdependência natural”. Nasce apolítica e apoliticamente se desenvolve. Idealizada para formação de elites militares, já, em 20 de agosto de 1949, quando nasce, acolhe militares e civis e, desde então, adogmaticamente passa a fornecer elites gerenciais, tão necessárias aos trabalhos nacionais e à sociedade. São, desde então ...... esguianos, orgulhosos de sua origem, vibrantes e a serviço da Pátria. Seus estagiários, recrutados das diversas regiões do País e possuidores das mais diferentes formações, trazem ao seu corpo discente uma experiência multifacetada de efeitos surpreendentes, elaborando estudos preciosos para o entendimento da Nação. Os estudos do campo econômico visto por médicos militares, sociólogos e outros etc, os do campo psicossocial visto por economistas, artistas, juristas etc; os do campo militar por políticos, atuários, veterinários, etc; os campo político por psicólogos, matemáticos, geólogos etc dão uma imagem real da Sociedade Brasileira e as verdadeiras aspirações desta Sociedade. Sua localização privilegiada, mercê do centro cultural, econômico e financeiro que é o Rio de Janeiro, facilita os trabalhos acadêmicos de seus estagiários, ampliando seus conhecimentos extracurriculares e o arrebanhamento de inteligências para seu corpo docente, bem como de conferencistas habilitados. Suas ligações com universidades permitiram o desejável reconhecimento de extensão universitária, meta lógica há muito perseguida e agora alcançada. Mas não é só a Escola Superior de Guerra. Não é possível falar-se da Escola sem ressaltar a também importante Associação de seus Diplomados com suas ramificações, a difundir ensinamentos dela emanados. Divulgam a doutrina, estudam a conjuntura, conhecem o Brasil, e, o mais siginificativo, preparam-se para cargos em âmbito federal, estadual e municipal. São 27 Delegacias, 120 Representações, que em seus cursos, anuais, buscam, orientados pelos ONP e ONA, os objetivos de governo nas suas esferas de administração. São 72.000 brasileiros assim engajados, aproximadamente. É necessário que o Governo Federal veja a grande validade desta realidade esguiana e a grande tribuna por ela formada, e lhes dê, tanto à Escola Superior de Guerra como à Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, o devido valor político, propiciando-lhes os meios adequados e necessários às suas atuações. O retorno, já enorme, só poderá trazer mais resultados positivos. Acredito que desnecessária, grande expectativa, a transferência, na atual estrutura militar, da subordinação direta da Escola Superior de Guerra, passando do Ministro para uma Secretaria, bem como a passagem do cargo de Comando da Escola, antes de um Oficial General do último posto, para, agora, um Oficial General de posto imediatamente inferior. A orientação dos estudos da Escola Superior de Guerra deve ser pessoal do Ministro e o contato entre ambos o mais próximo possível. Mas nada há de permanente. As nações estão em constantes transformações e suas relações também. Nosso mundo muda diariamente. As comunicações instantâneas trazem-nos a uma globalização das finanças, mercê do sentimento de lucro dos grandes capitais. As economias organizam-se em mercados comuns, que tendem a se globalizar. A ecologia se transforma em interesse de todos, para preservação deste nosso grande ecossistema , razão de nossa sobrevivência; a conservação dos mares torna-se de interesse mútuo das nações. A tecnologia dispara. A genética faz clones e está perto de curar doenças, e a renovação será constante. As guerras são vistas, por todos, em tempo real. Os conflitos deixam de ser feitos à procura de espaço vital, pois a economia não mais respeita fronteiras. As disputas atuais situam-se nas esferas étnica e religiosa. As ideologias políticas tendem a desaparecer, graças à procura de um mesmo propósito: o Bem Comum. Nada mais atual, pois, que a preocupação com a Segurança, diante as atuais ameaças à soberania. Nada mais atual, pois, que a preocupação com o desenvolvimento diante dos atuais aperfeiçoamentos tecnológicos. Nada mais atual, pois, que o tema Segurança e Desenvolvimento. O tema é atualizado, mas estaria a doutrina da Escola respeitando estes grandes impactos? Acredito que não e, se assim for, precisamos urgentemente de uma revisão doutrinária. Seus valores e princípios provavelmente não necessitarão de atualizações, pois podem ser considerados permanentes. Estaria, entretanto, acontecendo a mesma coisa com seus conceitos, métodos, processos e técnicas? Aproveito este cinqüentenário de nossa Escola para fazer um apelo ao seu Corpo Permanente e sua Junta Consultiva, no sentido de que, orientados pelos seus maiores, meditem sobre as transformações necessárias. Das autoridades da nova estrutura militar esperamos que procurem sanar possíveis equívocos cometidos e dêem o apoio adequado a este órgão que sempre foi e continuará a ser de grande valia à Nação. (*)Almirante-de-Esquadra (Reformado) KOSOVO, ALGO NOVO? Luiz Sanctos Döring(*) “... o neoliberalismo é uma teoria globalizante, e contribuiu muito diretamente para as forças globalizantes .... Como defenso-res da nação tradicional, contudo, os neoliberais adotam uma teoria realista das relacões internacionais - a sociedade global ainda é uma sociedade de Estados-nações, e num mundo de Estados-Nações o que conta é o poder. A prontidão para a guerra e a sustentação do poderio militar são elementos necessários aos Estados no sistema internacional”. (A Terceira Via, Anthony Giddens) “Os povos mais civilizados acham-se tão próximos do barbarismo quanto o metal mais polido da ferrugem”. (Palavras de Rivarol,citadas por John Lukacs,em O Fim do Século 20). Muito tem-se escrito a respeito de Kosovo e, certamente, muito escerever-se-á entre a data em que concluímos este texto, 31 de maio de 1999, e a de sua publicação. Principalmente sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, com opiniões tão divergentes quanto as de Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz em 1986, e Noam Chomski, autor americano bastante conhecido, professor do Massachussets Institute of Technology, MIT (Jornal do Brasil, 8 de maio e 25 de abril, respectivamente). Depois da Guerra do Golfo, os conflitos internos da Iugoslávia vêm caracterizando-se como uma das maiores preocupações, no cenário internacional, de governos e cidadãos da Europa e dos Estados Unidos da América. Há relativamente pouco tempo encerrada a crise da Bósnia-Herzegovina, estoura a de Kosovo. O que não surpreendeu. Como afirmou Leão Serva, em sua obra “A batalha de Sarajevo” (1994): “Habitada por uma maioria de 90% de albaneses, Kosovo sempre foi considerado barril de pólvora da Iugoslávia. Muitos analistas escreveram sobre o risco de uma guerra na Iugoslávia e sempre o movimento autonomista da província era apontado como o estopim da fragmentação nacional.” (p. 271). Nos primeiros meses deste ano ocorreram fatos esperados - como o fracasso das negociações de Rambouillet - e outros inesperados, sobre os quais vale a pena perguntar: são coisas novas? Se afir- mativa a resposta, o que mudará nas relações internacionais, a partir destes fatos? São questões importantes e desafiadoras, que tentaremos discutir, sem a pretensão de respondê-las. Vale ressaltar que os dados sobre acontecimentos mais recentes, citados no texto, foram coletados nos veículos da imprensa, posto que outras fontes de consulta ainda não se encontram disponíveis. Comecemos. Algumas Previsões. Em 1988, nas páginas finais de “A paz é possível?”, que o Serviço de Documentação da Marinha publicou no ano seguinte, fazíamos uma avaliação prospectiva do cenário internacional. Quando as redigimos, ainda existia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, embora estivesse praticamente claro que se desmobilizava a sua atitude de conflito incondicional com o Ocidente, que se expressava, ideologicamente, sob forma de dicotomia comunismo x capitalismo. Reproduzimos, a seguir alguns trechos. “Todos aqueles que se dedicam a disciplinas que estudem a evolução sabem que a ‘complexificação’ constitui a sua caracterís-tica básica. Ao longo da linha evolucionária, as soluções complexificam-se, passando a um estágio seguinte” (p. 108). “ O processo de complexificação reduziu os núcleos de poder mundiais a apenas dois. A partir daí, a palavra está com os EUA ou com a URSS. Estes são, em verdade, os atores principais. Qual a conclusão desta redução de personagens? O processo levaria a uma única potência? (ps. 133 e 134). “Estamos, pois, diante de um par de modelos de complexificação. Um centralizado, que pode cristalizar-se em torno de dois ou três centros imperiais, estacionado ou tendendo para um único. O outro democrático, evoluindo espontaneamente da experiência da ONU. Parece-nos que a importância da Organização está no seu papel de laboratório e de espaço psicológico de onde nasça a vontade política de atuar sobre a complexificação, pela via da democracia”(p. 135). “No caminho da centralização imperial, a paz global estará ‘sub judice’ dos poucos núcleos de poder, como acontece nestes tempos. Seria o percurso mais perigoso; todavia corre-se o risco de tornar-se inevitável. A outra via passa, necessariamente, pela experiência da ONU; o caminho do consenso, em que cada Estado abrirá mão de parte de sua soberania, em benefício da convivência macrocomunitária. Em face da crescente interação entre os povos, que evolui em escala geométrica, não há como escapar deste pressuposto. Muitas regras comuns e arbitragens centralizadas. Mais uma vez ,citamos o caso da Europa Ocidental, nos dias correntes.”(p. 136). “Neste novo mundo, que pode vir a ser, ou não, de fato “adorável”, as Forças Armadas exercerão a função disciplinadora (naturalmente, em caso de império, o poder militar imperial, com a participação ou não das populações dominadas, desempenhará papel coercitivo), não contra as células integrantes, mas contra a ação “marginal” ....” ( p.136). Nas linhas que seguem, além de buscarmos as “novidades” presentes no conflito de Kosovo, procuraremos verificar como se inserem nestas previsões alternativas. Antes, porém, talvez com alguma pretensão em face da complexidade do tema, procuremos avaliar ... A Alma do Povo Todo povo possui uma alma. Um arquivo de significativas experiências passadas (muitas vezes arcaicas) e contemporâneas, gratificantes ou frustradoras, gloriosas ou traumáticas, específicas daquela gente; a par de certos costumes tradicionais e valores fundamentais, cultivados através do tempo. Esta alma o predispõe para sentimentos e reações comuns, principalmente quando em comportamento coletivo. Naturalmente, nem todos os registros acumulados neste arquivo estão vivos na memória da geração presente; muitos acham-se infiltrados nos valores e costumes e alguns submersos no inconsciente coletivo. Quando o povo se identifica como nação, nos permitiríamos usar as expressões consciência nacional e inconsciente nacional, para classificar estes conteúdos que os indivíduos em princípio levam consigo, além de suas experiências pessoais. O conhecimento desta alma põe-se como fundamental, quando se pretende empreender qualquer ação de grande magnitude, pacífica ou bélica, tendo um povo como alvo. Também e principalmente, quando se vai desenvolver o controle de crise ou tomar decisões estratégicas, máxime as do nível da Grande Estratágia. Os Estados-Maiores e Gabinetes que estudam as macrodecisões não podem prescindir de equipes especializadas nos estudos das almas nacionais , inclusive de seu próprio povo. Os comportamentos de uma nação podem ser previstos com razoável grau de probabilidade, naturalmente em determinada conjuntura. O negligenciar a análise destes aspectos pode contribuir para insucessos, como o do Iraque, quando invadiu o Kwait, e o da Argentina, ao tomar as Malvinas. Focalizemos alguns aspectos da alma dos principais atores envolvidos na crise de Kossovo, sem a pretensão de classificá-la como avaliação adequada, posto que isto compete a especialistas que possuam conhecimento profundo da matéria e da história de tais segmentos da Humanidade. Os Estados Unidos. Quando, em 1989, aventamos a hipótese de uma só superpotência, naturalmente a nação norte-americana colocava-se como a mais - talvez a única - provável. Em que pese o papel de superpotência exclusiva supor comportamentos semelhantes, de qualquer país que alcance tal status, muitas decisões e ações dependerão de suas características específicas. Vejamos os que se relacionam com o tema do presente texto. As guerras não constituem fatos raros para o povo norte-americano e para as colônias que o originaram. Focalizemos apenas o período que se iniciou quando o prenúncio de um novo país se fazia evidente. Começaríamos com a participação das colônias na Guerra dos 7 Anos, que confrontou Inglaterra e França, encerrada em 1763. A seguir, a Guerra da Independência, contra a Inglaterra, cujo tratado de paz foi assinado em 1783. Nova guerra contra a Inglaterra, entre 1812 e 1814. A guerra contra o México, entre 1846 e 1848, de que resultou a posse de área que vai da Califórnia ao Texas. Guerra da Secessão, interna, entre 1861 e 1865, em que morreram mais de 600 mil pessoas. Guerra contra a Espanha, para expansão do domínio ao Pacífico e Caribe, na qual ocorreu, em 1898, a conquista de Porto Rico, Filipinas, Guam e a independência de Cuba, logo a seguir colocada sob tutela. No mesmo ano deu-se a posse do Havaí No nosso Século, as Primeira e Segunda Guerras Mundiais, na última com atuação decisiva, a Guerra da Coréia, do Vietnã e a Guerra do Golfo. Sem esquecermos os conflitos contínuos, que se estenderam por décadas, com as tribos indígenas, principalmente na migração para oeste, em que expressiva parte da população originária daquela faixa do Continente Americano desapareceu. O impulso para o domínio também está presente em alguns momentos da história da nação norte-americana. A partir do instante em que consolidou a sua unidade interna, instalou-se o desejo de de poder sobre áreas externas; a guerra hispano-americana, acima citada, representa um exemplo. A partir de meados do Século XIX, o Governo dos Estados Unidos atribuiu-se o direito de intervir em qualquer ponto do Continente. É desta fase a política do big stick (grande cajado ou porrete), de Theodore Roosevelt, que assumiu a presidência dos Estados Unidos em 1901. A tônica desta política seria a imposição, pela força, da vontade norte-americana aos países regionais, de menor poder nacional, quando julgassem necessário. Nos primeiros trinta anos do Século XX, ocorreram intervenções em Cuba, Panamá, República Dominicana, Haiti, Nicarágua e México, em alguns mais de uma vez. Em sua mensagem ao Congresso Nacional, em 1904, o Presidente citado afirmava que o país exerceria “poder de polícia internacional” , inclusive em situações de instabilidade política. No final de abril, Tony Blair, Primeiro Ministro da Grã-Bretanha, enfatizou a importância de os Estados Unidos assumirem por inteiro o papel de polícia do mundo (Jornal do Brasil, 24/5/1999). Não será demais transcrevermos dois trechos significativos: “Falai suave, mas tende sempre à mão um porrete (big stick) e assim ireis longe”. “Esta força falará baixinho, será amistosa com todos, mas terá dentes muito afiados, além de muito grandes, para o caso de encontrar oposição ao cumprimento de seu mandato ou ameaças a seus integrantes”. O primeiro trecho, os prezados leitores perceberam, é de Theodore Roosevelt, citado por Marcos Kaplan, no Dicionário de Ciência Sociais. O segundo de James Shea, porta voz da OTAN, referindo-se à força de paz de cinqüenta mil homens, destinada a atuar em Kosovo (Jornal do Brasil 26/5/99). Nota-se o mesmo tom autoritário nos dois discursos. Viés da alma nacional? A participação dos EUA, pois, com papel predominante, na decisão e nas operações de bombardeios estratégicos à Iugoslávia, não é acontecimento novo na sua História. Nem o papel de “polícia internacional”, que vem execendo após o seu acesso ao status de superpotência única; isto e o fato de fazê-lo através da OTAN e não da ONU remetem-nos ao que previmos em “A paz é possível?” O papel coercitivo do poder militar imperial, trecho que citamos em página anterior. É difícil uma superpotência única resistir à tentação de tornar-se imperial. Grã-Bretanha. Outro país para o qual os conflitos bélicos constituem fatos corriqueiros. Os povos que, desde a antiguidade, sucessivamente instalaram-se na grande ilha participaram de inúmeras guerras, entre si e contra invasores. Nos séculos mais recentes, quando a nação se tornou potência marítima, praticamente dominando os mares e muitas terras fora da Europa, a ação militar unilateral ou em confrontos, constituiu o instrumento de respaldo do domínio político e econômico, no Continente Americano, na Ásia, na África e na Oceania. No Século XIX destacaríamos as guerras contra a França de Napoleão, a da Criméia e a Guerra dos Boers, na África do Sul, além dos conflitos com os irlandeses, conseqüência da anexação da Irlanda, em 1800. No Século XX, as duas Guerras Mundiais, a invasão do Egito, com a França e Israel, como represália à nacionalização do canal do Suez, em 1956, a Guerra das Malvinas/Falklands, em 1982, e a Guerra do Golfo. Durante muito tempo, nos últimos trezentos anos, a Grã-Bretanha, à semelhança dos EUA mais recentemente, pretendeu impor sua vontade ao mundo. A título de exemplo, no Século passado, não por humanitarismo - o que seria louvável - mas porque não mais lhe servia e interessava, impôs aos novos países das Américas a proibição do tráfico de escravos, atuando manus militari, no Atlântico, para fazer cumprir o seu desiderato. Neste século, o posicionamento de navios de guerra, com de outras nacões, no interior de baía brasileira , durante a Revolta da Armada, como narra José Maria Bello (História da República, ps. 122 e 123): “A revolta da Marinha não teria, pois, causado grande impressão às Potências européias e aos Estados Unidos. Preocupava-as apenas a proteção de seus interesses comerciais no longínquo país tropical”........... “as forças navais européias e norte-americanas, estacionadas na baía de Guanabara, arrogam-se uma espécie de atitude de juízes da luta, determinando-lhe condições, impondo-lhe limites que, sob pretexto de “humanidade”, serviam, sobretudo, para proteger o livre comércio estrangeiro.” Sabemos que a imposição de vontade constitui prática habitual dos que detém poder, indivíduos ou coletividades, todavia tende a criar o hábito, que costuma permanecer quando o poder caiu de nível mas ainda se dispõe da capacidade de influência sobre um irmão forte. Percebe-se tal atitude em Margaret Thatcher, quando há poucas semanas, propôs à Grã-Bretanha pressionar os Estados Unidos a fim de endurecer-lhe a “espinha”. Quando Tony Blair, recentemente, assume uma das posições mais radicais, sugerindo o endurecimento e aprofundamento das ações militares contra a Iugoslávia - ele que ao início da carreira política se postava como um pacifista a favor do desarmamento nuclear, contrário a reação militar do seu país à tomada das Falklands pelos argentinos - não será isto o resultado da “constelação” da alma nacional britânica, nos seus aspectos guerreiro e de imposição de vontade? Ou para atender à manifestação desta alma na vontade coletiva? Uma das pesquisas de opinião mais recentes mostrou que ocorre na Grã-Bretanha maior índice de aprovação às ações punitivas sobre a Iugoslávia do que na França, na Itália e na Alemanha. Os sérvios. Povo antigo, com mais de mil anos de existência. Acostumado à dominação por outros povos, principalmente os turcos, sob cujo domínio permaneceu de 1389, quando derrotado na Batalha de Kosovo, até 1878, resistindo e preservando, apesar do longo período, a sua identidade nacional. Neste século, dois sérvios atuaram como causa imediata da deflagração da Primeira Guerra Mundial; em atentados contra o Arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa Sofia, em Sarajevo, Bósnia-Herzegovina, então integrada à Áustria, em 28 de junho de 1914. O primeiro atentado, o lançamento de uma granada contra o comboio que conduzia o Arquiduque, atingindo outro carro que não o seu; o segundo, pouco depois, quando Gavrilo Princip atirou duas vezes, um projétil atingindo o Arquiduque e outro a sua esposa, morrendo ambos. Os dois “terroristas”eram membros do movimento secreto sérvio Mão Negra. Iniciado o conflito bélico, a Áustria invadiu a Sérvia, que apesar do menor poder militar, resistia com elevado moral e vontade de combater. Em determinado momento: “A Sérvia estava praticamente desprovida de reservas de munição, mas nem isso abatia a coragem de seus homens. No dia seguinte, 3 de dezembro, os sérvios atiraram-se aos austríacos como verdadeiros suicidas (grifo nosso) e conseguiram desmantelar as suas linhas. Transcrevemos este trecho de David Shermer (Guerras do Século 20, p.43) por considerá-lo útil a uma avaliação da alma nacional sérvia. Como oportunamente lembrou o autor citado, num dia 28 de junho ocorrera a Batalha de Kosovo. No início da Segunda Grande Guerra, como população majoritária da Iugoslávia,os sérvios reagiram à invasão da Alemanha e da Itália, bem como da Bulgária e da Hungria, através de dois movimentos de resistência, o dos chetniks, sob o comando de Drazha Mihailovic, e o dos partisans, comunista, comandado por Josip Broz Tito. Todas aquelas experiências de dominados e de resistência, por mais de um milênio, criaram um forte sentimento nacionalista e, provavelmente, cultura de aceitação conformada dos ônus e adversidades das guerras, conformismo que ora se revela na população de áreas bombardeadas. John Lukacs, na obra que citamos acima, expõe a seguinte afirmativa: “Um ingrediente básico do nacionalismo é a xenofobia, a antipatia e o medo (grifo nosso) dos estrangeiros” (1993, p. 196). Em “A paz é possível?” (p.109) colocáramos conceito semelhante: “Por sofrerem diretamente as agressões externas ou verem a experiência de outrem, as culturas e civilizações, que conhecemos, através dos tempos,encaravam a aproximação de outras nações com temor. Antes mostramos o caráter arquetípico deste sentimento”. Para os sérvios, pode-se perceber, os albaneses não perderam a imagem de “estrangeiros”, apesar de comporem a República; talvez pela religião mulçumana da grande maioria, herdada dos otomanos, o que os associaria, inconscientemente, com os dominadores turcos. O medo, com certeza, não é totalmente objetivo; a par do temor do aumento da população albanesa - e do conseqüente crescimento do seu poder e da ocupação crescente do território iugoslavo - existe um temor inconsciente, aquele que acompanha o homem, desde os tempos mais remotos, diante de alguém que não pertença a seu grupo ou tribo. Caberia destacar o ponto de vista de Susan Sontag, escritora norte-americana: “A guerra é uma cultura, o belicismo uma droga, a derrota - aos olhos de uma comunidade que se imagina eterna vítima da história - pode revelar-se tão embriagadora quanto a vitória”. (Jornal do Brasil, 26/4/99). A nosso ver, os três atores, focalizados no presente tópico, e mais discretamente outros Membros da OTAN, aparecem, total ou parcialmente, neste pensamento. Por tudo isto, dever-se-ia antever que os sérvios não capitulariam sem muita resistência. Motivos e Motivações Naturalmente seria possível listar uma série de motivos e motivações para a ação da OTAN. Focalizaremos apenas alguns, os que afloraram nos noticiários, expressos em declarações dos principais personagens do atual drama balcânico, ou que, não declarados, no nosso entender são percepitíveis. Os Bálcãs marcaram a Idade Antiga. Principalmente pela civilização Grega. Seus filósofos Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro - dramaturgos - Ésquilo, Eurípides, Sófocles comediógrafo - Aristófanes - matemáticos - Hipócrates de Quios, Euclides - cujos conhecimentos e lições, até hoje empregamos; sem esquecermos Hipócrates, médico de quem algumas teorias permanecem válidas e que embasa o juramento dos formados em Medicina, até os nossos dias. Também a Macedônia, que atingiu o apogeu histórico com Alexandre Magno, de quem Aristóteles foi preceptor. Porta de entrada para os Otomanos, em suas conquistas na Europa, de que destacamos a Batalha de Kosovo, em 1389, a tomada da Bósnia-Herzegovina,em 1463,e Albânia,depois; e porta de saída, visto que pelo mesmo corredor da Península Balcânica, foram repelidos, reduzindo-se à Turquia, no Século XX. Já então ocorriam a Guerra nos Bálcãs, em1912 e 1913, e, a seguir, o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria-Hungria, estopim da deflagração da Primeira Guerra Mundial. Após a Segunda Grande Guerra, os Bálcãs serviram de colchão, amortecendo o embate entre o Ocidente e a URSS; embora com muitos países sob regime comunista, mas principalmente por causa disto, permitiam uma transição entre o progresso da Europa Ocidental e o subdesenvolvimento social e econômico do isolacionismo comunista russo. Ao mesmo tempo que aumentava a defesa em profundidade dos soviéticos, contra ações da OTAN, garantia a esta um tempo maior para reação, diante de avanços de contingentes expressivos de forças convencionais do opositor. Além de apostar em dissidências com Moscou, como a da Iugulávia de Tito e da Albânia, que poderia estender-se à Hungria e à Tchecoslováquia, pelo renascimento dos anseios de independência, manifestados em 1956 e 1968. Os interesses estratégicos da Rússia naquela região, somados às suas ligações históricas com os povos regionais, refletidas algumas vezes em apoio bélico, a par da sua condição de acesso direto ao Oriente Médio, Ásia e África, à Europa Central, mantém a importância estratégica desta área, onde uma dissidência ou foco de re-irradiação de um regime comunista não interessam ao Ocidente Setentrional, máxime pelo fato de que, em virtude das dificuldades políticas, sociais e econômicas que prevalecem na Rússia, ainda existem segmentos expressivos da elite e do povo russos saudosos do comunismo. Outro aspecto que preocupa principalmente os europeus, contudo também os norte-americanos, é o dos refugiados. Por causa da dicotomia que se estabeleceu no mundo - de que na verdade eles mesmo são alguns dos principais responsáveis, desde os tempos do colonialismo até os nossos dias existe uma procura permanente dos países mais ricos, por parte de muitos indivíduos dos povos mais pobres. As imigrações vém provocando problemas sérios, inclussive radicalismos vicerais, entre os nacionais e os imigrantes, muitas vezes culminando em violência física, incluindo morte de pessoas e ataques a comunidades. O mito do nazismo renasce das cinzas, na Alemanha, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Parece que, dentre estes, os britânicos são bastante preocupados; em passado mais ou menos recente, indianos, árabes, africanos, migraram para a ilha em razoável quantidade. As palavras do Primeiro Ministro Tony Blair, veiculadas pela imprensa, retrata bem esta preocupação: “Quando a opressão produz fluxos maciços de refugiados, que desestabilizam países vizinhos, ela pode ser chamada de uma ameaça à paz e à segurança internacional” (Jornal do Brasil, 24/5/99). Certamente mais um aspecto que sensibiliza principalmente os europeus é o manter a ordem perto de casa. Acostumados a raciocinar em termos de Brasil, muitas vezes esquecemo-nos das pequenas dimensões da maioria dos países europeus. A Iugoslávia, bombardeada pela OTAN há mais de dois meses, é apenas um pouco maior do que o Estado de Pernambuco. Em números redondos (milhares) para simplificar, a área daquele país é de 102.000 km2, ao passo que a do nosso estado é de 98.000 km2. Para fins de raciocínio, citaremos alguns países da região, com sua área, novamente em números redondos (e km2), comparando-os com estados brasileiros, com os quais estamos mais familiarizados: Albânia, 28.000, e Eslovênia, 20.000 (Alagoas, 28.000); Suíça, 41.000 (Rio de Janeiro, 44.000); Croácia 56.000, e Bósnia-Herzegovina, 51.000 (Paraíba 57.000); Hungria, 93.000, e Áustria, 84.000 (Santa Catarina, 95.000). Na periferia destes pequenos países que envolvem, diretamente ou não, o oeste e o norte da Iugoslávia, já se encontram a Alemanha, a França, a Itália. Uma guerra civil prolongada e a continuação da fuga de albaneses poderão provocar problemas sociais sérios, na área que cerca a Iugoslávia, estendendo-se aos países seguintes. Morar num bairro em que prevaleçam a ordem e a segurança é o sonho de todo cidadão. Razões humanitárias constituem o motivo emblemático para a intervenção da OTAN contra a expulsão ou assassinato de albano-kosovares. Aquilo que se vem chamando de limpeza étnica não expressa fato novo naquela região e, até, em toda a Europa. Se mantivermos a expressão completa limpeza étnica - citaríamos o extermínio de judeus, pelos alemães; e o dos sérvios pelos italianos e albaneses, na mesma época, conforme detalha o Capitão-de-Fragata(T) Márcio Bonifácio Moraes (Crise no Kosovo, Revista Marítima Brasileira, v.118, n 7/9): “Com a ocupação italiana na Albânia, o Kosovo foi integrado à ‘Grande Albânia’ de Mussolini. Os italianos incentivaram a expulsão dos sérvios da região. Mais de 100 mil sérvios e montenegrinos foram expulsos do Kosovo e cerca de 10 mil foram mortos”. Se retirarmos o adjetivo e mantivermos apenas o substantivo -limpeza - poderemos chegar à Revolução Francessa que limpou o país com a guilhotina (de que o Rei não escapou), principalmente na época do “Terror”. Citando o historiador Antonio Luiz Porto e Albuquerque (História Geral do Ocidente, p.208): “Os tribunais revolucionários condenaram cerca de 20.000 pessoas em toda a França; outras 40.000 morreram em execuções maciças, verdadeiros massacres ...” Também à Revolução Russa, neste século, que se limpou inclusive da família do Czar; ao regime comunista, na URSS, que nos anos dos expurgos limpou a República; sem esquecermos o “paredon” cubano, “erguido” por influência de ideologia e modelo político europeus. Não seria demais lembrar a limpeza realizada em uma aldeia do Vietnã, por militares americanos. Lamentavelmente o ódio é um dos sentimentos mais comuns no Ser Humano, classificado por Mira y Lopes como um dos quatro “gigantes da alma”. Se está na alma humana, pode estar na alma nacional, com possibilidade de ativar-se por causas, históricas ou contemporâneas, reais ou imaginárias. Infelizmente. Os valores culturais têm um papel fundamental no inibir da manifestação violenta do ódio. Em regiões onde povos vivenciaram, como vítimas ou agentes, como dominados ou dominadores, permanentes cenários de guerras, invasões, extermínio, violentação de mulheres, escravidão de homens pela derrota em conflitos, e tantas outras violações dos - em nossos dias conhecidos como - direitos humanos, desde a mais remota antiguidade até meados deste século que vemos encerrar-se, os valores tolerância, aceitação do estrangeiro, amor ao não-muito-próximo, para citar alguns, dificilmente conseguem instalar-se nas reações habituais da gente ( muito mais difícil ainda quando o “estrangeiro” vem disputar emprego, solo, espaço e status sociais). Talvez por, já em sua época, observar tais fatos - ódio, violência , disputa por bens e poder - Cristo - Filho de Deus para os cristãos, Profeta para os maometanos, Sábio para muitos entre os demais - haja pregado a substituição da lei “olho por olho, dente por dente” por “se alguém te bate na face direita, oferece-lhe a outra” (Mt 5-38), e haja recomendado que se desse o manto a quem pretendesse ir ao tribunal para tomar uma túnica (Mt 5-39). Encerra-se o segundo milênio sem que os povos que viveram nas terras próximas ao Monte Calvário, o Ocidente Cristão do Velho Continente, tenham alterado substancialmente a sua alma, no que concerne à solução de conflitos. Vale, por fim, observar que as gentes dos países que se julgam e declaram mais desenvolvidos tendem a “contaminar-se” pelo arquétipo do Salvador, existente no inconsciente coletivo da Civilização Ocidental. São suscetíveis a considerarem sua missão “salvar” o mundo, o que se nota em suas colocações em pesquisas de opinião, entrevistas, reportagens, debates, etc. Muitos cristãos do Hemisfério Norte radicalizaram-se nesta missão, em vários momentos da História, como atualmente ocorre com alguns movimentos estruturados e Organizações Não-Governamentais. Este sentimento de “salvadores” está presente em líderes e público dos países de atuação mais expressiva nas decisões e ações contra a Iugoslávia. Nova Ordem ou Novas Ordens? Não podemos, realmente, dizer que ocorre uma guerra. As aeronaves da OTAN operam com risco baixíssimo. Trata-se de ações que visam a “quebrar a espinha” dos sérvios, enquanto Margaret Thatcher tenta endurecer a dos americanos, conforme transcrevemos antes. Como se esbordoassem a coluna do sérvio com um porrete. Seria válido atribuir-lhes o nome de Operação Big Stick. Destinadas a destruir alvos estratégicos, acabaram por atingir comboios de albano-kosovares em fuga, embaixada, hospital, presídio, asilo, residências, matando muito mais civis do que militares; uma das causas a suposta desatualização dos serviços de inteligência, que suprem a Organização com informações sobre os alvos. As disparidades entre os poderes militares em confronto e os brutais gaps, tecnológico e econômico, fazem com que a capacidade de reação iugoslava seja reduzidíssima, restando-lhe apenas o poder da vontade de não capitular. A experiência, que neste momento vive a Europa, apresenta duas faces. A primeira, um teste sobre a linha de ação a adotar para solucionar problemas como o que ora ocorre na Iugoslávia. Com mais de dois meses de bombardeios aéreos, com destruição de recursos de infra-estrutura importantes, somente agora vislumbra-se a possibilidade de um acordo que resolva a questão; em contrapartida, desde o princípio das ações aéreas, aumentaram consideravelmente os atos de violência dos sérvios contra os albano-kosovares. Se o propósito da intervenção da OTAN era proteger este segmento minoritário da população iugoslava (majoritário em Kosovo), o efeito foi o inverso. Se mais amplo o propósito, o de proteger o Ser Humano, em geral, pior o efeito, pois além do aumento do sacrifício da minoria de origem albanesa, morreram muitos sérvios. E mais: a fuga em massa de kosovares, para os países vizinhos, como já focalizamos pode provocar ali novas instabilidades, até reações coletivas aos “invasores”, gerando ódios e motivações para limpezas. Para isto, basta que surja escassez de produtos de consumo, de espaço, de serviços de saúde, de segurança, provocados pelo crescimento intempestivo da população em certas áreas. Cenário que pode agravar-se com o passo seguinte, suposto mas não confirmado, a invasão de Iugoslávia, para o que se requer força de 150.000 homens, segundo alguns analistas, dos quais 50.000 já autorizados pelo Conselho Superior da OTAN. Nesta etapa seguinte, se for desencadeada, quantas baixas ocorrerão não nas tropas de ambos os lados, o que é da profissão militar, mas de civis? Que traumas e máguas, geradoras de ódio, resultarão desta “guerra” que se iniciou no final de março e que, para muitos observadores, ainda não exibe um horizonte definitivo? Se houvessem levantado as sanções econômicas, vigentes desde 1992, teria diminuído o ódio sérvio? Quando existe emprego e renda distribuída para todos, sobra pouco espaço para os radicalismos. Não custa lembrar que Kosovo é para os sérvios algo semelhante ao que Jerusalém é para os judeus e Meca para os árabes, uma região-símbolo, segundo expressão comum “o berço da nação”, o que não ocorria com a Bósnia-Herzegovina onde - talvez por isto - os sérvios cederam mais rapidamente (ou, também, resistem mais agora porque a perda de território atingiu o limite da tolerância)? Fica como lição a necessidade de melhor avaliar as alternativas de ação; por exemplo perguntar: considerando o nível de violações de direitos humanos produzido num país durante algum tempo, em quantos dias ou semanas se atingiria o mesmo nível, quando se aceleram as violações em decorrência da intervenção punitiva? Se a diferença se antevisse expressiva, não pareceria melhor investir em planos de ajuda econômica (como vimos, a Iugoslávia encontrava-se sob sanções econômicas desda os primeiros anos da década) e de cooptação das lideranças políticas no poder? Manteria a Rússia a atual postura de paz e tolerância com as ações do Ocidente, se não estivesse recebendo razoável apoio político e econômico dos sistemas dos antigos inimigos potenciais? Naturalmente esta seria uma das inúmeras hipóteses pacíficas em que se poderia pensar, em busca de solução eficaz para tais tipos de problema. A mostrar-se inevitável a ação militar, não se recomendaria a atuação conjunta de meios aéreos e terrestres? Envolvidos no engajamento com tropas da OTAN, com certeza apoiadas pelo Exército de Libertação de Kosovo, poderiam os contingentes militares e paramilitares sérvios gerar a mesma quantidade de violência, desviando-se da tarefa principal de conter e repelir a invasão? O emprego da aviação diretamente contra as forças terrestres sérvias, expostas nas ações táticas, não seria mais ético do que bombardear populações civis e alvos “errados”? Naturalmente, isto implicaria expor os soldados da OTAN a baixas, o que a opinião pública dos países membros da Organização muito provavelmente não apoiaria; principalmente a norte-americana, que guarda tristes lembranças da guerra do Vietnã. Na verdade, se os recursos tecnológicos disponíveis e a qualidade das informações houvessem logrado êxito na destruição seletiva de alvos, estaríamos voltando ao estilo de guerra principalmente militar, que se encerrou no final do Século XIX, quando as potências de então resolveram partir para a guerra generalizada, que prevaleceu neste século que ora termina, na qual a população civil não é poupada e muitas vezes, ao contrário, representa o alvo principal. A Segunda Grande Guerra constitui o maior exemplo desta prática, quando áreas enormes de grandes cidades foram arrasadas. A outra face da experiência, que no momento vive a Europa, vem sendo muito comentada, porém pela sua importância não podemos deixar de focalizá-la, apesar do risco de cairmos na monotonia do déjà vu: o emprego das forças da OTAN, ao arrepio de sua destinação original, a defesa dos países membros contra agressões externas; ignorando a existência da Organização as Nações Unidas, à qual caberia, no caso, decidir sobre uma intervenção militar. Como já amplamente comentado, o expediente utilizado pelos governos dos países que compõem a Organização do Tratado do Atlântico Norte pretendeu evitar o poder de veto de Membros do Conselho de Segurança da ONU, que não concordariam com a intervenção, principalmente a Rússia. Houve uma clara violação das normas internacionais contemporâneas. Não satisfeitos com este artifício, favorecidos pela atmosfera inicial de repúdio aos crimes sérvios, que naturalmente induziu uma aprovação virtual dos ataques aéreos à Iugoslávia, foi adotado e divulgado o novo Conceito Estratégico da Organização. A partir daquele momento, a OTAN dispõe de liberdade para atuar em situações que afrontam o direito de soberania dos países, em princípio com a concordância da Organização das Nações Unidas; mas não necessariamente, desde que assim resolvido por seus Membros, alguns dispondo de poder militar entre os maiores existentes, como os dos EUA, Grã-Bretanha, França, Itália, Espanha. Tal evolução vem causando polêmica na própria Europa, refletida na imprensa; principalmente pela influência dos EUA dentro da Organização. Questionam-se: qual o limite? Perguntamos: vislumbram uma evolução que levará ao estágio de Washington locuta, causa finita? A contraposição dos opostos constitui um fator fundamental para o equilíbrio, no Universo. As civilizações antigas tinham esta visão, principalmente as orientais, quando consideravam o comportamento humano. Escolas de Psicologia modernas não o ignoram. Não havendo o opositor comparável, elimina-se a possibilidade da paz pelo impasse de poderes, o equilíbrio . Este final de século frustrou a expectativa dos otimistas, revelando-lhes o quanto ainda somos animais irracionais: os povos de países que se auto-intitulam de “Primeiro Mundo” continuam utilizando-se do sabre e da lança como forma banal de diplomacia e negociação. Os realistas preferem manter a visão da sabedoria multimilenar e aceitarem que, com freqüência, a paz ainda depende da contraposição dos opostos. Foi este entendimento dos realistas que evitou a Terceira - e nuclear - Guerra Mundial.Não existe portanto uma “nova ordem” (cultura, práticas) e sim uma “nova ordenação” (hierarquia) mundial. Disto decorre que nenhum país pode negligenciar a adequação do seu Poder Nacional, máxime a Expressão Militar, ao cenário internacional. A “velha ordem”. Pelo menos enquanto as potências mundiais se constituírem de povos cujo aspecto guerreiro se acha profundamente arraigado na alma nacional. Sem o que, insistimos, cairemos na paráfrase atual do aforisma duas vezes milenar: “Boss” locuta, causa finita.Caberá aos súditos, cada manhã, perguntar à metrópole imperial: quais são as novas ordens? Conclusão A complexificação - para empregarmos a palavra usada por Teilhard de Chardin - prossegue, não temos dúvida. A globalização é representativa deste processo, embora carregada de pesado “darwinismo”, no caso a prevelência dos mais “fortes”que não são, necessariamente, os mais “aptos”; a Natureza também comete erros, que levam a inadaptações definitivas. Os dinosauros constituem um exemplo. Se não houver cuidado, a globalização crescerá descontroladamente, parecerá forte, porém se auto-destruirá. A complexificação, por outro lado, precisa ser natural, espontânea. Como ensina o Eclesiastes, para tudo há um tempo próprio. À semelhança da tentativa da União Soviética de unir frutos ainda não maduros, Josip Broz Tito persistiu numa unificação de atores que ainda não estavam prontos para atuar no mesmo palco. Ao forçar a união, potencializou conflitos que , em contrapartida, retardarão a possibilidade de os povos envolvidos aceitarem-se em convivência pacífica. O mal, que se apresenta como bem, cedo deixa cair a máscara. Tudo isto não representa fato novo. O mundo evoluiu no sentido de uma só potência. A História da Humanidade nos conta que tal solução não é duradoura, porque não distribui, equitativamente, as possibilidades existenciais. Todos os impérios esgotaram-se. Não será diferente na época dos “supers” - super-homem, superstar, superego, superpotência - que refletem inflações psicológicas, manifestações finais, senis, do iluminismo e racionalismo, quando o Homem substituiu os deuses. “Deus está morto”, anunciou Nietsche, no final do Século XIX. Cem anos depois, os deuses ressuscitaram; estão vivos com toda a força e energia. Que venham também com sabedoria. A opção - decisão de poucos - de intervir na Iugoslávia através da OTAN mostra-nos que ainda vivemos em tempos de cultura imperial. Nada novo; ao contrário, “matusalênico” (Matusalém morreu com mais de 900 anos). A complexificação precisa, necessariamente, seguir o caminho democrático e o modelo exeqüível, no estágio em que vivemos, é a Organização das Nações Unidas; embora ainda imperfeito, posto que, para ser realmente democrático, todos os Membros do Conselho de Segurança deveriam ser eleitos, ou substituídos segundo critério rotativo, periodicamente, e nenhum Membro teria o poder de veto, prevalecendo a maioria. Utopia? Ao agir ao arrepio da existência e atribuições da ONU, aquilo que a mídia e muitos analistas colocaram como “fato novo” chamaríamos não de “fato velho”, mas de “fato retrógado”, já que retornamos a uma fase que a Liga das Nações, entre as duas Grandes Guerras, pretendeu iniciar uma caminhada, no sentido de superar. No que concerne ao aperfeiçoamento humano, continuamos presas dos mesmos fatores psicológicos que discutimos em “A paz é possível?“. Trazemos dentro de nós o que éramos há onze mil anos, quando se iniciou a História; e nossos atos podem ser tão violentos quanto os do Homem pré-histórico, com a diferença que, em vez de porrete, usamos armas de alta tecnologia. O conflito de Kosovo, portanto, constitui um fato arcaico. Em face de todos estes “fatos velhos”, somente nos resta, povos de todo o mundo, continuar investindo na adequada contraposição dos opostos. Apostando no equilíbrio. A dissuasão ainda representa a melhor estratégia. Forças Armadas modernas, com as dimensões necessárias e altamente qualificadas, são uma das bases insubstituíveis da dissuasão. Deixamos nós, Seres (des)Humanos, cerrar o pano do Segundo Milênio repetindo o pensamento de Antoine Rivarol, escritor francês do Século XVIII, citado por John Lukacs (p.306): “OS POVOS MAIS CIVILIZADOS ACHAM-SE TÃO PRÓXIMOS DO BARBARISMO QUANTO O METAL MAIS POLIDO DA FERRUGEM”. E dois séculos passaram-se! (*) Vice-Almirante (RRm) Ex-Subcomandante da Escola Superior de Guerra “O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES” A CIVILIZAÇÃO UNIVERSAL E AS NOVAS CIVILIZAÇÕES Francisco de Assis Grieco(*) Não se pode, a rigor, ignorar que a tese da “civilização universal”, como única e normativa do progresso humano, resultou da ascendência política e militar do núcleo geopolítico constituído pela Europa a partir da era cultural greco-latina no Mediterrâneo. Nesse aspecto, vale ressaltar as considerações de Samuel Huntington sobre o “choque das civilizações”, que, há pouco tempo, ganharam certa notoriedade como base analítica da história política e da presente recomposição da ordem mundial. Huntington não foge ao método clássico da apresentação e de avaliação conceitual, com o propósito de fundamentar seus postulados em análise conclusiva. Seria, neste caso, a revisão do conceito tradicional da “civilização universal” pela definição de várias “civilizações”, com: núcleos, culturas e objetivos políticos e econômicos globais próprios. Tese que possui originalidade quando examina a realidade internacional à luz da pluralidade de culturas nacionais e/ou regionais, antepostas à hegemonia ocidental, atualmente assumida pelos Estados Unidos, no pós-Guerra Fria. O conceito-ônibus de uma “civilização universal”, à imagem do figurino cultural ocidental, jamais foi disputado por teorias formais de destaque. O hiato entre as culturas orientais e ocidentais foi, senão, o resultado da ignorância profunda das civilizações e culturas do Oriente: suas diversidades lingüísticas, filosóficas e religiosas. No continente americano, a cultura européia predominou pelo legado das instituições políticas liberais, línguas e religiões em sociedades multirraciais. Na África e na Ásia, a cultura ocidental afirmou-se, essencialmente, pela imposição do imperialismo, limitada à constituição de elites locais assimiladas e de formação cultural européia. Seria tendenciosa a ilação de que a contribuição ocidental àqueles continentes se tenha restringido à introdução de padrões materiais estranhos aos valores espirituais e filosóficos locais. A integração asiática à nova era de globalização econômica constitui a comprovação de que existe, hoje, cenário onde, após o Japão, a China emerge com papel distorsivo nos futuros fluxos de circulação da riqueza mundial. Há uma tendência de sistematização de conceitos nas considerações analíticas, quando se procuram compreender certos fenômenos econômicos e políticos. No caso da tese de Huntington, essa tendência busca a enumeração de eixos ideológicos e culturais que disputam a supremacia ocidental, atribuída antes à Europa e, atualmente, aos Estados Unidos (sem, evidentemente, ignorar que cabem os papéis de destaque à Rússia, China e à Comunidade Islâmica). A Índia e o Japão teriam chegado à síntese da preservação de valores tradicionais, sem prejuízo à assimilação de padrões de consumo e absorção dos métodos ocidentais de arregimentação econômica. Estranhamente, a América Latina não é considerada como parte ativa (integrante) do “núcleo ocidental”: resultado de suas fragilidades sociais e da ausência de poder militar impositivo. O continente africano estaria longe de atingir uma cultura regional, como resultado de herança de colcha de retalhos tribais e de suas centenas de dialetos. Sua “fidelidade cultural” ao ocidente permanece condicionada à recuperação econômica e ao processo de reformulação social, com recursos de proveniência ocidental. Na avaliação histórica dos fenômenos culturais, para chegar a uma projeção futura, a inter-relação entre cultura e causa oferece riscos de avaliação. Seria extremamente abrangente atribuir a cultura dos povos à motivação de conflitos políticos e de equilíbrio do poder hegemônico, ignorando fatores econômicos e a própria irracionalidade de homens de governo. As ideologias não são, por definição, identificadas às culturas dos povos. A aberração nazista não dissociou a Alemanha de seu papel cultural e de sua contribuição à civilização universal. Não se poderia, tampouco, invalidar as contribuições éticas, filosóficas e liberais da Europa pela sua condução do imperialismo ou pelo tráfico e escravidão negra. A Inquisição ibérica não exclui o papel gigante de dois países à colonização da América meridional. O julgamento crítico das civilizações pela sua história cultural limita os propósitos de uma análise ideal, bem mais complexa em seu conjunto. Não menos importante é reavaliar como a reformulação de certas heranças caducas da chamada “civilização universal” levou a transformações radicais dos conceitos seculares da religião, da moral e do progresso científico ilimitado. A extensão dessas transformações, todavia, está longe de merecer concordância, gerando polêmicas sobre as experiências revolucionárias genéticas, como a reprodução artificial da vida, dos transplantes e dos “clones” que não mais se sujeitam aos valores éticos tradicionais. A Federação Russa no Jogo Mundial do Poder A Rússia possui cultura de valores tradicionais inspiradas na “civilização européia”, cuja evolução política e social se distanciou, porém, da Europa Ocidental em virtude de seu isolamento peculiar sob séculos de autocracia tzarista. As extroversões de Pedro, o Grande e Catarina foram episódicas e aculturação parcial ao progresso europeu; com a inspiração de reformas, nem sempre arraigadas, e, sobretudo, objetivando a participação russa de preservação nacional ou de conquista territorial. As tradições russas deram contribuição notável às letras e à música, às artes cênicas e, mais recentemente, às ciências e à pesquisa espacial. A religião ortodoxa, que pode ser considerada a mais bela e mística do cristianismo, permaneceu no espírito e na inspiração humana dos russos – mesmo durante quase sete décadas de repressão comunista. Sua influência no caráter russo deu a seu povo a paixão ritual e a consciência nacional da mãe-pátria, acima de governos e ideologias, como testemunhou a Segunda Guerra Mundial. Recorde-se que Boris Ieltsin, em sua ascensão ao poder, foi empossado no estilo clássico bizantino, com a restauração da bandeira e do hino nacional tzaristas. Nem tão pouco faltou a Gorbachev e, mais ainda, à sua mulher o apuro da elegância e o respeito às exigências protocolares. Ao regime comunista não passou desapercebido o orgulho nacional das grandes obras públicas, do Bolshoi e do Hermitage, do metrô de Moscou e, criando pânico momentâneo ao povo americano, a glória do sputnik girando único em torno do planeta. O domínio da Rússia sobre grande parte do continente eurasiano foi consolidado através de processo histórico de expansão de vários séculos, desde o Grão-Ducado de Moscóvia à União Soviética. Parte integrante e de ação decisiva nos jogos do equilíbrio europeu, a Rússia chegaria ao início do nosso século como potência econômica, militar e política que participara ativamente na definição dos destinos da Europa durante a era francesa da Revolução e Império; presidira à liquidação do Império Otomano e, em certo grau, concorrera para a vitória aliada no I Conflito Mundial. Durante o Século XIX, enquanto se envolvia nos choques de poder na Europa, a Rússia conquistou pela diplomacia e pela força do Exército tzarista toda a região setentrional da Ásia, chegando mesmo a ocupar parte do continente americano (Alasca). Subjugou cultural e administrativamente vasto império de dezenas de povos e línguas. A Revolução Bolchevista de 1917 herdou comunidade política e econômica, que se estendia por 24 milhões de quilômetros quadrados, embora, na verdade, em sua maior parte subdesenvolvida. Fosse pela estagnação e atraso econômicos, pela vastidão de regiões desprovidas de transportes em comunicações, ou pelas rivalidades raciais em choque, exploradas por Moscou – a expansão e o domínio russos devem ser reconhecidos como fenômenos sem precedentes na história mundial. A União Soviética tentaria acelerar, sem êxito, porém, a amalgamação sistemática dessa vasta confederação que, por inércia do poder central tzarista, permitira, até então, relativa autonomia a seus povos de origem asiática e de religião mulçumana. O regime comunista, nos seus quase 30 anos de ditadura stalinista, criou repúblicas socialistas soviéticas com pretensa autonomia política e cultural, tratando, ao mesmo tempo, de assegurar a imposição da “russificação” às demais repúblicas da URSS. A língua russa predominou na liderança política e nas elites partidárias nas regiões asiáticas, enquanto Moscou e Leningrado moldavam a formação das classes administrativas e doutrinavam os intelectuais ativistas. A República Socialista Russa (RSS) dirigiu a União Soviética durante quase 70 anos, através da centralização, quer política quer econômica. A guerra contra o nazismo – exceção feita à Ucrânia – ratificou o apoio efetivo das demais repúblicas soviéticas sem que Moscou arriscasse comprovar a fidelidade de suas regiões orientais numa conflagração com o Império japonês. A implantação da economia de mercado na Rússia – e, obviamente, muito mais nas outras repúblicas da CEI – levará tempo e exigirá sacrifícios sociais que dirão da estabilidade do regime político, supostamente democrático. São riscos capazes de pôr em perigo a sobrevivência do próprio Boris Ieltsin no poder. Nessa linha de idéias antecipam-se, principalmente, comoções decorrentes de eventuais choques econômicos ortodoxos (com respeito devido ao Patriarca de Moscou), que serão necessários à privatização do gigantesco complexo industrial; à quebra dos conglomerados agrícolas; ao livreacesso de capitais estrangeiros; à supressão dos privilégios da burocracia e dos antigos dirigentes partidários. A necessidade de capitais e da participação ocidentais na reativação dos investimentos pode ser aceita pelos russos como indispensável à recuperação do desenvolvimento tecnológico. Criará, porém, resistências emocionais e nacionalistas com repercussões perigosas à estabilidade política. O combate à inflação galopante, ocorrida com a débacle da União Soviética ainda exige, após anos, medidas de impacto social nem sempre bem acolhidas. A revivescência de oposição nostálgica dos comunistas russos visa à abolição de subsídios a gêneros de primeira necessidade e à diminuição de benefícios previdenciários que, embora não fossem antes suficientes a padrões de vida condignos, garantiam, pelo menos, alguma estabilidade dos minguados orçamentos familiares. As crises do abastecimento, os preços ascendentes, o desemprego e a emergência de classes sociais diferenciadas pelo poder aquisitivo agravar-se-ão com a austeridade monetária, bem como a liberação de tarifas, dos preços e salários. Não é possível, atualmente, arriscar previsão sobre e por quanto tempo os russos e demais povos da CEI continuarão perplexos em relação ao que esperavam do “capitalismo milagroso”, comprovado no consumismo exuberante dos países vizinhos da Europa Ocidental. À própria Rússia, porém, confrontam-se problemas geopolíticos de manutenção da unidade da federação Russa, que possui superfície de cerca de 17 milhões de quilômetros quadrados dos Urais até Vladivostoque. São 21 repúblicas autônomas com constituições, poderes legislativos e governos próprios e mais dez regiões semi-autônomas. Nas repúblicas, cerca de metade da população é de etnia russa e, nas regiões autônomas, a porcentagem é também significativa. Quatro das repúblicas – Tuva, Tartária, Ossélia Setentrional e Chechênia – sequer permitiram aos seus cidadãos votar no plebiscito para a eleição de Ieltsin (março de 1991), que perdeu pelo menos em quatro das doze regiões autônomas consultadas. A disposição democrática em apoiar as transformações liberais na Rússia levou a consórcio tácito de ajuda financeira que reuniu grupos multilaterais – FMI, Banco Mundial, Grupo-7, BERD e Clube de Paris – e mais a Comunidade (União Européia, os Estados Unidos e Japão). Conhecendo bem as agruras com que se defronta o presidente russo, os Estados Unidos trataram de liderar esquema financeiro multibilionário para garantir a Ieltsin as bases e recursos para a transformação política e econômica da Rússia. Essa ajuda, convenientemente canalizada por aquelas entidades das Nações Unidas e pelos principais países ocidentais, tem sido desembolsada ao sabor das crises de estabilidade política. Apenas a assistência de programas de alimentos teve curso regular, além de créditos de alongamento da dívida externa e do fundo de estabilização do rublo. Em 1993, “pacotes” do Grupo dos Sete (e encontros Clinton-Ieltsin) chegaram a somar US$ 58,4 bilhões de ajuda, mais a promessa japonesa de US$ 4 bilhões à base de conversações sobre as Ilhas Curilas. Esses montantes, embora se desconheça o total realmente do desembolso (1993 = US$ 5 bilhões apenas), tiveram pelo menos a vantagem de fortalecer Ieltsin quando, naquele ano, apoiado pelas forças armadas não vacilou em bombardear deputados entrincheirados, fechando o Duma. Mais do que nas nações do leste Europeu, a Rússia (federação e outras ex-repúblicas soviéticas), principalmente a Ucrânia, pelas suas dimensões e potencial econômico, começaram a dar-se conta de que a abertura ao comércio e aos investimentos estrangeiros levariam a polêmicas de opinião pública. Estimuladas, inclusive, pelos remanescentes do marxismo-leninismo, eventuais posiciona-mentos das Forças Armadas em processo de politização e pela demagogia das facções partidárias à procura de votos e com plataformas populistas. Em outubro de 1995, segundo analistas internacionais, as reformas econômicas começavam a mostrar os primeiros resultados positivos. A inflação mensal de 11% (abril) caiu para 4,5% (setembro), ou seja, ao nível mais baixo desde o início das reformas. Chegou ao fim a queda vertical da produção industrial. As organizações internacionais teceram louvores a esses resultados, chegando o presidente do Banco Mundial a dizer: “Acho que o povo russo deve estar maravilhado com o obtido em tão pouco tempo”. Não podia estar mais enganado, como mostraram os resultados eleitorais subseqüentes. A austeridade econômica causou grandes problemas a milhões de russos, quando se sabe que o salário mínimo recebido por poucos, mas usado como referência para muitos pagamentos do governo, fica por volta de US$ 10 mensais. Em princípio de dezembro de 1995, dos 150 milhões de habitantes da Rússia, cerca de 35% tinham mais de 45 anos e 20% mais de 60 anos. Previa-se que dos 35 milhões de aposentados, vivendo praticamente na “miséria envergonhada” de confessarse como tal, cerca de 20 milhões iriam às urnas votar seu protesto. Os jovens, de modo geral, com maiores oportunidades tendiam a aceitar as reformas, mas sabia-se que sua abstenção seria imensa. Em termos práticos: “As pessoas esqueceram as filas e as prateleiras vazias, mas recordavam-se de que a lingüiça custava 2,20 rublos e hoje o quilo custa 8 mil rublos”. Dois ataques cardíacos tiraram Ieltsin do fogareiro eleitoral e os resultados, já esperados, deram vitória aos partidos extremados. Os comunistas e os ultranacionalistas bateram juntos os reformistas de três para dois. O Partido Comunista, liderado por Guenadi Ziuganov, obteve 22% das cadeiras do Duma, tornando-se candidato potencial às eleições presidenciais de junho de 1996. Radical, conhecido como “nacionalista hidrófobo”, Jirinovski perdeu votos em relação ao pleito parlamentar de 1993 (20%), pois só conseguiu 11% na eleição de dezembro de 1995. Em princípio de janeiro, Ieltsin voltava à cena política, anunciando sua decisão de candidatar-se à reeleição com todos os riscos de saúde e disposto a enfrentar a maré avassaladora dos filocomunistas. Pouco depois (fevereiro de 1996), o FMI anunciou empréstimo de US$ 10,2 bilhões à Rússia, a ser liberado em três anos, mediante cumprimento de rigoroso programa econômico. Por via das dúvidas, o diretor do FMI (Camdessus) conversou, na ocasião, com Guenadi Ziuganov, candidato comunista. As perspectivas eleitorais do presidente russo eram, fortemente, afetadas pelos dados negativos de seis anos de governo de transição radical. O produto industrial caiu (1991-96) pela metade e o PIB acumulou déficit negativo de 45%, não sendo melhores os níveis sociais. O número de pessoas abaixo do padrão digno de subsistência chegou a 36 milhões, ou seja, cerca de 40% da mão-de-obra empregada que, por sua vez, registrou queda de 8,5% da população ativa. No lado positivo, no entanto, e que pouco impressionou a população, Ieltsin privatizou dois terços do PIB, com mais de 120 mil empresas privatizadas pela distribuição, na maior parte, de ações aos trabalhadores. Não foi, portanto, surpresa quando Ieltsin conseguiu maioria exígua, no primeiro turno (junho de 1996), contra o arquicomunista Guenadi Ziuganov. Sem vacilar, o presidente cortejou, demitiu generais e conseguiu o apoio do general Alexander Lebed: com seus 11 milhões de votos e um incontestável apetite pelo poder. Seu lema era nacionalismo e ordem, mesmo com sacrifício da democracia e da liberdade. Logo depois da vitória eleitoral, Boris Ieltsin voltava ao hospital para cirurgia cardíaca delicada e acompanhada pelo mundo democrático com apreensão. O conflito pelo poder não tardou a estimular Lebed e terminou com a demissão do general. Atitude corajosa do presidente, com demonstração de sua força política nos bastidores e sua popularidade reconquistada pela vitória eleitoral. O exército (antes vermelho) esmaeceu como força política e submeteu-se à ordem institucional. Com o apoio aparente da opinião pública e das facções políticas moderadas, Ieltsin pôde transigir em suas relações com os Estados Unidos aceitando as imposições da OTAN: reformulada em novas diretrizes globais e regionais e tendo a Europa Oriental como objetivo. O primeiro estágio de integração russa à segurança coletiva mundial, em negociações progressivas e permanentes, dirigiu-se à Europa comunitária no propósito (ideal) da criação de um mercado continental do Atlântico aos Urais, ou mesmo além. O crescimento do consumo na Rússia (CEI) abrirá as portas às transferências institucionais e pagas de tecnologia e know-how ocidentais de ponta para modernização dos métodos e dos processos de gerência, de produção e comercialização, desconheci-dos ou não utilizados na então URSS. Nesse ângulo, o voto pelo poder aquisitivo garantirá o apoio dos consumidores à introdução de técnicas e a presença do capital estrangeiro em sistema econômico secularmente fechado ao exterior. No contexto comercial a Federação Russa encontrará pontos de divergência em relação aos esquemas de protecionismo da UE, como, por exemplo, na execução da Política Agrícola Comum (PAC). A recuperação das técnicas de produção e a descentra-lização da agricultura tornarão o país mais competitivo no mercado internacional, esbarrando nas regras européias de subsídios que o GATT tentou eliminar mas não conseguiu de todo. Entre os aspectos macroeconômicos da integração progressiva da Rússia à UE, destacar-se-ão programas conjuntos de pesquisas científica pura e aplicada, principalmente na cooperação tecnológica. A massa de cientistas russos disponíveis causou evasão de “cérebros”, ao menos na fase de crise russa. A coordenação no campo da tecnologia de ponta – quando se conhece a superioridade dos Estados Unidos e do Japão – constituirá uma das primeiras etapas de conjugação setorial na direção dos esforços de integração. O primeiro encontro de cúpula entre a então CE e a Federação Russa realizou-se (novembro de 1993) em Moscou, quando Delors visitou Boris Ieltsin, e dele ouviu empenho de que “a Rússia fosse finalmente considerada um Estado europeu” pela adesão à integração continental. Em princípio de dezembro, foi assinado acordo em Bruxelas para estabelecer sistema de consultas entre a União Européia e a Federação Russa para coordenação de medidas de abertura de mercados e assistência aos esforços da Rússia para consolidação e transição rumo à economia descentra-lizada. Em junho de 1994, a Rússia assinava acordo com a União Européia, que reconhecia à Federação o caráter de “economia em transição”. Dava garantias aos investidores estrangeiros; iniciava diálogo político e parlamentar; e igualdade de tratamento às empresas européias e ao estabelecimento de bancos russos na UE. O Fundamentalismo Islâmico: Propagação e Perspectivas O fundamentalismo islâmico é elemento novo e sui generis no propalado processo de reformulação da ordem mundial. Proposição de análise complexa na ausência de uma doutrina formal fundamentalista; pela pluralidade de interpretações religiosas sectárias e, principalmente, agora, apelo extremado terrorismo militante. A compreensão dos valores intrínsecos das bases pristinas fundamentalistas remonta a princípios seculares, hoje desafiadas pela ciência e pelo materialismo avassalador. A reação fundamentalista, diga-se de passagem, não é fenômeno apenas islâmico, mas preocupação das próprias igrejas cristãs e, principalmente, da ortodoxia judaica. A atual expansão do fundamentalismo demanda a compreensão dos valores culturais do Islã e seu papel na contribui-ção humanística. Princípios que, indubitavelmente, tenderão a levar o fundamentalismo islâmico a uma divergência doutrinária nos vários e todos os continentes que receberam o Corão como código religioso e social. No decorrer de dez séculos, o credo de Maomé consolidou um vasto império político que se estendeu pela Europa, África setentrional e Ásia. Sua presença na Península Ibérica e no Mediterrâneo (Sicília e Magrebe) marcou contribuição cultural de grande importância para a civilização européia: nos campos da medicina, botânica, astronomia e matemática. Caracterizada a decadência árabe das dinastias amíada e abássida, o império otomano assumiu a liderança na expansão do credo muçulmano como fator de congraçamento político-religioso. A partir da queda de Constantinopla, a Turquia figuraria, por quatro séculos e até a Primeira Guerra Mundial, entre as potências principais no jogo do equilíbrio de poder europeu. Há atualmente 1,5 bilhão de fiéis islâmicos em todo o mundo: numa vasta faixa que abrange os países árabes da África do Norte; o Egito e nações dos Orientes Próximo e Médio; as várias novas repúblicas da Comunidade de Estados Independentes; o Paquistão e a Indonésia. Fora dessa área, cerca de 12 milhões de mulçumanos vivem na Europa Ocidental praticando livremente sua religião e mantendo sua cultura moldada nos preceitos paquistanenses e indonésios, tornando-se ponto crítico da problemática socio-econômica da Comunidade Européia. Na Bósnia-Herzegovina vivem cerca de 4,8 milhões de mulçumanos em comunidade remanescente da dominação otomana, que chegou a constituir um quinto da população da antiga Iugoslávia. Nos Estados Unidos há mais de seis milhões de adeptos do Islã em boa parte de etnias árabes, mas, igualmente, com importante contingente (40%) de negros norte-americanos convertidos. Especula-se que, dentro de poucos anos, haverá mais crentes da religião mulçumana do que judeus nos Estados Unidos. No passar dos séculos, à noção do sincretismo político e religioso, contrapuseram-se no mundo islâmico ideologias modernas do capitalismo e marxismo, originando sociedade e sistemas econômicos adaptados à evolução das transformações industriais e tecnológicas. A sujeição do processo político aos preceitos imutáveis do Corão não pôde impedir que os povos árabes adotassem os figurinos sociopolíticos ocidentais. Passaram assim, a formar, ora ao lado das nações democrático-capitalistas, ora sendo levadas pela impaciência de seus líderes, a tentar alianças de conciliação difícil com o marxismo ateu internacional. O credo islâmico tem como orientação básica as 112 suratas (capítulos) do Corão que não são apenas normas religiosas mas, igualmente, todo um sistema de regras morais, de comportamento cotidiano e de direito social. Os ensinamentos de Maomé inspiraram-se nas filosofias e preceitos religiosos do judaísmo, crenças persas, mitologia greco-romana e na religião de Cristo (aceito, aliás, como um dos profetas de Alá). Nas linhas do judeu-cristianismo, a religião islâmica pregou a fraternidade e a tolerância, abolindo e condenando o paganismo para instituir a religião universal. Seus profetas são mensageiros do Deus único, figurando entre eles Noé, Abraão, Moisés e o próprio Cristo, sem que se atribuam a Maomé feições divinas mas, apenas, de enviado do ser supremo e absoluto. A conversão é simples profissão de fé, bastando a presença de testemunhas e o seu enunciado em áreabe. O ritual de preces, cinco vezes ao dia, é acompanhado de abluções e prosternações na direção de Meca. As funções clericais são menos presentes: conduzidas as orações nas mesquitas pelos “imãs” e o serviço realizado às sextas-feiras. A peregrinação à Meca, levadas em conta as limitações econômicas, é feita pelo menos uma vez na vida para adoração dos símbolos da Caaba e da Pedra negra. O jejum do Ramadã lembra a Quaresma cristã, como também outras práticas da condenação dos juros e a castidade pré-nupcial – todas, evidentemente, como ocorre com os cristãos, burladas dentro dos limites da hipocrisia e dos artifícios da conveniência. A evolução científica e materialista expõe o Islamismo a certos aspectos que, com o correr dos tempos, criaram problemas à interpretação de suas normas pristinas. Entre elas, as proibições à reprodução da imagem humana; a situação de inferioridade feminina, com o repúdio à esposa e aceitação da poligamia; a condenação de bebidas e de certos alimentos etc. Na ausência de hierarquias religiosas unificadas, as práticas religiosas, em comunidade tão disseminada pelo mundo, teria fatalmente que fazer concessões às pressões de democratização; da laicidade dos estados modernos; da liberdade de consciência e, sobretudo, da realidade do progresso científico e tecnológico. As disparidades raciais e econômicas e a ausência de evolução na doutrina política criaram, portanto, um quadro de complexidade crescente com ameaça do próprio islamismo como elemento de solidariedade política no cenário internacional. Os choques de interesses nacionais se configuraram, agora, na emergência do “fundamentalismo islâmico”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, os britânicos estabeleceram zona de influência nos Orientes Próximo e Médio, através de mandatos no Iraque e Transjordânia, inclusive na Palestina, onde o movimento zionista deu início à colonização judaica. A fidelidade de Saud originou o Hedjaz que, mais tarde, se chamaria Arábia Saudita. Essa presença era fácil de compreender numa região do planeta que dispunha de 70% das reservas mundiais conhecidas de petróleo. A Grã-Bretanha patrocinou a expansão da Persian Oil Company, que iniciou a construção, no Golfo Pérsico, da refinaria de Abadan. A Royal Dutch-Shell, companhia anglo-holandesa, e várias outras francesas e norte- americanas reagiram e, com apoio de seus governos, impuseram associação à Iraq Petroleum, depois dividida entre as concessionárias de exploração do petróleo. Durante os vinte anos de interregno entre as duas guerras mundiais, o mundo usufruiu de petróleo abundante e barato extraído pelo condomínio das grandes empresas ocidentais: Standard Oil, SoconyVacuum, British Petroleum (antiga Persian), Royal Dutch-Shell, Compagnie Française de Pétrole, e a Participation and Investiments. O aumento do consumo mundial trouxe novos grupos à exploração e ao refino. A Texas Company (Texaco) e a Standard descobriram imensas jazidas no Barein e na Arábia Saudita; a Gulf Oil e Anglo-Iranian cuidaram das reservas descobertas no Coveite. A II Guerra Mundial constatou a fidelidade árabe às democracias ocidentais e o repúdio islâmico à ideologia marxista com suas implicações ateístas. Terminado o conflito, a política de descolonização encabeçada pelos Estados Unidos resultaria na concessão progressiva de independência às comunidades árabes do Oriente Próximo e Médio. A nova geopolítica da região, em suas linhas gerais, obedeceria às partilhas territoriais da primeira guerra. Surgiram como nações independentes a Síria, o Líbano, Omã, Iêmen e os Emirados. A Arábia Saudita, a Jordânia, o Iraque já haviam adquirido relativa autonomia, mas achavam-se ainda vinculados aos interesses ocidentais, auferindo enormes ganhos das royalties do petróleo, usufruídos pelas elites governantes. O Irã foi a primeira nação islâmica (xiita) que reagiria contra a tutela ocidental, pela desapropriação da Anglo-Iraquian sob o comando de Mossadegh. O reinado do Xá marcou fase de liberação dos costumes, melhor distribuição de renda e modernização sem escapar, todavia, da corrupção e do arbítrio policial. Essas transformações sociais impostas de cima desmoronaram com a rebelião nacional que trouxe Khomeini ao poder, a ditadura dos extremados, e lançaria o Irã à frente do movimento fundamentalista. A onda nacionalista islâmica estendeu-se aos países do Magrebe, Egito e Oriente Próximo guardando, todavia, em cada um deles, aspectos peculiares de conformação política e de interpretação dos valores religiosos comuns. Os fatores econômicos determinaram diferentes graus de desenvolvimento e crises sociais conseqüentes das pressões populares. O petróleo passou a ser fator básico não apenas do crescimento econômico e, igualmente, de barganha política para assegurar a independência das novas nações islâmicas. A criação e as práticas monopolísticas da OPEP garantiriam à comunidade árabe elementos de maior coordenação à sua atuação internacional. As duas crises do petróleo trouxeram a noção da influência crítica dos países na economia mundial, principalmente pelos desequilíbrios gerados com maior impacto nas nações em desenvolvimento – entre elas, não seria preciso dizer, o Brasil. Não obstante, as rivalidades políticas, étnicas e religiosas predominaram, afetando a consolidação que se esperava de uma grande aliança islâmica. Esses choques e rivalidades resultariam em posicionamento antagônico nas quatro décadas durante a Guerra Fria, com confrontações políticas e na guerra entre o Irã e o Iraque. A criação e expansão do Estado de Israel revelou a precariedade da união das nações árabes do Oriente Médio e Próximo. A resolução de Campo David afastaria o Egito de coligação militar árabe, após a decisão histórica de Anwar Sadat em poupar seu país do ônus econômico crescente das guerras contra Israel. Solução nacional considerada traição ao islamismo regional e, por extensão, mundial. A Intifada agravou a questão palestina no cenário internacional, com condenação às práticas de violência de Israel e a maior responsabilidade da mediação norte-americana. A assinatura do acordo de Washington confirmou a transigência israelense em relação à OLP e à autonomia da Faixa de Gaza, despertando esperança de novos esforços para aliviar a crise árabe-judaica. O postulado da união islâmica, antes intransigente na eliminação do estado de Israel, perdeu sua força entre os países árabes moderados. A irracionalidade política, o fanatismo e os ódios crônicos tornaram, porém, imprevisíveis os caminhos e a duração dos esquemas de paz duradoura para a crise árabe-israelense. Na Guerra Fria, a União Soviética reagiu à estratégia americana de criação do “cinturão-verde do Islã”, pela contra-posição de política de penetração ideológica, com resultados favoráveis na concili- ação dos postulados religiosos à doutrina socialista e seu apelo popular. A aliança tácita dos extremistas árabes com Moscou afetou o equilíbrio regional e originou regimes-fortes no Irã e no Iraque, o conflito militar prolongado entre os dois países e a intervenção direta da OTAN na guerra do Coveite. Todo o “pacote” democrático e liberal, armado pelos Estados Unidos e a Comunidade Européia foi ameaçado pela Revolução de Khomeini e o aparecimento de riscos de aglutinação política no Oriente Médio. Os preceitos fundamentalistas do Aiatolá revelaram certa flexibilidade que levou o Irã a tolerar a invasão soviética do Afeganistão, ante a necessidade de preservar os fluxos de ajuda militar russa: em equilíbrio ao armamento americano enviado a Saddam Hussein. A despeito de sua liderança fundamentalista, o Irã tem-se limitado a envolvimento retórico e ao envio de mísseis Scud no desenrolar do conflito árabe-israelense. Vale lembrar que os iranianos são de etnia distinta e adeptos da seita Xia: oposta aos sunitas, predominantes no mundo islâmico; à exceção, além do Irã, de parte do Iraque, e adeptos na região meridional do Líbano e no Paquistão. O atual governo iraniano tem suas bases políticas na coligação entre xiitas e facções moderadas ou mesmo leigas: o controle do poder é exercido por ditadura férrea, legalizada pela aplicação do direito islâmico, que estabelece mais de cem delitos punidos com pena de morte. Há, porém, margem de flexibilidade política em atenção aos diferentes grupos radicais que possuem suas próprias interpretações da doutrina religiosa. O papel atuante do fundamentalismo, na recomposição geopolítica e geoeconômica da ordem mundial, parece limitado pelo seu caráter carente de unidade racial e de veículos de centralização de sua ação política com concordância de objetivos comuns internacionais. A hegemonia dos Estados Unidos e o fim da confrontação ideológica aceleraram o processo de caducidade do Terceiro Mundo. A ação conjugada dos americanos e europeus superou a imposição de alta de preços, arquitetada pela OPEP. Em sua autonomia, as repúblicas islâmicas da CEI continuarão a depender da vinculação comercial e financeira russa e, sobretudo, para a modernização de suas instituições sociais, ainda em nível de países subdesenvolvidos. O Cazaquistão, por exemplo, tem sua produção de petróleo sujeita à rede de comercialização da CEI, ou seja, da Rússia. O sucateamento da União Soviética não invalida o gigantismo da federação Russa e sua vontade de conservar o predomínio político e econômico sobre os 21 milhões de quilômetros quadrados que antes reuniam as repúblicas socialistas soviéticas. A turbulência política persistente no Afeganistão, o apoio dado por Moscou à política norte-americana no Iraque e, por extensão, ao jogo do equilíbrio que mantém Saddam no poder pautarão a política regional da Rússia ante os perigos de eventual “contaminação” fundamentalista na CEI. No cenário estratégico-militar atual não existem perspectivas imediatas de futuro fortalecimento do poder bélico dos defensores do fundamentalismo radical. Os arsenais armamentistas no Oriente Médio foram acumulados como resultado da estratégia ocidental, sobretudo de Washington, de vender armas a Reza Pahlevi e, subseqüentemente, ao Iraque no seu choque armado com a revolução de Khomeini – “Gangorra” estratégica que resultou na guerra Irã-Iraque e no posterior conflito do Golfo (Saddam), após a invasão do Coveite. As compras bilionárias de equipamentos sofisticados pela Arábia Saudita, com seus recursos engordados pelo petróleo condicionarão, doravante, o Rei Fahd à dependência dos suprimentos americanos e concorrerão para os problemas econômicos, antes mencionados, e que começam a preocupar aquele país. A manutenção de Saddam Hussein em Bagdá, aparentemente incompreensível, significa, na realidade, uma opção de Washington para colocar freio à expansão do fundamentalismo iraniano por todo o Oriente Médio e Próximo. Serve, ao mesmo tempo, para preservar a efetiva presença militar americana (OTAN-ONU) naquela região como garantia, em última instância, do status quo político e da solução gradual do problema palestino. As relações do Brasil com os países árabes produtores de petróleo foi marcada, nos últimos anos, por esforços compreensíveis para a expansão do nosso comércio de exportação, procurando diminuir o saldo negativo, decorrente da compra daquele produto. O custo do petróleo importado tem sido crucial na luta desenvolvimentista, causando o início da crise econômica brasileira a partir do começo da década passada e até hoje afligindo o nosso país. As atividades da Petrobrás para aumento da produção nacional estabilizaram-se por volta dos 700 mil barris diários, ou seja, metade do consumo interno (1991). De qualquer forma, a necessidade de misturar petróleo importado ao brasileiro deverá ser considerada nos planos de total auto-suficiência objetivada pela produção nacional. O volume das nossas vendas de mercadorias ao Oriente Médio não tem significado especial no cômputo global de nossas exportações, que somaram, em 1996 cerca de US$ 1,3 bilhão, ou seja 2,8% do total. Destacaram-se a Arábia Saudita (US$ 410 milhões), os Emirados Árabes Unidos (US$ 170 milhões) e o Irã (US$ 180 milhões), sendo que o intercâmbio desse último país com o Brasil sofreu decréscimo de 40% em relação a 1995. A saga da participação brasileira no programa nuclear do Iraque gerou polêmica e uma série de condenações nos Estado Unidos e na Europa, nossos maiores parceiros comerciais e financeiros. A venda de equipamentos bélicos àquele país foi, igualmente, motivo de “censuras” discretas ou ostensivas pela imprensa internacional, embora, na prática, nosso país tenha figurado entre os fornecedores de menor vulto, cabendo a primazia a nações ocidentais como França e Alemanha. A contabilidade dessas transações, louváveis do ponto de vista do incremento comercial, ainda não foi avaliada à base de lucros e calotes. As tentativas de venda de armamento pesado – especialmente tanques “Osório” – à Arábia Saudita arrastaram-se por anos a fio, dando esperanças vãs à indústria nacional de material bélico, hoje em dificuldades. O conflito do Coveite colocou os Estados Unidos fornecedor dos clientes sauditas, mas não sem o agravamento da crise econômica que agora ganha proporções para Riad. Referências às relações do Brasil com o islamismo devem realçar que não há, em nosso país, problemas entre árabes de diferentes origens nacionais entre si ou mesmo nas suas relações com as comunidades judaicas. A integração dessas comunidades árabes na sociedade brasileira decorre, em parte, da predominância árabe-cristã, mas as autoridades brasileiras asseguram plena liberdade ao exercício do credo mulçumano e à divulgação da cultura islâmica através de centros culturais e entidades literárias em todo o país. (*) Ex-Embaixador na Hungria e nos Países Baixos POTÊNCIAS ASCENDENTES O CAMINHO DA PAZ NO 3o MILÊNIO 1 Marcos Henrique C. Côrtes(*) “– Não suje minha água!” “– Mas eu estou bebendo rio abaixo ...” – Esopo, – O lobo e o cordeiro, Fábulas “[ ... ] porém alguns são mais iguais do que outros” George Orwell, – A Revolução dos Bichos (Animal Farm) 1. Introdução A etapa histórica em que se encontra atualmente o mundo apresenta aspectos inteiramente novos em relação a todas as demais por que passou a Humanidade. Alguns desses aspectos ainda não estão inteiramente compreendidos e alguns parecem muito difíceis de serem percebidos com exatidão. Na Arte da Guerra costuma-se dizer que, tradicionalmente, os estrategistas militares tendem a se basear no conflito armado imediatamente precedente para traçar seus planos para o conflito seguinte. O mesmo ocorre no vasto âmbito das outras facetas do relacionamento internacional. Assim, por exemplo, é natural que os analistas e planejadores diplomáticos ainda apliquem, em seus trabalhos, concepções baseadas em experiências do passado recente, muitas das quais são inadequadas à nova realidade. O objetivo deste estudo é, em primeiro lugar, sugerir uma nova concepção para a estrutura cratológica do 3o Milênio, composta por entidades “nacionais”, cuja essência diferirá profundamente da conhecida até há poucos anos. A partir dessa base de raciocínio, procurarei aventar o que poderia ser a evolução correta dessa estrutura, de modo a assegu- 1 Este artigo se enquadra no espírito das comemorações do Cinqüentenário da criação da Escola Superior de Guerra. Essa grande instituição nacional soube, ao longo de sua evolução, adaptar a condução de seus estudos às exigências da realidade nacional e internacional, sem abrir mão de seus conceitos básicos e princípios doutrinários. Do mesmo modo, a potência ascendente requer, na fase inicial de sua formação, a preservação firme de valores intrínsecos do Estado-Nação como modo indispensável de se assegurar o êxito de sua evolução. rar a paz no futuro previsível da Humanidade. O processo de análise, interpretação e projeção da atual etapa histórica requer preliminarmente a recordação de alguns conceitos de comportamento intelectual, bem como de características iniludíveis do relacionamento internacional. Há cerca de dez anos o termo “modernidade” passou a ter uso corrente, sobretudo por parte de líderes políticos e dos meios de comunicação de massa. A aplicação ampla da palavra, para atender aos mais diferentes objetivos, fez com que sua verdadeira acepção fosse ficando cada vez mais imprecisa e confusa. De maneira imperceptível, mas persistente, a busca da “modernidade” passou a ser um objetivo em si mesma, com contornos de obrigação sacrossanta. Em praticamente qualquer setor de atividade, tudo passou a se justificar em seu nome e, inversamente, qualquer pronunciamento que possa ter conotação crítica é logo inquinado de postura retrógrada. Como toda generalização, porém, esta também acarreta graves perigos, sobretudo quando, sob a capa onipresente da “modernidade”, generalizam-se concepções e processos. Basta ver como no Brasil, nos últimos anos, a “privatização” desenfreada passou a ser implementada como a única via para resolver a problemática complexa das empresas estatais e para-estatais, jogando-se num mesmo cesto empresas de origem duvidosa e irremediavelmente falidas, outras cujo formato atendia a reais necessidades da sociedade e, ainda, empresas de inegável valor estratégico e que eram altamente rentáveis e operavam num ambiente de economia de mercado. Essa generalização permitiu inclusive camuflar a falácia de argumentações suspeitas, em que se invocava o exemplo de empresas estatais ineptas e falidas para justificar a necessidade da alienação de outras, eficientes e, ademais, estrategicamente valiosas. Essa orientação abrangente, com a mesma feição de verdade inconteste, vem sendo adotada em relação a conceitos do direito privado e do direito público. No âmbito do direito internacional público, pode-se ver, por exemplo, a freqüência com que são expostas, defendidas e – mais grave ainda – aplicadas noções de “soberania limitada”, “direito de intervenção”, “dever de ingerência” e outras correlatas. Ante o fracasso ou insuficiência das instituições internacionais e das normas que se foram conformando à custa de guerras e sacrifícios, recorre-se ao uso da força, exercida mercê de um suposto “mandato conferido pela comunidade internacional”, sem que se possa precisar que mandato é esse, que comunidade internacional é essa e por que meios se expressou tal vontade. Sob a alegação falaz da necessidade de desarmamento mundial, é vedado aos demais Estados o acesso a certas tecnologias de ponta pelos países que já as detêm, enquanto estes as utilizam para atividades comerciais altamente rentáveis, além de continuarem devotando imensos recursos a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias ainda mais avançadas de emprego militar. Para dar permanência maior a esses procedimentos inibitórios, são impostos à adesão universal acordos e tratados que implantam a desigualdade jurídica dos Estados. Os que se beneficiam desses procedimentos aproveitam a vertiginosa progressão científicotecnológica para justificar a necessidade imperiosa de mudanças igualmente rápidas de conceitos e normas jurídicas. Argumenta-se falsamente que os velozes avanços da chamada Terceira Revolução Industrial não permitem a análise cautelosa, o debate ponderado, a projeção objetiva das conseqüências das metamorfoses propugnadas. Diz-se que sua não aceitação significará perder “o trem da História”, sem permitir que os que desse modo são praticamente obrigados a nele embarcar possam sequer perguntar para onde os levará esse trem. Na realidade, é fundamental ter-se presente que não se pode, impunemente, abandonar ou alterar de forma radical certos conceitos e padrões que foram evoluindo, ao longo dos últimos séculos, visando a aprimorar o comportamento internacional dos povos. A diretriz, nesse contexto, deve ser a de que o acatamento da tradição não é necessariamente uma conduta retrógrada e, sim, a base firme para que sua própria atualização seja garantia de evolução proveitosa. Cabe aqui relembrar a pertinente observação de um grande diplomata, Embaixador Mario Gibson Barboza, ao tomar posse do cargo de Ministro das Relações Exteriores: “A melhor tradição do Itamaraty é a renovação constante”. 2. A Atual Conjuntura Internacional Em artigo intitulado “A preservação do Estado Nacional ante o processo de globalização”, publicado na Revista da Escola Superior de Guerra, ano XII, no 34, de 1997, apresentei uma breve retrospectiva do Mundo pós-Guerra Fria. Nessa recapitulação destaquei a mudança do fulcro dos objetivos estratégicos, passando a atribuir primazia aos econômicos em relação aos de cunho político-militares. Ressaltei como essa mudança não era uma completa “volta ao passado”, devido à nova estrutura cratológica decorrente do esfacelamento do “império soviético”, com a alteração substancial da situação relativa dos países menos desenvolvidos e com as conseqüências da “Terceira Revolução Industrial”. Sobre esse pano de fundo, sugeri a classificação dos Estados, em termos realistas de Poder Nacional, em quatro categorias, a saber: superpotência (Estados Unidos), megapotências (União Européia e Japão), potências ascendentes e pseudo-potências. Essa estrutura cratológica já está claramente concretizada no que se refere à superpotência e às duas megapotências. As pseudo-potências também estão definidas e seu comportamento no cenário internacional é decorrência, por enquanto, da atuação daqueles três atores principais. Já a categoria das potências ascendentes engloba Estados que ainda estão nas etapas preliminares do seu processo evolutivo. A conformação das potências ascendentes constitui, por tudo o que precede, a única garantia de paz no 3o Milênio, pois somente sua atuação efetiva poderá evitar que o cenário mundial assuma as feições, inegavelmente nocivas, do monopólio ou do oligopólio do poder em escala mundial. Vejamos portanto, em maior profundidade, em que consiste a potência ascendente e qual deve ser o processo de sua formação. 3. Potência Ascendente: Necessidade, Concepção e Viabili-dade Sem dúvida os povos alcançaram grandes progressos na formulação e adoção de conceitos e normas que fossem gradualmente reduzindo a prevalência da ameaça e do uso da força como fator fundamental do relacionamento internacional. Entretanto, esses avanços se faziam sob a sombra ominosa e onipresente da guerra. Na época atual, embora persistam e proliferem os conflitos armados, o risco de uma conflagração mundial se tornou tão remoto que se intensificaram as proposições, mais ou menos explícitas, de abandono de certas figuras essenciais do convívio internacional. Passou-se assim a inquinar de superadas as noções de soberania irrestrita, de Estado-Nação, de nacionalidade, de segurança nacional e assim por diante. A promoção de causas por definição nobres tornou difícil a percepção da utilização insidiosa das mesmas para servir a desígnios de política externa de alguns países. Nada disso, porém, anula a veracidade de que só os Estados detentores de alto grau de Poder Nacional podem ter participação ativa no âmbito internacional. É preciso encontrar-se um caminho que permita, sem o retrocesso ao emprego da força das armas, ampliar os benefícios da capacidade produtiva do ser humano e assegurar a cooperação harmoniosa dos povos para a consecução da paz universal. Esse caminho não prescinde, numa etapa inicial, de forças armadas modernas, na medida em que são a Expressão militar do Poder Nacional, mas sem o objetivo final de alguma ação bélica ofensiva. Com o desaparecimento do quadro de poder que caracterizou a etapa histórica da Guerra Fria, pode-se dizer que não mais existem potências regionais. No período 1945-1990 houve inegavelmente alguns países que exerceram o papel de potência regional. Assim ocorreu, por exemplo, com o Irã (do Xainxá), com Israel, com a Índia e com a África do Sul. Em alguns casos, o Poder Nacional de determinado país era potencializado de forma desproporcional em função do “apoio” que lhe era prestado por uma ou outra das “superpotências” no contexto do enfrentamento bipolar mundial. Em outros casos, esse papel foi desempenhado por um país cuja dimensão de Poder Nacional e cujos interesses no Campo Externo explicavam claramente sua atuação como potência regional. Porém, mesmo nessa segunda situação, o comportamento da potência regional estava sempre vinculado de modo inextricável à dinâmica da Guerra Fria. Bastaria esta razão para que, na etapa pós-Guerra Fria, não haja condição para que país algum possa se comportar como potência regional. Mas há um motivo mais decisivo ainda para isso, que advém da incontestável supremacia militar da superpotência única, e da imensa disparidade de poder militar das duas megapotências em relação aos demais países, inclusive aqueles que poderiam, num outro contexto histórico, atuar como potências regionais. Contudo, persiste o fato de que, no âmbito econômico, o poder mundial está na realidade compartilhado pelos três Centros de Poder Econômico (CPEs), que são a superpotência e as duas megapotências. Esta circunstância cria, ao mesmo tempo, a necessidade e a possibilidade de que alguns países, em função do potencial de seu Poder Nacional, venham a ter participação ativa no relacionamento internacional. Para isso, porém, eles precisarão redimensionar o seu Poder Nacional, de maneira a obrigar os CPEs a tratá-los como “parceiros” atuantes e não apenas como alvos de seus projetos e programas de política externa (no sentido mais amplo do termo). Ora, qualquer hipótese de planejamento que vise a aumentar de forma significativa o Poder Nacional de qualquer dos países que não são CPEs revelará as enormes limitações de tal meta e demonstrará a inviabilidade de, em tempo útil, ampliá-lo de modo exponencial. A resposta óbvia está, por conseguinte, numa soma do Poder Nacional de alguns países. Isso já ocorreu muitas vezes no passado histórico, sob diferentes modalidades de alianças e pactos. Entretanto, nessas composições a adição se fazia sempre de forma parcial, geralmente não envolvia todas as Expressões do Poder Nacional e decorria de objetivos limitados no tempo. No panorama mundial pós-1990, portanto, essas alianças e pactos não permitiriam o grau suficiente de aumento de Poder Nacional das partes nem a feição “permanente” que precisaria ter esse somatório. Na verdade, o que se requer é um processo cooperativo que conduza à integração do Poder Nacional das partes em todas as expressões. Em segundo lugar, esse processo não pode ter a condição de “soma zero”, em que determinados ganhos para uma ou mais partes implique necessariamente perdas para outra ou outras partes. É claro que não se pode evitar a desigualdade de ganhos e perdas entre as partes envolvidas no processo desde o seu início, mas a certeza, a longo prazo, da “permanência” do processo e a distribuição eqüitativa dos benefícios e sacrifícios, assegurará a perseverança no rumo. Disso decorre a característica essencial desse processo: uma cooperação diuturna, ativa, reciprocamente benéfica de todos os seus participantes. Esse processo é o que denomino de conformação de uma potência ascendente. Ele é inteiramente sui generis e requer alguns esclarecimentos adicionais, para evitar que pareça apenas um rótulo diferente para uma atuação hegemônica ou alguma associação de Estados independentes, a exemplo das que já existiram no passado. A figura da potência regional se caracteriza pelo predomínio de um Estado sobre outros, exercido visando à consecução dos objetivos do primeiro. Além disso, num esquema de potência regional não existe um aumento da soma de Poder Nacional dos seus componentes, podendo haver uma diminuição da mesma decorrente dos próprios objetivos de dominação. No caso de uma aliança ou pacto, além de seus integrantes terem objetivos limitados ao alcance do acordo a que chegaram, persistem alguns objetivos contrapostos, que podem até ser mantidos em suspenso a fim de não prejudicar o funcionamento da coligação, mas que constituem risco permanente de comprometimento da mesma. O bloco regional também tem normalmente objetivos limitados em alcance e duração. De forma geral, algumas expressões do Poder Nacional dos seus membros não são objeto do mesmo tipo de “integração” que é buscada em outras. Logo no começo do período pós-Guerra Fria difundiu-se o termo potência emergente, para designar os países cujas economias, embora ainda num estágio econômico muito menos desenvolvido do que o do ápice da pirâmide de poder, apresentavam sinais prenunciadores de um aumento significativo de seu Poder Nacional, sobretudo, mas não exclusivamente, na Expressão econômica. O rótulo, contudo, revelou-se pouco realista e as crises econômico-financeiras da segunda metade da década de 1990 retiraram-lhe transcendência. A potência ascendente não é um Estado isolado, e sim um conglomerado de Estados que se vão transmudando numa potência ascendente. O conceito de potência ascendente contém, na verdade, um elemento tão dinâmico que é difícil distinguir entre o processo de sua conformação e sua efetiva concretização. O próprio qualificativo “ascendente” sublinha esse dinamismo, além de implicar uma atuação que busca a ascensão aos patamares superiores da estrutura de poder. Naturalmente, o processo de formação da potência ascendente se desenvolve em torno de um Estado núcleo, que opera como se fosse um catalisador do processo. É claro que esse Estado tem que reunir características de Poder Nacional que o habilitem naturalmente para essa função. Nessa etapa inicial, pode-se dizer que ele é a potência ascendente, embora no futuro, como se objetiva, esta será o conjunto dos Estados que passaram por esse processo catalisador. Além disso, tratar-se-á de uma catálise buscada por todos os participantes do processo, não apenas acidental ou automática e jamais imposta por um ou alguns aos demais, implementado-se formas eficazes de cooperação no espaço geopolítico imediato. Portanto, não se trata do exercício de capacidade hegemônica, como ocorria com as antigas potências regionais, mas sim da busca de uma atuação coordenada, harmônica e benéfica para todos. Assim se chegará a uma situação em que a potência ascendente não será apenas o país ou pequeno grupo de países que, graças ao seu Poder Nacional, exerceram o papel de liderança do início do processo, mas sim o conjunto de países nucleados em torno dele. Precisamente porque existe essa busca coletiva, será possível chegar-se a um efetivo aumento do Poder Nacional de cada um dos integrantes e, conseqüentemente, do conjunto. Inevitavelmente, ao longo do processo e muito especialmente em seus estágios iniciais, haverá grandes assimetrias na repartição de benefícios e sacrifícios dos participantes. Por isso mesmo, será indispensável uma permanente e meticulosa análise de todas as etapas do processo, com perfeita transparência de procedimentos e resultados entre os seus condutores. Com todos esses esclarecimentos e especificações, podemos chegar a um conceito abrangente: Potência ascendente é o país (ou grupo de países) que já dispõe, efetivamente ou em potencial, das condições indispensáveis para exercer influência predominante em seu Espaço Geopolítico imediato, atuando como catalisador do Poder Nacional dos Estados nele compreendidos, visando a uma participação ativa no relacionamento internacional. Cabe aqui a indagação sobre a viabilidade desse processo. Apesar das dificuldades amplamente demonstradas pela História da obtenção e da permanência de esquemas de harmonização eficaz entre Estados, já existe grau suficiente de maturidade em algumas culturas para permitir a confiança em que o processo de formação de potência ascendente é factível. O mecanismo pelo qual evoluirá a Potência Ascendente é o da cooperação integrativa. A escolha desta Expressão visa a sintetizar as características essenciais desse processo novo e inovador. Nesta etapa histórica que se inicia, a cooperação e a integração no âmbito internacional precisam ser corretamente compreendidas. Ao longo da História sempre houve uma variedade de formas de cooperação entre os Estados. Nas últimas décadas, em função da proliferação (já mencionada) dos organismos multilaterais e mecanismos internacionais, além dos esquemas bilaterais, surgiram várias entidades que, pelo menos na sua concepção inicial, visavam a promover, estruturar e implementar programas de cooperação entre Estados. Contudo, tanto no plano bilateral, como no nível multilateral, esses esquemas de cooperação não escapavam às características comuns do relacionamento internacional moderno, em que sempre existem outros interesses por trás desses programas. Muitas vezes há interesses não declarados, que podem de fato causar prejuízos a alguma ou algumas das partes. Mas mesmo quando todos os interesses são conhecidos e aceitos, observa-se uma tendência a implementar essas modalidades de cooperação como parte de uma ação diplomática, como elementos auxiliares de uma Política Externa. A concepção de cooperação que, a meu ver, precisa ser adotada para a formação de uma potência ascendente é essencialmente diferente de todas as formas precedentes. A sua dinâmica integracionista também difere dos projetos de integração vistos até hoje. No caso da cooperação integrativa, existe um processo, que se auto-alimenta e se auto-reforça à medida em que se vai desenvolvendo, de continuado aumento do Poder Nacional do conjunto através do aumento do Poder Nacional de cada integrante. No passado recente podem ser vistos exemplos desses aumentos concomitantes – e jamais conflitantes – de ganhos para as partes e para o conjunto nas situações legítimas de investimentos externos de longo prazo em setores produtivos. Um determinado país, por carecer de nível suficiente de poupança interna para aumentar o produto nacional, busca atrair poupanças externas. Evidentemente, quando se trata de investimentos meramente especulativos, o ganho desses especuladores é necessariamente uma perda para o país “recipiente”. (A analogia, nesse caso, seria com a situação de uma potência regional, nos moldes historicamente conhecidos, em que o aumento do seu ganho implica perdas para os países submetidos à sua hegemonia). O investimento produtivo de longo prazo, ao contrário, gera ganhos para o investidor e o recipiente, havendo portanto um ganho para o conjunto (investidor + recipiente) e para cada um dos dois componentes da equação. É claro que, no decurso desse “longo prazo”, haverá momentos ou etapas em que um dos dois terá ganhos maiores em relação ao outro, mas o resultado final será positivo para ambos. Os sacrifícios também são feitos por ambos, embora possam ser de natureza diferente. Assim, por exemplo, o recipiente pode abrir mão de certas receitas fiscais, através de isenção temporária de tributos, enquanto o investidor se resigna a não auferir lucros líquidos durante um certo período a fim de manter elevado o nível de reinvestimento. Essa exemplificação está, é claro, circunscrita à Expressão Econômica do Poder Nacional, enquanto que no processo de conformação da potência ascendente o processo se dá simultaneamente em todas as expressões do Poder Nacional. Para melhor aquilatar a viabilidade desse processo, vejamos a seguir dois casos concretos, que representam o que se poderia chamar de um “exemplo imperfeito” e de um “começo possível” de potência ascendente. 4. Um Exemplo Imperfeito A atual União Européia (UE) pode ser vista como um exemplo, ainda que imperfeito, do processo de cooperação integrativa requerido para a formação de potência ascendente. A imperfeição do exemplo provém das circunstâncias em que se originou a UE, que são muito diferentes daquelas em que, agora, poderão se formar potências ascendentes. Dentre essas circunstâncias bastaria citar o panorama geoestratégico em que se iniciou e desenvolveu a UE, ou seja, em plena Guerra Fria. Esse panorama, somado ao fato de que se buscava a integração de países que acabavam de se digladiar no sangrento conflito da II Guerra Mundial, explica os objetivos limitados visados pelo Tratado de Roma (1958), que procurava apenas criar um mercado comum em parte da Europa Ocidental. Porém, mesmo com essas e outras diferenças, a evolução que chegou ao estágio presente da UE, inclusive com a adoção de moeda única (o Euro), é rica em ensinamentos para o processo de formação de potências ascendentes no 3o milênio. Esses ensinamentos não se limitam aos aspectos referentes aos povos desses países, mas também ao relacionamento desse grupo de países com o resto do mundo. Convém refletir, por exemplo, em como os países membros da UE em momento algum descuraram do continuado fortalecimento da Expressão militar do Poder Nacional de cada um, preservando desse modo sua capacidade de atuação efetiva no panorama mundial. Aliás, deve-se sublinhar o fato, que confirma o comentário precedente, de haverem os integrantes da OTAN, após o desaparecimento do Bloco Soviético e do Pacto de Varsóvia (até então sua declarada razão de ser), não só mantido essa aliança essencialmente militar, como ampliado ainda mais sua eficácia de modo continuado, inclusive com a admissão, como membros plenos, de países que integravam o próprio Pacto de Varsóvia. Muito significativo também, neste contexto, é o empenho, de alguns anos para cá, da UE em dar ímpeto real à União Européia Ocidental (UEO) 2 e ao Eurocorpo 3, sinalizando uma clara intenção de conduzir à separação das forças armadas da UE das de seus dois aliados extra-continentais da OTAN (Estados Unidos e Canadá). Um outro aspecto da condução geoestratégica da UE também encerra úteis ensinamentos: o relacionamento especial entre ela e a superpotência, sua “madrinha benfeitora” logo após a II Guerra Mundial, posteriormente sua aliada militar mas parceira na expansão econômica em âmbito global e, finalmente, sobretudo após 1990, sua rival na condição de ambos como dois dos três vértices do poder econômico mundial. É um tipo semelhante de relacionamento especial, em que exista compreensão objetiva e aceitação recíproca dos objetivos de cada um, que precisa ser buscado pela potência ascendente em formação junto ao seu CPE “patrocinador”. Um terceiro elemento que proporciona bons ensinamentos é a atribuição de personalidade jurídica internacional à “comunidade européia”, inclusive com poderes para emissão de passaporte e com reconhecimento diplomático pela maioria dos países “ocidentais”, nos quais foram inclusive instaladas missões diplomáticas. Note-se que essa personalidade internacional não substituía nem reduzia a atuação plenamente soberana de cada país membro da “comunidade” no quadro das relações internacionais, e sim dava a esta um voto a mais, inclusive em muitos organismos multilaterais. Sem evidentemente esgotar o amplo leque de exemplos, considere-se a maneira como a “comunidade européia” soube fazer valer seu efetivo Poder Nacional “coletivo” para impor aos demais países o ônus da sua “Política Agrícola Comum” (PAC), segundo a qual foi criado e se mantém até hoje vasto programa de subsídios ao setor agropecuário dos países membros, com vultosos prejuízos para as exportações primárias de inúmeros outros países. No campo interno, deve-se ressaltar o acatamento da assimetria dos setores agropecuários dos membros, refletida nas disparidades dos totais de subsídios recebidos por cada um deles (o maior recipiente é a França, com 10,38 bilhões de dólares em 1997, e o menor Luxemburgo, com 3 milhões de dólares). 5. Um Começo Promissor O MERCOSUL pode ser considerado como análogo à etapa inicial do Mercado Comum Europeu, pois o Tratado de Assunção contém, como acontecia com o Tratado de Roma, objetivos circunscritos a uma integração essencialmente econômico-comercial. Tal como se deu com os seis membros iniciais do MCE, os quatro membros fundadores do MERCOSUL procuraram se concentrar no processo de formação de um mercado comum regional. Sem desprezar as vantagens já auferidas nem ignorar os riscos e as dificuldades para sua implementação plena, é preciso equacionar todos esses elementos segundo uma ótica compartilhada pelo Brasil e por seus associados, com metas de médio e longo prazos, ou seja, à luz de um processo de formação de potência ascendente. É por essa ótica que precisa ser reativada a proposta brasileira de criação de uma “Área de Livre Comércio Sul-Americana” (ALCSA), colocando num plano cronologicamente posterior as proposições defendidas pelos Estados Unidos, com graus variáveis de intensidade, do estabelecimento de uma “Área de Livre Comér- 2 São Membros da UEO: Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, Itália, Luxemburgo e Portugal. Têm status de Observador na UEO: Áustria, Dinamarca, Finlândia e Suécia. 3 Integram o Eurocorpo: Alemanha, Bélgica, Espanha e França. cio das Américas” (ALCA). Os bons frutos gerados pelo MERCOSUL no campo comercial, bem como as inevitáveis dificuldades surgidas periodicamente, em função de desequilíbrios ocasionais das balanças comerciais bilaterais de seus membros, têm levado os dirigentes e tecnocratas desses países a se concentrarem nos temas econômico-comerciais. Foram assim deixados em segundo plano idéias e projetos de “integração” em outros campos do relacionamento intra-MERCOSUL, com duplo prejuízo. Por um lado, o processo fica circunscrito a uma parcela da Expressão econômica do Poder Nacional dos membros, desviando-os cada vez mais do caminho da potência ascendente. Por outro, torna-se cada vez mais difícil persuadir esses povos da necessidade de serem aceitos, nas etapas de evolução rumo à potência ascendente, sacrifícios e vantagens temporariamente desiguais. Na verdade, a própria concepção de cooperação integrativa, se for desenvolvida e posta em prática com relação às outras Expressões do Poder Nacional, facilitará, em vez de agravar, os problemas próprios do intercâmbio comercial intraMERCOSUL. Simultaneamente, é indispensável que se aprofundem os entendimentos visando a uma coerência na atuação dos membros do MERCOSUL no campo externo. Não se trata aqui – pelo menos no curto prazo – de se pretender uma política externa comum, mas sim de impedir iniciativas que possam debilitar a postura geopolítica e geoestratégica do MERCOSUL como um todo perante outros atores do cenário internacional, em especial os três Centros de Poder Econômico (CPEs). Isso deve ser feito tanto no âmbito do relacionamento bilateral de cada país-membro com terceiros países como na atuação em organismos internacionais e nos diálogos com as organizações não-governamentais (ONGs). Os estudos e providências especificamente relacionados com a Expressão militar já contam com programas implantados visando à confiança recíproca e à cooperação em nível de estado-maior. Urge, contudo, ampliar e aprofundar conversações que permitam o fortalecimento integrado das forças armadas dos países-membros dentro da concepção de revitalização dessa Expressão do Poder Nacional conjunto. A conjugação da escassez de recursos adequados com a velocidade dos avanços científicotecnológicos aplicados na atividade econômica faz aumentar em progressão geométrica o distanciamento entre os países em vias de desenvolvimento e os países tecnologicamente atualizados. Portanto, um contexto que requererá intensa participação de autoridades governamentais e do setor privado é o da Expressão científico-tecnológica, sobretudo tendo em vista a proteção da propriedade intelectual combinada com o compartilhamento, num sentido de somatório integrado, do conhecimento e da pesquisa. Por último, a Expressão psicossocial poderá, se tratada com perseverança e visão, fornecer a atmosfera conducente à mais fácil aceitação, pelos povos dos países-membros, das características nem sempre amenas do processo de cooperação integrativa. Através dos esforços nesse sentido, será possível criar condições mais favoráveis para que as classes políticas participem com maior intensidade e sem temores do processo em pauta. 6. Riscos e Ameaças No processo de formação de potência ascendente será de vital importância atentar sempre para certos riscos e ameaças, alguns semelhantes aos que o passado histórico revela à saciedade, outros mais sutis – e por isso mesmo mais perigosos – inerentes a esse próprio processo. Dos riscos mais conhecidos, pode-se mencionar, a título exemplificativo, o papel real dos organismos internacionais. Já me referi a esse ponto em outros artigos e em várias palestras. Por isso, limitar-me-ei aqui às duas conclusões principais decorrentes de análise objetiva do desempenho desses organismos. A primeira é que, apesar de seus objetivos declarados, os organismos internacionais acabam por servir aos interesses dos Estados que de fato direcionam sua atuação. A segunda é que a Nação que não puder defender seus próprios interesses não deve jamais esperar que qualquer organismo internacional o faça por ela. Analogamente, as ONGs, quaisquer que sejam os objetivos altruístas que apregoam, na verdade são, quase todas, braços auxiliares da política externa dos principais atores da cena internacional. Outra ameaça reside na falácia da chamada “liberalização do comércio internacional”. Na prática, o intercâmbio comercial mundial continuará sendo essencialmente “gerenciado”, ou seja, suas condições efetivas serão determinadas pelos interesses dos Estados que dominam o quadro econômico-financeiro mundial. Nesse contexto, deve-se também ressaltar o fato de que a multinacionalidade das empresas globais se aplica na realidade ao âmbito territorial em que atuam, mas sua fidelidade permanece devotada aos países em que têm suas matrizes. De resto, o restabelecimento, na etapa iniciada após 1990, da primazia dos objetivos econômicos sobre os político-militares, trouxe como conseqüência a coincidência quase constante dos objetivos estratégicos das empresas multinacionais e dos Estados onde têm suas sedes. É precisamente esse fato que empresta especial virulência ao processo popularmente denominado de “globalização”. Os perigos mais insidiosos, contudo, são aqueles que se vêm delineando e repetindo com freqüência sob a capa enganosa da “modernidade”. O mais sério deles é sem dúvida a teoria de que o caráter amplo e irrestrito da soberania é coisa do passado. Ouvem-se afirmações, geralmente estribadas na defesa de causas inegavelmente nobres, de que é preciso fazer o conceito do soberania evoluir para formas “modernas” de soberania “limitada”. Ora, o processo de formação de potência ascendente conduzirá, necessariamente, a uma mudança dos limites territoriais da soberania, mas em momento algum se deve admitir que esta seja afetada na sua essência. Em outras palavras, se uma potência ascendente for constituída pelos países B, C e D, tendo o país A como núcleo catalisador, para o êxito da formação da potência ascendente os quatro terão que, paulatinamente, ir aceitando reciprocamente limitações ao exercício de sua soberania respectiva, preservando contudo intacta sua essência. Só quando se chegar ao estágio final da potência ascendente, esta assumirá, na sua totalidade, a essência da soberania dos quatro. Aliás, somente se preservarem intacta essa essência os países que vão formar a potência ascendente terão a capacidade de aceitar mutuamente as limitações ao exercício da soberania, de modo a legar, igualmente intacta, essa essência soberana à potência ascendente em que se transformarão. E só se detiver íntegra essa soberania, a futura potência ascendente poderá desempenhar o papel ativo que se pretende para ela no âmbito internacional. Outro ponto extremamente delicado e que precisa ser entendido com clareza é o relacionamento da potência ascendente em formação com os CPEs. Não seria realista supor que o processo de formação de uma potência ascendente se pudesse desenvolver sem uma interação com os CPEs. Na verdade, é quase inevitável que o processo requeira um apoio efetivo de pelo menos um dos três CPEs. Entretanto, esse “patrocínio” precisa ser extremamente bem definido, de modo a evitar que a relação entre a potência ascendente e o CPE em causa se desvirtue em alguma forma de subserviência. Isso equivale a dizer que é fundamental que o CPE “patrocinador” de fato perceba a formação dessa potência ascendente como benéfica para os seus próprios objetivos. Por outro lado, dada a feição competitiva do relacionamento dos três CPEs entre si, é muito importante que esse relacionamento “especial” entre a potência ascendente em formação e o seu CPE patrocinador não seja visto pelos outros dois CPEs como uma circunstância nociva aos seus respectivos objetivos. Cabe, portanto, à potência ascendente empenhar-se para que o seu relacionamento com cada um dos outros dois CPEs seja mantido no melhor nível compatível com a relação primordial com o que lhe empresta patrocínio. Atente-se para o fato de que não se trata aqui, em absoluto, de duplicidade ou manipulação enganosa desses relacionamentos, mas sim de definição clara das vantagens que podem ser conseguidas por todos através do processo mesmo de formação da potência ascendente. As radicais mudanças dos quadros geopolítico e geoestratégico no mundo pós-1990, contudo, levaram os três CPEs a vislumbrar a perspectiva de efetivamente “conduzir” o relacionamento internacional em seu próprio benefício, com o inevitável prejuízo individual do Poder Nacional dos demais Estados. É justamente essa última característica que torna o processo da globalização pernicioso para a grande maioria dos países. É fundamental entender a aparente contradição entre os processos simultâneos da globalização da economia mundial, por um lado, e a regionalização através de “blocos econômicos”, de outro. Na realidade, o chamado processo de “bloquismo” nada mais é do que uma etapa do processo de globalização, por três razões principais, a saber: (a) dois dos maiores Blocos Econômicos Regionais (BERs) são efetivamente dirigidos por dois dos três CPEs (o NAFTA e a UE+AELC); (b) os três CPEs participam ativamente de vários outros BERs (sob diferentes modalidades do ponto de vista formal), devendo-se destacar especialmente a APEC e a ASEAN, e (c) os BERs menores tenderão inevitavelmente a serem “absorvidos” por BERs maiores ou a “aderir” a eles. 7. Conclusão Pela visão que se tem comumente de como se desenrolou o relacionamento entre os povos, ao longo da História, é difícil considerar as proposições apresentadas neste artigo como realistas ou viáveis. Será grande a tentação de qualificá-las como utópicas. Para o leitor que assim pense, sugiro imaginar qual teria sido a reação de um cidadão ateniense, ativamente partícipe da vida democrática de sua polis, a uma proposição de que Esparta e todas as demais cidades-estados da península helênica deveriam e poderiam se fundir todas numa só nação grega, detentora da soberania exclusiva e irrestrita em todo o território por elas ocupado. E nem é preciso recuarmos tão longe no tempo: em 1944 seria inimaginável a possibilidade de que, em apenas meio século, toda a Europa Ocidental estaria integrada numa comunidade com as características da atual União Européia, que já se amplia para outras áreas do continente europeu. Convém também ter presente que a realidade econômica mundial revela claramente a prevalência do comércio gerenciado, negando na prática a retórica da liberalização do comércio internacional. A reconhecida debilidade das decisões da Organização Mundial do Comércio (OMC) demonstra que a atuação dos Estados no âmbito desse comércio gerenciado dependerá de seu efetivo Poder Nacional. Isso reforça a necessidade da ampliação continuada do Poder Nacional dos Estados, o que, no caso de muitos deles, como indicamos no corpo deste artigo, só terá a magnitude necessária através da conformação de potência ascendente. Para sublinhar essa contingência, ressalto o fato de que, queira-se ou não, permanece vigente o pensamento de Armand Jean du Plessis, Cardeal de Richelieu1, inscrito no seu “Testamento Político”: (…) “em questões de Estado, quem tem a força geralmente tem a razão e quem é fraco apenas, e com dificuldade, consegue não ser visto como culpado pela maioria do mundo”. Como fecho dos pensamentos e proposições expostos neste artigo, deixo à reflexão do leitor um princípio decorrente da observação da realidade histórica: “A Nação que não traçar seu próprio rumo o terá traçado por outra”. (*) Embaixador 1 Primeiro Ministro da França (reinado de Luís XIII) de 1624 a 1642, quando morreu. PRINCÍPIOS DE SOBERANIA E AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS NA POLÍTICA INTERNACIONAL Ives Gandra da Silva Martins(*) Tema que volta à baila em decorrência dos tratados internacionais que o país vem assinando, reside nos pontos que podem afetar a soberania nacional, em face de eventual perda de controle do princípio da razoabilidade por parte dos órgãos que cuidam da prevalência dos tratados sobre o direito interno. Três grandes vertentes de pensamento dominam, atualmente, as reflexões sobre o direito internacional: a primeira delas, entendendo, deva este prevalecer sobre o direito interno; a Segunda, que a soberania das nações relativisou-se perante o direito internacional; e a terceira, que os princípios de direito natural, expressos na declaração universal dos direitos fundamentais, prevalecem sobre o direito internacional, comunitário ou interno (1). A discussão acadêmica, todavia, perde espaço para uma realidade em que as grandes nações continuam impondo seus estilos e sua força às nações mais fracas, inclusive por incursões bélicas, permitindo-se, todavia, não respeitar tais princípios internamente. Em outras palavras, são mais especializadas em exigir o dever de casa dos outros povos, que cumprir tal dever em sua própria casa. Há realidades inequívocas de fortalecimento do direito internacional público, principalmente nos espaços comunitários (UE, NAFTA, Mercosul, pacto do Caribe etc), realçando-se a União Européia, hoje mais uma Federação de países, que uma Confederação, na medida em que o Parlamento Europeu, o Tribunal de Luxemburgo e, para 11 países, o Banco Central Europeu, têm mais força que as Casas Congressuais, os Tribunais e os próprios Bancos Centrais internos, nos assuntos comunitários (2). (1) Celso Bastos, todavia, continua a defender a tese da soberania ampla: "A ordem internacional reinante repousa ainda sobre o conceito da soberania do Estado. Embora a interdependência crescente entre os Estados acabe por diminuir a efetiva capacidade de autodeterminação, não há dúvida, contudo, que os Estados preservam a ilimitação do seu poder, impedindo a formação de uma ordem jurídica internacional cogente que viesse a lhes trazer uma efetiva limitação nas suas possibilidades de ação autônoma. Mesmo os laços mantidos com organismos internacionais não são, de molde, a retirar dos Estados este papel de protagonistas por excelência da cena internacional" (Comentários à Constituição do Brasil, 1o volume, Ed. Saraiva, 1988, p. 454/455). (2) Sobre o Mercosul, Maria Tereza Cárcomo Lobo ensina: "O tratado do Mercosul foi considerado pelos Estados contratantes como um novo avanço no esforço tendente ao desenvolvimento progressivo de integração da América Latina, revestindo a particularidade de ter fixado, previamente, um período de preparação para o estabelecimento do mercado comum, sua finalidade precípua, situando-o em 31 de dezembro de 1994. Durante o período de transição, o conjunto institucional do Mercosul era constituído pelo Conselho do Mercado Comum e pelo Grupo Mercado Comum. O primeiro, com funções essencialmente políticas, tanto na definição dos princípios informadores do processo de integração, quanto na tomada das decisões que o conformam. O segundo, como órgão fundamentalmente executivo das regras traçadas. Em cumprimento do disposto no art. 18 do Tratado de Assunção, em 17 de dezembro de 1994 foi assinado na cidade de Ouro Preto o protocolo Adicional ao Tratado de Assunção, que dispôs sobre a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercosul. No Brasil, o Protocolo de Ouro Preto foi aprovado pelo decreto legislativo no 188, de 15 de dezembro de 1995, o Instrumento de Ratificação foi depositado em 16 de fevereiro desse ano e a sua promulgação ocorreu em 9 de maio de 1996 pelo Decreto no 1901" (Ordenamento Jurídico Comunitário, Livraria Del Rey Editora, Belo Horizonte, 1997, p. 99/100). É evidente que o fantástico avanço da União Européia, nos últimos 40 anos – visto que o Tratado de Roma é da década de 50 – não eliminou as preocupações que ainda permanecem sobre o futuro da comunidade. A estabilidade monetária para o fortalecimento do Euro impõe rígida política orçamentária em cada país que adotou a moeda, não podendo ultrapassar 3% de “déficit público” no conceito nominal, isto é, naquele em que as próprias variações monetárias e cambiais integram-se, nada ficando de fora entre receitas e despesas. Ora, quaisquer desequilíbrios provocados nas economias dos países signatários, principalmente na economia dos menores em face de uma crise global, nada obstante o mecanismo de assistência e intervenção adotados, poderiam provocar reflexos nos outros países, já que a moeda não pertencerá a este ou aquele país, mas à comunidade européia, devendo-se transformar, no próximo século, não apenas em moeda escritural, mas de livre circulação. O robustecimento do direito comunitário decorre, todavia, do fenômeno da globalização, que torna cada vez mais as economias interdependentes, porém mais fracas, mais dependentes das mais fortes (3). É interessante notar que os países mais desenvolvidos – em suas deliberações, o G-7 – não permitem que os países menos desenvolvidos participem, valendo as linhas gerais que estabelecem para o mundo como uma imposição dos mais fortes, que se negam a ouvir as sugestões dos mais fracos. (3) Escrevi: “Vive o mundo inteiro uma ilusão, qual seja a de que o endividamento público tem lastro suficiente para suportar todos os investimentos privados, principalmente os financeiros. Nesta ilusão, lastreia-se a estabilidade do sistema financeiro mundial e a capacidade de os governos continuarem a retirar poupança popular para financiar suas despesas, gastando recursos em atividades produtivas e não produtivas, principalmente no que diz respeito à manutenção de sua máquina burocrática, que cresceu assustadoramente em todos os países, na 2a metade do século, confirmando a validade do pensamento de Adolf Wagner de que as despesas públicas tendem sempre a crescer e nunca a diminuir. Os Estados Unidos têm uma dívida pública em torno de 2/3 do PIB, a Itália de 100%, a Irlanda de 150%, o Brasil de 50%, dívida esta sem lastro real, o que vale dizer, seu lastro é a confiança dos investidores de que o governo não dará um calote público, apesar de as evidências demonstrarem que os governos têm dívidas incomensuravelmente superiores às suas forças econômicas. Ocorre que todas as tentativas, no mundo inteiro, de os países, desenvolvidos ou não, reduzirem seus “déficits” revelam-se desalentadoras, continuando, a dívida pública mundial, a crescer. Cresce também a sua falta de lastro com o que, apenas por uma profissão de fé, o mundo gira com papéis lastreados em outros sem lastros de todos os governos. Todos os operadores conhecem esta realidade, mas, como trabalhar com dinheiro de terceiros é fundamental, urge que demonstrem uma fé no sistema financeiro internacional capaz de manter sua estabilidade, apesar da absoluta falta de estabilidade dos focos de tensão, que são os perfis da dívida interna e externa de cada país. Haverá, todavia, um momento em que a manutenção do “déficit” público financiado pelas aplicações em todo o mundo não poderá ser mantido, não por força do sistema atual que torna esta realidade apenas conhecida dos que com ela operam, mas por força do conhecimento crescente dos investidores – e não só dos operadores – do real perfil de sua poupança, que só existe porque todos acreditam que os Estados são étnicos e respeitáveis e honrarão sempre sua dívida. Estou convencido de que no momento em que uma das grandes nações do grupo dos 7 tiver um descontrole capaz de abalar as finanças de inúmeros países mais vinculados , o efeito poderá ser tão grande quanto o da “ilusão das bolsas” em 1929, nos Estados Unidos. Quanto mais examino as teorias econômicas modernas – todas procurando saídas marginais para evitar o problema do enfrentamento do descontrole dos “déficits” públicos – mais eu me convenço de que servem elas apenas para anestesiar a capacidade de raciocínio dos que giram à luz desse sistema deslastreado. Estou, também, convencido de que a estabilidade para atividade econômica sadia, com investimentos não ilusórios, apenas seria possível se todas as nações controlassem seus “déficits” públicos. Mas, por ser utópica tal pretensão, a Economia continuará evoluindo e progredindo até o desastre, pois seu lastro maior de investimento não existe. A economia da ilusão gera uma euforia cujo preço maior ainda está por ser pago” (Uma visão do mundo conteporâneo, Ed. Pioneira, 1996, p. 91/92). À evidência, os países mais desenvolvidos continuam a controlar os mecanismos econômicos e a intervir, sempre que entendam necessário, na soberania das outras nações, sem respeito maior ao direito internacional público, enquanto reflexo do princípio da autodeterminação dos povos. A guerra contra o Iraque, a guerra de Kosovo, embora justificadas do ponto de vista ético (defesa do Kuwait invadido e da etnia albanesa), pois em ambos os casos houve violações por parte de Hussein e Milosevic de direitos soberanos e fundamentais do ser humano, não escondem interesses outros que não apenas aqueles de imposição das regras dos mais fortes na convivência entre os povos. Os Estados Unidos e seus parceiros mais desenvolvidos não intervieram no massacre da população portuguesa de Timor, pois lá os interesses econômicos são menores, muito embora o custo operacional de uma intervenção seria também muito menor que os splielberguinianos ataques aéreos à Iugoslávia. Da mesma forma, a nação curda tem sido dizimada pelos turcos e iraquianos, com um conivente silêncio das nações mais desenvolvidas, em clara demonstração de que o verniz ético apenas cobre os interesses de predomínio das nações mais civilizadas, quando seus próprios interesses estão em jogo (4). Prova inequívoca está no protecionismo econômico da União Européia para com sua onerosa produção agropecuária, impedindo a entrada de produtos latino-americanos em condições de competitividade maior, o que vale dizer, para efeito de produtos agropecuários, a União Européia adota a criticadíssima teoria do protecionismo mais antiquado, mais absurdo, mais condenável, em tempos de globalização. Defende, todavia, a aberta globalização para seus produtos industrializados, que invadem a América Latina e os países menos desenvolvidos, à luz do livre comércio, com sucessivas incursões à OMC, protestando contra medidas protecionistas dos países emergentes, sempre que busquem estes assegurar um mínimo de capacitação industrial perante os produtos estrangeiros. (4) O artigo 4o da Constituição Brasileira tem a seguinte dicção: "A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I. independência nacional; II. prevalência dos direitos humanos; III. autodeterminação dos povos; IV. não-intervenção; igualdade entre os Estados; V. defesa da paz; VI. VII. solução pacífica dos conflitos; VIII. repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX. cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X. concessão de asilo político. § único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Lati na, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações". Apesar da nobreza dos princípios, o Brasil tem pouca força para fazê-los respeitados. Por outro lado, os Estados Unidos não só não admitem que os tratados internacionais prevaleçam sobre o direito interno, como, através dos “countervailing duties”, ou seja, das sobretaxas sobre produtos importados, decidem por conta própria que setores internos devem ser protegidos, alegando a existência de subsídios quanto aos produtos importados. Exercem um protecionismo tão condenável quanto o europeu em relação aos produtos agropecuários. É de se lembrar que as grandes sessões do GATT, no passado, e da OMC, no presente, foram e são convocadas sempre pelos Estados Unidos ou por países desenvolvidos, tendo firmado regras teoricamente consensuais – os países emergentes apenas subscreveram os acordos elaborados pelos países desenvolvidos – as quais, à evidência, beneficiam a melhor tecnologia e a maior quantidade de capitais dos países desenvolvidos em relação aos emergentes. É de se lembrar que autores como Roberto Campos, indiscutivelmente uma das mais brilhantes inteligências do Brasil neste século, chegam a defender a tese de que os países emergentes, na globalização, devem assegurar “nichos de desenvolvimento” em áreas em que estariam mais habilitados que os desenvolvidos, pela impossibilidade de concorrência nos grandes segmentos econômicos (5). Em direito internacional, o jurista estuda as regras e as examina como foram postas, mas cabe ao filósofo, ao sociólogo, ao economista e ao humanista perceber as grandes linhas que o conformam. Sempre houve um direito internacional, tendo sido, talvez, os romanos, com o “jus gentium”, os que ofertaram a regulação que veio a ser amplificada no mundo moderno. A característica fundamental sempre foi o do predomínio dos mais fortes. Na ONU, com seu Conselho de Segurança – em que algumas nações são privilegiadas em relação a outras –, basta o veto de um único desses países para impedir qualquer decisão (6). Com toda a evolução semântica dos textos internacionais, com todo o fortalecimento dos direitos comunitários, com toda a massificação da mídia sobre a importância da integração dos povos através dos organismos plurianacionais, as regras da internacionalização continuam, ainda, no mundo de hoje, sendo ditadas pelos países mais fortes e as regras da economia pelo Grupo dos Sete, hermético e superior, que discute e impõe, na decorrência, a política mais adequada para todo o mundo, em sua especial visão, como se fossem seus integrantes os senhores do tempo e da História. (5) Roberto Campos, inclusive, justifica as atitudes americanas pela inquietação de seu povo ao dizer: "E não sem razão. A maioria dos americanos está cansada de pagar cada vez mais (só na década de 80, os gastos de estados e municipalidades mais do que dobraram) por conta de novas obrigações provenientes das coceiras eleitorais e da covardia dos políticos diante de interesses especiais estridentes. Segundo pesquisas de opinião, os americanos acham que o governo se tornou tão poderoso, que constitui uma ameaça para os direitos e as franquias dos cidadãos. Em 92, o candidato à Presidência, Ross Perot, um milionário excêntrico sem papas na língua chegou a ter 35% da preferência dos votos. E muito recentemente, em 1995, 58% do público apoiaria um "terceiro partido", isto é, nem democratas, nem republicanos. E também, os índices de satisfação do público (aliás, não só nos Estados Unidos como em vários países europeus e no Japão), há meio século não aumentam, apesar do enorme crescimento da renda per capita. Ou seja, a afluência acrescida gera demandas adicionais, mas persiste um descontentamento difuso com a estreiteza do espaço humano individual" (O Estado do Futuro, Ed. Pioneira, 1998, p. 31). (6) D'Ors sobre o "jus gentium" que decorre do "jus civile" escreve: "§ 32. Los romanos tuvieron justa consciencia de la superioridad de su ius civile. Puede decirse, en efecto, que éste es el derecho "civilizado" por excelencia. Pero en él hay instituciones que se consideran como de validez general para todos los pueblos relacionados com Roma, porque se fundan, más que en la forma en el principio de lealtad a la palabra dada, es decir, la fides. Las fides es una idea central del pensamiento jurídico y político de Roma: propiamente, la lealtad a la palabra dada. Es una virtud del más poderoso; así, las fides deorum (cfr. La exclamación "pro deum fidem!") es la protección que despensan los dioses, y la fides romana por excelencia es la firmeza de Roma respecto a sua aliados (de donde foedus, alianza); asimismo hay una fides patroni respecto a los propios clientes (§ 21), una "fides tutoris, iudicis", etc. La "fides" llega donde no alcanza la fuerza vinculante de la forma, y es el fundamento de todas las obrigaciones no-formales, por ej., el préstamo mutuo ("fidem sequi = credere"). Distinta es la "bona fides", que se refiere a la lealtad recíproca de las dos partes de um contrato (§ 452), y de ahí quizá (através de la "bona fides" del comprador) se aplica el concepto a la posesión sin conocimiento de perjudicar um mejor derecho (§ 147)" (Derecho Privado Romano, Ed. EUNSA, Pamplona, 1983, p. 62). À evidencia, houve evolução em determinados mecanismos de proteção dos países mais fragilizados, sendo a OPEP, no passado, até a guerra fraticida entre os árabes, e o Mercosul, no presente, enquanto os interesses menores dos argentinos não puserem em risco o Tratado de Assunção, provas de que poderiam ser criados grupos nacionais de pressão sobre a política impositiva dos países desenvolvidos. A defesa intransigente do Mercosul pelo Presidente da República Fernando Henrique, contra a pressão americana para destruí-lo e substituí-lo pela ALCA, é que permitiu que os americanos recuassem na sua intransigência e aceitassem discutir com o bloco e não com cada nação individual a formação da Associação de Livre Comércio Americano. É de se lembrar que, na formação de espaços comunitários, permite-se o livre trânsito de bens e pessoas, tese que a preconceituosa visão dos Estados Unidos não admite, ao ponto de, no NAFTA, os mexicanos não poderem livremente entrar e sair dos Estados Unidos ou se estabelecer no espaço comunitário (Canadá e Estados Unidos), pois aos americanos apenas interessa o livre trânsito de bens, onde sua competitividade é maior do que a de canadenses e mexicanos. Mesmo o Canadá, na busca de mercados próprios, obteve da OMC, entidade a serviço da competitividade dos países desenvolvidos, que a equalização de juros no mercado internacional pelo “Proex” fosse considerada inaceitável para o mercado externo, de tal maneira que os aviões canadenses podem ser financiados a juros de nível internacional, mas os aviões brasileiros só podem ser financiados a juros de mercado brasileiro, ou seja, algumas vezes maiores que os juros internacionais. Desta maneira, a competitividade, que estaria em poderem canadenses e brasileiros utilizar-se do mesmo nível de juros ou financiamento, na visão estrita e aristocrática dos donos da OMC não é assim. Apenas os canadenses podem se beneficiar de juros internacionais, pois os brasileiros só podem ser financiados pelos juros mais elevados do Brasil!!! (7) Tais considerações eu as trago à reflexão, neste breve artigo, para levantar questões que me têm preocupado. De um lado, a título de defesa de direitos fundamentais, a garantia dos direitos políticos de autoridades de nações menos desenvolvidas não é reconhecida nos países desenvolvidos, como é o caso de Pinochet, que, sendo Senador e membro do Poder Legislativo chileno, foi preso na Inglaterra para ser julgado na Espanha, por crimes cometidos no Chile, sua pátria. Fidel Castro, que conta, na sua bagagem, com crimes muito mais hediondos do que os de Pinochet, sobre ter assassinado um número maior de pessoas, só não é atingido nesta visão elitista por ser de esquerda e o “lobby” esquerdista – mesmo nos países mais desenvolvidos, é indiscutivelmente muito superior que o da direita. Por isso, pode Fidel Castro viajar tranqüilo, com sua bagagem imensa de violação de direitos fundamentais, pelos países desenvolvidos, por contar com a proteção da mídia, embora, a meu ver, tanto Fidel Castro quanto Pinochet deveriam ser julgados por Tribunais Internacionais por terem praticado crimes contra a humanidade (8). No caso, entretanto, não é a minha posição nitidamente contrária à violação dos direitos fundamentais que está no cerne deste artigo, mas a preocupação de que, sob o verniz da defesa dos direitos fundamentais, os países mais desenvolvidos sintam-se no direito de violar a soberania dos países menos desenvolvidos. Indiscutivelmente, a “purificação étnica” dos albaneses é ignominiosa. A decisão, todavia, de intervenção militar, não foi uma decisão da comunidade internacional, mas dos países mais desenvolvidos, sem respeito à soberania da Iugoslávia. Embora plenamente justificável a defesa dos albaneses, o método utilizado e a decisão elitista que o conformou, arranha o direito internacional e o princípio da soberania das nações. (7) A Emb ra er co n tin u a d eb a ten d o na OM C o seu d ireito d e ter ju ro s id ên tico s a o s d a Bo mb a rd ier, sen d o , p ois, o P ro ex n ã o u m in cen tivo , ma s u m p ro g rama d e eq ua liza çã o . (8) Escrevi: " Em 1 o d e o u tu b ro d e 194 6 o Trib u na l d e N u remb erg ju lg ou 2 2 n azista s crimin o so s d e g uerra , à lu z, exclu siva men te d e p rin cípio s d e d ireito na tural, co n sid eran do -o s, co m exceçã o d e 3 d eles, cu lp a do s d e crimes co n tra a h u ma n id a d e. A d efesa de q u e teria m a p en a s cu mp rido a s leis d e seu p a ís e q u e, em u ma visã o p ositivista do d ireito n ã o po d eria m ser co n d en a do s, n ã o fo i aca tad a , p o is d ecid iu a C o rte q ue h á p rin cíp io s d e d ireito n a tu ra l q ue se so b rep õ em ao s do d ireito p o sto , se co n trá rio s à d ig n id a de e à ho n ra h uma na . Do is a n o s d ep ois, em 1 0 d e d ezemb ro d e 1 94 8 , a Orga n iza çã o d a s N a ções Un id a s p ro mu lgo u su a d ecla ra çã o u niversa l d e d ireito s, to rna n do o b rig a tó rio p a ra o s pa íses sig natá rios d e sua fo rmu la ção , ho sp eda rem, em seu s o rd en a men to s in terno s, aq u eles p rin cípio s q u e recolo ca va m, à lu z d o d ireito , o h o mem em su a d ig n ida d e tra nscend en ta l, q ue adq u ire d esd e o n a scimen to . Ren é C a ssin , ju sna tu ra lista e u m d o s au to res d a C a rta d e 1 94 8 , a ssim exp licava a o rig em da Declara ção : " n ã o é p o rqu e a s ca ra cterística s física s d o h o mem mu d a ra m p o uco d esd e o co meço d o s temp o s verificá veis, qu e a lista d e seu s d ireito s fu n d a men tais e lib erd ad e fo i id ealiza da p a ra ser fixa d a p erma n entemen te, ma s em fu n çã o d a crença d e q u e ta is direito s e lib erda d es lh e sã o na tu ra is e in a to s" ( "Hu ma n Righ ts since 194 5 : N a Ap p ra isa l" , Th e Grea t id ea s, 1 9 7 1 , Ed . Brita nn ica p. 5). C o memo ra m-se , e m 1 0 d e d ezemb ro , o s 5 0 a n o s da q u ele histó rico d ocu mento . M u ito s do s p a íses q u e co mp õ em o co n certo d a s N a çõ es Un id a s n ão resp eita m ta is d ireito s, n em o s h osp ed a m n o seu d ireito intern o , p rincip almen te a s d itad u ra s d e Hu ssein, F id el e a d a C h ina , o n d e o d esrep eito ao s d ireito s h u ma n o s é in equ ívoco , co m co n d ena ções à mo rte sem ju lg a men to . De triste memória são o s " p aredo n s" d e C ub a p a ra ju stifica r fu zila men to s sem d ireito d e d efesa da s pesso a s co n trá ria s a o dita do r C a stro . O certo , to d a via , é q u e a d ecla ra ção u n iversal rep resen tou co n sid erá vel a va nço na co mp reen são da s n a çõ es d e qu e to do o ser h u ma n o n a sce co m u ma d ig n ida de p róp ria , q u e nã o ca b e ao d ireito d e ca da p a ís cria r ou n ã o , mas a p en a s reconh ecer" ( Direito s In d ivid u ais, In terp ren sa , a n o II, n o 2 0 , d ez/1 9 9 8 , p. 4 ) . Ora, minha preocupação reside no precedente aberto que poderá levar, um dia, também sob o verniz de direitos universais, os países mais desenvolvidos a entender, por exemplo, que, para a preservação da população indígena ou do meio ambiente da Amazônia, ambos com tratamento constitucional (artigos 225, 231 e 232), a Amazônia deva ser considerada território universal e não mais brasileiro, decidindo, a título de proteger os índios e a floresta amazônia, intervir no Brasil (9). Inúmeras vezes, em todos os anos, o tema floresta amazônica e população indígena é abordado, na mídia e em seminários internacionais, sendo recorrente a conclusão de que o Brasil precisa preservar a floresta amazônica para o bem da humanidade. Tal repetitivo tema não torna desarrazoado o temor que manifesto, neste artigo, principalmente quanto tais seminários – e participei de um deles, na Alemanha, em 1991 – cuidam da Amazônia como se já fosse parte do “ambiente universal” a ser preservado pelos mais fortes. Eles, que não souberam preservar suas florestas, querem que nós preservemos, para eles, nossa floresta. Não titubearam em sacrificar o meio ambiente para crescer e se desenvolver. Agora, é necessário, para o bem estar deles, que nós não cresçamos e nem nos desenvolvamos no espaço amazônico. Em outras palavras, os procedimentos que começam a ser abertos, na década de 90, sobre os limites da soberania das nações, reduzindo-os a uma concepção internacional que só permite a plena soberania aos países desenvolvidos, é algo que me preocupa, pois, a título de seus nobres ideais, verdadeiros atentados à soberania das nações emergentes podem ser perpetrados, sem que estas tenham um “foro” internacional a que apelar (10). É matéria que merece reflexão. (*)Conferencista da Escola Superior de Guerra, Professor Emérito das Universidades Mackenzie, Paulista – UNTP e Escola de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME, Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (9) O "caput" do artigo 225 está assim redigido: "Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". (10) O "caput" do artigo 231 da Constituição Federal está assim redigido: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". GLOBALIZAÇÃO INTERNALIZAÇÃO DA INTERNACIONALIZAÇÃO Jaime Rotstein(*) Introdução Recentemente a PROFORUM (Associação para Desenvolvimento da Engenharia), de Portugal, convidou-me para fazer uma exposição sobre a globalização na América do Sul. O Fórum, que era sobre globalização em geral, contou com a participação do Prof. Augusto Mateus, até recentemente Ministro da Economia; do Dr. José Miguel Anacoreta Correia, vice-presidente do Banco Totta & Açores, e do Eng. José Borges Rayagra, diretor da Profabril Internacional. A tônica do encontro era essencialmente a soma de dois sentimentos dicotômicos: o entusiasmo com a consolidação do Mercado Comum Europeu, com a institucionalização da nova moeda, o EURO, e a preocupação com o preço a pagar pelos países mais pobres, pela internacionalização da economia. Do meu ponto de vista, a globalização – que é a forma como foi batizada a internacionalização da economia – é um processo irreversível, dificilmente administrável de dentro do país para o contexto das nações, pois o comando do mesmo está totalmente na mão dos países ricos. O que os referidos países estão fazendo – á perfeição – é admin istrar a internalização da internacionalização. E, co mo é d ifícil fa zê-lo às custas dos ricos, procuram administrar o process o para defender os seus interesses, de preferência às custas dos países pobres. O fenô meno da globalização, se é irreversível, não e xige que – enquanto dure – seja acolhido com tamanho entus ias mo que oblitere a visão dos interesses nacionais dos países menos desenvolvidos . Ao contrário, co mo a globalização é o p rete xto para se cobrar cada vez ma is caro a participação de tais países no processo, sob pena de exco munhão econômica e au mento da pobreza, é preciso admin istrar a s ua internalização. E co mo is so pode ser feito? Será que rec la mar do comporta mento dos países ricos vai atenuar as conseqüências do seu conhecido e reconhecido egoísmo? A e xperiência mostra que algumas medidas de proteção dos interesses e soberania nacionais podem ser tomadas, como fruto de uma correta avaliação geoestratégica, baseadas na forma de segurar um passarinho na mão: não tão apertado que o esmague, nem tão frou xo que ele voe. Para a lcançar a dosagem adequada para admin istrar a internalização da internacionalização, é fundamental ter s empre p resente quais são os interesses nacionais em cada caso e e m cada situação, estabelecendo a forma de ceder o mínimo e otimizar as concessões ao má ximo. Um bo m e xe mp lo de onde o Brasil e – até aqui – os s eus parceiros do Mercosul vêm gerenciando bem u ma questão crucial, é a p ressão americana para a c riação rápida da ALCA, o Mercado Econô mico Co mu m do Continente Americano. Ou seja, no atacado a política do País está correta e o Itama rati ve m conduzindo o process o com co mpetência. O mes mo já não ocorre no varejo, quando concessões desnecessárias s ão feitas a todo mo mento. Ainda recentemente, numa lic itação internacional, u ma e mpresa estrangeira criou o ma ior caso, porque a mes ma fo i ganha por uma e mpresa brasile ira. Para fa zê-lo contou com o apoio do governo de país desenvolvido, onde tem a sua sede. Foi u ma batalha desigual, e m que o governo brasileiro resis tiu preocupado com o nível das pressões recebidas. O que ficou claro é que u ma empresa brasile ira , no seu próprio País, não deve precisar competir, e m t radição e dimensão, com empresas es trangeiras , para receber u m contrato. Basta ter as condições efetivas de uma performance adequada. Há u m co mponente adicional, perverso, que enfraquece a capacidade do País de administrar a internalização da internacionalização correta mente. É a sua fraqueza econô mica, levando-o a depender e xagerada mente de empréstimos e capitais voláteis, oriundos do exterior. Para evitá-lo é fundamental a modern ização da economia, junto com a valorização da co mpetência e da seriedade, particularmente na ad ministração pública. Os segmentos da sociedade que defendem os privilégios, seja por interes se pess oal, s eja por interesse político, na verdade são aliados dos países ricos na globalização dos países pobres, impedindo-os de administrar o processo no seu próprio interesse. Talvez fa lte fa zê-lo co mpreender pelos setores ma is radicais que procura m abafar o incêndio jogando gasolina. É importante comp reender e assimila r que entender a globalização não obriga a engolí-la, como u ma pílu la de sobrevivência, s em ao menos fa zê-lo co m u m gole de água. E, adic ionalmente, os piores inimigos do processo, por enquanto inexoráve l, são, ao mesmo te mpo, seus me lhores aliados quando enfraquecem a capacidade de resistência do organismo nacional. A de pendê ncia Exter na É claro que a g lobalização atende essencialmente os interesses dos países ricos. Independente das gigantescas contradições que existem entre os mesmos – com destaque aqueles reunidos no Mercado Comu m Europeu, no NAFTA (Mercado Comu m dos Estados Unidos, Canadá e México), a China, o Japão e dema is países do Sudeste da Ásia – a emergência do novo conceito revolucionou as relações entre países ricos e países pobres. Sob o manto da nova moda, que e xige adesão, independente do tipo do corpo e da cor da pele, graves distorções vão se consolidando. Talvez u ma das ma is graves seja a da tentativa de adaptar-se a conceitos válidos em países desenvolvidos , mas que não vestem correta mente e m países emergentes ou subdesenvolvidos. Alguns exe mplos flagrantes dos riscos dos rituais estabele-cidos pelos países desenvolvidos, são os seguintes : 1) A p os ição d a C h in a C omu nis ta, e xp lo rand o a mão -d e-o b ra ridicu la men te re mu n erad a, p ara p o der d ar o s alto d e cres cimento qu e v em d an d o, a cu s ta da exp o rtação a p reço s n ãoco mp etitiv o s de s u a p ro du ção , co m cu s to d e mão -d e-o b ra in s ig nificante. Em termo s d e rev o lu ção d e pro letariado é a g lo rificação da p lu s-va lia , a s erv iço d e gru p os in tern acio n ais , cu ja ú n ica preo cu p ação é o con tro le d a q u alidad e d o s p rodu to s qu e imp o rta. É a g lo rificação d a e xp lo ração cap italis ta d e um s ub con tin en te co mu n is ta, p ara red u zir a cap acidad e comp etit iv a d o s p aís es po b res . M arx, s e res su s citass e, n un ca cons eg u iria u ma e xp licação d ialet ica men te aceitáv el d e tamanh a con trad ição. No p articu lar, a glob alização econ ô mica , p ara g era r lu cros e g aran tir h áb ito s de co ns u mo e n ív el d e v id a n o s país es rico s , en go liu a co erên cia id eo ló g ica – fen ô men o recen te qu e marca o fim d o Sécu lo X X. 2) A p res ença de mu ltinacio n ais n os p aís es emerg en tes , co mp le men tand o a fas e d e exp lo ração p u ra e s imples d e recu rs o s natu rais – co mo é o cas o , p or e xe mp lo , d o s recurs os h íd rico s p ara g erar eletric id ad e q u e rep res enta 60% d o v alo r d o alu mín io . C o m a g lo b alização , n o v as in d ú s trias s e in s talaram, ativ and o o s eto r s ecu nd ário e m certo s s etores , e até mes mo o s eto r d e s erv iço s , com con s eqü ências n em s emp re entu s ias man tes n a geração de impo s tos ou h áb itos d e co ns u mo ajus tad os às d iferentes realidad es n acio n ais . Pod e-s e citar o e xe mp lo das empres as mu ltin acio n ais qu e manipu la m os cu stos dos co mp o n en tes q u e fabricam e m d iferentes p aíses , p ara co n cen trar o s lu cro s em s emip araís os fis cais . Is s o é u m pro ces so in co n tro láv el, e m q u e a alien ação d a s ob erania precis a s er ju s tificad a ap elan do p ara a in e xo rab ilidade d o p ro ces so . A o mes mo te mpo , o u tro e xe mp lo s eria a imp o s ição p ela pro pag an d a d e h áb itos de cons u mo so id isa n t mod ern izan tes q u e p riv ileg ia m o u s o d e au to mó veis em d etrimen to d o tran s po rte d e mas s a. É a geração d a p olu ição e a in d iferen ça d ian te d o s pob res , q ue amb icio na m à red en ção , ren d en d o-s e aos h áb itos de co nsu mo d os p aís es rico s . C urio s amente oco rre co m freqü ência qu e os g overn os s e ren dem ao p od er dos molo ch s g erad os p ela g lo b alização , aten d en d o ao clamor d e s ind icato s q ue depend em d as emp res as – q u e p ed em red u ção de imp o s tos e fav o res fis cais p ara s e in stalare m n o p aís . A p es ar dis so , tais emp res as n ão têm o meno r co ns tran g imen to e m au men tar o s p reços d o s s eus p ro du tos b as ead os em p lanilh as tran s lú cid as , p or certo . 3) O s entimen to d e q ue a glob alização v eio p ara ficar e , p o rtanto , o impo rtan te é ad aptar-s e a ess a realid ad e. No cas o a tes e d o relax a n d enjoy lev a a co n ces sões q u e exced e m as e xp ectativ as até mes mo daq ueles q u e se b en eficia m de las . No p articu lar, a aceitação ab s o lu tamente p ass iv a d e q u e o p roces so é in ev itáv el, irrev ers ív el e inad min is tráv el, cau s a p reju ízo q ue – s e q u alificado – p ro v o caria a ma io r p erp le xid ad e. O Gerenci a mento Inter no Impõ e-s e, p o r tu d o o q ue fo i ap o ntad o em termo s d e d ep end ên cia e xtern a, q ue a mes ma s eja res trita ao mínimo n eces s ário . O balé d o s p aís es rico s , imp on d o s eus in teress es , su a tecnolog ia, s u a forma de an ális e, p recis a ter a co n trapartid a d o p laneja men to es tratég ico da evo lu ção d as con cessõ es feitas in tern a mente. A ed ucação d os qu ad ros d irig en tes para s erem capazes d e recu ar e av ançar, v is an do a o timizar o s g an h os no p ro cesso d e g lo b alização e min imizar o s s eus cus tos é uma a rte e u ma c iên cia. Quan do ap areceu n o Bras il a filo s o fia do feasib ility stud y co mo in s tru men to in d is p ens áv el, g lo rifico u -s e a filos o fia d o inp ut, d o o u tput e do feed b ack. Havia ra zõ es p ara tan to , mas gigan tes cos e xag ero s fora m ad mitid os , co mo o d a ju s tificativa p ara co n s tru ir a es trad a Porto Ve lh o -M anau s imp lantan d o k ib u tzim ao lo ng o d o s eu traçado . Imag in ar k ib u tzim n a A mazô n ia é u ma fo rma p erig os a d e lou cura. M as is s o fo i ap res entad o às autorid ad es b ras ileiras e s u bmetid o a o rgan is mo s in ternacio n ais de créd ito – ten do s ido p o u cos os qu e no Bras il p ro tes taram n aq u ela ép o ca. Tran s p ond o a falta d e reação as s in alada, e o d es ejo su b limin ar d e aceitar as tes es qu e nas cem e cres cem n o s p aís es rico s p ara os d ias d e hoje, e xis te u m d en o min ad o r comu m: falta d e s ens ib ilidad e + s en timen to da in ev itab ilid ade. Na verd ad e, s ó a con v icção de q u e a g lo balização v eio para s e mp re, en qu an to d u rar, po d e levar ao en ten d imen to d e q u e ela é ad min is tráv el in terna men te. É prec is o ter p res en te to d o o temp o o d itad o po pu lar min eiro : " a s u p rema felic id ad e es tá em n as cer b u rro , v iv er ig no ran te e mo rre r d e rep en te" . Não é o cas o de um p aís como o Bras il, q u e tem tu do p ara mineira mente ad minis trar a g lo b alização , intern alizan d o -a co m in telig ên cia, as tú cia e habilid ade. (*)Engenheiro Na verdade, só a convicção de que a globalização veio para sempre, enquanto durar, pode levar ao entendimento de que ela é administrável internamente. É preciso ter presente todo o tempo o ditado popular mineiro: "a suprema felicidade está em nascer burro, viver ignorante e morrer de repente". Não é o caso de um país como o Brasil, que tem tudo para mineiramente administrar a globalização, internalizando-a com inteligência, astúcia e habilidade. (*) Engenheiro DESEQUILÍBRIOS URBANOS – DESIGUALDADES SOCIAIS E INTEGRAÇÃO SOCIAL Jarbas Passarinho (*) Desequilíbrios Urbanos 1. Ano O Desdobramento do Processo Demográfico População Urbana (%) População Rural (%) 1940 12.880.182 31,2 28.356.133 68,8 1960 31.303.034 44,7 38.767.423 55,3 1980 80.436.409 67,6 38.566.297 32,4 1991 110.990.990 75,6 35.834.485 24,4 Fonte: Anuário Es tatístico do Brasil, 1995 - IBGE Note-se que os recenseamentos de 1940 e 1980 evidenciam a inversão dos percentuais das populações urbanas e rurais, efeito do intenso êxodo rural, que atesta a chegada com atraso de um século, no Brasil, da 1a Revolução Industrial. Em 1991, reduz-se ainda mais o percentual de população rural, o que faz prever que ao fim da presente década a população rural será menor de 20%. O fato pode iludir o analista superficial, que seja levado ao equívoco de supor que isso se dá devido ao avanço tecnológico no campo, como ocorreu nos Estados Unidos da América. Nos dois últimos séculos a relação entre a máquina e o homem, na América, mostra o avanço daquela nos campos provocando o deslocamento dos postos de trabalho para as cidades industrializadas. No início do século passado, a agricultura americana era basicamente manual, retendo 75% da força de trabalho no campo. Com a invenção de equipamentos cada vez mais modernos, economizando mão-de-obra, decresceu a população rural americana, de sorte que ao fim do Século XIX o contingente rural caíra para 50% da população economicamente ativa e, ao fim do presente século não passa de 3% apenas, produzindo alimentos não apenas para consumo interno como para exportação para o mundo. O “êxodo rural, entretanto, a despeito de provocar o desemprego, transferiu desempregados para as indústrias. Não apenas a indústria ofereceu trabalho. O setor terciário, serviços principalmente, gerou grande parte dos postos de trabalho que foram preenchidos pelos rurícolas transferidos paras as metrópoles. Já em 1870, figuravam no setor terciário 3 milhões de pessoas, número que na década de 90 ultrapassa 90 milhões” (Robert Heilbroner – Prólogo – The end of work – Jeremy Rifkin). 2. Causas do Êxodo Brasileiro Ainda que, em parte, se deva a fuga da população rural para as cidades à automação que surgiu em certas regiões do País, as causas fundamentais repousam na carência de serviços públicos de saúde e de educação no campo, ao lado da insuficiência de oferta de trabalho. Ademais, contribuiu também a baixa renda derivada da agricultura de subsistência familiar. As pessoas menos conformadas com essa carência são os migradores de grande vôo. Buscam ascensão na escala social e são motivadas, paradoxal-mente, até pelos investimentos governamentais na melhoria das condições de vida rural, provocando o aumento do nível das aspirações populares. Não há como negar que a mecanização da agricultura terá contribuído para o desemprego no campo e inspirado o desejo de migrar para as cidades à busca de se integrarem nos benefícios de mais amplos serviços governamentais. A cidade grande apareceu, pois, como a melhor atração para a melhoria da qualidade de vida. A corrente migratória, porém, começa a modificar-se. Em recente entrevista a uma revista, o presidente do IBGE, Simon Schwartzman, diz que o recenseamento mostra que as grandes áreas metropolitanas cresceram muito pouco nos últimos cinco anos, enquanto as cidades do interior acusam taxas de crescimento elevadas, ao mesmo tempo em que aumentam desmesuradamente os municípios, em função do Fundo de Participação constitucional. Nos últimos cinco anos, saltamos de 4.000 municípios para cerca de 6.000, ainda que, em muitos deles, a receita não cubra mais que os vencimentos do Prefeito, seu vice e vereadores, enquanto a área urbana, não raro, não tenha mais que duas ou três ruas. A emancipação é, muitas vezes, mero jogo político-eleitoral. Eleitoral, porque a iniciativa é creditada a um parlamentar, que passa a ser o criador do município e natural destinatário dos votos. Político, porque cria um prefeito e seu vice, mais uma Câmara de Vereadores com seus funcionários, dando a falsa impressão de modernização. Já não são os migradores de grande vôo que deixam os campos, mas os que se contentam com a transferência para as áreas urbanas municipais. Há, ainda, a inversão da tendência, pois a Amazônia, tradicionalmente fornecedora de emigrantes, passou a receber o fluxo migratório proveniente de estados do Sul. É o caso de Rondônia com imigrantes gaúchos e paranaenses. A capacidade de absorção de pessoas nos subúrbios de metrópoles, como Rio e São Paulo, terá chegado à saturação, embora ainda não se dê o mesmo em outras áreas metropolitanas. Desigualdades Sociais A transferência populacional para as cidades encontrou-as desprovidas de meios para atendimento satisfatório das aspirações dos migrantes, gerando desde logo as desigualdades entre os diversos segmentos da população. As cidades “incharam”, termo que usou pela primeira vez Gilberto Freyre. Assim atesta o livro “O Brasil na Virada do Milênio”, editado pelo IPEA, julho de 1997: “Os movimentos migratórios foram os grandes responsáveis por esse processo. Aproximadamente 12 milhões de pessoas deixaram a área rural na década de 60, o que correspondeu a 1/3 da população aí residente. Nos anos 70, esse volume elevou-se para 16 milhões, representando 38% do contingente rural. Na década de 80, deixaram o campo 12,4 milhões – cerca de 32% da população rural de 1990”. A criminalidade nas grandes cidades cresceu, promovida não só por adultos como por crianças de rua, ainda que o professor Frederick Turner, da Universidade de Connecticut, em trabalho publicado na Revista de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, em jul/set 1976, ao estudar o êxodo para as cidades latino-americanas, sustente que: “O efeito hipotético da concentração urbana sobre a violência parece ser um problema complexo. Apesar de a violência rural em grande escala ter estimulado a urbanização, como ocorreu na Colômbia depois de 1946, ainda permanecem dúvidas quanto ao fato de ser a migração, como muitos predisseram, a causa da violência urbana. As probabilidades de violência motivada pelo deslocamento da população são mínimas em comparação com os efeitos políticos derivados da urbanização”. O fato é que, no Brasil, a violência urbana cresceu com a migração maciça. A droga aumentou em usuários. A prostituição, infantil inclusive, agigantou-se. Tais chagas passaram a dominar a feição urbana plena de desigualdades sociais. Os desequilíbrios urbanos conseqüentes de uma rápida migração incidem nas áreas de saúde, educação, habitação, poluição, desemprego e, potencialmente, na ruptura violenta das relações sociais. A habitação inadequada mostra contrastes, entre os morros e a planície nas megalópolis, aqueles com os precários barracos e estas até com condomínios vizinhos, com segurança própria, o que faz com que a classe média alta durma intranqüila enquanto os excluídos próximos dormem com fome. Um rápido crescimento da população urbana engana a expectativa otimista dos migrantes quanto à melhoria de qualidade de vida, pois prejudica os programas educacionais, retarda a universalização da oferta de vagas nas escolas públicas pelo aumento não planejado da demanda, agrava o desemprego e a falta de habitação popular. A projeção que o IPEA faz da dinâmica demográfica na próxima década leva a admitir que o crescimento populacional das grandes cidades modificar-se-á por duas razões. A primeira é que a taxa de natalidade vem dimunuindo sensivelmente. Logo, a quantidade de pessoas transferidas do campo para a cidade não será tão grande como outrora, na medida em que se dá a diminuição da família no campo. A Segunda é que o fluxo migratório vem se desviando para as pequenas cidades do interior, onde a oferta de bons serviços públicos tem aumentado. Ademais, a taxa de fecundidade alterou-se. No início deste século, as mulheres na área rural tinham mais filhos do que as da área urbana. Em média, 2,4 a mais. No final dos anos 80, a diferença baixou para 1,9, pois enquanto no campo as mulheres diminuíram a fecundidade de 6,1 filhos para 4,4, as mulheres urbanas apresentam taxa de 2,5. Uma causa pode ser o controle da maternidade em curso, seja pelo uso de anticonceptivos seja pela prática intensiva da laqueadura. Segundo o IPEA, em 1986 registra-se a esterilização de 1/4 das mulheres brasileiras. Em compensação, outro problema afeta as dificuldades de provimento satisfatório de serviços públicos. É o aumento da esperança de vida ao nascer. Atualmente é de 70 anos para os homens e 77 para as mulheres, o que não passava de 50 há um quarto de século. O envelhecimento populacional aumenta o volume da demanda social por parte dos idosos, em que passam a predominar doenças crônico-degenerativas, como câncer, problemas de aparelho circulatório e neurológicos, que reclamam uma assistência hospitalar ou ambulatorial dispendiosa. O custo da assistência, nesses casos, é inacessível para os pobres que chegam às cidades para ingressar na base da remuneração, se empregados, ou no “lumpen-proletariado” de que falava Marx e que hoje chamamos de excluídos. Reflexos na Integração Nacional Uma nação que pretenda ser parte importante no concerto das demais, precisa desde logo ter: · Superfície grande; · População compatível com essa superfície; · Recursos naturais abundantes. O Brasil satisfaz a todas essas condições, com uma população hoje estimada em 154 milhões de habitantes, a Quinta maior superfície da Terra e recursos naturais que, em boa proporção, ainda estão intocados, ainda que localizados. Integração Territorial Quanto à superfície, o que nos faltava para a concreta integração, nacional, está assegurada sobretudo a partir dos governos Juscelino Kubitschek e Emílio Médici. JK integrou territorialmente a Amazônia, construindo a Rodovia Belém/ Brasília, que ligou o centro do poder nacional com a porta de entrada do anfiteatro amazônico, a cidade de Belém. Antes da rodovia, o Brasil era um arquipélago, pois só se atingia Belém por mar ou pelo ar. Médici ampliou a integração, ao fazer construir a Transamazônica, no sentido dos paralelos, incorporando ao ecúmeno enormes extensões de terra que, em termos demográficos, não passavam de deserto, já que tinham menos de 2 habitantes/km 2. Foi uma decisão sábia, de natureza geopolítica, articulando o que, no dizer de Oliveira Lima era “o homem sem a terra com a terra sem o homem”. Latismavelmente a rodovia está praticamente abandonada, devido à falta de recursos do DNER, sacrificando pelo menos 1 milhão de brasileiros que a colonizaram. Não fosse a decisão de entregar aos prefeitos municipais a responsabilidade da sua manutenção e provavelmente a floresta já a teria transformada em mera lembrança do passado. Ademais, outras rodovias importantes completaram a integração, como a Cuiabá/Porto Velho/ Acre, buscando a conexão com os países andinos, e a Cuiabá/Santarém, ligando o Planalto Central com o Rio Amazonas. A Perimetral Norte, ainda do governo Médici, está por ser concluída, não sendo possível negar a sua importância estratégica na fronteira amazônica com a Guiana Francesa; o Suriname, ex-colônia holandesa, e a Guiana Inglesa, hoje Guiana independente. A conquista do Oeste, a partir da construção de Brasília, que encontrou tenazes opositores a JK, está consolidada. Para o Sul, os governos republicanos haviam se voltado, na edificação de uma trama rodoferroviária, por, ao menos, duas motivações: a econômica, tendo São Paulo como motor, e a militar, ao tempo em que a rivalidade brasileiro-argentina motivava a necessidade de garantia de transporte terrestre para a fronteira gaúcha. Sem antagonismos externos no Cone Sul, o pouco que resta para garantir uma ligação terrestre efetiva, ao longo dos milhares de quilômetros, não conspira contra a nossa integração territorial. Integração Sócio-Política Quanto à população, devemos preocupar-nos com os reflexos negativos das desigualdades regionais e locais, que tornam o desenvolvimento brasileiro insatisfatório. Pátria não é mero ajuntamento de requisitos como os citados. O grande Ruy Barbosa proclamava: “A pátria é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade”. Hoje se considera uma nação como a pátria que resulta do conjunto de indivíduos unidos por uma mesma consciência étnico-social, que não se realiza com o povo dividido em segmentos heterogêneos marcados por desigualdades sociais. Nossa moderna industrialização situa-se num polígono que inclui São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Norte, Nordeste e Centro-Oeste são periféricos. Lembra uma afirmação que corre em tradição oral ter sido feita pelo general Gamelin, quando chefe da única missão militar que o nosso Exército teve. O grande cabo de guerra francês, que pertencia a um exército de ocupação colonial na Indochina e na África, teria dito, àquele tempo, que só no Brasil pudera ver na mesma continuidade territorial a metrópole e as colônias. Os indicadores regionais mostram-nos a existência de vários Brasis, e não apenas a Belíndia do economista Bacha. A ONU passou a adotar, em vez do PIB como indicador de desenvolvimento, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que leva em consideração, entre outras referências: taxa de analfabetismo, esperança de vida ao nascer, nível de renda e sua distribuição. Se aplicarmos isso ao Brasil, teremos três Brasis: · a área que abrange do Rio Grande do Sul até o Espírito Santo, São Paulo, parte de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Brasília: IDH elevado, comparável aos países industrializados; · norte de Minas, Goiás, Roraima, Rondônia e Amazonas: IDH similar ao da Bulgária; · Nordeste, Pará, Acre e Mato Grosso: IDH equivalente ao da Índia. O mesmo relatório da ONU traz uma informação decepcionante. O Brasil, 9a economia do mundo, estava segundo esse índice, em 1991 no triste 60o lugar, e, pior, em 1992 caiu para o 70o. Isso se compõe com o quadro de distribuição de renda, segundo o qual os 10% mais pobres detêm apenas 0,8% da renda nacional, enquanto os 10% mais ricos detêm 48,7%, ou seja, 60 vezes mais! Tal quadro de exclusão merece preocupação. Não apenas dos governos, mas da comunidade como um todo. Temos heranças históricas como a que vem da escravidão e a das parcerias desvantajosas no campo, até o sucessivo fracasso dos programas destinados a diminuir a pobreza e erradicar a miséria. Segundo levantamento feito pelo IPEA, citado por Ernane Galveas, em palestra na Confederação Nacional do Comércio em setembro de 1998, há no Brasil 9,1 milhões de indigentes, os que vivem abaixo da linha da pobreza. Isso representa 6% da população brasileira, concentradas principalmente no Nordeste (4,5 milhões). Já a acreditar no sociólogo Betinho, quando se dirigiu no ano passado ao Presidente da República, esse número de indigentes aumentaria para 32 milhões, metade no Nordeste. A “década perdida”, a de 80, agravou o fosso existente. O avanço tecnológico, causando desemprego estrutural, idem. A proliferação nos segmentos mais pobres, sendo bem maior do que no abastado, contribui para o alargamento do “gap”. A vitória atual sobre a inflação diminuiu-o, posto que a redução ainda não seja capaz de aterrá-lo. A “maldição do fim do século” – o desemprego –, acarretando a desaceleração da oferta de postos de trabalho pelos serviços, conspira mais ainda contra uma justa distribuição da riqueza, que conspira contra uma homogênea integração nacional. A perda de poder de barganha tradicional dos sindicatos começa a ser uma realidade. Em contrapartida, as reivindicações deslocaram-se para a área grupal de toda espécie; nos campos, os “sem-terra”, nas cidades os “sem- teto”, e no todo as minorias organizadas, entre elas os índios, com direitos amplos concedidos pela Constituição. São desafios para a integração social, se não para a integração nacional. Neste século, cinco impérios desapareceram. Em 1919, conseqüência do fim da 1a Guerra Mundial, extinguia-se o Império Austro-Húngaro. Ainda hoje, porém, olhando o que se passa na ex-Iusgolávia e no resto da península balcânica, vê-se que a paz não foi conquistada. Em 1920, desmoronava o Império Otomano, e suas seqüelas estão ainda hoje no Oriente Médio e norte da África. À Segunda Guerra Mundial seguiu-se a saga sangrenta da descolonização. As potências imperialistas foram expulsas, bem ou mal, da Ásia e da África. O Império Britânico, “onde o sol nunca se punha”, teve seu fim. Enquanto o nazismo era varrido da face da Terra, o Império Japonês, seu aliado, derrocava. Mais recentemente, desfazendo-se como um castelo de cartas, acabou o Império Soviético, o que faz nascer uma nova ordem mundial, na qual a ONU – hoje um “codinome” dos Estados Unidos – passa a ser menos importante do que a OMC (Organização Mundial de Comércio), em face do fenômeno da globalização. Com o bipolarismo estratégico mundial substituído pelo unipolarismo sob domínio norte-americano, as nações independentes ficam ameaçadas quanto à soberania. Warren Christopher, então Secretário de Estado no governo Bill Clinton, várias vezes disse que: “Em matéria de Direitos Humanos Violados e de Meio Ambiente Degradado, não há soberania absoluta”. A primeira experiência prática dessa nova teoria foi um fracasso, quer na pobre Somália como nos Balcãs. Olha-se com apreensão para o Conselho de Segurança da ONU, como quem olha para Júpiter com pavor de seus raios arrasadores. A integração amplia seu objetivo. Eliezer Batista, um dos pais da Vale do Rio Doce, propõe a integração continental sul-americana. E o presidente Fernando Henrique, em entrevista à revista Time, de 25 de agosto deste ano, perguntado sobre o que esperava da próxima visita do presidente Clinton ao Brasil, respondeu: - “Acredito que será um importante momento para celebrar o fato de que agora nossas sociedades sabem o que precisam: a integração hemisférica”. Como não existe soberania relativa, integrar o País no sentido territorial é pouco, se não houver a integração de sua população, social, política e economicamente, para evitar problemas de natureza internacional no “mundo só” em que vivemos. (*) Ex-Ministro Membro do Ex-Senador da República de Educação Conselho – de Trabalho Defesa e Justiça Nacional O RELACIONAMENTO CIVIL - MILITAR Jorge Calvario dos Santos(*) 1. Introdução As relações entre militares e civis, entre o poder militar e o poder civil, entre o segmento militar e o segmento civil da sociedade, são polêmicas e têm suscitado diversas considerações desde que foram estudadas pela primeira vez. Desde o início de sua colonização o Brasil foi palco de íntima ligação entre os militares e a sociedade civil. Com a implantação da colonização portuguesa particular no Brasil, o Capitão-Donatário que recebia uma Capitania Hereditária exercia as funções de governador e chefe militar. Com a criação do Estado do Brasil, em 1545, a dupla função se desfaz, pois cabia ao Governador Geral a incumbência militar. E assim o foi até a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarve, em 15 de dezembro de 1816, enquanto que desde 1763 a Capital estava localizada no Rio de Janeiro. Socialmente, até o Brasil Império, o dono de engenho ou de fazenda de café, no vale do rio Paraíba do Sul, decidia que seu primogênito deveria seguir a carreira das armas e o seguinte, a carreira religiosa. A ligação do militar e civil no sentido religioso está no cargo que era dado ao protetor de uma cidade ou mesmo padroeiro de um mosteiro. Assim, Santo Antônio, padroeiro do Convento no Largo da Carioca, é Coronel e tinha direito aos vencimentos referentes ao posto. Até o início do século XX, a segurança e a independência de um país repousavam apenas em seu poderio militar. As Forças Armadas preocupavam-se apenas em aumentar seu potencial bélico e elaborar planos de mobilização e emprego. Durante a Primeira Guerra Mundial, devido, principalmente, ao prolongamento da guerra além do que supunham os Estados-Maiores, os Estados Nacionais, em especial os Estados-Maiores e os comandos militares, entenderam que para sustentar a guerra era vital a mobilização de todas as Expressões do Poder Nacional. A esse respeito afirmou, em 1916, o General Jofre, Comandante-em-Chefe das forças francesas, explicitou que a importância crescente que tomaram no conflito atual as questões econômicas e o auxílio que a luta econômica pode trazer, me levou a confiar a um oficial do meu Estado-Maior, o Capitão François Marsal, o encargo de estudar tudo quanto se relacionasse com a efetivação do bloqueio da Alemanha e os meios empregados pelo inimigo para se reabastecer. Do lado da Alemanha, de Hindemburg, manifestou-se de forma semelhante quando disse que no decorrer da luta nós sentimos claramente a ausência de um Estado-Maior econômico, especialmente instruído para a guerra. A experiência nos mostrou que com um simples toque de vara não se pode fazer surgir do solo um tal Estado-Maior. Se a nossa mobilização militar, e posso acrescentar também nossa mobilização financeira, tinha sido brilhantemente preparada, nada, pelo contrário, se havia feito com relação à mobilização econômica. Como era natural, nenhuma grande nação esqueceu as lições do grande conflito que foi a Primeira Guerra Mundial entre 1914-1918, e todas passaram, a partir daí, a pensar em guerra total e no envolvimento de toda a nação. O propósito deste estudo não é discutir mobilização, mas sim a participação da sociedade, como um todo, no esforço para a conquista e manutenção dos Objetivos Nacionais Permanentes, que é tratado na vertente do relacionamento da sociedade com a Expressão Militar. Os fins em favor dos quais se emprega o Poder Militar ficam fora de sua competência para julgar pois o objetivo político da guerra realmente se situa fora da província da guerra. A Guerra não tem lógica nem objetivos próprios. Eis que o militar terá que subordinar-se sempre ao estadista, ao poder político. É da responsabilidade desse a conduta da guerra, pois exige uma aguçada percepção da política de Estado em suas relações mais altas. A subordinação do ponto de vista político ao ponto de vista militar é inaceitável, pois é a política que cria a guerra; a política é a faculdade inteligente, a guerra é apenas o instrumento, e não o contrário. A subordinação do ponto de vista militar ao político é, portanto, a única possível, ensina Clausewitz. Moltke, o moço, politicamente mais consciente do que Schlieffen, declarava que o comandante em operações tem que manter a vitória militar como a meta diante de seus olhos. Mas o que a política faz com suas vitórias ou derrotas não lhe diz respeito. É matéria do estadista. Considerando o conceito de Defesa Nacional ou, o que é mais adequado, o conceito de Segurança Nacional, torna-se imperativo o estreitamento entre as Forças Armadas e os setores produtivos da nação. Entretanto, entre as mais notáveis deficiências na generalidade dos homens públicos, avulta a incompreensão dos problemas militares. Tão grande que, ainda que fundamental, o relacionamento do Poder Militar com o Poder Político fica bastante prejudicado. Nesse quadro é comum cair no esquecimento que o indivíduo não deixa de ser cidadão quando se torna militar. Na verdade, ser cidadão na plenitude de seus direitos e deveres é condição básica para se tornar militar. O militar jamais perde sua condição de cidadão que é mantida ao longo de sua profissão e mesmo ao deixar o serviço ativo. Porém, não se deve perder de vista que as Forças Armadas do Brasil têm características peculiares. Como instituição política, tem feito a história do país, têm sido o poder moderador, têm sido o amálgama que consolida a nacionalidade e a identidade nacional. Mas, têm, também, um compromisso histórico e inalienável com o desenvolvimento nacional. Isso as torna diferentes. Os militares brasileiros, sem abandonar por um instante sequer seu compromisso maior, sua obrigação constitucional, a defesa da soberania e a defesa dos interesses nacionais, lutam pelo desenvolvimento, pela integração e pela paz social. Os militares brasileiros entendem, corretamente, que o vínculo entre os assuntos políticos e militares é nítido e, benéfico à nação. Ambos devem ater-se aos interesses da nação. Entretanto, algumas questões devem ser explicitadas. Como andam ou como evoluíram as relações dos militares com o segmento civil da sociedade no Brasil? O que levou estas relações a um estado quase de conflito permanente? É fato que, como conseqüência de uma estratégia decorrente do conflito Leste x Oeste, os militares foram colocados no banco dos réus? 2. Os militares, a sociedade e a conjuntura O tema “Civis e Militares” contém embutido assuntos como sociedade, conflito, cidadania, crise, poder civil, guerra, controle civil e profissionalismo militar. A profissão militar é criação do Estado Nacional moderno. Tem sua origem no século XIX. É uma das criações institucionais mais significativas desse século. Foi a partir das Guerras Napoleônicas que os Oficiais começaram a especializar-se e a distingüir-se dos leigos, o que deu origem ao desenvolvimento de valores, padrões e organizações inerentes à especialização técnica desenvolvida. O surgimento da oficialidade foi lento e gradual, chegando a existir em todos ou quase os países do mundo a partir de 1900. Foi o surgimento do corpo profissional de oficiais, que criou o problema das relações entre civis e militares. Entende-se por profissão um conjunto de atividades ou ocupações especializadas realizadas, típicas e correlatas, executadas por pessoas, individualmente e/ou em conjunto, que fazem destas atividades e ocupações seus ofícios, destinadas à realização de uma missão, à busca de uma meta ou objetivo. Uma profissão é caracterizada por um tipo peculiar de grupo funcional com características altamente especializadas. A missão principal da profissão militar é a defesa da pátria e de suas instituições, através da ocupação em atividades que lhe são específicas. A profissão militar pressupõe a existência de interesses humanos em conflito e o emprego da violência na defesa de tais interesses. Nesse aspecto, Huntington entende que “a ética militar considera o conflito como o padrão universal que se encontra presente em toda a natureza, tal como vê a violência permanentemente enraizada na natureza biológica e psicológica do homem” (Huntington, 1996). A profissão militar existe para servir ao Estado Nacional. Tendo como objetivo prestar o melhor, o mais eficiente e o mais elevado serviço possível, todos os militares e a força militar que comandam devem se constituir em um eficiente instrumento de política do Estado Nacional. Como é a política que define os objetivos, isso significa que a profissão militar deve ser estruturada hierarquicamente e disciplinada em todos os seus níveis. Por essa razão, lealdade e obediência são relevantes virtudes militares. O militar, ao contrário do civil, tem sua formação profissional dedicada a uma profissão, uma carreira. Por ter características próprias, diferentes de todas as carreiras civis, os militares devem encontrar satisfação e realização em viver um estilo de vida totalmente militar, diferente, por sua natureza, das demais. A influência do modo de proceder, do modo de ser, da consciência, dos valores e da ética civil sobre a militar é incompatível e perigosa no que se refere à segurança da nação. O militar e o civil pertencem a diferentes segmentos da sociedade e têm distinta visão de mundo. Sendo assim, não devem ser confundidos, embora sejam igualmente solidários e cooperativos quanto aos interesses nacionais. No mundo moderno, pelo avanço da tecnologia o profissionalismo tende a ter características cada vez mais exigentes tanto para o militar quanto para o civil. Este é o profissionalismo que distingue o militar dos dias atuais do guerreiro da antigüidade, no emprego profissional de recursos materiais que incorporam cada vez mais os avanços tecnológicos. Em nossa sociedade, o homem de negócios pode perceber maiores salários, o político pode dispor de mais poder, porém o profissional tende a impor mais respeito. A sociedade atual dificilmente distingue o militar do advogado, do médico ou do engenheiro, mas certamente não confere aos militares a mesma deferência que concede aos profissionais civis. Até mesmo os militares vêm sendo influenciados pela imagem, que é difundida junto ao público, e por muitas vezes têm recusado aceitar as implicações de sua situação profissional. E quando o termo profissional é usado, em referência aos militares, normalmente o tem sido, simplesmente, no sentido contrário ao dado pelo termo amador. A profissão militar exige vocação específica e requer conhecimento, responsabilidade, comunitarismo e sobretudo desprendimento. Desde a Antigüidade Clássica greco-romana, ocorre o exercício dos privilégios da cidadania, na “polis” ou na “civitas”. Austregésilo de Ataíde torna explícito que: “Os grandes nomes da criação artística da Grécia, mestres da estética, cultores da beleza, ou os que, em Roma, lançaram as bases da organização política e jurídica do mundo, ainda hoje vigentes, foram também soldados ilustres, assu- miram responsabilidades pessoais na conduta das guerras, como valorosos militares. Filósofos, poetas, dramaturgos, historiadores famosos, completaram a sua presença na vida pública dos seus países, militando nas fileiras das armas, em terra e no mar. Não se haveria de ser um bom cidadão, fiel às leis do Estado e temente a Deus sem a prévia amoldação do caráter e do espírito, nos rigores da caserna” (Raposo, 1997/A). Assim tem sido, por mais de vinte e cinco séculos, no tempo e no espaço, relativamente ao complexo dual cidadão-soldado, civil-militar, segurança-desenvolvimento, paz-guerra. O Estado assumindo a responsabilidade pela segurança da nação. O poder civil predominando nos assuntos de ordem pública e o poder militar predominando nos assuntos de segurança interna e da defesa externa. Assim, a sociedade ou ambos os poderes a serviço da nação em tempos de paz ou mesclando sus funções em tempos de guerra. Na sociedade tribal, todos interrompiam o trabalho diário para a defesa contra a tribo hostil, o inimigo externo. Na Grécia de Péricles, da democracia perfeita, o Conselho dos Dez Estrategos, civis, contemplava atribuições ligadas à Paz e à Guerra e um deles era designado para a defesa da cidadeestado ameaçada. Em Roma, idêntica visão: dois integrantes do poder civil, tal como César e Pompeu, foram comissionados pelo Senado para expandir o Poder Romano, o que os levou a travarem guerras externas. Através dos tempos medievais-modernos, lembremos o poder absoluto do Estado francês unificado, resultado do binômio Richelieu-Vauban, que sucumbe ante a Revolução Francesa, com a “Nação em Armas”, para defesa externa (guerras napoleônicas) e para a segurança interna (guerra revolucionária) do Estado Nacional. No período da Primeira Guerra Mundial, entre 1914/1918, ficam célebres os desentendimentos entre Georges Clemenceau e Ferdinand Foch e Lord George e o Almirantado, no bojo do conflito político-militar. As divergências ocorreram devido ao entendimento atribuído ao sentido das relações poder-civil e poder-militar, na guerra, o que se referia à estratégia militar, assunto por demais importante para ficar restrito aos chefes militares, especialmente quanto ao envolvimento de toda a nação no conflito. As elites civis e, sobretudo, as elites políticas sentiam necessidade de conduzir a estratégia nacional e total. Consagra-se portanto, no século XX, principalmente a partir de 1935/1945, a intransferível responsabilidade histórico-cultural da sociedade nacional, como um todo, de promover o preparo, o fortalecimento e o emprego do Poder Nacional, em todas as suas expressões, e não apenas a militar, para satisfazer os propósitos da Política Nacional. Para tal, dispondo das Forças Armadas como poder armado em condições de garantir a Segurança Nacional contra ameaças, de toda ordem, principalmente as decorrentes dos interesses existentes nas relações entre unidades políticas, a garantia da manutenção das instituições democráticas e da segurança interna. Assim, neste fim de século XX, estranha e paradoxalmente “militarizado” para o mundo desenvolvido, a sociedade brasileira não pode admitir diferenças dicotômicas civil e militar; cada vez mais faces da mesma moeda do desenvolvimento e da segurança da nação, como condição para alcançar o bem comum.. Como na Grécia de Péricles, a sociedade é una, com ascendência e amplitude crescentes dos segmentos civis em atividades restritas, até o período da Segunda Guerra Mundial entre 19391945, aos profissionais das armas. Sem embargo, dos inúmeros problemas e desencontros em que vivem, dirigentes e povo, crises sérias e graves, de fundo ético-espiritual, contempla-se o mundo materialista em volta. Neste final de século XX o mundo atravessa mais um período de guerras. Dezenas de conflitos armados estão distribuídos pelos quatro cantos do mundo, causando sofrimento, miséria, fome e milhares de mortes. Quase todos os países africanos envolvidos em guerras intestinas e externas que, pelas mais diversas razões, têm levado à morte milhares de seres humanos e projetam um futuro sombrio para o continente. Outro importante exemplo é a Iugoslávia mergulhada numa guerra, desagregadora e desintegradora. Esse fato, de extrema gravidade, é resultado de Versailles, que criou um Estado multinacional, obrigando a que várias nações, idiomas e religiões convivessem num mesmo espaço geográfico. Tudo isso propiciou graves problemas políticos e sociais, de difícil solução, em muitas regiões, com destaque para a Palestina. No Brasil, os problemas político-sociais são de outra natureza, pois aqui o Estado precedeu à Nação; uma só nação, uma só língua. Sem sérios riscos comprometedores da unidade nacional. Sem excesso populacional, mas que na verdade deveria haver aumento de população, para ocupar o vasto e rico território, nem vizinhos seriamente hostis. Entretanto, devido as pressões crescentes dos países desenvolvidos por mais de cento e cinqüenta anos; paga-se tributo por não ter-se desenvolvido determinadas áreas estratégicas, tais como a Amazônia e a tecnologia; paga-se também um elevado tributo por querer desenvolvê-las. 3. Principais questões sociais e seus reflexos na segurança nacional Inúmeros são os problemas sociais que afetam a nação brasileira neste final de século. Dentre os mais importantes, conforme afirma Raposo, podemos citar (Raposo, 1997/A): 1. vulnerabilidade da sociedade diante de riscos oferecidos pela democracia política, que considerou as relações entre Estado e sociedade caracterizadas por: liberdade, pluripartidarismo, eleições periódicas e império da lei, mas que convive com os extremos: pobreza de muitos e riqueza de poucos; 2. papel das Forças Armadas no novo contexto constitucional; instituições que vivem o delicado e complexo problema da transição política, no Brasil e, de modo geral, na América do Sul; 3. violência urbana que já se constitui ameaça à sociedade e à própria democracia, no Brasil e, sobretudo, em muitos países periféricos; em muitas metrópoles já é um problema de segurança interna; 4. corrupção nos diversos níveis e escalões, a denominada crise da governabilidade, aspectos éticos da participação na equipe de governo e a reforma constitucional, que mais parecem problemas do governo do que da sociedade; 5. fragilidade do sistema partidário e segmentos, conglomerados ou grupos, cujos interesses nem sempre convergem com os propósitos nacionais. São eles: Forças Armadas, lutando com enormes dificuldades orçamentárias para atendimento de seus encargos profissionais, submetidas a críticas de algumas áreas e, de certa forma, se mantendo reservadas e em expectativa diante da evolução sócio-política; a Igreja, dividida e atuante, em face dos problemas da pobreza, da miséria e da profunda queda dos padrões éticos e morais da sociedade; a Empresa, lutando para adaptar-se e sobreviver a uma conjuntura político-econômica vacilante e atingida pela invasão privilegiada de empresas estrangeiras; os sindicatos, igualmente divididos, mas atuantes e vigorosos, procurando sobreviver à crise de desemprego, e, finalmente, a mídia, esta, atuando de modo extremamente perigoso aos interesses nacionais; 6. forte processo de interferência cultural acarretando profundas mudanças nas crenças, tradições, hábitos, costumes com fortes e graves conseqüências na identidade, na vontade nacional e na autoestima do brasileiro; 7. ausência ou deficiência na atuação do Estado em áreas sociais, infra-estrutura, segurança, desenvolvimento, concepção e definição de políticas e estratégias para o país; 8. crise dos organismos institucionais; 9. violência que tem causados número de mortes maior do que em conflitos no leste europeu. A Constituição, de 5 de outubro de 1988, lei fundamental que organiza e limita o poder, esboçando a sua estrutura, define o Brasil como “um Estado Democrático de Direito”, em seu Art 1°, e declara, em seu Art 5°, que “Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à cidadania. Considera, em seu artigo 1°, como fundamentos, soberania e cidadania, dentre outros e, como objetivos fundamentais, em seu artigo 3°, garantir o desenvolvimento nacional e promover o bemestar, além de outros. Os princípios estão contidos no artigo 4°: independência nacional, autodeterminação, não-intervenção, igualdade entre Estados, defesa da paz e outros; no parágrafo único, do mesmo artigo, prevê a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina. Sobressaem, ademais, no preâmbulo: democracia, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça. A defesa do Estado e das instituições democráticas constitui o título V, com os capítulos I - Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio (Art 136/141), II - Das Forças Armadas (Art 142/143) e III - Da Segurança Pública (Art 144). A missão das Forças Armadas aparece no artigo 142: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são Instituições Nacionais Permanentes, regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à Defesa da Pátria, à Garantia dos Poderes Constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da Lei e da Ordem”. A Segurança Pública, constante do artigo 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da Ordem Pública e da incolumidade das Pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I polícia federal; II polícia rodoviária federal; III polícia ferroviária federal; IV polícias civis; V polícias militares; e corpo de bombeiros militares”. Neste ponto, e com a experiência e conhecimento dos leitores, cabe perguntar: pode uma unidade política, o Estado Nacional soberano, prescindir de Instituições voltadas, em caráter permanente e em abrangência nacional, para a Defesa e a Segurança? Do binômio algebricamente multiplicativo da Estatura Político-Estratégica de um País, Desenvolvimento x Segurança ou Desenvolvimento x Defesa, poderá ser reduzido, minimizado, o fator Defesa, Segurança Nacional? Que propõem os países desenvolvidos? Quanto mais desenvolvido, poderoso, expansionista, imperialista, mais exponencialmente forte a unidade política, o Estado Nacional, a ponto de ter poder que possibilite a destruição da vida na mãe Terra, várias vezes, em poucas horas. Em nome da Nova Ordem Mundial, da Globalização, da Segurança Internacional, da Paz Universal e de uma pretensa comunidade internacional, ameaçam intervir, invadem e ocupam, no todo ou em parte, países em desenvolvimento. Nem os países desenvolvidos, menos ainda os países em desenvolvimento, podem descurar de instituições orgânico-operacionais articuladas e adestradas para internamente, e, sobretudo, na ordem internacional, promover, assegurar e resguardar a inviolabilidade das fronteiras, da soberania, da independência, da integridade territorial, da integridade patrimonial, da integração nacional, do pensamento nacional, da cultura nacional, enfim, garantir a paz e o bem-estar da comunidade nacional nas relações de poder inter-estatais. Não se deve esquecer que a identidade nacional surge com a formação e delimitação do território nacional. A sociedade brasileira tem problemas de países em desenvolvimento e, portanto, possibilidade de ocorrência, na ampla faixa do espectro de conflitos em um grau variado de importância e intensidade, de crises e conflitos político-sociais, econômico-financeiros e político-militares internos ou externos. Como instituição permanente do Estado, as Forças Armadas representadas, pelo seu efetivo, em especial os Oficiais, não devem ter vínculos com partidos políticos ou com política partidária. A instituição militar e seus membros devem estar acima da política. Isto significa dedicação permanente e que os militares tem apenas um compromisso que é com o Estado Nacional. Devem manter neutralidade político-partidária. Entretanto, é certo que as Forças Armadas, para que tenham condições de bem cumprirem sua missão constitucional, serem recolhidas aos quartéis e absterem-se da política nacional e internacional? Como? Por quê? Ao contrário, não devem se manter nos quartéis porque não são forças mercenárias nem devem exercer o papel de “capitão do mato” pois são forças nacionais que existem para garantir a vida organizada e a sobrevivência da nação. Devem, pois, como instituição política que são, e como necessário para terem condições de exercer sua missão constitucional, participarem, desenvolverem discussões e terem profundo conhecimento da política nacional e internacional. Não é possível negar que existam convicções políticas entre os Oficiais. Ainda que militares não percam e nem poderiam perder a condição de cidadão pois a cidadania é garantida pela Constituição e não poderia ser de outra forma. Suas convicções políticas entretanto não devem ser praticadas em partidos políticos. A filiação, acertadamente, não é permitida. Podem e devem praticar o exercício da política nacional desde que não haja vínculo partidário e nem contrariem legislação específica pertinente a este tema. Da origem do Estado Nacional decorre, fruto de consenso social, que sobre a instituição militar repousa a responsabilidade de garantir a existência do Estado Nacional em tempos de paz e a sua sobrevivência em tempos de guerra. Raposo lembra, acertadamente, quem, senão o Poder Militar, respaldado pelo Poder Civil (Raposo, 1997/B): 1. assegura, defende e resguarda a soberania nacional e promove a segurança do Estado Nacional democrático, quando o espectro dos conflitos atinge o grau de gravidade máxima e todas as expressões do Poder Nacional são mobilizadas para esse propósito? 2. implementa os atos decorrentes das Hipóteses de Guerra, da Declaração de Guerra e da conseqüente conduta da Guerra e das Operações Militares (Estratégia Militar) nos Teatros de Operações, até a celebração da Paz (Previstos no Art 91 parag 1°)? 3. garante a independência nacional e a segurança do Estado democrático? Quem senão o segmento civil da sociedade, o Poder Civil, ascendente e dirigente do Poder Militar: 1. dirige, orienta e ordena a organização básica, em função da missão, características, natureza das atividades e tipos de armamento e equipamento empregados, e a articulação, no território nacional, em função das necessidades de defesa e de segurança, e de diversos fatores, das Forças Armadas; o preparo e o emprego do Poder Militar consoante as estratégias consideradas? 2. nas atividades-fim ou em ações complementares? Enfim, um paradoxo: mais do que a Expressão Militar do Poder Nacional, são as demais áreas da sociedade civil que devem magnificar a necessidade, utilidade e existência das Instituições Militares. E, curiosamente, é de parte, felizmente reduzida, do estamento civil, que se questiona a conveniência de o país possuir Forças Armadas! Ou que elas devam voltar-se para atividades próprias de “Forças de Segurança”, e para ações complementares, tal como procuram impor os países desenvolvidos. Ao contrário, a tendência deverá ser a cidadania, a sociedade civil, o “cidadão desarmado” ter crescente interesse em que, além de manter as Forças Armadas, cuidar o Estado de implementar a sua profissionalização, aperfeiçoamento e modernização, para a dupla acepção de seus encargos constitucionais. Vale pensar por que os países desenvolvidos não querem que os em desenvolvimento tenham suas próprias Forças Armadas nem que estas se preocupem com as tradicionais Hipóteses de Guerra, decorrentes do espectro dos conflitos. Por que as potências mundiais, tão poderosas e cujo poder, além de total e nuclear, que já envolve dimensões global e planetária, insistem em querer países em desenvolvimento tão fracos e impotentes, com modesto Poder Militar compreendendo Forças de Segurança voltadas para a segurança interna, vale dizer, transformar em Forças Policiais ou Gendarmerias? Por que, em alguns países em desenvolvimento da América Latina, ditos redemocratizados, em especial no Brasil, a denominada “sociedade civil” insiste em “civilizar” o segmento militar? Se repressoras da “Ditadura Militar”, não o serão, mais ainda, como “Gendarmes” do Poder Civil? Há, porventura, dicotomia entre civil e militar? Existe uma sociedade civil e uma sociedade militar, ou, apenas, a sociedade nacional, a sociedade brasileira, abrangente, que tem na Expressão Militar um segmento decisivamente importante, para ela, sociedade nacional brasileira, instrumentalizada pelo Estado? Curiosamente, o Brasil está inserido num cenário global extremamente complexo, submetido a sístoles e diástoles geoestratégicas denunciadoras de um mapa geopolítico singular, que inverte, os sinais algébricos do binômio político-ideológico Leste-Oeste que, de confronto, insinua-se diálogo. É o diálogo Norte-Sul, entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, agora substituído pela pressão do países que compõem o grupo dos sete (G-7), as principais potências, sobre o hemisfério sul. É, espantoso, quando, neste final de século XX, tudo parece configurar uma nova ordem planetária, emergente do Muro de Berlin, e da “débacle” comunista edificar a “pax-americana” imperialista, unimundista, advinda da Guerra do Golfo Pérsico. É o grupo dos sete países industrializados, mais desenvilvidos (G-7), com destaque dos Estados Unidos da América, que se coloca ascendente à própria ONU! Quando tudo parecia estimular o resgate de décadas perdidas pelo Brasil, em termos de desenvolvimento político-econômico, socio-cultural e científico-tecnológico, e erigir uma estrutura de segurança nacional, condizente com os reclamos de nossa projeção no cenário regional e mundial, o que se constata? O Brasil imerso em grave crise: crise político-institucional, envolvendo elites e sociedade, como um todo; crise com agravos à segurança do Estado, das instituições democráticas. Crise, sobretudo, de índole ética. A sociedade brasileira como um todo, governo e povo, partidos políticos e cidadania, empresários e sindicatos, professores e universitários, civis e militares, enfim, elites e povo, têm consciência da crise mundial e de suas dramáticas conseqüências para o Brasil, igualmente em crise? Estamos conscientes, civis e militares sobre a responsabilidade das Forças Armadas e das instituições incumbidas da segurança pública? Estamos alertados, civis e militares, sobre a inteligência dos preceitos constitucionais concernentes à defesa nacional e sobre a responsabilidade das Forças Armadas e das instituições incumbidas da segurança pública? Tem cabimento admitir-se o desvio desse mandamento? Pode o Poder Civil prescindir de um Poder Militar que, ademais de promover a defesa externa, também respalda a segurança pública e a segurança interna? Teria sido possível a Rio Branco defender a soberania brasileira, mediante excepcional estratégia político-diplomática, não estivesse ele resguardado por uma estratégia político-militar dissuasória, decorrente da estatura político-estratégica do País? Não é isso motivo bastante para um esforço supremo de toda a Nação, no sentido de viabilizar e eliminar os problemas que entravam a modernização e a aceleração do Desenvolvimento? Que se estreitem mais as relações entre o segmento civil da sociedade e o estamento militar em torno de conceitos fundamentais, operacionalizados pelo Estado, como soberania, nacionalismo, independência, integração territorial, integridade do patrimônio, desenvolvimento, preservação e valorização da cultura nacional, e que se mobilize a vontade nacional, no sentido de encaminhar os demais objetivos da nacionalidade à paz social e ao bem-estar do povo. Podemos edificar no Brasil deste fim de século a era Meiji, de há 150 anos, que despertou forças vivas no Japão, para reagir via diplomacia às pressões externas, polarizando a vontade nacional em inteligente desenvolvimento do Poder Nacional, condizente com o cenário regional e mundial atual? Guardadas as devidas proporções de espaçotempo político-estratégico, não seria esse um viável desafio para os países em desenvolvimento como o Brasil? Complexo, portanto, é o papel das Forças Armadas no cenário político-estratégico atual, instituição que vive a delicada problemática da transição política, no Brasil e, de resto na América do Sul, impondo-se repensar a tarefa do Estado, instrumento a serviço da sociedade, e meditar sobre que sociedade pretendemos construir, modernizar e escoimar do centralismo e da hipertrofia estatais, dos desmandos administrativos e do tráfico de influência, da impunidade, da corrupção e da crise de autoridade. Pois, enquanto a sociedade da velha Europa procura renovar-se, edificando um Mundo Novo, unificado, a do novo mundo sul-americano se enfraquece, esclerosando-se em hábitos e costumes ultrapassados. Nem os países desenvolvidos, menos ainda os países em desenvolvimento como o Brasil, quando considerada a ampla faixa do espectro dos conflitos, podem descurar de instituições e de estruturas orgânico-operacionais articuladas e adestradas para, internamente, e, sobretudo, na ordem internacional, promover, assegurar e resguardar a inviolabilidade das fronteiras, da soberania territorial e patrimonial, da integridade territorial, da preservação da cultura nacional; enfim, para garantir a paz social e o bem-estar da comunidade nacional nas relações de poder intra e interestatais, enfim, a consecução dos Objetivos Nacionais. Estranhamente, parte, felizmente ínfima, do estamento civil, questiona a conveniência de o país possuir Forças Armadas; que, em se admitindo sua existência, deveriam atuar como “forças de segurança”, e em ações complementares, tal como querem os países mais desenvolvidos. Daí ser oportuno lembrar James Fellow quando afirma que a única razão de uma nação manter força armada é para defender os interesses definidos por sua política. E o único caminho de se julgar o estabelecimento militar, se adequado ou não, é perguntar se ele pode garantir os compromissos que a nação assumiu. É uma falácia e leviano considerar que as Forças Armadas oneram sobremodo o orçamento do país e que contam com armamento e equipamento de rápida obsolescência. Alega-se, inclusive, que não temos conflitos com países vizinhos, verdade que nos orgulha aos olhos sul-americanos. Ademais, argumentam, o cenário mundial configura uma comunidade planetária, que se outorga a responsabilidade pela paz e segurança bi-hemisférica. Alegam, inclusive, que o Brasil enfrenta problemas tão graves de desenvolvimento econômico-social, o que é correto, que não se justificariam investimentos em segurança e defesa o que mostra total ingenuidade. Ocorre que, além dos benefícios oferecidos pelas atividades-fim das Forças Armadas, uma série enorme de ações complementares advém para a sociedade, nas diversas áreas do território nacional. Acreditamos imperativo e inadiável dotar o país de Forças Armadas com poder de dissuasão, isto é, capacidade e vontade suficientes para, em face de sua estatura estratégica, enfrentar riscos crescentes à soberania, ao progresso e à integridade nacional, ante tantas e renovadas ameaças aos países em desenvolvimento, rotuladas de “devoir d’ingérence”, de internacionalização de territórios e de soberania limitada. Não estaria aí a grande oportunidade para a sociedade mobilizar a vontade nacional, cimentando o poder militar às demais expressões do poder institucionalizado pelo Estado? Parece-nos aconselhável convidar os diversos segmentos da Sociedade para amplo e urgente debate desse tema. Pois, para Tomas Shelling; “A estratégia não se refere à aplicação eficiente da força, senão à exploração de uma força potencial”. Melhor dispor de “forças em ser” e, se for o caso, atuar em conflitos “fora da área”, como entendia a OTAN, do que pressões e conflitos entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, para fugir ao aforisma aroniano: “Homens ou povos que combatem entre si sem se odiar, acabam por se odiarem de tanto combaterem entre si” (Raposo, 19987/A). Derrubemos o “muro dos encastelamentos” da sociedade brasileira; civis e militares devem unir-se no propósito de modernizar as instituições civis e militares. Os brasileiros são um povo pacífico mas não pacifista. Tanto mais importante quanto no plano internacional, uma Nova Ordem Mundial se instaura, buscando privilegiar os países desenvolvidos e conter os países em desenvolvimento, em níveis absolutamente inaceitáveis, além de ameaçá-los com nova colonização imperialista, tecnológica, ecológica, ambiental, o que aliás já vem acontecendo aberta e agressivamente em várias nações menores. Finalmente, urge ampliar e aprofundar o relacionamento civil-militar, inclusive admitindo participação crescente dos diversos segmentos da sociedade na formulação e na implementação da política de segurança nacional, lembrados todos da advertência do General André Beaufre, na OTAN, em 1967: “Como militar, teria preferido que estivéssemos na época de Napoleão e se alguém dentre vós encontrar um meio de refazer um sistema militar do tipo napoleônico, bravo! Pois, hoje, na orquestra da guerra, não somos mais o regente; apenas um instrumento dela!”(Raposo, 1997/A). 4. O relacionamento civil e militar O sistema de relações que imperam entre civis e militares varia ao longo do tempo e reflete essencialmente as idéias que predominam, em dado momento histórico, entre os que exercem, diretamente ou indiretamente, o poder central no Estado. O sistema de relações existente entre civis e militares é fundamental para a segurança da nação. Esse relacionamento deve ter como referencial maior a segurança nacional, pois a harmonia, cooperação e eficiência em tempos de paz deve caminhar, lado a lado, com a eficácia dos civis e principalmente dos militares em tempo de guerra. Por essa razão, quando se trata de questões nacionais relevantes, vinculadas ao desenvolvimento, à política externa, e às políticas e estratégias da nação e especialmente quanto ao futuro, é fundamental combinar elementos do pensamento político com elementos do pensamento militar. A relação entre civis e militares constitui um dos aspectos fundamentais da política de segurança nacional, afirma Huntington. (Huntington, 1990). Isso porque um dos objetivos da política de segurança nacional é fortalecer a segurança das instituições sociais, econômicas e políticas de modo a tornar forte e aumentar o Poder Nacional para, conquistar e manter os Objetivos Nacionais Permanentes. Assim é possível evitar o caos e possibilitar a união contra as ameaças do Estado Nacional. Huntington afirma ainda que a relação entre civis e militares compõe o principal componente institucional de política e segurança nacional. Sendo assim, preservar a soberania não significa apenas manter a integridade do território nacional, significa muito mais: manter a soberania patrimonial. Somente com a garantia da segurança, em suas dimensões territorial e patrimonial e da preservação da cultura nacional, terá a nação a segurança necessária e desejada. No processo político, o Estado e todos os setores da sociedade devem estar articulados e ser cooperativos com relação ao rumo que a nação deve tomar. Nesse processo a relação entre civis e militares forma o principal componente institucional das políticas de segurança e de desenvolvimento. As questões operacionais imediatas de política militar, componente da política de segurança, normalmente envolvem: - questões quantitativas dos efetivos, recrutamento e manutenção das Forças Armadas, incluindo o aspecto fundamental da proporção de recursos do Estado consignados às necessidades militares, compatíveis com a estatura político-estratégica da nação; - questões qualitativas de organização, composição, equipamento e desdobramento das Forças Armadas, incluindo os tipos de armas, programas de ação com aliados e questões semelhantes, - questões dinâmicas da utilização das Forças Armadas, como saber quando e em que circunstâncias terá uma força que ser levada à ação; e - questões relativas à pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico direcionados às necessidades das Forças Armadas. É sobre essas questões que normalmente se desenvolvem as discussões públicas. Entretanto, a natureza das decisões sobre essas questões é determinada pelo modelo institucional através do qual as decisões são tomadas. As questões fundamentais de política institucional estão sempre presentes; elas são continuamente redefinidas mas nunca resolvidas. O ordenamento das relações entre civis e militares é, por conseqüência, básico para a política de segurança militar de um país. Em nível institucional, o objetivo maior dessa política é desenvolver um sistema institucional de relações entre civis e militares que maximize a segurança, que preserve a soberania, tanto territorial quanto patrimonial, com o menor sacrifício da sociedade. A manutenção de um adequado equilíbrio na relação entre civis e militares favorece a busca pela segurança e pelo desenvolvimento. A inexistência de tais relações ou o seu desequilíbrio é fator de insegurança, e leva ao desperdício de recursos e conduz a riscos incalculáveis e as vezes, irreversíveis. O crescimento do complexo militar e a proliferação de suas funções, aliados ao fato de que as Forças Armadas caracterizam o Estado Nacional soberano, produziram uma correspondente revolução organizacional na engrenagem do controle civil. Como o controle civil dedica tão grande atenção às formas administrativas, as Forças Armadas desenvolveram mais sensibilidade a esses problemas que às conseqüências políticas de seus programas. As dificuldades inerentes às relações internacionais, onde imperam, quase que exclusivamente, a vontade de uma nação hegemônica militar e de outras poucas nações mais ricas e industrializadas e limitações impostas à liderança política civil, obrigaram as Forças Armadas a uma definição mais ampla de seu papel. Muitos encaram a política exterior formulada pelas lideranças civis essencialmente como uma reação às ações de outras nações. Isso leva inevitavelmente ao surgimento de um estado de tensão entre as lideranças civis e militares. Desse ponto de vista, a tensão na formulação da política de segurança nacional e de defesa é mais que uma luta política de um grupo de líderes políticos civis e militares contra um outro grupo de autoridades civis e militares. A questão está na reação militar ao controle civil. O controle civil aponta alguns pontos que, de maneira imprevista, parecem ter aumentado o engajamento da profissão militar como grupo de pressão na arena política nacional, mas isso é coisa do passado. O que ocorre é que a direção civil do Estado, composta pelos três poderes, não conseguiu produzir sistemas eficientes para permitir o adequado tratamento realista da instituição militar. As práticas do poder civil têm sido essencialmente orçamentárias e quase sempre menores a cada ano fiscal. Embora os chefes militares sejam sensíveis a algumas personalidades do Congresso envolvidas na política de Segurança Nacional, de modo geral o Parlamento é visto como um objeto de relações públicas, cujos trabalhos em favor de seus constituintes exigem total prioridade. Como o centro do controle civil é localizado no Executivo e como a estrutura do controle civil adquiriu maior complexidade, a reação militar ao controle civil manifesta-se numa luta intensificada para privilegiar a influência junto ao Chefe do Executivo sem abandonar o processo de conquistar adeptos entre os parlamentares. A eficiência das Forças Armadas como grupo de pressão depende de sua rede de alianças e contatos civis. Como a política das Forças Armadas na arena política interna não é a política de uma camada social distinta, quanto mais elaborada for a ligação formal e informal da oficialidade com grupos e instituições civis de liderança, maior será a influência potencial. Dentre as várias alianças civis formuladas pela oficialidade, três são cruciais: maior atuação civil de oficiais na reserva, atividades em associações profissionais e participação na vida política, em termos individuais. Esses tipos de aliança civil são dimensões essenciais da posição de poder das Forças Armadas na sociedade. Entretanto, é sobretudo através de suas organizações profissionais, mais do que através de atividades profissionais, após a reserva, que a elite militar opera como grupo de pressão e tenciona a fórmula tradicional das relações civis-militares. 5. Os imperativos do relacionamento civil-militar As instituições militares de qualquer sociedade são moldadas por duas forças, que, a exemplo de Huntington, também qualificamos de um imperativo funcional, que se origina das ameaças à segurança da nação, e um imperativo societário, proveniente das forças sociais, das ideologias e das instituições dominantes dentro dessa nação. Forças Armadas moldadas por apenas um desses vetores não serão capazes de cumprir sua missão principal, garantir a soberania. É necessário e mesmo fundamental, a interação dessas forças, em benefício da garantia da sobe- rania e mesmo da existência e sobrevivência do Estado Nacional. Entretanto, é na interação dessas forças que reside o maior problema das relações entre civis e militares. O grau em que elas entram em conflito é função da intensidade das exigências de segurança, da natureza e da força de valores da sociedade. Para ilustrar, podemos comparar a época que antecedeu o ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial e o momento atual onde o discurso dominante não valoriza a soberania nacional e desvaloriza as instituições, principalmente as militares. No momento, no Brasil, as relações entre militares e civis parecem estar limitadas aos impactos, tanto políticos como econômicos, das Forças Armadas sobre as instituições civis. Um fato significativo, na constituição da segurança, em nossos dias, é a combinação da moderna tecnologia com profundas mudanças na política internacional. Isso tem levado a questionar se o modelo de relação entre civis e militares continua adequado às necessidades da nação. Por conseqüência, surge outra questão: que modelo de relação entre civis e militares será mais adequado à segurança e à manutenção da soberania da nação? O principal foco desta questão, entre civis e militares, é a relação entre a oficialidade e o Estado. É nesta relação que as pressões de ordem funcional e de ordem societária atingem o auge. A oficialidade é o elemento dirigente ativo da estrutura militar e responsável pela segurança e manutenção da Soberania da Nação. E o Estado, instituição responsável pela administração da Nacional inclui a estrutura militar. As relações econômicas e sociais entre os militares e os civis, de modo geral, refletem as relações políticas entre a oficialidade e o Estado. Conseqüentemente, na análise da relação entre militares e a sociedade, é de fundamental importância o entendimento do sentido do relacionamento civilmilitar; a natureza do corpo de oficiais; que espécie de homem é o oficial e, que qualidades e que características deve o oficial ter. As nações que no presente apresentam um modelo equilibrado nesse relacionamento têm uma grande vantagem na busca de seu desenvolvimento e de sua segurança. As nações que não desenvolvem ou falham no desenvolvimento de um modelo equilibrado de relações entre civis e militares desperdiçam seus recursos e podem correr riscos, colocando em cheque a própria segurança nacional. 6. Como se processam as relações civil-militar O discurso dominante propõe e a sociedade brasileira tem freqüentemente discutido o papel das Forças Armadas. Na verdade, além de um debate que reflete as propostas sugeridas pelos Centros de Poder, a discussão é tratada em termos de controle civil. Entretanto, é importante lembrar que um estudioso do assunto, Samuel Huntington afirma que “esse conceito nunca foi definido a contendo”. A polêmica têm como pressuposto que o poder militar tem que subordinar-se ao poder civil. Nas discussões sobre como efetivar o controle, predomina a tese de como reduzir o poder militar. Uma vez que o núcleo central do controle está no executivo devem as Forças Armadas adequar-se e procurar equilíbrio quanto às diferentes pressões exercidas pelo controle do legislativo. Como ator no meio de um complexo processo político, é extremamente difícil, para o militar, manter um senso de equilíbrio e imparcialidade porquanto suas principais preocupações, objetivos funcionais e dedicação integral estão diretamente voltados para a garantia da segurança nacional e o desenvolvimento. O objetivo, constatado, do controle do executivo visa a centralizar a autoridade civil sobre a cúpula militar. A questão do controle sugere a Huntington duas vertentes a do Controle Civil Subjetivo e a do Controle Civil Objetivo. 6.1. Controle Civil Subjetivo: Maximizar o Poder Civil A maneira mais simples de minimizar o poder militar é maximizar o poder de grupos civis em relação aos militares. O grande número, o caráter variado e os interesses conflitantes de grupos civis impossibilitam a maximização do poder civil, como um todo, com relação ao poder militar. Sendo assim, a maximização do poder civil significa a maximização do poder de algum grupo civil ou de alguns outros grupos. Isso significa um controle civil subjetivo. Isso reflete que o controle civil subjetivo envolve relações de poder entre os grupos. Em suas várias formas de manifestação, o controle civil subjetivo normalmente é identificado com a maximização do poder de determinadas instituições governamentais, classes sociais e formas constitucionais. 6.1.1. Controle Civil por Instituição Governamental: Nos séculos XVII e XVIII, principalmente, as Forças Armadas ficavam sob controle do soberano. A expressão controle civil era adotada pelos parlamentares como meio de aumentar o próprio poder vis-à-vis com a coroa. Como o soberano era civil, o que de fato queriam era maximizar o controle parlamentar sobre as Forças Armadas, mais do que o controle civil. O controle parlamentar não era meio de reduzir o poder militar, mas uma forma de reduzir o poder do Rei. Nos dias atuais, essa relação de poder também acontece. Entretanto a distribuição do poder não é entre civis e militares, mas entre Executivo e Legislativo, ou seja, cabe tanto ao Congresso quanto ao Presidente. 6.1.2. Controle Civil por Classe Social: Nos séculos XVIII e XIX, a aristocracia e a burguesia disputavam o controle das Forças Armadas. Cada qual tentava identificar o controle civil segundo seus próprios interesses. Como a aristocracia já exercia algum controle sobre as Forças Armadas, a burguesia fez uso generalizado da expressão “controle civil” para identificar controle aristocrático com controle militar. Nesse quadro a questão passou a ser: que interesses deveriam prevalecer nas Forças Armadas: aristocráticos ou burgueses? 6.1.3. Controle Civil por Forma Constitucional: Essa forma de controle ocorre quando apenas um único dispositivo constitucional assegura o controle civil. É verdade que esse instrumento pode nem sempre ser verdadeiro. O poder militar pode minar o poder civil e aumentar o poder político através de instituições de governo e de política. Controle civil subjetivo não é, pois, monopólio de nenhum sistema constitucional particular. A ascensão da profissão militar trouxe conseqüências à questão das relações entre civis e militares, o que complicou a disputa entre os vários grupos civis que pretendem maximizar seu poder sobre os militares. Agora os grupos defrontam-se com novos grupos civis, mas também com novos, independentes, funcionais e imperativos militares. Os adeptos de controle civil subjetivo passaram a exigir que esses imperativos fossem negados ou modificados. Se isso não ocorresse, o controle subjetivo seria impossível. Torna-se necessário estabelecer novos princípios para reger as relações entre os imperativos militares funcionais e o segmento civil da sociedade. Enquanto o controle civil não passava de um valor instrumental de determinados grupos civis, era impossível garantir consenso quanto a seu significado. Cada grupo definia controle civil segundo seus próprios interesses. Isso explica o fato de o controle civil não ter sido definido satisfatoriamente, ainda que muito tenha sido escrito sobre ele. Entretanto, a ascensão da profissão militar, ainda que tenha tornado obsoletas as formas de controle civil subjetivo, também obrigou a elaboração de nova definição de controle civil. 6.2. Controle Civil Objetivo: Maximizar o Profissionalismo Militar No sentido objetivo, controle civil é a maximização do profissionalismo militar. Significa a distribuição de poder político entre militares e civis. Isso conduz ao aparecimento de comportamento profissional entre a oficialidade. Logo o controle civil objetivo opõe-se ao controle civil subjetivo. O controle civil objetivo faz dos militares e civis o reflexo do Estado. O controle civil objetivo atinge seu fim ao militarizar os militares, tornando-os servidores do Estado. O controle civil objetivo, diferente do controle civil subjetivo, existe apenas numa forma. A antítese do controle civil objetivo é a participação do militar na política. O controle civil diminui à medida que os militares se envolvem em política institucional, classista e constitucional. Por outro lado, o controle civil subjetivo pressupõe esse envolvimento. A essência do controle civil objetivo é o reconhecimento do profissionalismo militar autônomo. A essência do controle civil subjetivo é a negação de uma esfera militar indepen- dente. A demanda por controle objetivo surge pelo interesse de grupos civis em aumentarem seu poder em assuntos militares. O elemento essencial e prioritário de qualquer sistema de controle civil é minimizar o poder militar. O controle civil objetivo atinge essa redução profissionalizando os militares, tornando-os politicamente inúteis e neutros. Isso produz o mais baixo nível de poder político militar com relação aos civis. Entretanto preserva o elemento essencial de poder que é indispensável à existência da profissão militar. Um corpo de oficiais altamente profissional permanece pronto a realizar os desejos de um grupo civil que detenha autoridade legítima dentro do Estado. Isso estabelece limites definidos do poder militar sem que exista qualquer referência à distribuição de poder entre os diversos grupos civis. A definição subjetiva de controle civil pressupõe um conflito entre controle civil e as necessidades de segurança militar. Considerando que os civis, em sua expressiva maioria, não têm consciência da natureza da instituição militar e dos compromissos institucionais com a nação, freqüentemente admitem que a redução do poder militar é necessária para manter a paz. É fato que o controle civil objetivo sofre influências de grupos ou de facções políticas, que insistem na subordinação a seus próprios interesses. Nas nações em desenvolvimento, com inexpressivo Poder Nacional, e sujeitas a pressões de toda ordem, o Poder Militar tem extrema dificuldade em manter-se em condições de enfrentar as ameaças à Soberania Nacional, seja na dimensão Territorial ou Patrimonial. Quanto à soberania, no que se refere à sua dimensão Patrimonial, as dificuldades são ainda maiores, pois para esta se fazem necessárias uma total integração e identificação com o poder civil, o que não é tão simples. O relacionamento civil-militar deve ser considerado como um dos temas mais importantes para o desenvolvimento e segurança da nação. Ao estudar esse tema, é importante que seja discutida a situação e o papel da profissão militar em um país em desenvolvimento e num mundo em que os países desenvolvidos procuram restringir ou inibir seu progresso. Quanto ao relacionamento civil-militar devemos lembrar das palavras de José Américo de Almeida por ocasião de sua saudação ao General Góes Monteiro: “Pena é que as vossas manifestações tenham sido isoladas. Antes, nos fosse dado dizer aos militares, na vibração dessas homenagens, que dessem força aos civis para que eles pudessem cumprir sua missão com o destemor das atitudes intransigentes do bem público. E eles respondessem que nós outros poderíamos realizar todo o nosso esforço construtivo e moralizador, que não nos faltaria o seu apoio material. E, de mãos dadas, povo e exército, retomaríamos, sem desconfiança nem apreensões, o ritmo do trabalho pacífico e restaurador, dentro da lei, evitando as soluções armadas. Seria essa a união sagrada, com que os povos cultos dirimem crises ais profundas” (Monteiro, 1930). 7. Conclusão Cumpre lembrar que nação não é civil nem militar. Cumpre lembrar que cidadania é garantida pela Constituição Nacional. No regime democrático o povo é o titular do poder e o exerce por meio de representantes eleitos. Os indivíduos constituintes da nação, todos os seus naturais, são cidadãos. O poder é efetivamente exercido pelos cidadãos em pleno gozo dos direitos políticos. No regime democrático todo poder emana do povo e é efetivamente exercido pelos cidadãos em pleno exercício de seus direitos políticos. A igualdade dos cidadãos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, é o pressuposto que assegura a legitimidade para o exercício da democracia. A igualdade garante ao cidadão, civil ou militar, o igual direito de participar do exercício do poder no regime democrático. O regime democrático tem, idealmente, como objetivo inerente assegurar a igualdade dos cidadãos perante a lei. A liberdade é, outro pressuposto básico do regime democrático e a expressão mesma de seu exercício. É através do exercício político que se realiza a democracia. Os direitos da cidadania são garantidos pela Constituição Brasileira que estabelece os direitos civis, políticos e sociais dos cida- dãos, sendo vedada a cassação de direitos políticos. Lamentavelmente, em termos reais, não são cumpridos em toda sua plenitude. O conceito de cidadania é dividido em três elementos: civil, político e social. O civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual. O político é a garantia de participação, no exercício dos direitos políticos, como membro de um organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. O social refere-se aos direitos sociais considerados básicos para propiciar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. A consciência da cidadania implica no conhecimento dos direitos e dos deveres inerentes à pessoa humana, vivendo em grupo e participando da vida nacional. A cada direito corresponde um dever. A questão da segurança, qualquer que seja a opção ideológica do cidadão, é uma questão primeira para o Estado Nacional. O Estado Nacional se justifica, segundo o filósofo alemão Hegel, pai da filosofia política, quando dirime as contradições que surgem no âmbito da sociedade civil. Entretanto, ainda segundo o mesmo filósofo, o Estado Nacional só se legitima quando tem nos seus objetivos os mesmos objetivos dos cidadãos que representa. Segurança, portanto, é um instrumento inerente ao exercício da cidadania. Quanto mais tecnológica é uma sociedade mais segurança ela requer e mais conhecimento e participação têm os cidadãos. É aí que reside o sentido de segurança em uma democracia. É na sua posição de resguardo da cidadania. No passado o importante era definir o modelo de relacionamento entre o meio civil e o militar mais adequado à democracia. Atualmente isso já está superado por uma questão mais importante: qual é o modelo de relações civil-militar mais adequado à segurança da nação? Esse modelo deve ser adequado ao momento histórico, ao momento político, à conjuntura nacional, internacional sendo que a cultura da nação tem fundamental e definitiva participação. Assim, não pode existir um modelo comum para as nações. Cada nação deve ter o próprio. Cada Estado Nacional deve desenvolver o seu. Ainda é importante lembrar que: O militar é o primeiro e último servidor do Estado Nacional. Primeiro, porque a origem do Estado Nacional decorre do consenso social de que só a essa entidade, o Estado Nacional, deve ser concedido o monopólio do uso legítimo da força. Último, porque é sobre o militar, apoiado pelo civil, que repousa a existência do Estado Nacional em tempos de paz e a sua sobrevivência em época de guerra. É observando essa posição de primeiro e último servidor do Estado Nacional que se deve formar, aperfeiçoar, treinar e preparar o militar. O militar, a instituição militar, ou melhor, as Forças Armadas são essenciais à vida da nação. Maquiavel já alertava que “nenhum país está seguro sem armas pois lhe faltariam os meios de decidir seu destino”, no que Napoleão complementa com elegância quando afirma que “sem exército não há independência política nem liberdade civil”. Não podemos nos esquecer de que num território sempre haverá um exército, se não for o exército nacional será o exército estrangeiro. O Estado Nacional tem sido ao longo dos últimos quinhentos anos a organização catalisadora das sociedades nacionais. Apesar de um discurso recente, que procura minorar a importância dos Estados Nacionais, em decorrência de uma previsível globalização, nada de importante coonesta esse discurso. Assim sendo, o mais relevante atributo a ser incutido no militar é o da sua total fidelidade aos desígnios de seu Estado Nacional. No Brasil, as Forças Armadas, como é de conhecimento de todos, sem comprometimento da segurança e defesa nacionais, são tradicionalmente comprometidas com o desenvolvimento, com a integração nacional, com integridade nacional, com as desigualdades sociais, com a preservação e com valorização da cultura. Entretanto, ao longo desses últimos quinhentos anos, o Estado Nacional sofreu em sua concepção diversas modificações. A principal delas se processou com a derrota do absolutismo provocada pelo conjunto de idéias que levou à queda da Bastilha e à Revolução Francesa. Essa modificação teve extrema importância na formação do militar. Com a derrota do absolutismo, termina o antigo Estado Nacional, aquele Estado onde todas as intenções decorriam de sua casa reinante. No antigo Estado tudo resultava da concepção do rei e o militar era antes de tudo um soldado do Rei. Isto era possível pois o Estado Nacional se confundia com o soberano, o que permitia a Luis XIV afirmar “L’Etat c’est moi”. O soldado era um servidor da casa real, sempre voluntário e crédulo nas intenções maiores de sua causa. Se assim não fosse, ainda tinha o soldo que lhe afiava a espada. Já no Estado Nacional que surgiu com a Revolução Francesa, o moderno Estado Nacional, duas idéias-força de sua concepção se tornaram fundamentais para a formação do soldado: o movimento filosófico iluminista, ou seja, a prevalência da razão sobre os dogmas; a importância do conhecimento e da cultura e a idéia da cidadania - ou seja, a relevância de cada um se sentir partícipe na concepção e na evolução do seu Estado Nacional. Nascia o cidadão-soldado. O movimento iluminista exalta a importância da lógica cartesiana, do desvelar da natureza, da capacidade criadora do homem e de sua vontade. Ao militar que surge com o moderno Estado Nacional esses devem ser atributos incutidos. A idéia de cidadania pressupõe participação, ação solidária e conhecimento dos reais interesses nacionais. Ao soldado-cidadão esses devem ser atributos compartilhados. Dos pressupostos estabelecidos ao longo dos séculos XIX e XX, a razão tem sido determinante na formação do soldado, a afetividade só se materializando na ligação entre ele e sua origem: sua família, sua comunidade e sua cultura. Para o próximo século tudo indica que cada vez mais a razão e a sua filha, a tecnologia, conduzirão o processo de formação do militar. Será, portanto, fundamental, que cada vez mais ele amplie seu conhecimento sobre temas como: a lógica numérica, o estado da arte das chamadas ciências exatas, as tecnologias disponíveis. É extremamente importante que ele conheça qual a concepção estratégica de seu Estado Nacional, que ele se sinta incluído na sua formulação, que ele se sinta responsável pelo sucesso dessa concepção. É muito relevante que ele domine outras línguas além da sua nativa, de preferência as faladas nas sociedades vizinhas e das hegemônicas, que conheça filosofia e direito internacional, que tenha rudimentos das ciências sociais, em especial economia e sociologia. Com a prevalência cada vez mais acentuada da razão, claro está que, para o próximo século, tornar-se-á cada vez mais relevante reforçar o componente emocional do militar. Quanto mais culto o soldado, mais importante terá de ser a pregação dos valores nacionais. O destino do militar tem de ser a violência, e esta tem como boa companhia ou a barbárie ou a emoção. A emoção sempre decorre de ação e de motivação. Tanto uma quanto outra requer formulação, doutrina e pregação. Se abandonamos a barbárie em prol da cultura temos de preservar a emoção. Aqui, faz-se importante lembrar as sábias palavras de Góes Monteiro: “Aliás sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do exército, e não a política no Exército. E este deve repelir, a coices d’armas, todo elemento que, sob quaisquer disfarces, queira induzi-lo a tomar outra direção, do que, como tem acontecido, só poderá resultar a sua divisão, fraqueza e impotência” (Monteiro, 1930). É fundamental que nós brasileiros tenhamos em mente que o militar, tendo o civil ao seu lado, é antes de tudo, a materialização do instinto de sobrevivência da Nação. (*) Cel.-Av. – Chefe da Divisão de Assuntos Internacionais BIBLIOGRAFIA Huntington, Samuel P. 1996. O Soldado e o Estado. Teoria e política das relações entre civis e militares. Biblioteca do Exército Editora. Rio de Janeiro. ___________________ .1975. A ordem pública ;nas sociedades em mudança. Editora Forense Universitária. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo. Janowitz, Morris. 1967. O Soldado Profissional. Um estudo social e político. Edições GRD. Rio de Janeiro. Monteiro, Góes. 1930. A Revolução de 30 e a finalidade política do Exército. Adersen Editores. Rio de Janeiro. Raposo Filho, Amerino. 1990. Dimensões da Estratégia. Biblioteca do Exército Editora. Rio de Janeiro. ___________________. 1997/A. Os problemas sociais do Brasil e seus reflexos nas Forças Armadas. Mimeo. ___________________. 1997/B. Sociedade e Forças Armadas. Rio de Janeiro. Mimeo. Stepan, Alfred. 1975. Os militares na política. Editora Artenova. Rio de Janeiro. AMÉRICA DO SUL: VOCAÇÃO GEOPOLÍTICA “AMERIKA, DU HAST ES BESSER ALS UNSER KONTINENT, DAS ALTE!” GOETHE Therezinha de Castro(*) “América, tua sorte é melhor que a do nosso velho continente!” 1. Introdução Bem mais caracterizada como Ibero-América do que latina, contrastando com o setor anglosaxônico, cortada pelo equador e trópico de capricórnio, a posição geográfica da América do Sul lhe confere, grosso modo, a categoria de continente do hemisfério sul. Com forma triangular, o setor mais largo do continente se concentra na zona equatorial terrestre; estreitando-se ao atingir a faixa temperada para afunilar-se no vértice meridional na frente sub-antártica polar. Advindo desta posição geográfica encontrarem-se nos dois extremos do continente áreas pouco favoráveis ao estabelecimento humano: o norte quente e chuvoso e o sul frio e estéril. Contraste que se equilibra no setor das baixas latitudes, onde a população para evitar as temperaturas mais quentes, notadamente dos países banhados pelo Pacífico deu preferência às zonas andinas. Em contrapartida, os países banhados pelo Atlântico pondo em contacto a América do Norte/Europa/ África têm seus principais centros demográficos no litoral, fazendo do Brasil, o mais populoso do conjunto. Tal fato vai gerar a oposição entre as duas vertentes oceânicas. · a do Pacífico, “mar solitário”, de navegação extensiva, com feixes de circulação bem mais regional; · a do Atlântico de navegação intensiva com feixe de circulação intercontinental. Quer pela oposição das duas vertentes oceânicas, quer pela existência das zonas repulsivas, implantaram-se áreas geopolíticas neutras que por sua posição no hinterland predispuseram os países sul-americanos a uma dissociação econômica e psicossocial, vivendo de costas uns para os outros. 2. Ocupação Contribuiria também para o dualismo geopolítico sul-americano o Tratado de Tordezilhas (1494) seccionando, como fronteira esboçada as duas grandes vias de penetração continental: · entregando a foz do Prata aos espanhóis, proporcionou-lhes maiores oportunidades para a expansão pelos Pampas e Chaco; · concedendo a embocadura do Amazonas aos portugueses, coincidentemente o seu setor sul, o melhor braço para a navegação, permitiu que os lusos se apossassem daquela planície setentrional. Facilitada a penetração espanhola ao sul e a portuguesa ao norte, o continente sul-americano foi induzido, embora indireta-mente, a uma bipartição aproximada: 8.500.000km2 para os portugueses e 9.300.000km2 para os espanhóis. Caberia aos Andes e federalismo castelhano impor o cantonalismo geopolítico à América Espanhola gerando-lhe vários núcleos geohistóricos dividindo-a, posteriormente em várias repúblicas. Por outro lado o relevo mais baixo e centralização do Reino Português confirmariam o unilateralismo do Brasil com um único núcleo geohistórico. O fator fisiopolítico justifica, a superioridade territorial do Brasil no conjunto sul-americano, já que a Argentina que o segue em área, atinge apenas a terça parte da superfície brasileira. O espaço português posicionado em longa faixa atlântica, mais próxima da África e Europa contou com a vantagem dentro do contexto econômico, colocando o Brasil em maior contacto com Portugal; dentro do enfoque geoestratégico iria se caracterizar como centro de assaltos e tentativas de fixação por parte de elementos estrangeiros. Do outro lado, no setor do Pacífico, embora contando com a desvantagem geoeconômica da distância para com a metrópole, face ao isolamento, ficavam os espanhóis menos expostos aos invasores. A conquista desordenada e tendência a continentalidade exporia mais a metrópole espanhola com vasta área de disputa na América com outros vizinhos colonizados. Assim a zona de disputa iria se estender desde a América do Norte até a do Sul. 3. Fisiopolítica Sabendo-se que as massas continentais se distribuem no Hemisfério Norte formando um grupamento em semi-círculo centrado no Polo Norte, a América do Sul se posiciona no Hemisfério Meridional ou Marítimo no qual a Antártica se constitui no território mais considerável da metade inferior do Planeta. A América do Norte se orienta mais para o quadrante oeste, enquanto a América do Sul oferece exemplo típico de desvio continental para o leste; assim, o meridiano de Lima, cidade na esfera do Pacífico-Sul passa por Washington na dependência do Atlântico-Norte. Esse entorse continental caracteriza a América Meridional como América do Leste criando a zona de estrangulamento do Atlântico, levando Recife a distar somente 18 graus de longitude de Dakar e 10 graus de Cabo Verde, a terra mais ocidental da África. Considerando-se o meridiano de zero graus de Greenwich toda a massa continental americana se concentra no Hemisfério Oeste ou Ocidental entre os 36 graus do Cabo Branco no Nordeste brasileiro aos 160 graus do Cabo Príncipe de Gales na Alaska. Nesse posicionamento observa-se que a América do Sul está bem mais isolada pelo Oceano Pacífico encontrando-se a grande distância da Austrália, que com ela se defronta numa linha leste-oeste, no setor do chamado Crescente Externo Insular. Envolvendo-se em duas vertentes oceânicas, o continente sul-americano caracteriza-se por duas zonas longitudinais: · primeira é formada pelos Andes cadeia de montanha prolongando-se de norte para sul por mais de 7.000km, formando verdadeira barreira ao longo do Oceano Pacífico levando a América do Sul a voltar-se bem mais para o Atlântico em seu “destino manifesto”; · a segunda é constituída por três planícies, Orenoco, Amazônica e Platina e três planaltos, Guianas, Central ou Brasileiro e Patagônia que se intercalam e são estruturalmente partícipes do Atlântico. Nos Andes, o sistema de transfusão entre as duas vertentes oceânicas se encontra nos passos e nós. Os passos, passagens naturais nos colos das montanhas, possibilitam o contato entre as duas vertentes. Esses acidentes geográficos andinos mais importantes estão no sul: o de Upasllata entre a Argentina/Chile é aproveitado pela única transcontinental do continente entre Buenos Aires/Valparaíso; o de Santa Rosa leva o sistema ferroviário boliviano até Árica no Chile. Enquanto Upasllata une as duas vertentes oceânicas o de Santa Rosa só o fará quando se complementar o trecho Santa Cruz de la Sierra já conectada com Santos no Atlântico e Cochabamba. Os nós ou “nudos” apresentam-se sob a forma de planaltos circundando um alto pico; enfeixando várias ramificações andinas são centro de dispersão de águas em linhas de menor resistência do terreno, acima dos 3.000 metros de altitude entre 5º e 15º de latitude sul. A importância funcional desses acidentes geográficos relacionados ao Atlântico se concentra na posição que ocupam no anfiteatro amazônico. O nó de Pasto na Colômbia e o de Loja no Equador se direcionam para os vales do Putumaio e Marañon respectivamente aguardando vias hidrográficas de acesso ao Atlântico ainda por se desenvolverem. Já o nó de Cerro de Pasco no Peru se divide entre os vales amazônicos do Marañon e Purus; enquanto que o de Vilcanota ou de Cuzco prolonga o de Pasco na direção do Madeira. A Bacia Amazônica se constitui numa sub-região de conexão entre duas áreas de importância geoestratégica - a do Caribe e a do altiplano boliviano, considerando este último uma espécie de “heartland’ do continente. Em conseqüência, quando melhor aproveitada, a Bacia Amazônica, com a integração, poderá se transformar em polo de atração de zona repulsiva; na oportunidade, essas aberturas andinas levarão para o Atlântico riquezas potenciais de zonas geopolíticas neutras do continente. As planícies Amazônica, do Orenoco e Platina são servidas por redes hidrográficas que levam a América do Sul em seu “destino manifesto” a se voltarem para o Atlântico do qual são tributárias. Buscam também o Atlântico, declinando para ele, os planaltos das Guianas e da Patagônia. Já o Planalto Brasileiro pende para o interior, buscando ainda o norte e o sul. Por sua disposição esse planalto demonstra vocação continental de enlace entre as bacias Amazônica e Platina. Por sua posição e configuração, envolvendo o centro geográfico do continente em área geopolítica neutra, o Planalto Brasileiro favoreceu a penetração para o oeste, permitindo que os portugueses, detentores de núcleo geohistórico a beira do Atlântico, conquistassem vasto hinterland da América do Sul. Dentro, pois, do enfoque fisiopolítico podemos concluir que: · unidade andina contribuiu, de início, para a implantação de um único estabelecimento colonial - o espanhol, estendendo-se de norte para o sul, na vertente isolada do Pacífico; · a variedade na vertente mais disputada do Atlântico favoreceu a implantação de vários estabelecimentos coloniais - o espanhol, o português, o inglês, o holandês e o francês; · no setor dependente do Pacífico sem nenhuma grande bacia hidrográfica, com litoral pobre em articulações em grande parte desvinculado do interior, quer pelos nós e passos projeta-se bem mais para forte associação com o Atlântico; · a vocação geopolítica de atração do Atlântico se liga à presença de importantes bacias hidrográficas, associadas às articulações litorâneas onde o relevo mais baixo favorece intensa vinculação com o hinterland. 4. Partilha Política Embora a fisiografia não se apresente tendente a uma unificação política, vemos também que não impõe a desagregação. Com uma superfície de cerca de 18.300.000km2 o continente sul-americano apresenta grande número de paisagens nas quais o traçado das fronteiras políticas faz com que a população da América do Sul viva, em parte, divorciada de sua vocação geopolítica. Em função da linha de Tordezilhas, fronteira esboçada de 1494, o território espanhol, voltado para o Pacífico possuía trechos no Atlântico, onde os 2.800.000km2 dos portugueses concentravam a melhor e mais bem posicionada parcela. Fronteira esboçada que segundo Everardo Backheuser era bem mais uma antefronteira (fronteira antes de ser), e que nos primeiros anos da colonização eram arbitrárias contribuindo para que fossem elaborados mapas inexatos e incompletos. No entanto, essa fronteira esboçada iria, por coincidência, refletir o posicionamento das metrópoles na Península Ibérica; aí a Espanha voltada para o Mediterrâneo possuía nesgas litorâneas no Atlântico onde o retângulo territorial ocupado por Portugal concentrava a melhor parcela. Dentro do contexto fisiopolítico a ocupação do continente sul-americano refletiria, grosso modo, o posicionamento da Espanha/Portugal na Península Ibérica. Na Europa haviam os portugueses se instalado em áreas de altitudes mais baixas, ficando os espanhóis com os territórios mais elevados da meseta. Na América do Sul, a divisão acordada em 1494 dotava os portugueses de setor litorâneo menos elevado, ficando os espanhóis com os mais altos. Com a progressiva ocupação da América do Sul, a divisão política colonial refletiria contingências geohistóricas da Península Ibérica. No espaço espanhol, a descentralização refletia uma Espanha geopoliticamente constituída por Confederação de Reinos comandados por Castela a quem coube expulsar de vez os árabes de Granada em 1492. Por isso, 8 cidades da América Hispânica passavam logo a ter função de comando, transformadas em Audiências. No setor português a centralização era herança do Reino de Portugal sem conhecer o esfacelamento feudal e que já no século XII se unificara expulsando os árabes. Em conseqüência, num nítido contraste com a América Espanhola só duas cidades, cada qual da sua vez, funcionaram como capital-Salvador de 1549 até 1763 e Rio de Janeiro - refletindo a tendência geopolítica portuguesa de Guimarães e Lisboa. Tanto em Portugal quanto no Brasil, esses centros urbanos se posicionavam nos respectivos núcleos geohistóricos desses países. Podemos também observar que a divisão colonial da América Hispânica iria, na época, refletir as contingências geoeconômicas e geoestratégicas do continente. · No Vice-Reinado do Peru se concentrava toda a economia mineira. Além de zona de passagem das riquezas peruanas predominava a atividade agrícola no Vice Reinado de Nova Granada. Criado por imperativos defensivos para impedir a posse da área pelos portugueses o Vice Reinado do Prata surgido em 1763 se concentrava na pecuária. · Por imposição geoestratégica surgiram as Capitanias Gerais. A da Venezuela para barrar o avanço estrangeiro com foco nas Guianas e pôr um termo no contrabando feito por piratas e flibusteiros no Caribe. A do Chile, em função do isolamento da área posicionada em ângulo morto do Pacífico Sul, na praticamente abandonada rota do Estreito de Magalhães. A vocação atlântica da América do Sul levaria o setor hispânico a manter-se com áreas dependentes dessa vertente: · os Vice Reinados do Peru e de Nova Granada voltados para o Atlântico Norte via Istmo do Panamá; · isolados e de costas um para o outro, o Vice Reinado do Prata no ângulo terminal do Atlântico e a Capitania Geral do Chile desejosa de uma saída por essa vertente, quer pela Patagônia ou pelos Estreitos no sul do continente. Já o Estado do Brasil associado ao Reino Unido de Portugal e Algarve, uno tanto política quanto economicamente manteve sua vocação atlântica já que em seu núcleo geohistórico se estabeleceram todos os seus ciclos econômicos. O ciclo da cana-de-açúcar posicionava o nosso Nordeste como ecúmeno estatal, mantendo a capital em Salvador. Com o ciclo da mineração, no momento em que se intensificava a tensão na foz do Prata com os espanhóis, a capital era transferida para o Rio de Janeiro. Observando-se que os três ciclos iniciais de nossa vida econômica, se aos da cana-de-açúcar e mineração associarmos o de característica recoletora que foi o do pau-brasil, se desenvolveram na mais estreita dependência do Atlânti- co. Toda comunicação entre as Capitanias Hereditárias só podia ser efetuada pelo mar e, até mesmo as Entradas, expedições oficiais para o interior, eram proibidas além da linha de Tordesilhas. Em 1580 unindo-se as Monarquias Ibéricas desaparecia essa fronteira esboçada, iniciando-se, com as Bandeiras, devidamente legalizadas pelo Governo de Madrid, a penetração para o hinterland. impunha-se a vocação continental castelhana com capital interiorizada em oposição a maritimidade de Lisboa. Herdava também o Brasil os inimigos europeus da Espanha hegemônica - holandeses, ingleses e franceses. Destacando-se então a Bandeira de Antônio Raposo Tavares (1628-48), que enlaçou pelo interior as Bacias do Prata e Amazônica e a de Pedro Teixeira (1637-39), que, face o perigo de invasores estrangeiros instalados na região guianense, penetrou na Amazônia. Por outro lado a união ibérica impunha ao Estado do Brasil a descentralização com a criação do Estado do Grão Pará e Maranhão comandado provisoriamente por S. Luís e depois defendido pela fortificada cidade de Belém. A junção seria automática com a elevação do Brasil a Reino Unido ao de Portugal e Algarve em 1816. Em se tratando da partilha política da América do Sul se impõem os fenômenos da conjunção e disjunção: · a coesão foi mais forte no setor atlântico ocupado em sua maior parte pelo Brasil, dentro do princípio de que a montanha produz o fenômeno cantonalista, enquanto vales e planícies unem: · a descentralização imposta pelas 8 Audiências faria surgir as 8 Repúblicas de língua espanhola, criando entre si fronteiras políticas que anularam o conjunto geohistórico. 5. Regiões Naturais No século XIX, criadas as várias unidades geopolíticas independentes das metrópoles, as circunstâncias locais consegui-ram imprimir caráter determinante a espaços geográficos sul-americanos. Nessas condições adotando a classificação de Levi Marrero, distinguimos 4 regiões naturais integradas ao conjunto continental. 5.1. A Região do Caribe Aí os Andes envolvem dois países - a Colômbia e Venezuela bifurcando-se em vários ramos a partir do Nó de Pasto, para terminarem circundando o Golfo ou Lago de Maracaibo, o maior da América do Sul (13.000km2) em zona de potencial petrolífero. Aí divergem a Colômbia/Venezuela em questão de fronteira por não terem chegado a um consenso sobre a divisão do mar territorial. Além da cordilheira, estendem-se os llanos, terras baixas pertencentes à Bacia do Orenoco. E a geografia llanera que vai distinguir geopoliticamente a Venezuela da Colômbia. Nessa zona plana transandina localizaram-se logo as maiores densidades populacionais e núcleos produtivos da fase colonial venezuelana; contrastando com a Colômbia onde a ocupação se mantém nos Andes na “estrela fluvial” onde se encaixaram em profundas gargantas as Bacias do Atrato e Madalena/Cauca. Isoladas do centro mineiro andino, as populações llaneras passaram a viver mais em função do Mar das Antilhas, mantendo intenso contrabando com invasores estrangeiros. Daí a região haver sido transformada na Capitania Geral da Venezuela, separada do Vice-Reinado de Nova Granada, para ficar sob maior controle de Castela no século XVIII. Atualmente, o ecúmeno estatal venezuelano comandado por Caracas e secundado por Cumaná, Barcelona e Maracaibo se caracteriza por seu tráfico mais intenso voltado para o exterior e estreita dependência com o núcleo geohistórico do Orenoco/Caribe. Contrasta, pois com a Colômbia caracterizada por uma dualidade fisiopolítica. Mais da metade do território colombiano é formado por planícies envolvidas nas Bacias do Orenoco e Amazônica, onde se concentra a sua área geopolítica neutra. O ecúmeno estatal colombiano comandando por Bogotá encontra-se em zona andina. Único país bioceânico da América do Sul, o porto de Buenaventura no Pacífico não exerce o papel preponderante de Cartagena/Barranquilla no Caribe. Assim, tanto a Colômbia como a Venezuela estão bem mais voltadas para o Caribe, mar formado pelo Atlântico, contrastando com a Região Andina propriamente dita (Equador/Peru/Chile), inteiramente dependente do Pacífico. Ocupando uma área de 948.000km2 a Bacia do Orenoco é fechada pelos Andes e Planalto das Guianas. Geopoliticamente antagônico, o Orenoco se constitui, ao mesmo tempo, na artéria em cujos braços se unificou e se divide o espaço político venezuelano. É que o seu sul se constitui em vasta área geopolítica neutra, visto que, curiosamente as nascentes desse rio só foram descobertas em 1951. Se sob o ponto de vista fisiopolítico o solo llanero facilitou a penetração espanhola, a irregularidade do relevo planaltino das Guianas dificultou-a favorecendo as invasões holandesa, inglesa e francesa que acabaram por formar “quistos geopolíticos” nessa cunha isolada do continente, voltada para o Caribe. Guiana em dialeto indígena significa - “costa selvagem, país das águas”. Assim, o litoral guianense é baixo e pantanoso, sem grandes rios que favoreçam a penetração. Por outro lado, a homogeneidade estrutural do planalto é notória como é também característico o seu isolamento geográfico em face do Atlântico/Bacia do Orenoco/Bacia Amazônica, justificando a sobrevivência geopolítica da Guiana colonizada pelos ingleses, do Suriname pelos holandeses e da Guiana Francesa, um Departamento de Ultramar francês. O que impediu, por outro lado, que a América do Sul viesse a se constituir numa Ibero América. 5.2. Região do Pacífico Ainda bem digitados, os Andes percorrendo o Equador e Peru, já se caracterizam por uma comunicação mais facilitada em função dos Nós de Pasto, Loja, Cerro Pasco e Vilcanota. Até 2 graus de latitude sul a região andina equatoriana se assemelha à da Colômbia meridional; daí haverem os espanhóis reunido essas áreas no Vice Reinado de Nova Granada. Aí a passagem andina foi denominada por Humboldt como “avenida dos vulcões”. Linha vulcânica que só vai ressurgir aos 14 graus de latitude sul com o vulcão peruano Misti nas imediações de Arequipa, continuando na direção da Bolívia, Chile e Argentina. Zona de violentos terremotos, pontilhada por cerca de 60 vulcões extintos ou em plena atividade, as altitudes vão se elevando do Equador para o Peru e, na fronteira entre esses dois países forma uma zona de tensão lindeira, conhecida como a Questão de Côndor. A semelhança do que ocorre na Venezuela/Colômbia as áreas interiorizadas que se seguem aos Andes vão baixando até se transformarem em planícies. São as Yungas integrantes da Bacia Amazônica, cobertas por selvas equatoriais frondosas, bem regadas pelas chuvas que na Bolívia já recebem o nome de Florestas. A Yunga/Floresta desde a Colômbia, passando pelo Equador/Peru para atingir a Bolívia, fazendo fronteira com o Brasil, caracteriza-se, grosso modo, como área geopolítica neutra; com presença das fronteiras-faixa, ou seja despovoadas destaca que os países sul-americanos se encontram aí de costas uns para os outros, transformando em pouco ativo o Pacto Amazônico. Desde a Colômbia até a Bolívia, incluindo-se o Equador/Peru, as maiores densidades demográficas se concentram no setor andino, onde se interpenetram os núcleos geohistóricos e ecúmenos estatais dos quatro países. A depressão longitudinal costeira do Equador é melhor ocupada que a Yunga, sobretudo no delta do Guayas, planície aluvial baixa, estrangulada na altura de Guayaquil, porto que monopoliza o comércio, concorrendo geopoliticamente com Quito a 2.480 metros de altitude. Essas cidades se completam nas duas províncias básicas do Equador Pichincha/Guayas, conectadas por corredor interior estreito. Guayaquil a costa e Quito a serra fazem, com o porto de Las Esmeraldas, de melhor posicionamento com relação ao Canal do Panamá e conseqüentemente na via Atlântico, o ativo triângulo geopolítico do país. Assim, podemos dizer que a costa equatoriana contrasta com a pobreza da linha desértica marítima peruana. A vida aí se concentra nos oásis petrolíferos que se estendem de Guayaquil até a Ponta Paita. Enquanto Quito se acantonou na cordilheira, Lima, a capital do Peru sofre maior atração do Pacífico sem se envolver nele diretamente. Isto porque a “porta de saída” da capital peruana é Callao a 120 km de Lima. No Chile, os Andes formam duas cadeias paralelas, facilmente cruzadas nos passos das secções central e setentrional. Passagens naturais nos colos das montanhas, esses passos sempre salvaguardavam os interesses do Chile pelo Atlântico, sobretudo o Passo de Upasllata aproveitado pela transcontinental Buenos Aires/Santiago/Valparaiso. No estreito território chileno entre os Andes/Pacífico os cursos d’água são numerosos, mas não permanentes, ocasionando inundações no período das chuvas. Mas é entre as cadeias paralelas de montanhas que se estende o deserto ou puña com destaque para a do Atacama, desprovida de qualquer tipo de vegetação. Paisagem desértica onde a economia se liga aos salitrais. Embora o Aconcágua, ponto mais alto do continente sul-americano com seus 7.000 metros, se situe no setor meridional dos Andes, a partir dos 40 graus de latitude sul, as montanhas que se repartem entre Chile/Argentina vão perdendo em altitude e se povoando de lagos glaciares entre os quais o Buenos Aires, Viedma e Argentino onde só em 1996 se resolveram pendências fronteiriças. Na Terra do Fogo a zona montanhosa submerge para formar os arquipélagos antárticos. Nesse setor estendendo-se para a Antártica o Chile/Argentina emitiram Decretos reivindicando áreas polares que se justapoem com as da Inglaterra, cuja partilha o Tratado de Washington de 1960 vem protelando. No entanto, no setor terminal sul do continente o Chile conseguiu envolver-se no Atlântico através do Canal de Beagle, obtendo por arbitramento as Ilhas Nueva, Lenox e Picton. Observando-se que a disposição vertical dos Andes contribuiu para a ocupação humana em sentido norte-sul, onde Santiago, a capital, posicionada no vale longitudinal do Rio Mapocho busca o Pacífico. Esse oceano banha a fachada do país prolongada por cerca de 40 graus geográficos entre os paralelos de 18 graus e 56 graus de latitude sul. O Chile é, pois, uma franja oceânica com largura variando dos 100 aos 350km, só alcançando sua maior extensão na Terra do Fogo onde tem 460km. 5.3. Região Interior Os Andes são mais compactos, largos ao sul do Nó de Vilcanota envolvendo o Peru meridional e a Bolívia, atingindo 600 km na altura do paralelo de 18 graus de latitude sul. Trata-se, pois, de um autêntico altiplano, o denominado “Pamir da América do Sul”, com 830 km de norte para sul e 120km de leste para oeste. Neste altiplano a febre da mineração deteve os espanhóis que deixaram de levar em conta a fisiopolítica. Assim parte do altiplano ficava geopoliticamente ligado ao Vice Reinado do Peru, enquanto a parte meridional, embora sem se integrar iria girar na órbita do Vice Reinado do Prata. Caracterizando-se por um sistema hidrográfico fechado, destaca-se no Altiplano Boliviano o Titicaca, o lago mais alto do mundo (3.850 metros); considerado também como uma das massas d’água doce mais extensas da Terra (6.900km2) verte suas águas para o salobro Lago Poopo. Estão nesse altiplano as nascentes de tributários da Bacia Amazônica que, na planície interiorizada da Bolívia, drenam sua área geopolítica neutra que contrasta com o setor andino onde está o ecúmeno estatal no eixo La Paz-Sucre. Localizada no nó mais estratégico das vias de comunicação, conservou La Paz a categoria de capital por se encontrar no Departamento do mesmo nome, o mais próximo do Oceano Pacífico, onde a Bolívia mantém com o Chile uma zona de tensão. Não se conforma o governo boliviano de haver perdido, em 1833, a sua saída marítima; finda a Guerra do Pacífico, pelo Tratado de Ancón o Chile ficou com Tacna e Árica pertencentes ao Peru e Antofagasta, o litoral boliviano. Considerada como uma das áreas mais cruciais do continente, a devolução desse território litorâneo é, sem dúvida, a bandeira nacionalista dos políticos bolivianos acenada em tempos de crise. Mais baixa que La Paz (3.600 metros), Sucre (2.850 metros) é o 4º nome que teve esse núcleo urbano boliviano. Os índios dão-lhe o nome de Charcas, região que se atolava por se encontrar no “divortium aquarium” dos sistemas fluviais Platino/Amazônico. Era também conhecida como Chuquisaca quando os espanhóis descobrindo a prata deram-lhe o nome de La Plata. Antes de tomar o nome de Sucre, em homenagem a Antonio José de Sucre, o fundador da República, foi como Audiência de Charcas, desde 1559 a célula política do que se chamava Alto Peru. Diferindo de La Paz, vivendo em função do ouro de Lima, Sucre a sombra das minas de prata do Potosi entrava para a órbita do Vice Reinado do Prata. Assim, La Paz e Sucre revelam o dualismo não só geopolítico como também fisiopolítico da Bolívia, numa área de transição - entre o Chile/Peru de um lado e entre a Argentina/Paraguai/Brasil do outro. Por sua posição cêntrica e população diluída, não suportou a gravitação de seus vizinhos; sem fronteiras naturais, regrediu em pouco mais da metade de sua área perdendo ou cedendo territórios. Contrastando frontalmente com a Bolívia por sua unidade geográfica, coesão psicossocial e forte centralização política, destaca-se o Paraguai. O fator dessa unidade reside no baixo relevo da planície do Chaco, entrecortada por rios conferindo-lhe a característica de “mesopotâmia da América do Sul”. A disposição das linhas fluviais transforma o Paraguai, embora país interiorizado, num núcleo que se aproxima do mar. Confirmando a tese de Ratzel de que: “o rio em territórios planos e em países meridionais é a força de atração entre os distintos povos ribeirinhos”. Para Ratzel as diferenças nacionais numa mesma bacia hidrográfica se imprimem correlativamente, por três setores de seu curso inferior, médio e superior. Justificando-se a vida própria assegurada a Argentina/Uruguai no curso inferior ou foz do Prata. Enquanto os territórios no caso superior são mais isolados; sendo o caso da Bolívia tanto na Bacia Platina quanto na Amazônica. Já o Paraguai no curso médio da Bacia do Prata servindo como traço de união entre a jusante e a nascente, transformou-se na zona de passagem, passando a sofrer incontestável ação do Atlântico. Por isso, complementando a ação geoviária de Buenos Aires com relação ao Paraguai, o Brasil mantém Corredores de Exportação. Tanto o Corredor de Paranaguá como o de Santos fluem para Mato Grosso do Sul transformado no centro geoeconômico para elo de união e atração com o Paraguai e Bolívia. No entanto, pelo posicionamento de Assunção, comandando o ecúmeno estatal, o Paraguai é bem mais caracterizadamente atlântico que a Bolívia. 5.4. Região Atlântica O caso específico do Uruguai envolve algumas exceções geopolíticas. Contradiz, por exemplo, a tese de Ratzel de que, sendo país na foz do Prata, banhado por litoral atlântico próprio, poderia viver bem mais independentemente do que vive. É que, não sendo Estado-Faixa-Fluvial como o Paraguai, a interdependência do Uruguai se condicionou ao dualismo geohistórico que lhe trouxe como herança o fenômeno da instabilidade geopolítica. Ante o secessionismo platino no momento da emancipação política, o governo português reconheceu, de imediato, a independência do Paraguai (1811), como sempre, interessado na foz do Prata, invadiu o Uruguai (1816) que ficou como Província da Cisplatina associada ao Brasil até 1828. Independente, a despeito da dupla colonização, o Uruguai não chegou a se transformar num país bilingüe, muito embora se caracterize como Estado-Tampão, em zona de influência luso-hispânica. Característica observada ao se tomar o Rio Negro como divisória geopolítica e a vinculação às últimas ramificações do planalto meridional brasileiro e dos Pampas argentinos. Assim, o Uruguai, o menor país sul-americano, posicionado entre o Brasil/Argentina, os dois maiores, tem com os dois, um proceder tanto do ponto de vista geopolítico quanto geoeconômico de intensa convivência. Dentro da estratégia do governo português em ocupar a foz dos grandes rios, como ponto de apoio para a conquista do hinterland, o núcleo geohistórico da Argentina, no estuário do Prata foi incorporado em 1530 ao Reinado de Portugal. Ficando, no entanto despovoado, cairia, seis anos depois nas mãos dos espanhóis que aí fundavam Buenos Aires pela primeira vez. O estabelecimento português na outra margem do Prata, na Colônia do Sacramento (1680) transformaria a área numa zona de fricção, onde o fenômeno de fronteiras vivas 2 foi constante até o século XIX. A implantação dessa zona de fricção contribuía para o estabelecimento das seguintes diretrizes geopolíticas: - enquanto os portugueses mudavam a capital do Estado do Brasil para a cidade do Rio de Janeiro (1763) por se encontrar esta mais próxima da zona de contenda que Salvador, os espanhóis criavam o Vice Reino do Prata para melhor defender a região; - enquanto os espanhóis ocupavam os campos interiorizados do Uruguai para manter os portugueses ilhados na Colônia do Sacramento, o Governo de Lisboa iniciava a colonização do Rio Grande de S. Pedro (1740) para deter o avanço hispânico; - no confronto, impunha-se a primeira Argentina denominada pelo centripetismo de Buenos Aires. Centripetismo que promoveu a formação do espaço territorial argentino e provocou o esfacelamento do Vice-Reinado do Prata. Isto porque contra esse centripetismo iriam se sobrepor o cantonalismo paraguaio, boliviano e uruguaio que, no centrifugismo provocado pela descentralização administrativa das Audiências, quebraria a unidade do Vice Reinado do Prata no século XIX. Em 1813, no Congresso de Tucumán se os portenhos tivessem acatado a idéia dos arribenhos e andinos para a interiorização da capital, talvez pudesse ter sido salva a unidade do Prata. A luta entre Charcas/Tucumán/Buenos Aires pela capitalidade do país que se formava já havia tido precedente histórico nos Estados Unidos onde Nova York/Filadélfia/Boston perseguiam o mesmo ideal. A capital artificial - Washington, que salvou a federação no norte, poderia ter conservado a união do Vice Reinado do Prata. Justificando o centripetismo e rechaçando o federalismo de Artigas Juan Alvarez afirma: “o Rio da Prata é a artéria através da qual se comunicam com a Europa através vastas zonas do território brasileiro, boliviano e paraguaio, além das províncias argentinas de Corrientes, Entre Rios e Santa Fé. Sujeitar os produtos de imensa região ao porto único de Buenos-Aires - desprovido naquela época de diques e até de águas profundas - era empresa que só pela força poderia prosperar”. No entanto, ante as dificuldades de conciliar os interesses portenhos/arribenhos/andinos, declarava Justo J. de Urquiza em sua Mensagem ao Congresso de 1854: “Nossos distúrbios passados estão fundamentados sobre essa inoportuna disposição das populações; nossas futuras discórdias virão desta mesma causa”. Face os fenômenos geopolíticos: da luta da Argentina contra o centrofugismo; do Uruguai como Estado-Tampão, do Paraguai como caracterizada mesopotâmia e da Bolívia como polo de atração, o Brasil, maior país, pelo fator presença, se constitui no múltiplo vetor da América do Sul. 2 Classificação que acata a tese de Backheuser quando afirma: "a fronteira-viva, emessência, é uma região de fricção, através da qual, mais dia menos dia, surgem ou se agravam conflitos internacionais, políticos, ou de ordem fiscal administrativa, ensejando demonstrações de força militar". Já Brunhes e Vallaux preferem o termo fronteira de tensão, considerando-a fronteira-morta quando livre de contendas por se haver chegado a umacordo. 6. Presença do Brasil Ocupando-se quase a metade do espaço territorial sul-americano - 47.3%, posiciona-se o Brasil na larga porção oriental do Atlântico Sul. O nosso total de fronteiras (23.086km) se reparte entre os 15.719km de limites terrestres e 7.367km de litoral. No conjunto brasileiro 18% da extensão territorial são formados pela faixa de 250km que acompanha o litoral, 42% se encontram entre os 250km e 1.000km da orla litorânea, enquanto os restantes 40% estão além dos 1.000km. Tais porcentagens comprovam ser o Brasil país do tipo marítimo, associando-o ainda ao tipo continental pela presença no continente sul americano, caracterizando-o como múltiplo vetor. Articula-se o Brasil, grosso modo, com os Andes, de onde recebe o empuxo das forças continentais, bem como com as duas grandes bacias fluviais tributárias do Atlântico e eixos viários de penetração no hinterland - a Amazônica e a Platina. Enquanto o Planalto das Guianas busca o Atlântico, declinando em sua direção, o Golfão Amazônico, no sentido inverso, é porta natural de penetração para o hinterland da planície que encerra a maior rede hidrográfica do Mundo com 7.000.000km2 se nela incluirmos a Bacia Tocantins/Araguaia. Cerca de 70% desse complexo fisiopolítico, compreendendo a mais vasta planície sedimentar do Globo se encontra em território brasileiro, envolvendo-nos nos restantes 30% com a Venezuela/Colômbia/ Equador/Peru/Bolívia e região guianense, caracterizando-nos como múltiplo vetor face nossos condôminos. Zona caracterizadamente despovoada, formando em todos os países uma área geopolítica neutra, face a ingerências interna-cionais, por fatores geoestratégicos levariam o Brasil a firmar em 1980 com os demais países interessados, o Pacto Amazônico. Por sua vez, o Planalto Central ou Brasileiro forma uma espécie de triângulo com base voltada para o norte, vértice apontando para o sul, declinando nas duas áreas bem como para o interior. Assim, uma das características desse planalto é a de se encontrar afastado dos setores litorâneos, os mais povoados, que integram o ecúmeno estatal brasileiro; caracterizando-se como área geopolítica neutra, levaria o governo a implantar a nova capital em Brasília, para melhor atenuar os desníveis. No plano fisiopolítico, sua importância se prende a ser, esse planalto, o centro dispersor e divisor de águas de três importantes bacias hidrográficas - a do S. Francisco, genuinamente brasileira, enquanto a Amazônica e Platina se dividem entre várias nações. Assim, no contexto continental, o Planalto Central ou Brasileiro foi o núcleo interiorizado da unidade nacional (S. Francisco) e de alargamento territorial dos bandeirantes portugueses - pelo Prata, no sentido direcional sul e pelo Amazonas dentro da diretriz leste-oeste. Em seu declive para o interior o planalto cede lugar ao Pantanal Mato-grossense, complementado pela região do Chaco; extensa área baixa, numa distância de 1.170km de norte para sul, desde a divisória do Mamoré até as paisagens pampeanas. Essa última paisagem logo notada, já que o vazio demográfico do Chaco/Pantanal contrasta com a ocupação pastoril dos Pampas. Área geopolítica neutra, de fronteiras faixa despovoadas, o Chaco se transformou em zona de tensão que provocou Guerra entre o Paraguai e Bolívia, conflito só terminado em 1938 com o Governo de La Paz perdendo o setor Boreal para o Paraguai, quando desde 1888 havia perdido o setor Central para a Argentina. A conexão geográfica do Brasil com seus vizinhos continua do Chaco para os Pampas. A região pampeana, numa extensão de 647.500km2 forma um leque aberto para o interior a partir da foz do Prata, numa distância radial de 500 a 640km, atingindo território argentino, uruguaio e brasileiro, recebendo neste último o nome de zona da Campanha do Rio Grande do Sul. É domínio de “campos limpos” de melhores pastagens que, na parte meridional do Planalto Brasileiro, se transformam em floresta temperada, de fácil explotação, contrastando com a selva equatorial amazônica, bem mais variada em espécie mas de difícil penetrabilidade. A planície pampeana difere da que lhe segue para o interior – o Chaco ou Pantanal Matogrossense onde já surgem os “campos cerrados” de gramíneas se alterando com tufos florestais, em geral matas ciliares; comparativamente, são as pradarias lhaneras repetindo-se no hinterland da Bacia do Prata. A partir do Brasil, Uruguai e províncias arribenhas argentinas (Corrientes, Missiones, Entre Rios) o plano uniforme dos Pampas ainda com vegetação herbácea se apresenta com a ondulação das coxilhas. É, no entanto, ao sul, que os Pampas se constituem na zona pecuarista mais produtiva do continente até serem interrompidos pelos primeiros degraus do Planalto da Patagônia, que enlaça o litoral alto do Pacífico com o baixo do Atlântico. Da Patagônia Alta, desértica e fria, já não participa mais o Brasil como múltiplo vetor; mas é este o terminal da chamada diagonal semi-árida que, na massa continental sul-americana começa no litoral semi-árido do Nordeste Brasileiro, atravessando o nosso Centro-Oeste para penetrar no Chaco e contornar os Pampas. Com um espaço imenso e diversificado, as nossas diretrizes geopolíticas devem-se ater ao princípio básico de que, como múltiplo vetor, para dominá-lo efetivamente, temos que nos dedicar a obra integracionista para absorvermos nossas áreas geopolíticas neutras. Com regionalismos, mas sem cantonalismos constituído por três ilhas geoeconômicas tem o Brasil que integrar seu hinterland subdesenvolvido. Contamos para tal com o fenômeno da assimilação que caracterizou a colonização portuguesa, tornando o Brasil, no conjunto da América do Sul, o país mais mestiço. Vantagem destacada por Jacques Lambert: “se a América Andina é cada vez mais uma América Indígena e a América do Prata, cada vez mais uma América Européia, o Brasil constitui uma América Brasileira, de predominância européia acentuada, conquanto original”. 7. Conclusão A vocação geopolítica da América do Sul, no Hemisfério marítimo onde se posiciona, é bem marcada por sua geografia. A região de planície forma uma espécie de semicírculo com duas pontas centradas nos estuários do Prata/Amazonas. Os Andes na retaguarda, o Planalto das Guianas ao norte e o da Patagônia ao sul emolduram esse semicírculo, enquanto o Planalto Central ou Brasileiro se impõe como plataforma giratória entre as duas portas de entrada no continente. Pela disposição tanto a Bacia do Orenoco e, sobretudo, a Platina e Amazônica se constituem em área de atuação geopolítica e geoeconômica dentro da esfera exclusiva do Atlântico. Vocação atlântica ainda não explorada pelo Altiplano Boliviano a despeito de se manter hidrograficamente nessa vertente oceânica, por ter, como o Brasil, seu território integrado nas Bacias Amazônica e Platina. O Brasil com o Uruguai e Argentina, integrados na Região Natural Atlântica, se beneficiam do melhor posicionamento nesse oceano. Mas o Brasil, que alia o seu posicionamento à presença, é o único país do continente sul americano a contactar-se com as demais Regiões Naturais, como múltiplo vetor. - Com a Região do Caribe ou Marginal do Caribe (Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa) unindo as vertentes do Atlântico/Pacífico, mas se posicionando com o Canal do Panamá, no Atlântico Norte. Pelo fator colonização é a parte do continente sul-americano menos coesa com a presença da cultura hispânica, inglesa, holandesa e francesa. É na atualidade, a área mais vulnerável do continente, não só pela presença da vasta área geopolítica neutra da Amazônia mas, sobretudo, se levarmos em conta o estágio geopolítico dito “infantil” ainda de futuro incerto dos dois países e Departamento do Ultramar Francês. - Com a Região do Pacífico (Equador, Peru e Chile), países apoiados no conjunto geográfico Andes/ Pacífico. Dois fatores que contribuem para o maior isolamento desses países tanto no setor continental como para o resto do Mundo. Isolamento que só transcontinentais quer ferroviárias quer rodoviárias poderão minorizar. Levando-se em conta o fator colonização há coesão na área tanto pelo elemento espanhol quanto pela presença do autóctone inca. - Com a Região Interior (Bolívia e Paraguai) que na vivência de “países enclausurados” estão na contingência de seus vizinhos em busca de saídas marítimas. Em 1977, o Brasil firmou o Acordo de Cochabamba com a Bolívia para estender os trilhos da ferrovia Santos/Santa Cruz de la Sierra até esta cidade que já se conecta com Arica no Chile. Trata-se do pólo de atração leste que leva vantagem com o polo de atração Sul para Buenos Aires. Isto porque Santos se encontra a 1.600km de costa acima de Buenos Aires; enquanto a distância Santos/Santa Cruz de la Sierra é mais curta em 700km que a desta cidade boliviana até a capital argentina. Lá o polo de atração norte será importante, porém a longo prazo; a via deverá valer-se do Madeira-Mamoré, captando o transporte pelo Rio Grande, francamente navegável a partir de Cuatro Oyos localizada a 200km ao norte de Santa Cruz de la Sierra. Observando-se, que só quando forem suficientemente fortes os meios necessários para que se procedam as conexões, os pólos de atração da Bolívia estarão naturalmente vinculados ao Atlântico, tal como já ocorre com o Paraguai. Continente-ilha cercado por dois oceanos, sua marcante vocação geopolítica atlântica levaria os países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) a iniciarem o processo de integração que redundaria no MERCOSUL. Com a filiação do Chile e Bolívia em 1996 envolve essa zona de livre comércio todo o Cone Sul enlaçando o Atlântico/Pacífico. Aderindo a Venezuela estará dando o grande passo para a integração sul-americana, desfazendo-se o fato de estarem os países de costas uns para os outros, com seus ecúmenos estatais distanciados. A integração se faz via MERCOSUL que virou marca com logotipo para constar nos produtos e até passaporte dos cidadãos, mostrando que do setor econômico, passam os associados deste bloco à união cultural, que a identidade histórica irá cimentar. Lembrando que o MERCOSUL representa hoje o 5° maior Produto Interno Bruto (PIB) mundial, o Presidente Fernando Henrique Cardoso abriu, em dezembro de 1996 a 11ª Reunião de Cúpula em Fortaleza, no Ceará, onde entre medidas de teor econômico tratou-se: de maior intercâmbio entre universitários, troca de voluntários para ações sociais, o envio de “capacetes brancos” para missões de paz, aumento de linhas aéreas que operam na região e a construção de uma sede em Montevidéo. (Setembro de 1997) (*) Professora e Adjunta da Divisão de Assuntos Internacionais BIBLIOGRAFIA CASTRO, Therezinha de. “Nossa América: Geopolítica Comparada”. BIBLIEX. Rio: 1995. _____. América do Sul: Aspectos Fisiopolíticos em Confronto - A Defesa Nacional nº 696 - julho/ agosto de 1981. _____. Vocação Atlântica da América do Sul. A Defesa Nacional nº 681 - janeiro/fevereiro de 1979. CORREIA, Natália. Somos todos Hispanos - Idéias e Figuras - Caderno O Jornal. Lisboa: 1996. MALAGRIDA, D. Carlos Badia. El Factor Geográfico en la Política Sulamericana. Madrid: 1919 MARRERO, Levi. Viajemos por América. Havana: 1957. ANEXO 1 AMÉRICA DO SUL REG IÕES NATUR AIS P aís Capi tal Área (km2) P opul ação (1994) CAR IB E Colômbia Bogotá 1.141.749 34.000.000 Guiana Georgetown 214.969 748.000 Guiana Francesa Caiena 91.000 114.800 Suriname P aramaribo 163.265 404.000 Venezuela Caracas 912.050 20.600.000 P ACÍF ICO Chile Santiago 756.626 13.800.000 Equador Quito 272.000 11.300.000 Peru Lima 1.285.261 22.900.000 1.098.581 7.700.000 406.752 4.600.000 IN TERIOR Bolívia La P az e Sucre P araguai Assunção ATLÂN TICO Argentina Buenos Aires 2.766.889 33.500.000 Brasil Brasília 8.547.403 151.523.000 Uruguai M ontevidéo 176.215 3.100.000 F ONTE: ALM AN AQUE AB RIL (1995) OS 50 ANOS DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA Cláudio Vianna de Lima(*) As Escolas Militares, no Brasil, sempre sobressaíram, pela seriedade e eficiência. Já na década de 50, quando se iniciava a Escola Superior de Guerra, a nossa ESG, na tese de concurso com que conquistou a cadeira de Direito Processual, na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Paraná, o professor EGAS MONIZ DE ARAGÃO exaltava os estabelecimentos de ensino das Forças Armadas do Brasil, a que só podia ser nivelado, àquela época, o Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Os estabelecimentos de ensino civis, públicos e privados, se posicionaram muito abaixo, em matéria de resultados e rendimento. É interessante a lembrança do douto professor MONIZ DE ARAGÃO, porquanto foi um pioneiro das Escolas da Magistratura, que queria tivessem como paradigma as Escolas Militares. Estabeleceu o mencionado Mestre um como que teorema de fácil entendimento: a atividade judicial sempre foi a única a contar com um dispositivo, permanente, de autocorreção dos próprios serviços, qual é o sistema de recursos, por meio de que se reexaminavam as decisões, se corrigiam erros, se buscava melhorar a atuação da Justiça. Mas quantos erros escapavam? Não seria melhor prevenir, antes, do que corrigir, evitando-se os erros? Veio daí a idéia das Escolas da Magistratura para a preparação e formação de candidatos a magistrados e aperfeiçoamento destes profissionais. Interessante que, mais ou menos pela época em que se conheceram as idéias de MONIZ DE ARAGÃO, em São Paulo o Desembargador MOURA BITTENCOURT, apesar de apontado como defensor de idéias subversivas , desenvolvia um anteprojeto de lei, criando uma Escola de Magistratura, olhos postos, também, na alta qualidade dos estabelecimentos de ensino militares. O demorado introito se destina a ressaltar um dos aspectos mais relevantes da profícua influência da ESG: os seus reflexos no sistema de ensino do País. A parceria das Forças Armadas com o Ministério das Relações Exteriores, no planejamento e na execução do projeto da ESG, nunca foi devidamente aprofundado. Resultou, arrisca-se a afirmá-lo, da conjugação do idealismo dos “TENENTES” de 30, muitos exilados mundo afora, ou servindo como adidos militares fora do país, com a melancolia de diplomatas, de certa forma também “exilados” servidores da pátria no exterior, no comum das vezes saudosos do Brasil ou tristes com a comparação da vida e conquistas dos brasileiros na terra com os progressos das nações estrangeiras. Pode-se dizer, talvez, que militares e diplomatas, de um modo ou de outro, já antecipavam o fenômeno da “globalização” dos dias presentes. Esta a inspiração da ESG, por idealistas e patriotas, conscientes de que só com a educação se melhoram as condições de vida do país e de seu povo. Pode ser afirmado que a ESG atingiu as culminâncias da excelência, tendo como tema, programa, ideal, estratégia, o estudo do Brasil, e de seus problemas, com o propósito de preparar quem pudesse disseminar a sua filosofia em favor do País e de seu povo. Não se pense que a ESG se deixou ultrapassar pelo progresso. Ela fez o progresso! Das idéias, dos estudos, da preocupação com o Brasil. Sempre evoluiu, da ORDEM e PROGRESSO da Bandeira e das Armas da República, pregou a segurança e o desenvolvimento, como hoje discute a “estabilização” e o desapego aos teorismos econômicos. A ESG estudou e estuda a sério o Brasil! O predomínio do seu pensamento, do seu idealismo, do seu discreto quão eficiente apostolado, pregando o Brasil e pregando no Brasil, muito ainda se pode esperar. Criou-se com a ADESG (Associação dos Diplomados da ESG) e suas Delegacias espalhadas por todo o território nacional uma rede de verdadeiras “caixas de ressonância”, “estações repetidoras”, de um verdadeiro sistema ESG de amor e culto à Mãe Pátria, de perpetuação dos ideais esguianos. Cursos e seminários, Brasil afora, ainda que alheios e não vinculados à ESG, seguem seus métodos de estudo, afeiçoam-se a eles na forma, quando não aderem à forma e à substância de seus ensinamentos. Não é demais o registro de que a vitoriosa EMERJ, a famosa Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, em seus passados dias de excelência, foi feita à imagem e semelhança da ESG e das Escolas Militares. Quantos centros de estudos mais, quantos programas de seminários, simpósios, congresso, com o propósito firme de aprofundamento sério e responsável, de análise e exame consciente, nas sendas abertas pela ESG, e mesmo em caminhos outros, não se amoldam aos seus padrões de painéis e exposições, trabalhos em grupos e monografias especializadas? Sem dúvida a eclosão da ESG 50 anos passados, a sua atuação pioneira e exemplar neste tempo todo, permite que muito se espere da instituição. Mas, estes anos de conquistas e glórias, em função do Brasil, não podem deixar de ser condignamente homenageados, comemorados, exaltados e gravados na memória e na gratidão de todos os brasileiros. (*) Ex-Membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra, Ex-Diretor da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro Desembargador Aposentado REFLEXÕES SOBRE O MÉTODO DE PLANEJAMENTO DA AÇÃO POLÍTICA DA ESG Ivan Fialho(*) Introdução Apesar de a Doutrina de Ação Política e o Método para o Planejamento da Ação Política serem indissociáveis, a presente análise será centrada, predominantemente, no Método, na sua acepção de instrumento de planejamento estratégico governamen-tal. No entanto, dado o caráter simbiótico de ambos, nas referências ao Método, estará subentendida a Doutrina que o embasa. O enfoque será metodológico, isto é, pretendemos analisar o Método da ESG, sob uma abordagem também metodológica. 1. Evolução da Doutrina/Método da ESG A Doutrina/Método da ESG tem sido permanentemente atualizadas desde sua origem, o que foi amplamente pesquisado e consolidado por Antônio de Arruda1. Desse modo, modificações conceituais ou novos conceitos vêm sendo introduzidos sob nova visão política, ajustada a circunstâncias históricas distintas daquelas vigentes à época da criação da Escola. Essas mudanças, a propósito, são desconhecidas por muitos críticos, que se reportam, ainda, a uma concepção e imagem estereotipadas da ESG, associadas à “ideologia da segurança nacional”. No entanto, levantamos a premissa de que, apesar dessa significativa evolução do pensamento da ESG, o Método conserva e pressupõe, como referencial, um contexto virtual divorciado, substancialmente, do contexto real. Em termos epistemológicos, teríamos um paradigma formalmente lógico e coerente mas essencialmente desajustado à realidade, tornando-se, desse modo, limitado quanto aos aspectos empírico e operacional. Convém esclarecer que, ao argüir a dissociação entre os contexto formal e real , não deixamos de considerar a distinção entre os campos teórico e real nas ciências sociais e que as teorias apreen- 1 a.“Doutrina da ESG: Principais Alterações Ocorridas nas Últimas Quatro Décadas”. Desembargador Antonio de Arruda. Revista da Escola Superior de Guerra, Nr 12/89. b.“Doutrina e Método da ESG: Uma Visão Global”. Juacy da Silva. Revista da Escola Superior de Guerra, Nr 8/8. dem a realidade de forma seletiva e fragmentária .Apesar desta necessária relação, de natureza científica, entre o empírico e o abstrato, julgamos que, pelo caráter instrumental do Método (inclusive da Doutrina), o contexto formal não pode se afastar tanto do contexto real correspondente, sob pena de perda da validade e eficácia do Método, tornando-o utópico e por isso não operacional. O presente trabalho visa, justamente, propor uma alternativa metodológica para evitar os citados reflexos negativos sobre o Método, preservando, assim, sua validade. Procuraremos, em seguida, caracterizar sob determinados aspectos, essa dissociação entre os dois contextos, com base em alguns autores. 2. Contexto Real X Contexto Virtual Entendemos que, na elaboração e aplicação do Método, devem ser considerados três, elementos ou conjuntos de referência: o Estado, a Sociedade e as relações Estado-Sociedade. Nossa premissa básica é de que os pressupostos implícitos ou subentendidos do Método em relação a esses três conjuntos devem ser reexaminados quanto à sua validade. Ao apresentar certas características reais daqueles três conjuntos, visamos mostrar a possível incongruência entre essas características e os correspondentes pressupostos do Método .Mais uma vez lembramos que nossa abordagem é de natureza metodológica: analisar adequação de um paradigma (Método da ESG) à realidade.(A visão do Método como um paradigma será comentada no item 3). O Brasil, à semelhança de toda a América Latina, apresenta certas espeficidades culturais, políticas, jurídicas e sociais, configurando poliarquais peculiares, distintas daquelas que caracterizam os países desenvolvidos. Neste ponto, vamos nos reportar, de passagem, a trabalhos de Guilherme O’Donnell e Wanderley Guilherme dos Santos. O’Donnell2 analisa, do ponto de vista da sociologia política e legal, as novas democracias políticas surgidas após a queda de vários sistemas autoritários, utilizando a formulação clássica de Robert Dahl,em termos de poliarquias, procurando demonstrar a especificidade dos tipos de poliarquias de países da América Latina e de outros continentes. No caso particular da Argentina, Brasil e Peru, julga que esses países “não estão, apenas, atravessando uma crise social e econômica muito séria. Embora com ritmos e intensidades diferentes, esses países estão sofrendo também uma profunda crise de seus Estados. Essa crise existe nas três dimensões que acabo de discutir: do Estado, enquanto um conjunto de burocracias capaz de cumprir suas obrigações com eficiência razoável; da efetividade da sua lei; e da plausibilidade da afirmação de que os orgãos do Estado normalmente orientam suas decisões segundo alguma concepção do bem público”(grifos nossos). O autor considera o Brasil e o México casos de alta heterogeneidade territorial e funcional quanto ao escopo ou alcance do Estado e da ordem social que ele sustenta, após ressaltar que a suposição recorrente da teoria da democracia é de haver alto grau de homogeneidade naquelas dimensões. A Bolívia, o Equador e a Colômbia estariam próximos do polo de extrema heterogeneidade. O’Donnell enfatiza o domínio da lei como uma terceira dimensão da análise dos novos regimes democráticos. Estuda os fenômenos da privatização do poder público e da obliteração da legalidade. 2 “Sobre o Estado, a Democratização e Alguns Problemas Conceituais – Uma Visão Latino-Americana, com uma Rápida Olhada em Alguns Países Pós – Comunistas.” Guillermo O’Donnell . Revista Novos Estudos CEBRAP, Nr 36 , JUL/93. Neste caso, refere-se às regiões onde “os poderes locais (tanto os formais, quanto os de fato)estabelecem circuitos de poder que operam de acordo com regras inconscientes, quando não antagônicas, com a lei que supostamente regula o território nacional”. Acrescenta que a obliteração da legalidade retira dos poderes e das agências estatais, a dimensão pública, legal, sem a qual o Estado nacional e a ordem que supostamente ele sustenta, esvaecem. Cita partes do Nordeste e toda a Amazônia no Brasil, as terras altas no Peru e várias províncias no Centro e no Nordeste da Argentina, como exemplos de “evaporação da dimensão pública do Estado”. Ao classificar os tipos de democracias, de acordo com as dimensões acima citadas, O’Donnell faz um mapeamento cromático dos países, no qual as áreas marrons “designariam” aquelas onde há um nível muito baixo ou nulo da presença do Estado (em termos de um conjunto de burocracias razoavelmente eficazes e da efetividade da legalidade devidamente sancionada), seja funcionalmente ou territorialmente. Em seguida classifica o Brasil e o Peru como países dominados pelas áreas ou manchas marrons. O’Donnell com base nesse exercício de mapeamento, questiona que tipo de Estado é o daqueles países onde predominam as áreas marrons; que tipo de regime democrático pode-se estabelecer sobre essa heterogeneidade e até que ponto podemos extrapolar para esses casos, teorias do Estado e da Democracia que supõem países muito mais homogêneos. (grifos nossos) Trata-se de questionamentos que vão ao encontro de nossa premissa de que o contexto brasileiro, à semelhança dos demais países da América Latina, apresenta características peculiares bastante distintas, qualitativamente, daquelas pressupostas no Método de Planejamento da Ação Política. As conseqüências metodológicas dessa insatisfatória correspondência serão comentadas posteriormente. Wanderley Guilherme dos Santos3 analisa a crise institucional latino-americana, em particular a brasileira, cuja essência “define-se pelo fato de que o processo político real deixou para trás e muito longe, as instituições criadas há cinqüenta anos.” No entanto, encara com otimismo a evolução histórica futura, uma vez que se teria criado a oportunidade “de que o processo substantivo e o processo político-formal venham a encontrar-se e a coligar-se fortemente.” Prosseguindo, trata das dimensões do Estado, das particularidades da poliarquia brasileira e dos reflexos sobre a governabilidade. Considera que a “cultura cívica que se estrutura extra-limites institucionais da poliarquia e cuja expectativa quanto à eficácia elementar do Estado é próxima a zero, pode muito bem ser um dos elementos cruciais para compreensão dos sucessivos fracassos de políticas e planos governamentais”. Desse modo, o sucesso das políticas governamentais não dependeria, apenas, de sua racionalidade técnica, devendo ser examinada a adequação “entre suas expectativas sociais implícitas e a efetiva distribuição de valores e atitudes e suas respectivas intensidades pela população”. W. G. dos Santos procura mostrar as profundas diferenças entre o formal e o real ou substantivo na poliarquia brasileira, afirmando que as dinâmicas do mundo real geram uma “dicotomia institucional, passando a existir outro país, embutido no primeiro”.(grifos nossos). O autor sugere outro conceito – híbrido institucional – que “associa uma morfologia poliárquica excessivamente legisladora e regulatória a um hobbesianismo social pré-participatório e estatofóbico”. Prosseguindo, vamos examinar mais especialmente, o Estado, que ocupa posição crucial no Método, como “centro do processo decisório nacional”, a “máxima instituição da Expressão Política de um dado Poder Nacional”, conforme consta na Doutrina da ESG. Luis Carlos Bresser Pereira4 analisa a “crise do Estado, uma crise fiscal, uma crise do modo de intervenção do Estado e da forma burocrática de administrá-lo” em relação à América Latina, nos 3 4 “Razões da Desordem”. Wanderley Guilherme dos Santos. Editora Rocco,1993. “Um Novo Estado para a América Latina”. Luis Carlos Bresser Pereira. Revista Novos Estudos CEBRAP, Nr 50, MAR/98. anos 80. Urge, assim, reconstruir o Estado, o “que significa superação da crise fiscal, redefinição de formas de intervenção no econômico e no social e reforma da administração pública”, num contexto do “ capitalismo globalizado do Sec. XXI. Bresser Pereira defende, em substituição ao Estado Desenvol-vimentista (forma do Estado Social-Burocrático) dos países subdesenvovidos, um novo Estado Social-Liberal. Este “será financiador, ao invés de produtor dos serviços sociais não-exclusivos do Estado (educação, saúde, cultura, proteção ao meio ambiente e desenvolvimento científico-tecnológico). Será comple-mentar ao mercado e não substituto do mercado”. Outro autor – Frederico Lustosa Costa5 – julga que “ um programa de reforma do Estado deveria começar pela discussão das grandes missões do Estado Moderno, de sorte a precisar o alcance de sua ação legítima”. A propósito, o referido autor conduz um projeto na Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP) , cujo tema é: “ A Reforma do Estado do ponto de vista do desenvolvimento da poliarquia brasileira e de seus impactos sobre as relações Estado – Sociedade”. O projeto integra o Programa de Estudos e Pesquisas de Reforma do Estado e Governança, da EBAP. O próprio Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso6, também julga que “a primeira tarefa que temos pela frente é a reconstrução do Estado”. Considera-o falido, tendo em vista que “por causa da crise fiscal, o Estado passou a não servir mais, nem às classes dominantes. Passou a ser um corpo doente.” Em outra passagem, afirma que “ele (o Estado) sempre foi incapaz de oferecer bem – estar à Sociedade”. Aborda ainda, a questão da privatização do Estado brasileiro, onde o setor privado se incrustou, um Estado “impregnado de interesses privados”. Ao tratar da reconstrução do Estado, propõe que ela seja encarada a partir de “duas vertentes fundamentais: uma para permitir o crescimento da economia e outra para atender as camadas mais pobres”. Acrescenta que são duas vertentes aparentemente contraditórias. Ao avaliar a evolução do Estado, afirma que “chegou-se a um ponto em que o que se tinha, era um monstrengo burocrático, incapaz de decidir em termos de uma estratégia, que só se movimentava em função das pressões”. (grifos nossos) A respeito da efetividade das políticas públicas, F. H. Cardoso afirma que “política é o caminho, não é o objetivo. É preciso ter objetivo, mas o político não é só o que tem objetivo, é quem constrói o caminho”. Ora, esse Estado real, contrastando flagrantemente com o Estado virtual do Método da ESG, sendo incapaz de cumprir as funções públicas neste previstas, não pode servir de referencial para um paradigma, onde ocupa, justamente, posição central, a não ser que algumas ressalvas metodológicas sejam explicitadas. Procuramos, até agora, caracterizar, sinteticamente, as peculiaridades do Estado, da Sociedade e da interação Estado – Sociedade, no Brasil e que constituem o lado substantivo do Método. No entanto, como não é nosso propósito analisar esses aspectos, passaremos, agora, a abordar a questão metodológica, já ligeiramente esboçada e que representa o enfoque principal deste trabalho. 3. Questão Metodológica a) O Método da ESG como Paradigma 5 6 “A Reforma do Estado do Ponto de Vista do Desenvolvimento da Poliarquia Brasileira e de seus Impactos Sobre as Relações Estado-Sociedade .” Frederico Lustosa da Costa. Revista de Administração Pública, Nr.3, MAI/JUN/98. “O Presidente Segundo o Sociólogo”. Entrevista do Presidente Fernando Henrique Cardoso a Romeu Pompeu de Toledo. Editora Companhia de Letras, 1998. OBS: Este livro foi comentado por Celso Lafer, no artigo – “ FHC, Presidente e Intelectual”, publicado no jornal “O Estado de São Paulo”. de 10/10/98. A caracterização do Método como um paradigma, se baseia na visão da Sociologia de Robert Merton7, que por sua vez se reporta a Thomas Kuhn8. Desse modo, paradigmas são vistos como conjuntos mais ou menos coerentes de suposições ou de imagens; uma constelação integrada de crenças, valores, técnicas, etc, compartilhados pelos membros de uma comunidade; um modelo ou padrão aceito. Aproveitamos a referência à obra de Thomas Kuhn, para alertar que, em relação ao Método da ESG, não estamos propugnando nenhuma “revolução científica”, isto é, a criação de novo paradigma, como desfecho de uma “crise” que tenha tornado insustentável o paradigma que vem sendo utilizado. Ao contrário, o Método é visto como “ciência normal”, que vem-se desenvolvendo por incrementos cumulativos. Nosso enfoque tem certa analogia com a crítica à teoria democrática de O’Donnell9, quando afirma que “a teoria democrática carregou consigo demasiado pressupostos não examinados, refletindo, ao fazê-lo, condições prevalescentes durante o surgimento e a institucionalização da democracia no mundo altamente desenvolvido”. Propõe, em conseqüência, que “alguns desses pressupostos precisam ser explicitados e submetidos a exame crítico se quisermos chegar a uma teoria com escopo e fundamento empírico”.(grifos nossos) b) O Método da ESG como ”idealtipo” Se o Método , na sua estrutura lógica, formalismo e racionalidade técnica, se baseia num contexto, no campo abstrato, tão qualitativamente distinto do contexto real; se o Método ainda, no seu aspecto empírico e operacional, visa constituir-se num instrumento de ação, para transformar essa realidade, logo pode-se deduzir haver uma lacuna metodológica prejudicando sua validade. Pretendemos justamente, propor uma alternativa para superar essa lacuna. Sugerimos, portanto, que o Método seja encarado, de certa forma, como um “idealtipo” na acepção de Max Weber , segundo interpretação de Julien Freund10. O idealtipo pode ser compreendido como “uma acentua-ção ou amplificação unilateral de pontos de vista que reúne num quadro de pensamento homogêneo, traços e características de uma realidade singular. A idealidade desta construção conceitual se exprime no fato de que ela é uma utopia, uma racionalização utópica, que nunca se encontra ou só é raramente encontrada na sua pureza, na realidade empírica e concreta”.(grifos nossos). Julgamos que o trecho acima, especialmente a parte sublinhada, se aplica ao Método da ESG, conforme procuramos demonstrar na apresentação das peculiaridades da poliarquia brasileira, onde destacamos a visão real do Estado. Neste caso, o Método se constituiria num “conjunto coerente e não contraditório”, representando 7 8 9 10 “Sociologia – Teoria e Estrutura.” Robert K. Merton. Editora Mestre Jou, 1970. Merton faz um alerta para evitar a utilização distorcida de paradigmas na Sociologia: “Equipado com o paradigma, o sociólogo, pode vir a cerrar os olhos aos dados estratégicos não expressamente trazidos ao paradigma. Ele pode transformar o paradigma, de binóculo sociológico em antolho sociológico. O abuso resulta em considerar como absoluto o paradigma, ao invés de usá-lo em tentativas, como ponto de partida.”(Pag 83.) “The Structure Of Scientific Revolutions.” Thomas S.Kuhn, 1962, Edição de 1970.University Of Chicago Press. “Poliarquias e a (In) Efetividade da Lei na América Latina.” Guillermo O’Donnell. Revista Novos Estudos CEBRAP, Nr 51, JUL/98. a. “Sociologia de Max Weber” Julien Freund. Editora Forense,1970. b. Reportamo-nos também a Florestan Fernandes, em “ Fundamentos Empíricos da Explicação Sociologica.”Companhia Editora Nacional,1967. O autor trancreve um trecho de Weber sobre tipo ideal: “Um tipo ideal é formado pela acentuação unilateral de um ou mais pontos de vista e pela síntese de um grande número de fenômenos concretos individuais difusos, discretos, mais ou menos presentes e ocasionalmente ausentes, os quais são arranjados de acordo com os pontos de vista unilateralmente acentuados, em uma construção analítica unificada. Em sua pureza conceitual, essa construção mental não pode ser encontrada , na realidade, em nenhuma parte. É uma utopia”. Florestan Fernandes, citando Weber, considera que “seria prejudicial e ilógico, confundir o tipo ideal e a realidade.” um desenho racional, isto é a estrutura lógica do planejamento da ação política, independente-mente das flutuações do real. (Esta passagem foi por nós adaptada de um trecho original de Weber, referente à doutrina capitalista). Freund considera que “o idealtipo não precisa identificar-se com a realidade, no sentido em que exprimiria a verdade “autêntica” desta. Ao contrário, ele nos afasta dela por sua própria irrealidade, para melhor dominá-la intelectual e cientificamente, embora de maneira necessariamente fragmentária. Essa analogia do Modelo como um idealtipo é parcial, visto que divergem quanto aos valores. Desse modo, Freund afirma que “ o idealtipo nada tem de exemplar e não se deixa confundir com um modelo, no sentido axiológico, nem como uma prática para ação. Sua única perfeição é de ordem lógica e não moral; ele exclui toda avaliação” - o oposto do Método. Mantemos, no entanto, o paralelo acima proposto, pelas razões apresentadas, considerando, ainda, que o Método, como idealtipo, permitiria indicar até que ponto a realidade de um planejamento concreto da ação política se afasta do quadro de pensamento homogêneo, lógico e racional. O Modelo, como idealtipo, serviria, “por assim dizer, como um instrumento de medida”. Em outras palavras, o Método para o Planejamento da Ação Política como um instrumento lógico que orienta e sistematiza de forma racional, o processo de tomada de decisões do Governo Federal, pode ser visto como um tipo ideal, na medida em que, certas variáveis dos processos concretos são postas em evidência pelo fato de serem enfatizadas. Nem todo Método de planejamento governamental possuirá o conjunto das caracteríticas incorporadas ao tipo ideal do Método da ESG. Este poderá ser usado como uma medida que nos possibilitaria determinar em que aspecto particular ou em que grau, um planejamento governamental efetivo é racional e permite otimizar as macrodecisões sociais11. (As expressões idealtipo e tipo ideal são equivalentes e empregadas por diferentes autores). c) Planejamento e Método Procuraremos agora extrair dos Fundamentos Doutrinários da ESG, pontos de interesse para a presente discussão.(As citações se referem à Parte III da edição de 1998). O caráter operacional do Método é destacado, uma vez que seu objetivo é “a busca de maior racionalidade na ação política”. Representa “um processo de otimização de decisões”, pressupondo o “conhecimento da realidade na qual se operam essas decisões, em particular das condições da sua factibilidade”. Por outro lado, na fase política, a avaliação da conjuntura é uma atividade permanente, voltada para análise de “circunstância novas nos âmbitos interno e externo”, uma vez que a “realidade nacional é complexa e dinâmica e interage continuamente com o quadro internacional, igualmente cambiante”. Na Seção I/Parte 1, destaca-se que a Doutrina deve estar “em consonância com a realidade”. Tem caráter instrumental e compromisso com a realidade, além de se constituir num sistema do dever ser . A permanente renovação da Doutrina/Método, em consonância com a realidade , poderia indicar que as peculiaridades da poliarquia brasileira, do Estado e das relações Estado-Sociedade já vêm sendo consideradas e avaliadas, conforme previsto neste trabalho. No entanto, como já salientamos, essa revisão e atualização têm tido caráter incremental, isto é, aperfeiçoamentos cumulativos na estru11 Este trecho foi por nós adaptado , de uma análise crítica do modelo burocrático de Weber, como u m tipo ideal, feita por Alvin Gouldner , em “Studies in Leadership.” Harper and Bros.,1950, citado por Edmundo Campos em “Sociologia da Burocracia.” Zahar Editores, 1966. tura lógica e conceitual da Doutrina/Método, cujos pressupostos continuam configurando um contexto virtual de conteúdo profundamente distinto do contexto real a que se refere, como procuramos mostrar. Em conseqüência, propomos, visando preservar a validade e eficácia do Método, que ele seja mantido como sistema lógico voltado para a racionalização política, mas com a ressalva metodológica de ter caráter ideal típico, a ser utilizado, didaticamente, como um instrumento para análise e solução dos problemas nacionais e para avaliação de planejamentos governamentais concretos. A propósito, lembramos que, quanto à primeira utilização, estaríamos sendo fieis ao objetivo original da ESG, no que se refere aos problemas nacionais, o qual não seria ensinar a solução desses problemas e sim, estabelecer e difundir um método de solução12. (grifos nossos) Não resta dúvida que a revisão e atualização de um lado e a avaliação da conjuntura de outro, representam processos que aproximam a Doutrina/Método da realidade, aumentando, em conseqüência, sua validade empírica .Desse modo, a maior ênfase dada ao desenvolvimento, em relação à segurança; a reconceitualização da segurança nacional; o destaque para a justiça social ; a mudança de enfoque do conflito leste x oeste, para norte x sul; a adoção do conceito de hipótese de conflito e a superação do Conceito Estratégico Nacional, são significativos exemplos dessa revisão e atualização. Julgamos no entanto, que esse processo de atualização não é suficiente para superar a lacuna metodológica aqui levantada: um paradigma de caráter empírico e operacional, associado ao planejamento, visando racionalizar a ação política para transformar uma realidade que representa, na verdade, um outro mundo, essencialmente distinto do idealizado. 4. Conclusão A Doutrina/Método da ESG, constitui-se num sistema conceitual, lógico, coerente e integrado, que vem sendo atualizado e aperfeiçoado há cinqüenta anos. A ESG, por outro lado, é uma instituição de estudos estratégicos de elevado prestígio, não só nacional, mas internacional. Nosso propósito é justamente colaborar no sentido de reforçar esses dois vetores. Restringimo-nos ao campo metodológico, deixando de discutir aspectos substantivos da Doutrina/Método .Julgamos no entanto que , alguns pontos merecem reexame como, por exemplo, o conceito de Hipóteses de Conflito Armado como condicionantes do estabelecimento dos ONA e OG, o binômio segurança – desenvolvimento; a questão da concepção do Bem Comum e a distinção entre doutrina e ideologia. A presente proposta visa, tão somente, qualificar a aplicação da Doutrina/Método, dando-lhes maior suporte metodológico e, assim, maior validade empírica e operacional, por meio do conceito de idealtipo. (*) Adjunto da Divisão de Assuntos Militares 12 “Princípios Fundamentais da Escola Superior de Guerra”, documento datado de 1949, do então Ten Cel Idalio Sardenberg. Revista da Escola Superior de Guerra, Nr 8/87. CIMEIRA NO RIO DE JANEIRO CEE (*) Relações Mercosul – União Européia O presente trabalho refere-se à Cimeira do Rio, de junho corrente, cuja agenda abriga temas de largo espectro, inclusive de ordem econômica. Sem desmerecer qualquer dos itens do temário elaborado para o encontro, o CEE fixou-se no assunto que, por sua expressividade, deverá destacar-se nos trabalhos respectivos – relacionamentro econômico e comercial entre o Mercosul e a UE. A razão maior dessa escolha ressalta do próprio documento, que tem a seguinte estrutura: Base de pressuposto estratégicos A conjuntura mundial Visões regionais a) a ótica do Mercosul b) a ótica européia O Acordo-Quadro e seu desdobramento Negociações prioritárias Negociações pontuais como estímulo de curto prazo Temas Subsidiários I. Base de Pressuposto Estratégico A assimetria que sempre caracterizou as relações entre países, blocos e hemisférios – hoje imersos num ambiente de mercados globais – apresenta uma racionalidade própria, que influi, quando não normaliza, uma racionalidade de aproximação e parcerias, de políticas e estratégias de interesse e necessidade dos diversos setores envolvidos. A primeira conseqüência dessa racionalidade recente será a abrangência e a escala de problemas e condições inerentes a tais políticas e estratégias, que hoje se alçam um nível regional e entre blocos, quando não universal em seus custos, retornos e externalidades. Instaura-se, em conseqüência, a consciência de que a racionalidade de políticas e estruturas econômicas nesse ambiente de fim de milênio pressupõe o entrelaçamento de interesses, vocações e vinculações econômicas, cuja maximização impõe novas morfologias e ritmos de agilização e flexibilidade no desenho de novas composições de interesse. Esta será uma das direções apontadas pelo mundo pós-1989, que parece impor a lógica de êxito econômico. É impensável hoje às nações deixar de contemplar, de um lado, o vasto campo de oportunidades que se apresentam às Nações-Estado, de outro a ameaça à sua existência tradicional: como culturas, como economias individuais, como Estados,, como soberanias. Aos propositores de políticas públicas não pode passar despercebido que a instância do mercado – com toda a sua indesejável neutralidade social e política – passou a constituir a expressão de um modo de produção, de vigência e irresistível tendência universalizante, o que repercute significativa e diretamente nas relações do homem com a natureza, dos homens entre si, em sociedade e nos exercício do poder político. Os ajustes necessários aos países periféricos para fazer frente às ameaças de uma instância aética, o mercado, sempre se bastaram na ação do Estado, percebido no consciente coletivo como uma espécie de contraponto bondoso às forças cegas do mercado e à ação indiscriminada e apátrida da mão invisível. O Estado representaria, como sempre representou, uma dimensão ética e normalizadora, capaz de produzir ou criar condições para a liberdade de suas respectivas nações e de seus cidadãos, como já se disse: da felicidade socialmente organizada. Nascia a idéia de que só o Estado seria capaz de colocar freio no mercado, de domar a besta fera antevista como apocalipse, só evitável pela ação política individual estatal. No caso particular dos países da América Latina, o traço distintivo e agravador das economias de hoje apareceu no desenvolvimento de um capitalismo inicial, que coexistiu com o braço escravo, coexistência que constitui sociedade de economia incoerente e anacrônica, em que o mercado não funcionou, recalcado ainda pelas forças de constrição do patrimonialismo e do clientelismo que as nações mais fortes outras não conheceram. Formou-se o capitalismo da Latino-América, criaram-se as respectivas burguesias e classes trabalhadoras, mas a formação sócio-política dessas categorias teve peculiaridades que tornariam pouco úteis as analogias formais com o que se passava nos grandes centros do mundo. Em síntese, em nossos países periféricos, já na sua experiência do mundo moderno, a relação Estado-sociedade se deu em formas distintas das que ocorreram em países tipicamente capitalistas e já aculturados nas práticas e lógicas do mercado. Entre nós, latinos-americanos, e por razão históricas, adotou-se, mais recentemente, a noção de sociedade civil e de comunidade, que hoje se expressam numa postura antiEstado, postura que se acasalou com a ideologia neoliberal. O signo dessa modernidade é a defesa a crítica da lógica exclusiva de mercado, sem se considerar o preço que as camadas mais desfavorecidas pagam por sua exclusão. Dissemina-se, ao mesmo tempo, todo um desencanto pela política, cuja opção de contrapartida, insinua-se, é a ideologia neoliberal. O mercado resolve conflitos; a política é inerentemente corrupta. Esta lógica, nascida da ideologia liberal, ameaça a constatação de que, se não houver uma conjugação da política com o interesse de nação e com a produção de prosperidade, reduz-se a possibilidades de auto-sustentação de nossa economia e, até, da democracia de nossos países. Hoje, imersos num universo da racionalidade conduzido pelos mercados globais, os países em desenvolvimento se devem a formulação da política e estratégia – de definição de objetivos e de formatações instrumentais que assegurem à nação: - a superação dos sérios desequilíbrios macro-econômicos e de suas correlações, de maneira permanente; - a modernização institucional e estrutural de seus aparelhos estatais, vale dizer, a estabilidade política em regime de democracia e uma atuação dinâmica e flexível na produção e distribuição de bens públicos; - a manutenção da identidade nacional e da capacidade de definirmos futuros para a nossa pátria, que tenham o nosso aval coletivo. Trata-se, em síntese, para nações que visem ao desenvolvimento, de reconhecer que o funcionamento de mercados globais, cujo norte exclusivo é a maximização de lucros, se diferencia do Estado, também no que este se direciona para os campos de territorialidade, da soberania, e que a ameaça à autonomia da ação estatal tem de ser compensada por um aproveitamento da racionalidade da economia global, para que se gerem benefícios aos seus três campos fundamentais de competência. Ao invés de nos submetermos a apenas responder, retardada e passivamente, às pressões de sujeição aos mercados globais, é mais inteligente que não percamos iniciativa e agilidade de fazer prevalecer interesses nossos, particularmente nos setores de produção, comércio e capital. A experiência bem sucedida do Mercosul parece comprovar, sobejamente, tais pressupostos, malgrado naturais problemas de crescimento, de resto experimentados por parcerias similares, e a União Européia é o exemplo mais disponível. O desdobramento do modelo Mercosul de agregação de interesse do subcontinente latino americano à União Européia, no campo da produção, comércio e de capitais, é proposta que se inscreve na agenda de nossas economias e de um desenvolvimento isento de imposições unilaterais. Trata-se de definir um acordo entre dois blocos que, regulando e, sobretudo, agilizando o estabelecimento de políticas e estratégias, opere, no interesse de ambos, o estabelecimento operacional de simetrias e contrapartidas. Trata-se inicialmente de que, embasado por decisão política, o acordo realize um diagnóstico de forças e fragilizações, de ameaças e estímulos a um grande processo de articulação dos dois blocos, em favor de relações de comércio em áreas definidas, segundo normas e processos de comum acordo. Trata-se de gerar uma capacitação comum de aproveitamento das energias potenciais, visando: - racionalizar iniciativas; - concentrar interesses; - organizar uma estrutura ágil e capaz, não só de prever e monitorar conjunturas econômicas, mas, principalmente, de prever e resolver conflitos ou neutralizar sua ameaça. Estamos, latinos-americanos, diante da oportunidade de organizar um novo paradigma de copmpartilhamento econômico e cultural maximizado e de prever, monitorar e, no limite, resolver conflitos de interesse, cujo exercício gerará uma cultura comum de relações comerciais biregionais regidas pela dinâmica de mercados globais e sem perdas do papel que cabe ao Estado, no que respeita à territorialidade, à sociedade e à soberania. II. A Conjuntura Mundial A conjuntura mundial atravessa fase de sinais preocupantes. A economia norte-americana ostenta, ainda, significativa euforia, com taxa de crescimento alentada, baixo nível de inflação e uma situação de emprego considerada excepcional, porque bem inferior à taxa histórica – 6% – tida até então como limite inferior, abaixo do qual adviriam tendências inflacionárias. Por outro lado, isso descontado, a conjuntura internacional revela inclinação depressiva, com modesto crescimento do produto e elevada taxa de desemprego na Europa, salvo no Reino Unido, ainda com situação razoável nesse setor. No Japão, a recessão é acentuada, resistindo a todas as medidas oficiais compensatórias. Praticamente todo o Sudeste asiático está com a economia fortemente abalada, depois de choques sucessivos. Exceção a esse panorama é a economia chinesa, mas cujo espectro vem exigindo cuidados especiais do respectivo governo. Na América Latina, as tendências econômicas são de natureza claramente recessiva, sendo que, no Mercosul, depois de um período animador de crescimento, seus dois principais Estados componentes – Brasil e Argentina – enfrentam dificuldades para evitar recuo econômico de cunho sistêmico. Esse quadro está despertando temores em todas as latitudes, em função da rígida dependência dos recordes da economia norte-americana, animada por fenômenos que podem mudar de sinal rapidamente, como a elevada taxa de consumo, função do efeito-riqueza, a cobertura financeira externa dos crescentes déficits da balança comercial e a baixa elasticidade da oferta de forças-detrabalho.Qualquer recuo na economia dos EUA, dada sua dimensão, pode provocar um movimento recessivo mundial de caráter fortemente depressivo, porque de efeitos cumulativos no tempo e no espaço econômico. As preocupações têm crescido ao longo das relações internacionais, não só em razão das perspectivas do cenário econômico em si, como pela complexidade a que atingiu o mercado financeiro como um todo. Há sensível descasamento entre o produto econômico e a expressão financeira, donde um movimento acentuado de operações desse último tipo não amparadas em lastro social. O sentido de globalização, ainda impreciso em sua substância, mas gerando forte desregulação, sobretudo no setor cambial, trouxe novos elementos de ação perturbadora, tanto mais efetivos quanto os Estados Nacionais têm sofrido contestação em sua presença normativa de natureza disciplinar. Os abalos têm sido de intensidade remarcável e repercussões encadeadas no cenário econômico mundial. Conseqüência de toda essa evolução, a busca de novos módulos de comércio e de relacionamento econômico tem revelado interesses crescentes como tentativa de contornar obstáculos à expansão das trocas internacionais, assim afastando, ou pelo menos minorando, as tendências recessivas acima registradas. O encontro da Cimeira tem essa gênese, que inspirou, aliás, o Acordo-quadro de 95, além de corresponder ao natural interesse revelado pelos países participantes, de estreitar seu relacionamento no campo econômico, mas também no político e no cultural. Nesse encontro, adquirem naturalmente expressão maior os contatos econômicos entre a União Européia e o Mercosul, dois blocos de aglutinação, que podem oferecer reciprocamente oportunidades assinalá-veis e progresso em todos os sentidos. Olhando o evento sob essa ótica, que se diria simultaneamente global e regional, cabem as considerações e sugestões que seguem, mais ligadas aos aspectos econômicos das relações entre os dois blocos, o que, por sinal, representará apreciável grau de conscientização, de ambos os lados, quanto à sensibilidade do panorama econômico-financeiro internacional. A esse respeito, aliás, o Diretor-Gerente do FMI, Sr. Michel Camdessus, vem lançar um quase veemente apelo à cooperação entre as grandes economias, como condição para manter-se a estabilidade internacional. O encontro do Rio poderá representar um passo importante na cooperação entre os dois blocos, com reflexos sobre outras iniciativas, com a finalidade maior de prevenir crises e promover o crescimento. Ainda este ano, a Organização Mundial de Comércio realizará uma rodada de negociações tarifárias mais vinculadas a produtos agrícolas. Mas prevê para um ou dois anos uma rodada global de negociações; aí, diz-se, de natureza completa, incluindo serviços de todos os tipos. Também estes são eventos que buscam não só incrementar o comércio internacional, como prevenir, tanto quanto possível, o advento de crises, pelo menos as de grande dimensão e poder de contaminação. Visões Regionais a) A ótica do Mercosul Na Conferência de cúpula América Latina – União Européia, será discutido o protecionismo comercial praticado pela União Européia e seu possível desmonte. Como a maioria dos membros da UE quer evitar a influência excessiva dos EUA na América Latina e deseja estabelecer, o mais rápido possível, uma área de livre comércio com o Mercosul, os países deste bloco ganham fôlego na batalha pelo fim das barreiras agrícolas, ao acenar com uma data mais próxima do que a inicialmente projetada. Os diplomatas sul-americanos querem reduções progressivas das tarifas, já no ano 2000. A área de livre comércio é mais um lance na disputa por zonas de influência entre americanos e europeus. Os EUA querem, desde 95, acelerar a instalação da ALCA, mas a diplomacia brasileira resiste, temendo uma dependência excessiva e incoveniente. O Mercosul já encaminhou aos 15 países que compõem a União Européia (UE) a proposta de instalação de uma zona de livre comércio entre as duas regiões, em 2005. Se houver consenso, 2005 passa a ser um ano-chave para a política externa do Brasil, já que, no mesmo ano, está prevista a instalação da zona de livre comércio das Américas, a ALCA. Será também um êxito da diplomacia brasileira, que idealizou a liberação comercial com a Europa. A decisão, contudo, esbarra na resistência de alguns países da UE, em especial a França, que temem discutir o assunto para adiar o fim do protencionismo agrícola. É uma polêmica interna: a Alemanha, que detém um terço do orçamento do bloco, quer pôr fim ao excesso de subsídios agrícolas, que consomem 7% do PIB da União, ou US$ 600 bilhões. Em escala global, a abrasiva matéria será tratada na III Conferência Ministerial da Organização Mundial de Comércio (OMC), agendada de 30 de novembro a 03 de dezembro, em Seattle, nos Estados Unidos da América. Chefes de Estado da América Latina, reunidos no final de maio, na cidade do México, pelo chamado Grupo do Rio, assinalaram quem vão exigir da União Européia a discussão de um projeto de “abertura integral”. Ou seja, derrubada das barreiras para todos os mercados em bloco, incluindo o de serviços. Para entrar na União Européia, eis os produtos mais tarifados: - Carne bovina ...................................... 87,7% Cereais 87,7% Açúcar 61,8% Tabaco ou fumo.................................. 58,8% Latícinios ........................................... 57,7% No setor industrial, a variação é entre 20% e 30%. A Alemanha, atualmente na Presidência rotativa da Comissão Executiva da UE, tem uma proposta intermediária: iniciar as conversações com o Mercosul com temário restrito a barreiras nãotarifárias e regulamentos de higiene, ampliando-as para incluir a agricultura em dezembro de 2000. O objetivo da Alemanha é fazer coincidir o acordo da UE com o Mercosul e o fim da Rodada do Milênio (III Conferência da OMC). Com bom senso e competência diplomática, o fortalecimento das relações comerciais entre o Mercosul e a UE parece viável e útil para ambos os blocos, sem que atritos maiores se estabeleçam com os EUA. Uma maior aproximação comercial com a América Latina não tem como objetivo criar qualquer clima de confronto. Ela apenas equilibraria as pressões e fortaleceria o multilateralismo, já que as relações econômicas entre ambos os blocos e o Nafta continuarão fortemente dinâmicas, em função da própria lógica dos mercados globais e das corporações transnacionais, claramente lideradas pelos EUA. Temos, pois, um momento único – e talvez derradeiro – para estabelecer um vínculo mais estrutural e dinâmico entre os blocos. Certamente ambos terão a ganhar. Do ângulo latino-americano, não existem laivos de disputa, mas o império do posicionamento de um conjunto de países, retardatários alguns, emergentes outros, assoberbados por questões estruturais internas e pela pressão de posições relativas desfavoráveis no regime de trocas comerciais e financeiras com o denominado Primeiro Mundo. Posições essas que se tornaram mais débeis com a figura da globalização e com a forte desregulação que dela emergiu. A América Latina como um todo, mas particular-mente os países do Mercosul, precisam de amplo alargamento de mercado e a UE é o passo mais confiável nesse sentido. Tanto mais quanto é possível que o projeto ALCA venha a ser ativado pelo Governo norte-americano, ao obter do Congresso daquele país o dispositivo conhecido como fast-track. A existência de compromissos mais ou menos semelhantes com a UE facilitariam a posição negociadora do Mercosul, em especial do Brasil, por razões óbvias. E concederia certa calma operacional na implemen-tação do recente ato do Brasil em relação a países do Pacto Andino, um passo a mais para a proposição brasileira de criar-se a ALCSA ou Área de Livre Comércio da América do Sul. Não há dúvida de que hoje os interesses do Brasil se fundem com os do Mercosul. Isso, porém, não ilude, antes reforça, sua posição de vanguarda no impulsionar o mercado regional, no ampliá-lo geográfica e economica-mente e na busca, ao longo da economia mundial, de aderências e associações que preservem e aumentem seu poder indutor e de realizações. As potencialidades do País e seu já apreciável mercado interno são alavancas de grande expressão, atuando não só em benefício do bloco regional a que pertence como fonte de atração a interesses extra-regionais. A posição do Mercosul é de lograr-se, no encontro, o estabelecimento de bases para uma área de livre comércio, mecanismo cuja gestação, historicamente comprovada, requer um largo período de tempo. No caso específico, admite-se que nunca menos de um qüinqüênio será necessário para colimar tal objetivo, o que, de resto, coincide com os prazos estabelecidos para as negociações pertinentes à ALCA, e dentro dos quais ocorrerão duas rodadas de negociação tarifária, uma ainda, provavelmente, em 1999, referente à área agrícola, outra, mais ampla e chamada de geral, possivelmente a iniciar-se em princípios do próximo século. Para o Brasil, um global trader, essa cronologia é favorável, como o é também para o Mercosul, sobretudo em relação às negociações referentes à ALCA, que devem, por resguardo, ocorrerem paralelamente com as pertinentes à União Européia. Pois aí não se estará cuidando ou referindo a comércio, mas sim, e sobretudo, ao desenvolvimento econômico dos membros do Mercosul. b) A Ótica Européia A União Européia nasceu da concepção inicial de Maurice Schuman sobre a necessidade da Europa Ocidental integrar os mercados individuais, ganhando em escala e rateando, com sentido macroeconômico, o esforço de investimento do conjunto. Surgiu, como passo inicial dessa concepção, a Comunidade do Carvão e do Aço, entre Alemanha e França, cujo sucesso deu lugar ao advento do Tratado de Roma, que criou o Mercado Comum Europeu, de implementação longa, iniciada com a formação de uma área de livre comércio, posteriormente com uma união aduaneira e já agora com a eliminação recíproca de entraves e fluxos financeiros e ao livre trânsito de pessoas físicas e pessoas jurídicas. A recente instituição da moeda comum – o euro – como coroamento das metas estabelecidas pelo Tratado de Mastricht, consumou o intento inicial de unificação econômica do Ocidente europeu. Esse esforço, quase gigantesco, esbarra agora com a necessidade de situar a União no contexto mais amplo de um mercado mundial, sob forte influência do colosso econômico norte-americano,cuja presença é amparada não só pela hegemonia militar, como por um lastro real que torna o dólar a referência monetária internacional. A posição do euro no contexto financeiro mundial carece de fortalecimento econômico relativo a União Européia contempla como conseqüência imediata de uma expansão para o Leste e de uma penetração forte e crescente na América Latina. Dentro da União, porém, diferenciam-se as posições, não com caráter de conflito, mas como vias operacionais à luz das dificuldades internas de cada integrante. Duas são as questões críticas que o conjunto enfrenta: a forte taxa de desemprego e as exigências estruturais dos países membros. Se aquela pressiona por mercados, estas não podem ver-se confundidas abruptamente com ameaças à própria consistência da União. Por outro lado, o uso dos subsídios à produção e exportação, que consome cerca de 70% do PIB do conjunto, pesa mais sobre alguns membros, que buscam um natural alívio, mas pressiona negativamente a outros, cuja produção interna pode ver-se ameaçada por acentuada concorrência externa, da qual os EUA são os líderes. Esse lote de problemas, alguns com sinais contrários entre si, torna a posição e a decisão da UE um quase malabarismo, mais recentemente dificultada também pelo espectro monetário, em que a infância do euro ressente-se de sensível pressão do dólar. Soma-se a isso a atuação de empresas transnacionais, campo em que os EUA levam nítida vantagem e agem com desembaraço e agressividade; e, onde mais do que em qualquer outro setor, as grandes dimensões e o poder financeiro se sobrepõem à mera competição ou à competição de exclusiva natureza comercial. Pode-se, assim, compreender o porquê de a UE, ao mesmo tempo em que assume atitudes e na intensidade as proposições e a dinâmica dos movimentos que enceta, com vistas a ampliar suas margens de atuação nos mercados mundiais. Não obstante esses fenômenos aqui cuidadosamente comentados, os europeus continentais do ocidente sentem que a dependência em que o mundo vive do fastígio norte-americano é ameaçadora, ao fio e à medida em que um abalo financeiro nos EUA seria de repercussão incontida e alcançaria a União Européia de forma tão mais forte quanto sua constituição ainda não superou por inteiro as dores do parto. Torna-se, assim, compreensível o largo prazo estabelecido no Acordo-quadro, firmado com o Mercosul em 1995, para a continuidade do que nele foi concebido. Estão, portanto, os europeus ocidentais numa busca vital, de duplo sentido – consolidar a União Européia, inclusive pelo alargamento de suas influências comercial e financeira e pela capacidade de fazê-lo sem provocar atritos e rupturas com o poder hegemônico da atualidade. Com esse objetivo, procuram avançar no relacionamento com o já grande e promissor mercado latino-americano, bem como incrementar sua penetração no leste europeu, inclusive no ex-império da URSS. IV. O Acordo-Quadro e seu Desdobramento Em dezembro de 1995, foi assinado, em Madrid, entre os quinze países da UE e Argentina, Uruguai e Paraguai, um Acordo-quadro para a criação, em dez anos, de uma zona de livre comércio entre os dois blocos econômicos. O Brasil firmou o Acordo alguns dias depois. Diálogo sistemático ali previsto abrangeria desde o acesso aos mercados (barreiras tarifárias e não tarifárias) até o setor de investimentos e de desenvolvimento tecnológico. Na esteira desse entendimento, a cooperação MercosulUnião Européia se estenderia à modernização da rede de transportes e a projetos conjuntos de ciência e tecnologia, com citação expressa dos setores energético e de telecomunicações. Haveria uma primeira etapa, de cinco anos, para convergência em pontos que envolveriam negociações mais complexas; o principal deles seria o capítulo agrícola. Concluída essa etapa inicial, os dois blocos estabeleceriam associação inter-regional de comércio, com liberação progressiva de barreiras ao intercâmbio e ampliação da cooperação econômica, inclusive de investimentos e de tecnologia. Na Cimeira do Rio, deve, pois, inciar-se a Segunda etapa concebida em Madrid, com possíveis gestões para efetivar todos os pontos ou aspectos abrangidos pelo referido acordo. Isso empresta à reunião uma importância extraordinária, tanto por ser o cumprimento de compromissos acordados, quanto por corresponder a uma iniciativa da própria UE, cujo membro de maior expressão econômica está na liderança dessa continuidade de responsabilidade contratual. Simultaneamente ao Acordo, foi firmada Declaração Conjunta de caráter político, com menção aos princípios democráticos, direitos humanos, paz e segurança mundiais. Diálogo que teria como mecanismos: 1) encontros regulares entre chefes-de-Estado dos dois blocos; 2) encontros anuais entre chanceleres, com a presença da Comissão Européia; 3) reuniões de nível ministerial e, conforme o caso, reuniões periódicas de funcionários de alto nível de ambas da partes. Previstos foram, também, um Conselho de Cooperação, uma Comissão Mista de Alto Nível e uma Subcomissão Comercial. Todos esses mecanismos diplomáticos, que se diriam ooperacionais, não produziram efeitos mais significativos; poderão ser mantidos, convindo, porém, que se lance mão de instrumentos adicionais, mais leves e lépidos, com vistas a um regime de implantação eficaz e consistente. Destaca-se, em conseqüência, a necessidade de ativar a liberação comercial, a cooperação técnico-científica e o fluxo de investimentos. A respeito deste último ponto, os países do Mercosul têm 55% dos investimentos e de comércio da UE no Hemisfério, sendo que o Brasil tem 40% do conjunto de comércio e investimento da UE na América Latina e no Caribe. Revelam-se, portanto, o bloco regional e o Brasil, excelentes e tradicionais parceiros econômicos da União Européia. V. Negociações Prioritárias Para os países do Mercosul, as negociações prioritá-rias na Cimeira do Rio devem focalizar: a) a formulação de bases para a formação da zona de livre comércio, com a remoção recíproca de barreiras tarifárias e não-tarifárias, nestas compreendidos direitos antidumping, regulamentações restritas e regulamentos ditos de resguardo da saúde, da flora e de cunho fitosanitário; b) eliminação de subsídio que na UE abrange produção e exportação, principalmente no setor de produtos agrícolas; c) cooperação tecnológica ampla e irrestrita em todos os campos da ciência e tecnologia, abrangendo os setores produtivos e a capacitação de mão-de-obra nos diversos escalões da força-de-trabalho; d) estímulo e incentivo ao investimento de capital, com destaque para os setores de infra-estrutura econômica e industrial estabelecendo-se, para esse fim, comissões mistas, privadas e públicas, como elemento orientador; e) estabelecimento de sistemas recíprocos de informações econômicas e financeiras, bem como sistemas de divulga-ção de oportunidades comerciais e de investimento nos setores primário, secundário e terciário; f) estabelecimento de linhas de ação visando à futura e paulatina integração econômica. Como o subtítulo está indicando, a prioridade, nos contatos do Rio, serão comércio, tecnologia e investimento, uma tríade fundamental ao desenvolvimento, tanto das relações interblocos como do próprio Mercosul. Essa tríade, aliás, pode ser considerada como o núcleo básico das concepções abrigadas pelo Acordo-quadro firmado em Madrid. VI. Negociações Pontuais como Estímulo de Curto Prazo A consecução do objetivado no item anterior – V – Negociações Prioritárias, não é instantânea, nem se coroará em prazo curto. A experiência histórica revela que o colimado pelo Tratado de Roma (mercado comum europeu) levou décadas, a estimação do Nafta mais de um lustro, o Mercosul, longa trajetória a partir da ALALC e ALADI, até a zona de livre comércio. Europa nórdica e Inglaterra (que se consumiu ao longo do tempo) levou prazo razoavelmente longo de maturação. Para que as relações econômicas entre os dois blocos se ative, até como prelúdio de uma aproximação mais íntima, seria de real interesse que: 1. a redução do protecionismo na UE (tarifário e não-tarifário) contemplasse um grupo de exportações do Mercosul, a saber: - calçados, couro, ferro-aço, álcool e açúcar, suco de laranja, hortigranjeiros; 2. tarifas fossem nulas para software, carne, ovos e derivados de frango; 3. a cooperação tecnológica fosse mais imediata nos seguintes campos: tecnologia aeronáutica e aeroespacial, mecânica fina, novos materiais, automação industrial, princípios ativos de fármacos. O estabelecimento de comissões privadas setoriais, estruturalmente mistas, entre os dois blocos poderia, desde logo, examinar itens específicos que, bilateralmente, pudessem ir compondo uma espécie de pauta precursora de negociações mais amplas, com vistas à zona de livre comércio. VII. Temas Subsidiárias As considerações e sugestões contidas nos itens V e VI não precisam dispensar o princípio do single understanding, mas podem usá-lo de modo mais compartimentalizado, sobretudo no que concerne às sugestões do item VI. Do mesmo modo, alguns outros temas que devem compor a agenda da Cimeira do Rio, mesmo sem terem a condição de prioritários ou de estímulo de curto prazo, podem merecer simpática consideração. Entre eles, a preservação do meio ambiente, a questão dos serviços terciários, a cooperação nos setores de saúde e educação e um entrosamento maior no campo dos transportes e da energia elétrica, são questões que se diriam de relevância, a merecer as intenções de ambas as partes com vistas a programas específicos a emergirem de trabalhos e investigações técnicas conjuntas e sistematizadas. Nessa linha de ação, um assunto merece apreciação ampla e urgente para somatório de esforços com caracter disciplinar e ânimo saneador dos mercados financeiros internacionais. O vulto e as alavancagens que, ao lado de espectro crescente de operações de risco, vão aumentando a vulnerabilidade, as distorções e as perturbações em operações de curto e curtíssimo prazos, estão a reclamar medidas cautelares por parte dos setores público e privado ao longo de todo o mercado. A regência de organismos internacionais, como o FMI, o BID e o Banco Mundial, importantes e denodados que sejam, não têm podido aplacar as pressões que se estão originando em práticas de risco excessivamente audaciosas nesses referidos mercados. Os Estados Nacionais precisam coordenar esforços para que a economia mundial possa precaver-se de ataques súbitos e espúrios, como tem ocorrido com seqüelas realmente perversas. Os dois blocos congregam duas dezenas de países, compondo apreciável presença no sistema internacional de comércio e finanças. Podem, assim, ter uma atitude ao mesmo tempo profilática, coibitiva e disciplinar, com inegáveis benefícios para as relações que se realizam no intercâmbio mundial econômico, financeiro e comercial. (*) Centro de Estudos Estratégicos - Professor Guarino, Professor Taddei, Professor Guerra, Professor Her-Meyll, Professora Carlota e Professor Magrassi O CONFLITO NOS BALCÃS - A CRISE NO KOSOVO Marcio Bonifacio Moraes(*) 1. Introdução Como considerações iniciais, o autor gostaria de ressaltar que não é historiador ou geógrafo. Os dados aqui apresentados são fruto de observações pessoais colhidas durante o período em que esteve na ex-República Federal da Iugoslávia como Observador Militar integrante da “United Nations Protection Force” (UNPROFOR) e de viagens que realizou, posteriormente, pela região após o término do conflito. O presente trabalho tem como propósito apresentar alguns antecedentes históricos, que teriam sido os responsáveis pela recente onda de conflitos que hoje atinge a região do Kosovo. Não existe uma preocupação maior, em abordar os atuais aconteci-mentos, mas ressaltar as suas prováveis causas determinantes. Após a guerra civil que teve início em 1991, e que culminou com a dissolução da exRepública Federativa Socialista da Iugoslávia, o povo sérvio passou a receber um tratamento injusto e discriminatório por parte da comunidade internacional, apoiada por forte ação da mídia. Os sérvios foram apontados como se fossem os únicos responsáveis pela deflagração do conflito, bem como pelos crimes cometidos durante esse triste episódio. Cabe mencionar que todas as partes envolvidas cometeram seus excessos. Torna-se extremamente difícil em uma guerra civil o total controle das forças envolvidas, situação que, muitas vezes, também ocorre nas guerras convencionais. São de recente lembrança as atrocidades cometidas contra as populações civis por forças regulares dos exércitos alemães e russos, que chegaram a eliminar aldeias inteiras durante a Segunda Guerra Mundial. Um dos exemplos mais expressivos foi a cidade de Königsberg, capital da antiga Prússia Oriental, que após haver sido conquistada pelos russos, mudou de nome, passando a chamar-se Kaliningrad, em homenagem ao líder comunista Mikhail Kalinin. Cerca de 139.000 alemães que residiam na área foram mortos, deportados para a Sibéria ou para outras regiões da URSS. A cidade foi repovoada por cerca de 400.000 russos. Não obstante, esses episódios parecem haver sido apagados da memória dos que hoje criticam o comportamento dos sérvios. Entretanto, pouco se divulga sobre o número de vilas sérvias que simplesmente desapareceram do mapa durante a Segunda Guerra Mundial. Outro exemplo recente, foi o êxodo forçado de milhares de sérvios que tiveram de abandonar, em dias, várias regiões da Croácia e Bósnia-Herzegovina, após o término da guerra civil (1991-1995), sob risco de serem expulsos, mortos, ou “convertidos”. Para melhor se conhecer um pouco da história do povo sérvio não basta recorrer a rara e tendenciosa literatura existente sobre o assunto, pois é decorrente do período pós guerra civil (1991). É necessário que se conheça esse povo, vivendo o seu dia-a-dia. Os sérvios são de índole guerreira e nacionalista, não medindo esforços para manter seus Objetivos Nacionais que poderiam ser sintetizados na manutenção de sua unidade étnica, integridade territorial, soberania e autodeterminação. Assim, este povo vem lutando, desde o início de sua existência, para a manutenção desses Objetivos. Fizeram-no contra os bizantinos, turcos otomanos, austríacos, húngaros, búlgaros, alemães, italianos, albaneses e outros que lograram realizar aventuras de conquista na região balcânica. O mais poderoso e significativo símbolo do sentimento de união do povo sérvio está materializado em seu brasão nacional onde ao centro da águia bicéfala, estão grafadas quatro letras C (S em cirílico) que sintetizam a frase “Samo Sloga Srbina Spasava” (somente a união pode salvar os sérvios). A par de suas características guerreiras, são leais, amigos, alegres e hospitaleiros. Não costumam aceitar ingerência externa na resolução de seus problemas ou pendências internas. Possuidores de uma vertente patriótica muito acentuada, veneram seus heróis nacionais e todos aqueles que lutaram em prol da causa sérvia. Procuram manter vivos seus símbolos, suas tradições religiosas e folclóricas. Desta forma, após uma breve e superficial descrição das características dos sérvios, podemos iniciar uma retrospectiva histórica das origens desse povo e de suas conexões com a região do Kosovo-Metohija. 2. Ambientação à Região. a) Montanhas Cerca de 45% do território da ex-Iugoslávia situa-se a, pelo menos, 500 metros acima do nível do mar. Enquanto os Alpes Julianos chegam até a Eslovênia, e os Alpes Balcânicos dominam a região da Macedônia, são os Alpes Dináricos e montanhas adjacen-tes que predominam no relevo da Sérvia, Bósnia-Herzegovina e Croácia. As suas rochas de calcário absorvem a maior parte das chuvas, mantendo o solo seco e árido para o cultivo. Entretanto, os canais subterrâneos que acumulam as águas permitem a perenidade dos rios e sustentam as pastagens nos meses de verão. A parte nordeste dos Alpes Dináricos que abrange parte da Bósnia e Sérvia Oriental é constituída de rochas cristalinas que retêm água em sua superfície, oferecendo maiores chances para a agricultura, particularmente nos altiplanos e vales próximos aos rios Sava e Morava. b) Terras Baixas Definidas como terras abaixo de 200 metros do nível do mar, elas compreendem cerca de 29% do território da ex-Iugoslávia. Concentram-se ao norte da Eslovênia, na região da Croácia conhecida como Eslavônia e na Voivodina (Sérvia). São muito férteis e propícias à agricultura. c) Hidrografia O Danúbio é, sem dúvida, o mais importante rio da região balcânica. Com 2.850 Km de extensão, ele nasce na Alemanha (Floresta Negra), cruzando a Áustria, Hungria, Iugoslávia, Bulgária e Romênia indo desaguar no Mar Negro. Possui importância econômica para a área, pois é a sua principal hidrovia. Durante a guerra civil (1992-1995), teve o seu tráfego de embarcações interrompido. Atualmente, com a questão do Kosovo, seu tráfego também está restrito. Outro importante rio é o Sava, que nasce nos Alpes Julianos e atua como divisor entre os territórios da Croácia e Bósnia-Herzegovina. Seus principais afluentes são os rios Una, Bosna e Vrbas que nascem nos Alpes Dináricos. O Sava deságua no Rio Danúbio próximo a Belgrado. O Rio Drina também nasce nos Alpes Dináricos e divide os territórios da BósniaHerzegovina e Sérvia. Deságua no Rio Sava em uma região conhecida como Srem. O Rio Morava, formado pelo Zapadna Morava (Morava do Oeste) e Juzna Morava (Morava do Sul), conecta o interior da Sérvia ao Rio Danúbio. Não é utilizado como hidrovia, pois seu curso é acidentado. Finalmente, cabe mencionar o Rio Ibar, que nasce ao sul da Sérvia, percorre a região do Kosovo-Metohija, indo desaguar no Rio Zapadna Morava. a) Alguns dados sobre a atual República da Iugoslávia( Sérvia e Montenegro). - População – 11.223.853 (sérvios – 10.543.641 montenegrinos - 680.212) - Grupos étnicos – sérvios 63%, albaneses 14%, montenegrinos 6%, húngaros 4%, e outros 13%. - Religiões – ortodoxos 65%, muçulmanos 19%, católicos romanos 4%, protestantes 1% e outros 11%. - Fronteiras – Albânia 287 km (114 km com a Sérvia e 173 km com Montenegro), Bósnia-Herzegovina 527 km (312 km com a Sérvia e 215 km com Montenegro), Bulgária 318 km com a Sérvia, Croácia (241 km com a Sérvia e 25 km com Montenegro), Macedônia (221 km com a Sérvia) e Romênia (476 km com a Sérvia). - Recursos minerais – petróleo, gás natural, antimônio, cobre, zinco, níquel, ouro, pirita, cromo, carvão mineral e chumbo. - Agricultura – trigo, milho, girassol, beterraba, batata e frutas. 3. Síntese Histórica A primeira menção sobre os eslavos ocorreu no século I e II, como tribos oriundas das estepes russas (região da Sarmatia). No ano de 395 d.C. o imperador Teodósio, tomando como referência os rios Danúbio, Sava e Drina, dividiu o Império Romano. Dessa divisão resultaram significativas implicações políticas e religiosas na região, pois o Império do Oriente passou a seguir as orientações de Constantinopla, enquanto o do Ocidente ficou submetido a Roma. Entretanto, somente no século IV os bizantinos referiram-se a eles com o nome de “sclavini”. Os sérvios (palavra que seria derivada de “serboi”, originária de tribos Sarmatianas), são descendentes diretos dos eslavos. Ao final do século V e início do século VI tribos eslavas migraram para a região dos Balcãs, instalando-se às margens do Rio Danúbio. O ramo croata estabeleceu-se na Ilíria, província do Império Romano. Após a chegada dos Ávaros à região do Danúbio, foi estabelecida uma aliança entre eles e os sérvios, que passaram a realizar freqüentes ataques contra os bizantinos. Entre os séculos VII e IX foram formados os estados feudais de Pannonia (atual Croácia Oriental), Dalmácia (região situada ao sul da Croácia), Macedônia, Hum ou Zahumlje (região da Herzegovina), Zeta (chamada inicialmente de Duklja e atualmente Montenegro) e Raska ou Ráscia (região onde se insere a região do Kosovo-Metohija e que era denominada de Stari Srbija ou Antiga Sérvia). As populações eslavas eram organizadas em bases tribais. A hierarquia dessas tribos iniciavase com a família. Essas famílias eram agrupadas em comunidades chamadas “Zadrugas”. Das comunidades ou clãs formavam-se as tribos (“plemena”), sendo que o território da tribo denominava-se “Zupa”, liderado por chefe chamado “Zupani”. No século VII, os sérvios instalaram-se entre os rios Drina e Ibar. Desejosos de obter uma saída para o Mar Adriático, e aproveitando-se da fraqueza demonstrada pelos bizantinos, passaram a utilizar suas rotas de carga através das terras de Zeta. Nessa época, um “zupan” chamado Stefan Nemanja (1168-1196), fundador da dinastia Nemanjid, passou a dominar a região de Raska e, a despeito da reação dos bizantinos, fundou um Estado Independente em 1180, sendo a cidade de Prizren o centro desse Estado. Rapidamente foram incorporados a Raska, o Estado de Zeta até a parte da região costeira entre a Baía de Kotor e Dubrovnik. Em 1196, após o falecimento de Nemanja, assumiu o poder seu filho Stefan, tornando-se oficialmente o primeiro rei sérvio, com autorização papal e o reconhecimento de Constantinopla. Estados Medievais da Croácia, Sérvia e Bósnia Este, talvez seja o mais interessante e importante mapa para o perfeito entendimento da questão do Kosovo. Ele apresenta a região denominada Stari Srbija (Antiga Sérvia), durante a era de Stefan Nemanja (1168-1196). No século IX ocorreu a conversão dos eslavos ao cristianismo. Os croatas e eslovenos foram cristianizados por missionários católicos de Aquiléia (atual Trieste). Os sérvios, montenegrinos e macedônios foram cristianizados por missionários ortodoxos gregos. Um dos filhos de Nemanja, posteriormente canonizado como Santo Sava (cujas relíquias estão guardadas no monastério de Milesevo), foi um dos articuladores da formação da Igreja Ortodoxa Sérvia (1219), que passou a observar o ritual da igreja ortodoxa e a liturgia eslava. A cidade de Pec (situada a oeste de Prístina, no Kosovo), se transformou na sede do primeiro episcopado ortodoxo sérvio. Em 1331 chegou ao poder o mais famoso dos reis sérvios, chamado Stefan Dusan. Em suas conquistas ele praticamente duplicou as dimensões do território sérvio, chegando até o Sul da Grécia. Em 1346, na cidade de Skopje (hoje capital da Macedônia), Dusan foi coroado o Czar dos Sérvios e Gregos. O Czar Dusan também expandiu os seus domínios até a região denominada Hum, hoje ocupada pela Bósnia-Herzegovina. Entretanto, em 1355, Dusan veio a falecer durante uma batalha travada contra os bizantinos. Reino da Sérvia durante o período do Czar Dusan(1348-1355) Reino da Sérvia durante o reino do Czar Stefan Dusan. Ele foi o responsável pelo significativo aumento do território sérvio, que posteriormente seria perdido pela guerra com os otomanos. Na metade do Século XIV, vindos da Ásia Menor, os turcos otomanos iniciaram a invasão dos Balcãs. O marco dessa conquista foi a célebre Batalha do Kosovo, ocorrida em 28 de junho de 1389. A contenda ocorreu em uma localidade denominada Kosovo Polje (campo dos pássaros negros), situada a cerca de 20 Km de Prístina (principal cidade do Kosovo). Nessa ocasião, cerca de 25 mil homens liderados pelo Príncipe Lazar Hrebljanovic entraram em combate contra cerca de 40.000 otomanos liderados pelo Sultão Murat I. No início da batalha os sérvios levaram alguma vantagem, em razão da confusão causada pela morte do Sultão Murat. Substituindo o seu pai, o príncipe otomano Bayazit contra-atacou, tendo o Príncipe Lazar sido morto em combate. A vitória dos turcos na Batalha do Kosovo quebrou a resistência sérvia, abrindo caminho para a expansão otomana nos Balcãs. Era o fim da Sérvia medieval, pois em 1459 os turcos já haviam conquistado todo o território sérvio. As terras abandonadas pelos sérvios em sua retirada passaram ao domínio otomano, tendo sido iniciada a ocupação albanesa do Kosovo. Em 1557, o bósnio sérvio Mehmed Sokoli foi escolhido pelos turcos para ser o Grão-Vizir da região do Kosovo-Metohija. Sokoli restaurou o patriarcado da igreja ortodoxa sérvia em Pec, indicando seu irmão para ser o patriarca Este fato constituiu um marco para o retorno dos sérvios à região. No período de 1788 a 1791 os sérvios passam a ter uma participação ativa na guerra dos austríacos contra os turcos otomanos como parte dos “Frei Korps” (voluntários). Como parte da estratégia austríaca os sérvios receberam, a título de “doação”, partes do território da Croácia para que eles pudessem impedir o avanço dos turcos. Esta região passou a se denomi nar “Vojna Krajina” ou fronteira militar. Fronteira Militar do Império Austro-Húngaro 1780 (Vojna Krajina) A região escurecida mostra a faixa de terra "doada"aosw sérvios para defender o Império Austro-Húngaro da invasão otomana. As rebeliões de 1804 (liderada por Djordje Petrovic Karadjordje) e 1815 (chefiada por Milos Obrenovic) foram as primeiras ações de vulto com o propósito de expulsar os turcos do território sérvio. Em 1830, após nova revolta chefiada por Obrenovic, os sérvios passaram a ter novamente um principado autônomo, porém ainda submetido a uma suserania turca. Em 1848 é formada a Voivodina (ducado) sérvia, que passaria a incluir partes do Srem, Banat, Backa (ainda parte da atual Voivodina) e Baranja (região onde está atualmente situada na Eslavônia Oriental – Croácia). Visando a impedir novas ocupações por parte dos otomanos os austríacos, em reforço à população sérvia alí já estabelecida, povoaram essa área com húngaros, eslovacos, ucranianos e rutenos. Em 1867, é formado o Império Austro-Húngaro (monarquia dual). Em 1875, os sérvios se sublevaram novamente contra os turcos, mas foram derrotados. Em 1878, pelo Tratado de Berlim, as grandes potências reconhecem a independência da Sérvia, Romênia e Montenegro. É criado o principado da Bulgária e autorizada a tutela da Bósnia-Herzegovina pelo Império Austro-Húngaro. Em 1882, a Sérvia é elevada à categoria de reino em proveito da dinastia dos Obrenovic. Em 1892, nasce na vila de Kumrovec (localizada na parte húngara do Império Austro-Húngaro) e, atualmente, Croácia, Josip Broz “Tito”. Ele era filho de pai croata (Franjo Broz) e de mãe eslovena (Marija Broz). Quando jovem, Josip trabalhou em uma indústria metalúrgica. Em 1903, uma conspiração realizada por integrantes da sociedade secreta denominada “mãos negras” e liderada por Dragutin Dimitrijevic, promoveu o assassinato do Rei Alexandre Obrenovic colocando, assim, o fim do domínio da dinastia dos Obrenovic. Assumiu o poder Pedro I Karadjordjevic. Em 1905, é formada uma coligação servo-croata, que reúne vários partidos e se propõe a trabalhar pela união dos povos eslavos do sul. Essa seria a primeira tentativa de unir os povos eslavos dos Balcãs. Em 1908, a Bósnia-Herzegovina é definitivamente anexada ao Império Austro-Húngaro. A Sérvia e a Rússia protestam contra o fato mas não têm força para intervir. O evento causa profunda insatisfação por parte de nacionalistas sérvios. Em 1912 foi constituída a Liga Balcânica, formada pela Sérvia, Montenegro, Bulgária e Grécia. Ela teve como propósito expulsar definitivamente os turcos otomanos da região dos Balcãs. No período de 1912-1913, ocorreu a Primeira Guerra Balcânica onde a Liga conseguiu libertar todo território sérvio do domínio otomano, modificando a correlação de forças na área. A Sérvia despontou como uma potência regional, fato que desagradou à Áustria. Após haverem retomado à região do Kosovo, os sérvios entregaram-se ao ajuste de contas com os albaneses, que haviam apoiado os otomanos. Em 1913, ocorreu a Segunda Guerra Balcânica, travada por sérvios e gregos contra os búlgaros, devido a problemas de posse dos territórios anteriormente conquistados durante a Primeira Guerra Balcânica. O conflito terminou com a assinatura do Tratado de Bucareste e a partilha da Macedônia. Sérvia e Montenegro 1911-1913 Este mapa apresenta a situação da Sérvia após a Segunda Guerra Balcânica. Em 28 de junho de 1914, em uma ensolarada manhã de domingo, o Arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria encontrava-se em Sarajevo, para assistir a uma cerimônia come-morativa do aniversário da Batalha do Kosovo, quando foi assassinado por um nacionalista sérvio, de nome Gavrilo Princip. Esse fato serviu de pretexto para que os austríacos iniciassem uma ação de retaliação contra os sérvios. Em 22 de julho de 1914, o Império Austro-húngaro, apoiado pela Alemanha, Turquia e Bulgária, declarou guerra aos sérvios. Após alguns combates, o exército sérvio foi obrigado a se retirar em direção à costa grega, tendo sido sistematicamente atacado por integrantes das milícias albanesas. Esses fatos ficaram profundamente marcados na memória do povo sérvio. Ao final da Primeira Guerra, o Rei Alexandre Karadjordjevic, sucessor de Pedro I, criou, em 01 de dezembro de 1918, o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, posteriormente denominado Reino da Iugoslávia (1929). Após a Primeira Guerra, a região do Kosovo foi repovoada, principalmente, por famílias de soldados sérvios que haviam lutado na Primeira Guerra Mundial, ocupando áreas abandonadas pelos otomanos. Em 1929, a população de sérvios e montenegrinos no Kosovo era da ordem de 61%, contra 39% de albaneses e outras etnias. Em 1919, é fundado na Iugoslávia o Partido dos Trabalhadores, que se transformaria, posteriormente, em Partido Comunista Iugoslavo. Ainda nesse mesmo ano (10 de setembro) é assinado o Tratado de Saint Germain. Ele separa a Áustria da Hungria e integra a Bósnia ao reino da Sérvia. Em 1920, é assinado o Tratado de Trianon (4 de junho). A Eslovênia e Croácia passam a fazer parte, oficialmente, do Reino da Sérvia. Em 1934, Pedro I é assassinado em Marselha por membros do movimento radical de direita denominado “Ustasha”, criado pelo político croata Ante Pavelic, amigo pessoal de Benito Mussolini. O filho e sucessor do Rei Alexandre, Pedro, não tinha mais de onze anos, razão pela qual seu tio Pavle Karadjordjevic assumiu a regência. Em 1937, Josip Broz Tito é nomeado Secretário Geral do Partido Comunista da Iugoslávia. Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Iugoslávia, inicialmente, manteve uma postura neutra. Em março de 1941, Pavle Karadjordjevic, pressionado por Hitler, adere ao Pacto Tripartite, desencadeando uma rebelião em Belgrado. Ele foi deposto e substituído por Pedro II Karadjordevic. No dia 06 de abril de 1941, sem uma declaração formal de guerra, os alemães realizaram ataques aéreos de surpresa contra Belgrado e outras cidades. Após onze dias de combate, o Exército Imperial Iugoslavo capitulou perante as forças da Alemanha, Itália, Hungria e Bulgária, tendo o seu rei buscado exílio na Inglaterra. O país foi ocupado e desmembrado pelas forças de ocupação. Em 10 de abril, os alemães proclamaram o Estado Independente da Croácia, que passou a ser governado por Ante Pavelic. Cabe ressaltar que, em 1941, às vésperas do ataque alemão à Iugoslávia, a proporção entre sérvios e albaneses no Kosovo era mais ou menos equivalente. Mas a Segunda Guerra Mundial iria provocar novos abalos na região. Com a ocupação italiana na Albânia, o Kosovo foi integrado à “Grande Albânia” de Mussolini. Os italianos incentivaram a expulsão dos sérvios da região. Mais de 100 mil sérvios e montenegrinos foram expulsos do Kosovo e cerca de 10 mil foram mortos. No distrito de Pec, cerca de setenta por cento das casas sérvias foram completamente arrasadas ou queimadas. Ao mesmo tempo, 80 a 100 mil albaneses mudaram-se da Albânia para o Kosovo, apoderando-se de propriedades sérvias. Em oposição às forças de ocupação surgiu um movimento denominado Exército de Libertação Popular Partisan liderado por Josip Broz “Tito”, Secretário Geral do Partido Comunista. Em 20 de agosto de 1941, nasce na cidade de Pozarevac Slobodan Milosevic. Seu pai Svetozar era professor de religião ortodoxa em Montenegro (suicidou-se com um tiro na cabeça em Ao final de 1941 foi formada a Primeira Brigada Proletária, contando com a participação de cerca de 80.000 iugoslavos. Algumas regiões da Bósnia-Herzegovina passaram ao controle do movimento partisan como zonas liberadas. Em 26 e 27 de novembro de 1942, na cidade de Bihac (Bósnia), teve lugar a Primeira Sessão do Conselho Antifascista de Libertação Nacional da Iugoslávia (cuja abreviatura em sérvio é AVNOJ). Nessa ocasião foram traçadas as bases para a mobilização do povo iugoslavo contra as forças de ocupação e para as técnicas que seriam utilizadas pelo movimento de resistência. Na primavera de 1943, o Comando Supremo Aliado enviou à Iugoslávia uma missão militar para apoiar o movimento de Tito. Nos dias 29 e 30 de novembro de 1943, na cidade de Jasce (Bósnia), ocorreu a Segunda Sessão do AVNOJ. Nesse evento, Tito recebeu a patente de Marechal da Iugoslávia. Em fevereiro de 1944, os soviéticos também enviaram uma missão militar em apoio ao movimento de libertação iugoslavo. Em outubro de 1944, o movimento chefiado por Tito já contava com cerca de 450.000 combatentes, sendo que no dia 20 desse mês a cidade de Belgrado foi libertada pelo Exército de Libertação Nacional Iugoslavo, com apoio do Exército Soviético. Em abril de 1945, os partisans já contavam com cerca de 800.000 combatentes, e toda a Iugoslávia havia sido libertada das forças do Eixo. Em agosto de 1945, na cidade de Belgrado, ocorreu a terceira sessão do AVNOJ, ocasião em que foi formada uma assembléia nacional que ficou encarregada de estudar as bases para a formação do novo estado iugoslavo. Os membros do Exército de Libertação formaram o embrião do que seria o Exército Federal Iugoslavo (Jugoslavenska Narodna Armija – JNA). Em 29 de novembro de 1945, após a realização de um plebiscito, foi proclamada a República Federativa Socialista da Iugoslávia, formada por seis repúblicas: Sérvia, Croácia, BósniaHerzegovina, Eslovênia, Macedônia e Montenegro assim como províncias autônomas da Voivodina e Kosovo, conforme pode ser observado no mapa. Mapa Número 05 Iugoslávia no período 1945-1991 Em 31 de janeiro de 1946, foi promulgada a nova constituição da Iugoslávia. Ela guardava muitas semelhanças com a constituição soviética promulgada em 1936, durante o período de Stalin. Dessa forma, o país ingressou em uma era de comunismo rígido e ortodoxo, nos moldes do regime soviético. Em 1948, o Marechal Tito rompe politicamente com Stalin. O Kominform, reunido em Praga, condena a atitude de Tito, não admitindo a abertura da Iugoslávia para o Oeste. Em uma nota dirigida ao país, a URSS considera a Iugoslávia como inimigo, postura também adotada pelos demais membros do “Pacto de Varsóvia”. Em 1953 é promulgada uma nova constituição, e o Marechal Tito é reeleito presidente da República. Nesse mesmo ano, a percentagem de sérvios no Kosovo era da ordem de 27% da população. Em 1961, 67.1% da população do Kosovo era de albaneses, sendo que este percentual prosseguiu aumentando. Em 1963 entrou em vigor uma nova constituição (terceira desde 1946), e o país passou a se chamar República Federativa Socialista da Iugoslávia. Essa constituição recebeu emendas em 1967, 1968, 1971e 1973, aumentando a descentralização da Federação. Em 1971, a população albanesa no Kosovo era da ordem de 73,7 % da total. Em 21 de fevereiro de 1974, foi finalmente promulgada a mais polêmica das constituições iugoslavas. Composta por 406 artigos, era complexa e confusa em razão de sua abrangência, tendo sido praticamente impossível sua tradução em outro idioma. Os direitos das repúblicas e províncias, mais uma vez, foram reforçados. Tito foi eleito presidente vitalício da Iugoslávia. Durante as reformas constitucionais, ocorridas na Iugoslávia em 1963 e 1974, o Kosovo e a Voivodina aumentaram sua autonomia, passando a contar com administração e polícia próprias, bem como representantes na administração da Federação Iugoslava. A autonomia veio, sem dúvida, reforçar os direitos sociais e culturais dos albaneses e húngaros, mas ao mesmo tempo radicalizou as posições políticas no Kosovo. Durante o período de prosperidade da Iugoslávia, milhares de albaneses cruzaram a fronteira em busca de melhores condições de vida fugindo, também, das rígidas regras do comunismo ortodoxo praticado na Albânia pelo ditador Enver Hoxha. Nas décadas de setenta e oitenta a Albânia promoveu intensa ação de propaganda na região com envio de professores albaneses à Universidade de Prístina, programas especiais de rádio e televisão, intercâmbio cultural e desportivo. O resultado dessas ações provocou maior acirramento entre sérvios e habitantes albaneses do Kosovo. Em 4 de maio de 1980 Josip Broz Tito morre em Ljubliana, após governar por trinta e cinco anos a Iugoslávia. Dentre os traços característicos mais marcantes de sua administração, destacam-se: − uma política externa independente para o país; − autonomia e respeito às diferenças culturais; − desenvolvimento econômico acelerado; − esforço na infraestrutura e no social; − controle da sociedade pelo estado; e − liderança carismática. 4. A Desintegração da Iugoslávia e a Questão do Kosovo. A morte de Tito em 1980, veio agravar a tensão latente entre sérvios e albaneses. Entre os anos de 1981 e 1983, ocorreram novos distúrbios étnicos na região do Kosovo, que teriam se constituído no primeiro sinal da crise que já minava os alicerces da ex-Iugoslávia. Em março de 1981, milhares de de estudantes albaneses ocuparam as ruas de Prístina, em protesto contra melhores alojamentos e a nomeação de um reitor sérvio. A manifestação não tardou a degenerar em escaramuças e depois numa verdadeira batalha entre sérvios e albaneses. Os confrontos logo se estenderam por toda a região. Milhares de sérvios e montenegrinos fugiram do Kosovo. Foram registrados assassinatos, violações, ataques às propriedades sérvias e profanação de templos e cemitérios ortodoxos. Essas notícias, rapidamente disseminadas em Belgrado, geraram uma reação de repúdio aos albaneses. Em 1982, foi criado na Suíça um grupo denominado “Movimento Popular do Kosovo”, congregando marxistas-leninistas albaneses, e que tinham o propósito de lutar pela independência daquela região. Em 1987, Slobodan milosevic se torna presidente da Sérvia. Logo após a sua posse, faz uma visita ao Kosovo. Nessa ocasião realiza um discurso político de fundo nacionalista, exaltando a presença sérvia na região. Em 1989, durante os eventos comemorativos dos seiscentos anos da Batalha do Kosovo, novas manifestações nacionalistas sérvias tornam a ocorrer. Em Trepca, junto à cidade de Kosovska Mitrovica, no extremo norte do Kosovo, está instalado o maior centro mineiro da região e um dos mais importantes da Sérvia. Em 20 de fevereiro de 1989, cerca de 1.300 operários albaneses da mina de carvão de Stari Trg entraram em greve, realizando a sua ocupação. Os mineiros alegavam inicialmente falta de segurança nas galerias. Com a continuidade do movimento, as reivindicações se transformaram em protesto político, o qual exigia reformas constitucionais e mais autonomia para o Kosovo. Iniciou-se, assim, uma crise entre as lideranças sindicais e Belgrado. Os dirigentes da mina foram detidos sob acusação de cumplicidade com os grevistas. A agitação albanesa regressou às ruas de Prístina e novos conflitos ocorreram, exigindo a ação enérgica de forças federais para pôr fim à desordem. Estava deflagrado o processo que iria culminar com o início dos debates na Assembléia Federal, visando a promover uma emenda constitucional que retiraria do Kosovo o status de província autônoma. Finalmente, em junho de 1990, a tensão atingiria o seu limite máximo. A Assembléia de Belgrado aprovou a nova Constituição, retirando a autonomia do Kosovo e da Voivodina. Na região da Voivodina (cerca de 2.000.000 de habitantes) não ocorreram protestos, pois a região é povoada por cerca de 1.100.000 sérvios (54,4%) que constituem maioria étnica, em oposição a 380.000 húngaros (18,9) e outras minorias (eslovacos, romenos, ucranianos e rutenos). Entretanto, na região do Kosovo-Metohija (cerca de 1.700.000 habitantes), cuja maioria étnica é de albaneses e, segundo pesquisas realizadas em 1991, o percentual havia chegado a 85% contra 15% de sérvios, eclodiram novos movimentos de descontentamento. Em 1991 iniciam-se os movimentos separatistas em toda Iugoslávia. Tornam-se independentes a Eslovênia (25 de junho), Croácia (25 de junho), Bósnia-Herzegovina (6 de abril de 1992) e Macedônia. É iniciada a guerra civil na ex-Iugoslávia, que só se encerraria em dezembro de 1995, após a intervenção da Organização das Nações Unidas e da OTAN, culminando com a assinatura do Acordo de Dayton. Em setembro do mesmo ano, um “referendum” autoproclamou a “República do Kosovo” sendo formado um parlamento clandestino. Ibrahim Rugova é declarado presidente e Bujar Bukoshi, primeiro-ministro. O governo permaneceu no exílio na Alemanha. Em 27 de abril de 1992 foi formada a República Federativa da Iugoslávia, composta pela Sérvia e Montenegro. Slobodan Milosevic é reeleito presidente da Sérvia. Nesse mesmo ano é identificado, pela primeira vez, na Macedônia, um grupo guerrilheiro denominado Exército de Libertação do Kosovo - ELK (Ushtria Clirimtare Kosoves – UCK). Em junho de 1996, o ELK assumiu a responsabilidade por diversos atentados e ações de sabotagem realizados contra policiais sérvios na região do Kosovo-Methoja. No início, as ações do ELK se limitavam a incursões partindo de bases localizadas em território albanês. Com o passar do tempo, e com o apoio da população local (fator primordial de sucesso para qualquer movimento guerrilheiro), os militantes do ELK estabeleceram bases a oeste do Kosovo. Seus alvos prioritários eram os integrantes das forças policiais sérvias. Entre os meses de maio e junho de 1998 os guerrilheiros do ELK passaram a realizar ações de maior envergadura, com o objetivo de formar a oeste da região (eixo compreendido entre as cidades de Pec e Djakovica) uma zona liberada. O governo iugoslavo enviou tropas federais ao Kosovo, para reforçar o efetivo já existente e dar combate ao movimento guerrilheiro. Mapa Número 06 BASES DO ELK Área de atuação do Exército de Libertação do Kosovo (ELK) Dotados de armamento moderno e de origem estrangeira e com uma linha de suprimentos bem estruturada, os guerrilheiros do ELK iniciaram uma luta armada contra o Exército Federal Iugoslavo. Os habitantes das vilas envolvidas no conflito começaram a abandonar suas casas, fugindo para a Albânia, Macedônia e Montenegro. Ao final de 1998, o ELK já mantinha o controle de cerca de 40% do território do Kosovo. Os recursos financeiros do ELK provêm principalmente de: − narcotráfico; e − recursos enviados por cerca de 500.000 albaneses que vivem na Europa ou nos Estados Unidos. Os quadros do KLA são formados por: − ex-membros do Exército Federal Iugoslavo, de origem albanesa; − albaneses que lutaram nos exércitos croata e bósnio durante a guerra civil (1991-1995); − ex-membros do exército albanês; e − mercenários do Iêmen, Afeganistão, Arábia Saudita, Alemanha e Reino Unido. Ao final de 1998, a OTAN estabeleceu conversações com a Iugoslávia para solucionar a crise no Kosovo. Foram realizadas várias rodadas de negociações em Rambouillet - França. Os principais pontos do Acordo se resumiam em: a) governo democrático. Seria estabelecido um governo democrático com o propósito de gerenciar matérias de interesse para os habitantes do Kosovo, tais como: educação, saúde e desenvolvimento econômico. O Kosovo teria um presidente, assembléia, tribunais e um governo local; b) segurança. Seria garantida por forças internacionais dos países membros da OTAN, posicionadas no terreno. Os habitantes do Kosovo teriam polícia própria, para garantir a segurança na região. As forças armadas da Iugoslávia, bem como suas forças policiais, deveriam deixar o Kosovo, limitando suas ações na fronteira entre o Kosovo e a Sérvia; e c) retorno dos refugiados. Uma reunião internacional entre os membros da OTAN seria realizada para determinar os mecanismos para o retorno dos refugiados e seu reassentamento na área. As negociações em Rambouillet se prolongaram até março de 1999, sem que as partes tivessem chegado a um acordo. Os iugoslavos aceitavam o retorno dos refugiados, e até mesmo a transformação da região em província autônoma, como nos moldes anteriores. Entretanto, não admitiam a presença de forças da OTAN em seu território, pois consideravam a questão do Kosovo um problema interno do país, e essa intervenção iria ferir a soberania nacional e o direito a autodeterminação. Esgotados todos os esforços diplomáticos, e desconsidera-das as alegações do governo iugoslavo, na noite de 24 de março de 1999, sem a prévia autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a OTAN desencadeou a operação "Allied Force" com ataques aéreos à Iugoslávia. A ação militar se concentrou, inicialmente, contra alvos militares. Posteriormente, a ação foi ampliada e os ataques passaram a ser dirigidos contra as principais cidades da República da Iugoslávia. Depois de 78 dias de bombardeio (cerca de 37.000 ataques aéreos), que danificaram significativamente a infra-estrutura daquele país, no dia 09 de junho o governo iugoslavo finalmente cedeu às pressões da OTAN, aceitando os termos do Acordo de Paz. No dia 12 de junho, a região do Kosovo foi ocupada militarmente por cerca de 32.000 homens dos países membros da Aliança, sendo exigida a retirada das forças militares e policiais sérvias, que até então mantinham o controle da área. 4. C o n c lu sã o A q u e stã o do K o so vo é a ssu nto d e n a tu re za co m p le x a e d e d ifíc il so lu ç ã o , e sp e c ia lm e n te a g o ra q u e se o pto u po r u m a so lu ç ã o m ilita r. A p ó s a d es inte g ra ç ã o do fe c ha d o re g im e c o m u n ista q u e im p e ro u na A lb â n ia p o r m a is d e q u a re n ta an o s, se u s d ir ig e nte s se vo lta ra m à s a n t ig a s q u e stõ e s n a c io n a is, d e n tre a s q u a is se d e sta c a a d o K o so v o . O p a ís a tra ve s sa sé r io s p ro b le m a s e c o nô m ic o s, q u e d e ra m o rig e m a vá r io s d istú rb io s c iv is e m 1 9 9 7 . E ntre ta nto , p a ra q u e po ssa c a p ta r inv e stim e nto s e re c e b e r a p o io e x tern o , se ria n e c e ss á r io q u e a A lbâ n ia a p rese nta ss e a lg u m a re cu p e ra ç ã o e m se u c o m b a lid o s iste m a e co n ô m ic o . U m a d a s sa íd a s se r ia a a ne x aç ã o do K o so v o , po is a re g iã o é p a rtic u la r m e n te ric a e m m in é r io s, e sp e c ia lm e nte c a rvã o , e xtre m a m e nte n e c e s sá r io p ara g e ra ç ã o d e e n e rg ia e lé tr ic a . P o r o utro la d o , p a ra o s sé rv io s a m a nu te n ç ã o d a re g iã o do K o so vo é u m d ire ito h istó rico irre n u n c iá v e l, p o is é o se u nú c le o g e o h istó rico e o b e rç o d e su a c u ltu ra . A lb e rg a o s m o ste iro s o rto d o x o s m a is v e ne rá ve is e fo i c e ná r io d a fa m o sa b a ta lh a e m q u e o sa n to p rín c ip e L a z a r p e rd e u a v id a , e a na ç ã o sé rv ia c in co sé c u lo s d e in d e p e n d ê n c ia . O s sé rv io s, q u e ta m b é m s ã o co n h e c e d o re s d o p o ten c ia l d a re g iã o e d e su a im p o rtâ n c ia e straté g ic a, nã o a c e ita ra m ta c ita m e nte , o s te rm o s in ic ia is d o A c o rd o d e R a m b o u ille t, e x ig in d o q u e a O T A N o p ta sse p e la so lu ç ã o m ilita r. C o n tra ria m e nte a o e sp e ra d o , o s sé rv io s v islu m b ra ra m e sse s a ta q u e s a é re o s d a O T A N c o m o u m “s in a l v e rd e ” p a ra q u e p u d e sse m re a liz a r o q u e há m u ito te m p o e sp e ra va m : to m a r p o sse d e fin it iv a m e nte do K o so vo , exp u lsa n d o to d a p o p u la ç ã o a lb a n e sa q u e h a v ia s e e sta b e le c id o n a re g iã o n o s ú lt im o s a no s, d e fo rm a c la n d e st in a , e c o m u m a c e rta c o nd e sc e n d ê n c ia d a s a u to rid a d e s sé rv ia s. M e re c e a te nç ã o e d e sta q u e o apo io e x te rn o (re c u rso s d e p e sso a l, m a te ria l e fin a n c e iro s), q u e fo i d a d o ao g ru po g u errilh e iro d e o rie n ta ç ã o a lb a n e sa q u e se d e n o m in a E x é rc ito d e L ib erta ç ã o d o K o so v o , cu ja s a ç õ e s fo ra m c o ns id e ra d a s c o m o d e fla g ra d o ra s d a in sta b ilid a d e n a áre a , fa to r re sp o n sá v e l p e lo in íc io d a c r ise . A re ta lia ç ão m ilita r so fr id a p e lo s sé r v io s, a ba lo u p ro fu n d a m e n te a e c o n o m ia e o atu a l g o v e rn o iu g o s la v o . M a n ife sta ç õ e s d e in sa t is fa ç ã o já e stão o co rre nd o e m vá r ia s c id a d e s d a F e d e ra ç ã o , in d ic a n d o q u e s ig n ific a t iva s e p ro fu nd a s tra ns fo r m a ç õ e s p o lít ic a s irã o o c o rre r e m fu tu ro p ró x im o , fru to d a q u e stão do K o so vo . (* ) C a p itã o -d e -F ra g a ta (T ) O b se rv a d o r M ilita r in te g ra n te d a F o rç a d e P ro te çã o d a e x -Iu g o slá v ia (U N P R O F O R ) (1 9 9 3 -1 9 9 4 ) A d ju n to d a D iv isã o d e Info rm a ç õ e s REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CRNOBRNJA, Mihailo. The Yugoslav drama. London: I. B. Tauris & Co Ltd, 1994. DEBAY, Yves. The Balkans on Fire: nightmare in Yugoslavia. Hong Kong: Concord, 1993. DRAGANICH, Alex N. Sérvios e croatas. Portugal: Bertrand, 1992. GLENNY, Misha. The Fall of Yugoslavia. London: Penguin Books, 1992. LAMPE, John R. Yugoslavia as history: twice there was a country. London: Cambridge University Press, 1996. MALCOLM, Noel. Bosnia: a short history. London: Papermac, 1994. MORAES, Marcio Bonifacio. O Conflito nos Balcãs. Rio de Janeiro: Revista Marítima Brasileira, V.116, nº 10/12, out/dez.1996. ________ .A Crise no Kosovo: uma abordagem histórica. Rio de Janeiro: Revista Marítima Brasileira, V.118, nº 7/9, jul/set.1998. MIHALJCIC, Rade. The Battle of Kosovo. Belgrade: beogradski Izdavacko-graficki Zavod, 1989. PEREIRA, Carlos Santos. Da Jugoslávia à Jugoslávia: os Balcãs e a nova ordem européia. Lisboa: Edições Cotovia, 1995. SANTOS, Newton Bonumá, MORAES, Marcio Bonifacio. O conflito nos Balcãs e a questão do Kosovo. Rio de Janeiro: ESG, 1999. SCHEVILL, Ferdinand. History of the Balkans. USA: Barnes & Noble Books, 1995. VEIGA, Francisco. La Trampa balcânica. Barcelona: Grialbo, 1995. VILLANUEVA, Javier. Puentes rotos sobre el Drina. Donostia: Tercera Prensa, 1994. A NOVA ESTRATÉGIA DA OTAN Carlos Meira Mattos(*) Criada em 1949, quando os países do Ocidente temiam uma agressão da antiga União Soviética, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), incluiu entre seus fundadores 12 Estados, sendo 10 europeus (França, Inglaterra, Itália, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Portugal, Noruega, Islândia e Luxemburgo) e 2 americanos (Estados Unidos e Canadá). Posteriormente entraram para a OTAN, em 1952 Grécia e Turquia, em 1955 a República Federal Alemã, em 1982 a Espanha. Mais recentemente, em 1997, foram admitidos, a Polônia, Hungria, República Tcheca e Ucrânia, todos quatro ex-membros do Pacto de Varsórvia dissolvido depois da desagregação da União Soviética. Após 40 anos de existência, a OTAN, aliança militar defensiva de proteção das democracias ocidentais do Hemisfério Norte, viu-se desestabilizada, a partir de 1989, pelo desaparecimento de sua missão defensiva, em virtude da dissolução de seu adversário o Pacto de Varsórvia liderado por Moscou. Interesses vários das grandes potências, membros da OTAN, aconselharam a manutenção da aliança militar. Para isto, em 1991, reuniram-se em Roma a fim de encontrar uma nova missão que justificasse a sua existência futura. Desta reunião saiu a reformulação de sai estratégia, ainda defensiva, visando a conter as novas ameaças visualizadas pela Aliança, quais sejam, uma possível revitalização da ameaça de Moscou, a existência de um arsenal atômico em poder da Rússia e de alguns ex-membros do antigo Pacto de Varsórvia, o terrorismo internacional e o perigo de alastramento de conflitos étnicos e regionais. Por volta de 1992 começou-se a perceber a intenção dos “grandes” da OTAN em buscarem uma nova estratégia para a Aliança Atlântica, não mais defensiva. Os sinais destas intenções foram captados pelo geopolítico e estrategista francês, Ives Lacoste, que no seu “Dictionnaire de Geopolitique” editado em 1993, escreveu: “a OTAN almeja ser um pacto dos países desenvolvidos do Norte, face aos países em via de desenvolvimento do Sul, alargando seu campo geográfico inicial de intervenção e vindo a receber, cada vez mais, as missões da ONU para atuações humanitárias e intervencionistas fora do teatro de operações da Europa Ocidental”. Em abril deste ano, com uma grande comemoração de seus 50 anos de existência, a OTAN reuniu a sua cúpula em Nova York. Na véspera desta reunião, numa conferência pronunciada em Chicago, intitulada “Doutrina para a Comunidade Internacional”, o Primeiro Ministro Inglês, Tony Blair, adiantou a sua proposta de nova estratégia para a Aliança. Disse o Primeiro Ministro Tony Blair: “O problema mais premente da política externa que enfrentamos (a OTAN enfrenta) é identificar as circunstân-cias nas quais devemos envolver-nos ativamente nos conflitos de outros povos. Os atos de genocídio nunca devem ser assuntos puramente internos. O princípio de não intervenção precisa ser revisto em importantes aspectos”. Em outros trechos de sua “Doutrina para a Comunidade Internacional”, o chefe do governo britânico generaliza os crimes contra os direitos humanos, entre os que não devem ser considerados assuntos internos, assim como manifesta a pretensão da OTAN de vir a ser considerada o braço militar da ONU, ampliando, assim, sua área geográfica de atuação. Como vemos, na sua doutrina para a OTAN, o Primeiro Ministro formaliza as intenções já reveladas em 1993 pelo internacionalista fran- cês Ives Lacoste. A maioria dos analistas internacionais da imprensa européia e norte-americana qualificou a doutrina proclamada por um dos seus principais líderes como, “Nova Estratégia Intervencionista da OTAN”. Vale assinalar que a OTAN, antecipadamente, antes da apreciação dessa estratégia intervencionista pela Comunidade Internacional e antes mesmo de sua formalização por sua própria cúpula reunida em Nova York em abril último, já a havia aplicado na Iugoslávia. O que nos parece mais grave, na guerra movida contra um Estado soberano, a Iugoslávia, é a arrogância com que foi perpetrada, dispensando sua aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU. Bem ou mal, a única organização que legitimamente, à luz dos preceitos do Direito Internacional vigente, poderia aplicar uma sanção militar contra a Iugoslávia, é a ONU, através de seu Conselho de Segurança. Não há dúvida que a “purificação étnica” dos albaneses, movida pelo governo sérvio de Milosevic, merece uma severa condenação. A intervenção militar na Iugoslávia, todavia, não foi uma decisão da Comunidade Internacional (que não se pode admitir com exclusão da ONU). Foi uma decisão arbitrária, arrogante, das potências da OTAN, contra a soberania de um Estado Nacional. Para se punir um governo está se massacrando cruelmente um povo e seu território. É contra este ponto, da intervenção militar arbitrária, que nós brasileiros, devemos nos prevenir; nós e todos os países emergentes. A harmonia e a paz internacionais dependem muito da prevalência, no mundo, do respeito aos princípios de soberania, autodeterminação dos povos e não intervenção nos assuntos internos dos Estados. O artigo 4o de nossa Constituição incorpora estes princípios na política internacional do Brasil. Cabe à nossa diplomacia zelar para que não sejam violados. Não podemos aceitar a legitimação jurídica do direito de intervenção contido na sugerida Nova Doutrina da OTAN. A sanção contra os crimes de violação dos direitos humanos, ou contra a deteriorização do meio ambiente, não pode ficar ao arbítrio de um grupo de potências que, inclusive, se artoga ao direito de qualificar quando tais violações ocorrem. Somos membros fundadores da ONU e compromissados com seus princípios e seus mecanismos de atuação internacional e não podemos concordar com sua ultrapassagem na solução de crises e conflitos. A “Nova Estratégia Intervencionista” pretendida pela OTAN, a nosso ver, é contrária ao interesse nacional do Brasil. (*) General do Exército Reformado e Conselheiro da ESG CHINA X EEUU: BIPOLARIDADE DO SÉCULO XXI? Manuel Cambeses Júnior(*) Em sua edição de 3 a 9 de janeiro de 1998, a revista The Economist publica instigante artigo: O Próximo Balanço do Poder. Nele estabelece-se uma projeção, para o prazo de trinta anos, do poder potencial dos principais países e regiões do planeta. A conclusão é clara e permite dizer: somente a China terá condições de equiparar-se aos Estados Unidos no papel de superpotência. Recorrendo aos elementos clássicos determinantes das bases de poder estatal, The Economist elabora uma pontuação comparativa projetada para o tempo de três décadas. Neste estudo, os Estados Unidos atingem uma classificação de 14 pontos, enquanto a China se situa no patamar de 13, bem distante dos demais competidores. Mesmo a Rússia, apesar de seu armamento nuclear, somente conseguiu obter 8 pontos nesta avaliação. Ainda de acordo com aquela revista, a China apresenta uma capacidade intrínseca de valores que não se vê presentes em outros países, ou seja: um concentrado sentido nacionalista, um sentimento de revanchismo histórico – fruto das humilhações acumuladas ao longo de muitos anos – e, pujança econômica. Estas características lhe conferem o perfil de superpotência. O que The Economist não analisa ou se detém, é a orientação que definirá a relação entre as duas monopólicas superpotências. As grandes perguntas se restringiriam: qual será o elemento fundamental de rivalidade entre a China e os Estados Unidos? Poderá esta rivalidade levar a um enfrentamento bélico? Parece pouco provável que o fator ideológico esteja com capacidade para converter-se no núcleo desse enfrentamento. A diferença da confrontação existencial que se deu durante a Guerra Fria, com a existência de dois sistemas de valores irreconciliáveis, sem retirar o aspecto competitivo, parece não ser a tônica dos tempos futuros. Os chineses estão adentrando fortemente na rota do capitalismo e do livre mercado e, concomitantemente, procuram enfatizar o pragmatismo ancestral advindo de Confúcio, triunfo de uma lógica unificadora. Tampouco as aspirações chinesas sobre Taiwan e a subseqüente tutela norteamericana sobre este país, insinuam-se como gerador potencial de uma crise. O mesmo pragmatismo chinês, unido à crescente aproximação de seus modelos econômicos, seguramente conduzirá a um acordo negociado e pacífico entre Pequim e Taipei. O exemplo da fusão de Hong Kong à China evidencia um bom indício neste sentido. O salto para um futuro enfrentamento poderia vir pelo questionamento das tensões e rivalidades comerciais. Isso, ampliado pelos componentes de nacionalismo e revanchismo histórico presentes, poderia transformar-se na fonte de prováveis conflitos. Stephen S. Cohen, reconhecido catedrático da Universidade de Berkeley, direciona muita luz sobre o assunto em interessante artigo publicado na edição de janeiro de 1998 do Le Monde Diplomatique. Segundo ele, a história sempre agitada nas relações comerciais entre Washington e Tóquio está a ponto de reproduzir-se entre Washington e Pequim. A China, igualmente aos tigres asiáticos, copiou o modelo japonês, assentando o seu crescimento econômico coerente com a formulação de técnicas na base da exportações maciças. De acordo com o que nos assinala Cohen, a China está caminhando para tornar-se um poderoso Japão comercial, concomitantemente a uma potência militar de primeiro nível. Com respeito às suas palavras, torna-se extremamente difícil que a China possa integrar-se de maneira duradoura ao sistema comercial internacional, obedecendo a um sistema de exportações maciças. As tensões decorrentes ficariam difíceis de administrar. Hoje em dia o crescimento vertiginoso das exportações chinesas (some-se Hong Kong e Taiwan) tem conduzido a um superávit comercial com os Estados Unidos. Entretanto, a China de hoje espelha um pálido reflexo do que este país tem em capacidade de converter-se, num prazo de três décadas, em termos de consagração no cenário internacional. As aspirações do líder chinês Jiang Zemin visam a manter uma taxa média de crescimento econômico anual na ordem de 6.5%, nos próximos 25 anos. Isso colocaria a nação numa posição de superpotência industrial e com um PIB na ordem de cinco trilhões de dólares. A revista Business Week, edição sobre a China – setembro de 1997 – chama a atenção do leitor com a seguinte afirmativa: “a China já é um monstro exportador de bens de baixo valor agregado. Se conseguir curar os males de seu sistema econômico estatal e tornar eficiente o seu sistema financeiro, poderá emergir como rival do Japão e de seus vizinhos tigres asiáticos em indústrias que vão desde a produção de aço até maquinaria pesada”. Poderá a competição comercial entre Estados Unidos e China conduzir a um enfrentamento armado?. Há alguns anos foi publicado um livro intitulado A Próxima Guerra com o Japão, de George Friedman. Chegou a ser considerada a obra mais vendida no Japão, alcançando, igualmente, o mesmo sucesso comercial de vendas nos Estados Unidos. A tese defendida pelo autor é simples: o Japão, como grande importador de matérias-primas não pode deixar que a seiva que alimenta a sua economia dependa, primordialmente, de outra nação. Acresce de importância o fato quando essa outra nação, os EEUU, tem interesses diemetralmente opostos aos seus. Isto obrigaria o Japão a buscar garantir suas próprias rotas marítimas, nas quais, como conseqüência inevitável, reivindicaria a importância de uma armada capaz de garantir as suas aspirações diante do poderio naval norteamericano. A rivalidade pelo controle dos mares asiáticos, unida às permanentes tensões comerciais, geraria altos decibéis emocio-nais, suscetíveis aos estrondos bélicos. Segundo Friedman, desde 1988, todos os estudos têm demonstrado que os estadunidenses vêem o Japão como seu principal antagonista, inclusive nos tempos em que a União Soviética ainda se encontrava atuante. Ao exemplificar referiram-se a uma pesquisa realizada por McGraw-Hill segundo a qual 22% dos norte-americanos viam a União Soviética como rival e 68% visualizavam o Japão como a maior ameaça aos EEUU. Faz-se mister ressaltar que a tese de Friedman já está defasada ante a nova realidade da crise econômica japonesa. Por outro lado, as premissas da mesma serão perfeitamente aplicáveis e, com muito mais razão, no caso das relações Estados Unidos-China. Para 2015 a China estará importando sete milhões de barris diários de petróleo, elemento vital para sua sobrevivência econômica. A necessidade de controlar as rotas marítimas por onde passe essa força energética produzirá a inevitável rivalidade com os EEUU que sempre definiram, no campo estratégico, o Oceano Pacífico como um “mare nostrum”. Porém, diferentemente do Japão, a China já é uma potência militar de alto significado e com acesso a armamento nuclear. A integração de um super Japão industrial como uma potência militar de primeira ordem, cenário previsto por Stephen Cohen com relação à China, possui todos os elementos para enfrentar um conflito com os norte-americanos, especialmente quando o nacionalismo e o revanchismo histórico chineses estão permeando as mentes das lideranças naquele imenso e portentoso país. Diante desse cenário prospectivo poderemos vaticinar que estas serão as bases da ordem bipolar do Século XXI? (*) Coronel-Aviador R/R Adjunto da Divisão de Assuntos Internacionais (DAINT) CICLOS HEGEMÔNICOS DA ATIVIDADE ECONÔMICA “Porque onde está o teu tesouro, aí estará também teu coração.” Matheus, 6:21 Marcos Oliveira(*) Uma constatação é hoje evidente, a de que na longa disputa entre o capital e o trabalho pela divisão dos frutos da atividade econômica o primeiro vem vencendo por larga margem ao segundo, e este é um resultado que pode ser atribuído diretamente às características do sistema capitalista mundial dentro do qual vivemos mais ou menos por toda parte, mais, certamente, no Ocidente do que no Oriente. Ainda que muitos Estados-Nação tenham sistemas político-econômicos que se oponham ao capi-talismo econômico clássico e ao liberalismo político que lhe é associado é inegável que, hoje, o mundo todo participa de alguma forma do mercado, arena fundamental onde se digladiam vontades e culturas. O sistema capitalista mundial atingiu, nos dias de hoje, uma situação até aqui só alcançada duas vezes no curso de sua história, isto é, uma hegemonia indisputada de apenas um Estado-Nação. No século XVII, a derrota dos interesses dos Habsburgos, em uma guerra de mais de trinta anos e que literalmente devastou metade da Europa, foi seguida de um acordo político, a paz de Westphalia, ao amparo do qual os holandeses ascenderam para uma posição hegemônica, mantida por décadas, hegemonia que se manifestava nos campos comercial, industrial, financeiro e militar. A partir de uma certa segurança na atividade agrícola de base, de um desenvolvimento marcante na produtividade da indústria da época e de uma incontestável supremacia militar, sobretudo marítima, a Holanda foi capaz de dar a necessária proteção ao capital e aos financistas. O ciclo de hegemonia holandês foi minado pelo crescimento dos poderes inglês, e francês. A ameaça inglesa se deu particularmente através de uma revolução agrária e logo a seguir, por uma revolução industrial e de transportes, revoluções que trouxeram um nível de competitividade elevado ao empreendedor britânico em todos os mercados. A Inglaterra bateu a Holanda no comércio internacional e no comércio colonial ao amparo de uma supremacia militar marítima que ceifou milhares de vida para se afirmar. A ameaça francesa estava baseada não só na produção agrária e industrial mas também no poder militar, de natureza terrestre e derivado da escala populacional entre as duas nações vizinhas, claramente favorável à França. O capital, sempre em busca de poder para garantia de sua segurança, migra da Holanda para a Grã-Bretanha, que passa a triunfar também no campo financeiro. A escalada inglesa rumo à hegemonia do sistema mundial se completa após o período de guerras napoleônicas, mais um período de guerras que abalam a Europa por cerca de trinta anos e que culmina com o Tratado de Viena, outra tentativa, a exemplo da paz de Westphalia, de pôr ordem no sistema mundial. A hegemonia inglesa se prolonga por um século e se começa a declinar, no início do século XX. ameaçada pelo crescimento da Alemanha e dos Estados Unidos, Só se extingue definitivamente após a derrota da Alemanha na Grande Guerra Mundial de 1914-1945, quando a hegemonia americana é inconteste e o sistema se acomoda ao amparo de tratados de paz que pretendem organizar o sistema mundial, com a criação da ONU e a assinatura dos acordos de Bretton Woods. Em todos os ciclos, uma vez firmada a sua liderança, a potência hegemônica defende com afinco os princípios do liberalismo, do livre-mercado, do “laisser-faire” prática que lhe interessa em função de sua posição dominante mas que é francamente hipócrita. O processo capitalista, na verdade, está longe de praticar o livre curso dos fatores de produção que seus teoristas liberais advogam. Ainda mais, está sempre próximo ao poder político para manipulá-lo em seu proveito, fazendo com que tal poder interfira no mercado sempre que isto for de seu interesse. O interesse do capital é o processo de acumulação, que é sua razão básica de existência e ele não tem pruridos em contrariar os seus teoristas quando se trata de garantir a sua existência e continuidade. Os ciclos hegemônicos esboçados acima foram descritos e estudados detalhadamente por I. Wallerstein, Braudel, Arrighi, entre outros, sendo aqui suficiente fazer deles um simples resumo. O que se quer chamar a atenção não é a existência dos ciclos em sí ou similitude de suas evoluções históricas mas sim, marcar suas diferenças, sobretudo no que tange ao confronto social no interior do sistema capitalista que se sucede a cada ciclo, alterando a sua imagem . O primeiro ciclo, o da hegemonia holandesa, ocorre entre Estados soberanos mas que ainda não são Estados-Nação. O conflito distributivo no interior do sistema ainda sofre a influência do poder real, ungido do direito divino. É para este poder que se dirigem as críticas e os reclamos, que o capitalista e o capitalismo ainda não haviam desnudado de vez as suas faces. A característica da revolução que emerge do conflito é burguesa, classe que começa a sua ascensão rumo ao poder nos primórdios das revoluções agrária e industrial. A crítica que se faz pela miséria de muitos e a riqueza de uns poucos é dirigida ainda ao “Príncipe”, personagem que o burguês, fazendo coro ao camponês, também critica pela voracidade tributária e interferência nos negócios privados. As vozes mais poderosas desta crítica partem de Locke, na Inglaterra, e de Rousseau, na França; ressoam na América infante no manifesto de independência de Jefferson e Madison. A revolução que se segue é burguesa e as conseqüências de sua vitória são a queda da realeza e a ascensão do cidadão e a do Estado-Nação. Vitória de Pirro, do ponto de vista social que rapidamente as forças da reação se aglutinam, destituem o cidadão e passam politicamente a dominar o Estado-Nação recém formado. Após a consolidação da hegemonia britânica, não há melhora visível no panorama de distribuição da riqueza. Não há dúvida que, com a preponderância do capitalismo industrial sobre o mercantil a quantidade de bens e serviços produzidos aumentou enormemente mas a desigualdade em sua distribuição continua. Desta vez, a crítica que aparece não mais se dirige ao “Principe”, que já não existe. A crítica é dirigida ao sistema, ao processo capitalista de produção em si mesmo. O principal crítico é Marx, que aponta o surgimento de um novo ator e principal vítima do sistema, o proletariado. O processo revolucionário volta a se aquecer fomentado ainda pela falta de eqüidade na distribuição da riqueza, marca registrada do sistema capitalista que se ampara na contínua acumulação. A crítica marxista é a mais consistente que já se fez contra o processo capitalista de produção. Igualitária, ela se expande rapidamente e ameaça a estabilidade do sistema, que reage com medidas de caráter social tendentes a diminuir as desigualdades. O Estado passa a intervir pesadamente em favor das classes menos favorecidas e o trabalho ganha algum espaço frente ao capital. Vários e poderosos Estados-Nação passam a organizar-se sob um novo sistema que se opõe ao sistema capitalista mundial. Em resumo, ao final de cada um dos dois primeiros ciclos hegemônicos do sistema capitalista mundial, o holandês do Século XVII e o britânico do Século XIX, assistiu-se a um movimento de reação ao processo de acumulação capitalista e à desigualdade na distribuição da renda por ele provocada, isto é, vivenciou-se um movimento amplo, fortemente disseminado em diferentes estratos sociais, capaz de, por sua força, ameaçar a estabilidade do sistema. Na base das críticas, em ambos os momentos, a desigualdade na distribuição da riqueza. Uma vez que a desigualdade não foi reduzida no interior do sistema, o que causa estranheza no presente momento do terceiro ciclo hegemônico, é a ausência de forças de reação à desigualdade, pelo menos em quantidade suficiente para inquietar o centro hegemônico e ao processo em si. As outras características dos ciclos anteriores se repetem, inclusive a forte apologia do liberalismo político e econômico e das virtudes do mercado como alocador ótimo dos recursos produtivos pela nação hegemônica. Nunca, em qualquer momento da História, o homem foi capaz de gerar tantos bens, seja de consumo, seja de produção. Sem nenhuma dúvida, o arsenal de recursos à disposição do homem atual é mais do que suficiente para atender às necessidades básicas da sociedade como um todo e, no entanto, há miséria, há fome, há desemprego lado a lado, com abundância e consumo, nitidamente perdulários. Há uma diminuição progressiva do valor do trabalho em relação ao capital. Os salários vêm sendo permanentemente erodidos e fala-se com despreocupação do exército de desempregados existentes em todos os Estados-Nação do sistema, inclusive no Estado hegemônico. Nos Estados Unidos de hoje, uma taxa de desemprego de 4 ou 5% é considerada saudável para o sistema, na medida que impede a busca de salários maiores, diminuidores da taxa de lucros do capital. Sem ela, o capital teria que elevar preços para manter as margens que garantem a contínua acumulação e isto poderia levar à inflação, preocupação maior a evitar. No próprio centro do sistema, os salários do trabalhador vêm sendo erodidos, ao longo das duas últimas décadas, e as novas gerações de americanos não têm mais a garantia de um futuro econômico mais róseo que o de seus pais. Na periferia, o panorama é ainda pior. A maior cidade do Brasil amarga um desemprego recorde, mais de 20%, e, no entanto, a reação é tímida, para não dizer inexistente. Em todo o sistema, a rede de proteção ao homem foi montada no alvorecer do Século XX está sendo desarticulada. O homem, o trabalhador, foi definitivamente banalizado em favor do capital. Apesar da desigualdade e da desesperança, não há protesto sistemático, organizado, capaz de conduzir à luta um número de pessoas suficiente para abalar o sistema, em aparente contraste com etapas semelhantes dos ciclos hegemônicos anteriores, quando articulações de massa levaram o capital a fazer concessões, tímidas que fossem, em favor de uma distribuição mais justa da riqueza. Talvez seja cedo, ainda, para tentar identificar a causa, ou causas, deste comportamento aparentemente anômalo, para esta anemia da sociedade. Movimentos históricos precisam da perspectiva do tempo para ganhar nitidez em suas causas e efeitos e movimentos de sistemas sociais complexos quase nunca apresentam comportamentos causais simples. Ainda assim é possível arriscar a idéia de que, no curso de sua evolução histórica recente, o sistema tenha aprendido o valor do controle cultural das massas como forma de controle social de suas ações. Em outras palavras, o sistema encontrou uma maneira, através dos meios de comunicação a seu dispor, de despotencializar uma possível insatisfação com a desigualdade reinante via substituição de interesses e controle e divulgação seletivo de informações. Não se trata aqui de uma teoria conspiratória por trás do controle dos meios de comunicação de massa. Não é preciso uma conspiração para fazer com que um certo número de pessoas ou organizações aja de forma similar, espontaneamente. Isto ocorrerá sempre que cada uma destas pessoas ou organizações identificar que um certo comportamento é favorável aos seus interesses. Mesmo sem um acordo ou compromisso formal, elas tenderão a se comportar da mesma maneira sempre que estejam convictas de que tal comportamento é favorável ao alcance de seus objetivos. O fato é que, contrariamente ao que se pensou até um certo tempo atrás, o negócio de comunicações é altamente lucrativo desde que esteja estruturalmente ligado ao sistema de mercado. Hoje, a indústria da comunicação- jornais, livros, revistas, rádio, cinema, TV, TV a cabo - segue ao pé da letra a lógica do processo capitalista. É altamente lucrativa. Comunicação é um ramo de negócio que não tem qualquer caráter filantrópico ou social, está apenas em procura do lucro, dentro das regras do processo de acumulação. Ela aufere seus lucros não apenas da venda dos produtos mas, especialmente, de seus anunciantes, partes, como ela, do grande sistema. Não é de se estranhar que seus produtos tendam a defender o sistema em função do qual vivem e prosperam. Ao final dos ciclos hegemônicos anteriores, a capacidade de difusão de idéias era bastante limitada. Não havia o fenômeno da comunicação de massas, jornais e livros tinham tiragens reduzidas, os outros meios não existiam ou estavam apenas engatinhando. Isto colocava em pé de igualdade as diferentes forças sociais em jogo. Marat ou Camille Desmoulins poderiam, no plano das idéias, exercer a mesma influência que Luís XVI, pois a capacidade de comunicação de qualquer um deles não era muito diferente dos demais. Mesmo no primeiro quartel deste século, na fase ascendente do ciclo de hegemonia americana, pequenos jornais de cidades do interior dos EUA eram capazes de exercer tanta influência em seus leitores locais quanto os diários de cidades de maior expressão, até mesmo da capital. Além disto, a mensagem impressa, duradoura, capaz de ser lida e relida, era mais sujeita à análise crítica do leitor. O aparecimento do rádio e o aumento da capacidade de impressão, com jornais diários atingindo aos milhões de exemplares, deu lugar ao aparecimento de um fenômeno social que está no epicentro do sistema de comunicação atual: a propaganda. A propaganda está baseada na idéia de que a repetição contínua e a ênfase no que está sendo repetido criam uma sensação de prioridade na mente da população, inclusive naquela parte da população que faz parte do governo. A propaganda pode orientar os hábitos de consumo da população, dirigindo-os para os produtos de interesse da indústria e pode conformar as idéias dos integrantes dos governos dando a eles um senso de importância e prioridade entre assuntos diversos. Isto é extremamente conveniente pois, no mundo dos negócios, não interessa aos líderes das corporações fazer parte do governo, mas influenciar o governo em suas ações. Com os meios de comunicação de massa à distância, pode-se influenciar milhões de pessoas simultaneamente. Com o rádio e a televisão, um novo tipo de interação se estabelece entre o emissor e o receptor da mensagem. A imagem tem um impacto maior que a palavra escrita, a velocidade da transmissão de informações é muito maior e o conjunto se torna quase acrítico em relação ao recebedor: ele ouve e vê repetidas vezes, não há o quê pensar, não há porquê duvidar. O processo se repete até a exaustão, até a absorção mecânica e o condicionamento inconsciente do comportamento. Propaganda é uma palavra antipática e foi banida do linguajar dos meios de comunicação devido à sua vinculação aos processos de formação de opinião na Alemanha da era nazista. Entretanto, o que se faz hoje no mundo da comunicação é propaganda em sua melhor expressão, apenas muito mais sofisticada. Os meios de comunicação, ou pelo menos o comando dos meios de comunicação, experimentaram um forte processo de aglutinação. Hoje, pouco mais de uma dezena de grupos empresariais dominam a maior parte da comunicação que circula no mundo. São enormes conglomerados que possuem jornais, revistas, editoras, distribuidoras de filmes para cinema e TV, vídeos, discos, redes de rádiodifusão, sinais de TV e até canais de satélites. Na busca do lucro seus interesses extravasam a área da informação, abrangem o entretenimento e criam fortes laços com outros ramos industriais. Um desenho animado de sucesso gera menos lucros que os demais produtos derivados de seus personagens, bonecas, parques temáticos, revistas em quadrinhos, livros infantis, vídeos, roupas para crianças, balões de encher, músicas e enfeites para festas e muito mais. Uma parafernália extremamente lucrativa que liga a indústria da comunicação a outros ramos industriais e vincula definitivamente a comunicação ao mercado. Não é de se estranhar, portanto, que os meios de comunicação mantenham um viés favorável ao sistema mundial capitalista e ao processo de acumulação de capital. Os enormes lucros da indústria de comunicação não provêm da venda de jornais, revistas ou difusão de programas de rádio ou TV. Eles estão vinculados à venda de anúncios, do espaço publicitário, parte hoje essencial de qualquer veículo de comunicação. Nenhum dos grandes jornais de hoje sobreviveria sem o anunciante e a influência do patrocinador no rádio e na televisão é notória. Coberturas jornalísticas de eventos pela televisão só são programadas após o fechamento do pacote de propaganda, cujo pagamento garantirá os lucros. Embora os jornalistas, em geral, proclamem a sua independência de opinião em relação à direção do veículo para o qual trabalham, o sistema tem meios para selecionar o material a ser divulgado, o espaço reservado para ele, a amplitude e constância da cobertura a ser dada etc. Nenhuma grande cadeia deixa de dar uma notícia importante, mesmo que ela seja contrária a seus interesses. Apenas dá a ela um tratamento “adequado”, minimizando seus efeitos na opinião pública. Ao contrário, idéias de seu interesse, como a globalização, por exemplo, por mais discutíveis que sejam, ganham um espaço de divulgação enorme, firmando na mente da população a crença de que a mesma é inexorável e, além disto, benéfica. É possível que o prosseguimento do ciclo histórico que vivemos nos reserve ainda um movimento de luta pela recuperação da dignidade do homem e por uma distribuição mais equânime dos frutos do seu trabalho, mas, para que isto ocorra, é essencial que algo de realmente revolucionário ocorra com os meios de comunicação, cortando o nó que hoje o amarra aos interesses do mercado e do sistema. (*) Conferencista da Ex-Membro do Corpo Permanente Escola Superior de Guerra REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bagdikian, Ben H. – O Monopólio da Mídia Scritta Editorial, S.Paulo, 1993. McChesney, Robert W. – Capitalism and the Information Age Monthly Review Press, New York,1998. Wallerstein. I. The Politics of World Economy Cambridge University Press, Cambridge, 1991. BRASIL: ETERNO PAÍS DO FUTURO Carlos Syllus(*) Introdução Todos nós ouvimos de nossos pais que o Brasil estava fadado a ser um grande país, no futuro. A nossa geração chegou a acreditar que enfim iria se cumprir o nosso destino, em face de um desenvolvimento continuado, por vários anos, que o país experimentava. Com efeito, embora poucos saibam, no século XX, até os anos 70, o Brasil foi o país que mais se desenvolveu, no mundo. Daí termos chegado, hoje, à condição de nona economia mundial. Este desenvolvimento, entretanto, não foi obra do acaso, mas resultou de um projeto concebido por brasileiros ilustres, verdadeiros estadistas, e que foi concretizado pelo esforço, e mesmo sacrifício, de todos os brasileiros. As realizações mais notáveis iniciaram-se com Getúlio Vargas, que concebeu, deliberadamente, um projeto nacional ambicioso e criou toda uma infra-estrutura para levá-lo a bom termo, no sentido de forjar uma grande Nação. Este projeto teve continuidade com Juscelino Kubischek e foi retomado, com grande ênfase, persistência e êxito, pelos governos militares. O caminho para a prosperidade e o futuro foi, entretanto, interrompido na década de 80, que passou a ser conhecida, por esta razão, como a década perdida. E para desespero de todos nós, estamos para concluir a década de 90, com resultados ainda piores do que aqueles alcançados na década perdida. O Brasil passou a ser referido nos centros econômicos internacionais, ironicamente, como o eterno país do futuro. O período de estagnação que experimentamos, já por duas décadas, se superpõe a um quadro de grandes transformações por que passa o mundo. Transformações que resultam de forças motrizes poderosas como sejam: (1) o fim do comunismo e o surgimento de um mundo, economicamente multipolar, com uma única potência, politicamente dominante; (2) os avanços espetaculares da ciência e da tecnologia; (3) a globalização; (4) e a superpopulação. Estamos, portanto, em face de um duplo desafio que estão profundamente inter-relacionados: a retomada do desenvolvimento e a inserção em uma nova ordem econômica mundial. As duas questões são interdependentes. A inserção virtuosa na economia mundial não é possível sem a reorganização interna e esta deve ser realizada à luz de uma nova realidade mundial. Os esforços de reorganização social e econômica, em nosso País, tem se mostrado insuficientes, em face das resistências políticas e corporativas e da falta de um projeto nacional que tenha empolgado a sociedade. De outro lado, as tentativas que estão sendo realizadas, no sentido de inserir o País na nova realidade mundial, resultante das transformações acima mencionadas, tem sido concretizadas de uma forma improvisada e pouco competente, sem que se disponha, como já se disse, de um projeto nacional, que lhes dê rumo, coerência e eficácia. Como resultado de duas décadas de estagnação e do insucesso na tentativa de inserção na nova realidade mundial, pode-se observar um processo crescente de deterioração sócio-econômica do País, que está ameaçando seriamente o nosso futuro. Muitos acreditam que o País vive um momento crucial de sua história, no qual está sendo decidido o nosso destino. No entender destes analistas, vivemos um momento em que ou resolvemos os nossos problemas e as nossas contradições e retomamos, como conseqüência, o caminho para nos tornarmos uma nação desenvolvida ou estaremos condenados a ingressar no rol das nações em crescente decadência em suas condições sócio-econômicas. A solução de nossos problemas não é uma questão trivial e que possa se resolver espontaneamente, ao sabor das forças econômicas. Estamos em face de uma realidade que ameaça a estabilidade e o futuro da Nação. A situação exige um grande esforço concentrado e que persista por vários anos, orientado por um projeto nacional, que conte com o consenso de toda a sociedade. É necessária a conjugação de todas as forças vivas da nação, o que só poderá ser alcançado se houver uma consciência, por parte das elites dirigentes, da gravidade do momento em que vivemos. A conscientização de que estamos falando é uma tarefa absolutamente necessária e de responsabilidade de todos nós e esta comunicação é uma modesta e limitada contribuição neste sentido. Naturalmente, existem aqueles que acreditam que o momento difícil por que estamos passando reflete, apenas, as dores da evolução e das transformações decorrentes da nova realidade. Os que assim pensam atribuem nossas dificuldades, atuais, a não mais do que uma fase recessiva do ciclo econômico, que normalmente caracteriza o desenvolvimento dos povos, e que retornaremos, no devido tempo, a fase ascendente do ciclo. Sim, é certo que voltaremos a nos desenvolver, em algum momento. Mas a questão é a natureza deste desenvolvimento. Na interpretação acima, retornaremos ao desenvolvimento, porem segundo o mesmo paradigma atual de concentração de renda e de exclusão social, isto é, consubstanciado na existência de dois “Brasis”, também chamado de Belíndia. Entretanto, quando falamos em um ponto crítico quanto ao nosso futuro, estamos nos referindo à mudança de paradigma que se faz necessária e ao redirecionamento de nosso desenvolvimento, no sentido de uma nação mais justa, moderna, desenvolvida e integrada à comunidade internacional. Neste contexto, voltamos a afirmar que temos dois grandes desafios, interrelacionados, a enfrentar: a inserção na economia mundial e a reestruturação sócio-econômica que se faz necessária no país. A seguir, procuraremos abordar estas questões, de uma forma muito breve. A Insersão na Economia Mundial O mundo passa por grandes transformações, em decorrência de forças motrizes poderosas como sejam : o fim do comunismo, o surgimento de um mundo economicamente multipolar com uma potência politicamente dominante, a revolução pós-industrial e a superpopulação. Os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia aparecem neste quadro, como os elementos dinamizadores destas forças motrizes. Todos os países estão se orientando no sentido de se inserir nesta nova realidade, da maneira que lhes seja mais vantajosa. Manter-se alienado deste processo significa isolar-se do resto do mundo e ingressar no caminho da estagnação política, social e econômica. Mesmo a China comunista compreende que não é possível ausentar-se deste processo. Toda a dificuldade reside, entretanto, na maneira, na intensidade e na tempestividade desta inserção, para que não haja, como decorrência, conseqüências perniciosas e indesejáveis. Cada país, em função de sua cultura, instituições e realidade política, social e econômica tem seu próprio caminho, para alcançar uma inserção virtuosa nesta nova realidade. O Brasil, lamentavelmente, não tem dado a esta questão a importância que ela merece. Alguns simplesmente negam a necessidade desta inserção, com a alegação de que se trata de uma imposição das grandes potências econômicas, visando a atingir seus próprios interesses. Outros ficam fascinados pelo que chamam genericamente de globalização e sugerem simplesmente, que nos entreguemos a ela sem restrições, com total abertura comercial, financeira e tecnológica. Evidentemente, a atitude correta e prudente está a meio caminho desses extremos. A inserção é uma necessidade e mesmo os países mais extremistas já conscientizaram este fato. Entretanto, esta inserção deve ser levada a termo segundo um processo planejado que, em cada caso, analise a maneira, a intensidade e a oportunidade, no tempo, da referida inserção. Começamos mal este processo, pela abertura irresponsável do governo Collor e o levantamento exagerado e indiscriminado das barreiras alfandegárias nos governos seguintes. Atualmente, há uma certa perplexidade com o surgimento de conseqüências perversas para a economia e a sociedade, em função dos erros cometidos. Chegamos ao momento crucial de que falamos anteriormente. Nesta conjuntura, novos equívocos poderão ter conseqüências irreversíveis para o nosso futuro. A Reestruturação Necessária Seja qual for a interpretação que se dê ao momento atual, acreditamos que todos concordam que não é mais possível persistir na trajetória que temos percorrido nas últimas décadas. A seguir apresentamos uma visão sucinta dos desafios que temos a enfrentar na reorganização do País, para que o mesmo venha a reencontrar seu destino. 1. A concentração de renda De acordo com a UNESCO, o Brasil é o país que, no mundo, apresenta a maior disparidade de renda. Dez por cento da população se apropria de 50% da renda, enquanto os 40% mais pobres ficam apenas com 8%. Estamos em pior situação que o Senegal e Zimbawe. O Salário Mínimo é o mais baixo da América Latina e representa ¼ do valor aquisitivo que tinha quando foi instituído por Getúlio Vargas. Quarenta milhões de brasileiros vivem na maior pobreza, sendo que a metade destes em pobreza absoluta. E não há qualquer esperança à vista, pois os níveis de concentração de renda continuam a crescer a cada ano. São milhões de brasileiros que não tem nem mesmo onde morar e o que comer. As deficiências protéicas estão dando margem ao surgimento de um grande segmento populacional mentalmente deficiente. O resultado de tudo isto é a pobreza, a marginalidade, a favelização e a criminalidade. Este é o desafio gigantesco que temos pela frente, em que um terço dos brasileiros se assemelham cada vez mais às populações mais pobres dos Estados africanos. Somos um dos países mais desumanos do mundo. 2. O Crescimento Demográfico As taxas de natalidade no País ainda são muito elevadas. A sua repercussão no crescimento demográfico não é mais sensível, em face da mortalidade infantil, que no momento se aproxima das mais altas do mundo. Para agravar a situação, estas taxas de natalidade são extremamente altas, justamente nos setores economicamente menos favorecidos e entre a população de mais baixa renda. A taxa de natalidade entre meninas de 10 a 14 anos, mães solteiras, dobrou nos últimos dez anos, aumentando o contingente de famélicos e desempregados. Este é o desafio com que nos deparamos atualmente e qualquer ação no sentido de redução da natalidade pela promoção da paternidade responsável, encontra resistência na Igreja e nos setores mais conservadores da sociedade com ressonância nos interesses políticos subalternos. A cada ano nascem 3 milhões de brasileiros. Numa avaliação conservadora, é necessário em média, R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) em termos de alojamento, alimentação, educação, saúde etc para levar cada um desses brasileiros à idade e ao nível de qualificação para se integrarem ao sistema produtivo (nos EUA – US$ 250.000,00 per capita). Sendo assim, precisamos reservar 600 bilhões de reais, anualmente, para atender ao crescimento populacional e à integração econômica do mesmo. Qualquer um pode concluir que isto é impossível e o resultado é um só, pessoas sem teto, sem alimento, sem educação, sem contribuição ao sistema produtivo e, por outro lado, grande participação na marginalidade e no crime. Este é o desafio que temos que vencer antes que irremediavelmente ingressemos no quarto mundo das nações irrecuperáveis. 3. A Questão Educacional Vivemos o início da revolução da informação e do conhecimento. Revolução que, calcada no desenvolvimento da ciência e tecnologia, deu surgimento a grandes modificações na produção e comercialização de bens e serviços, com profundas transformações sócioeconômicas. Presenciamos a transformação da indústria, a reformulação do emprego, o colapso da seguridade social e mudanças significativas no comportamento humano. Estas transformações ocorrem, simultaneamente, com o surgimento de um mundo multipolar, em termos econômicos, num quadro de globalização, financeira e comercial. Se todas estas modificações se concretizaram com base na informação e no conhecimento, somente a educação será capaz de nos preparar para enfrentar esta nova realidade, pois a educação é a base daqueles conceitos. Sem a educação estaremos incapacitados a atender à atual flexibilização dos empregos, à inserção na nova economia mundial e mesmo ao usufruto dos novos produtos e procedimentos resultantes desta nova revolução industrial e da globalização. Somente a educação irá proporcionar a possibilidade do controle demográfico, da ascensão social, da diminuição da concentração de renda e do desenvolvimento. De tudo o que se disse, pode-se compreender facilmente o desafio que temos pela frente, em face da precária situação da educação no país. Basta mencionar que 20% da população, acima de 15 anos, é analfabeta. Cerca de 50% da nossa mão-de-obra não completou o curso primário. Apenas 10% dos empregados possuem o curso superior. Contamos com apenas 3 engenheiros por cada 10.000 empregados, enquanto que na Coréia são 32 e nos Estados Unidos 160. De outro lado, o ensino no Brasil deixa muito a desejar em todos os níveis. Apenas recentemente se pensa em reformá-lo para adaptá-lo À nova realidade. O ensino profissionalizante e de nível médio é extremamente precário e o de nível superior não atende às solicitações do mercado. Apesar de todas as deficiências, os recursos destinados à educação e cultura foram reduzidos no período de 1995-98 em 20%. Pode-se concluir, facilmente, que, a menos que haja uma modificação dramática no quadro acima, não temos a mais remota possibilidade de superar os desafios que se põem ao País, neste momento crucial de nossa história. 4. Infra-estrutura A infra-estrutura é o elemento essencial para o desenvolvimento do País. Entretanto, os setores de transporte e de comunicações, praticamente, não se desenvolveram nos últimos 20 anos e o setor energético cresceu em nível inferior ao que seria necessário, só não tendo colapsado, ironicamente, porque o País estagnou, nestes últimos 20 anos. Energia O setor de energia elétrica está trabalhando na faixa de risco, com apenas 5% de reserva, o que representa 1/3 do que se recomenda tecnicamente. Nos próximos anos, a necessidade de racionamento de energia é uma hipótese muito provável. Em face da privatização do setor elétrico, a estratégia adotada é de que cabe ao setor privado prever o crescimento do setor, com no mínimo, 6 anos de antecedência, que é o tempo para se construir uma hidrelétrica. Com base nesta previsão, é que o próprio setor privado irá se propor a fazer os investimentos necessários para que venhamos a dispor da energia e das linhas de transmissão necessárias, tudo no devido tempo. Tratam-se de investimentos de grande monta a serem feitos, sem retorno, por um prazo de 05 a 06 anos. Também a eletrificação do campo, em geral deficitária, ficaria a cargo do setor. Diga-se, à guisa de esclarecimento, que 40 milhões de brasileiros desconhecem os benefícios da energia elétrica. Pois bem, esta é a aposta feita no setor privado e o prêmio ou a perda é o futuro do País. Transporte A rede rodoviária, praticamente, não cresce há mais de vinte anos e está significativamente deteriorada. Apenas 8% das rodovias são asfaltadas, enquanto na Argentina, por exemplo, este percentual é de 23%. A rede ferroviária está deteriorada e encolhendo ano a ano. Sua extensão é, ridiculamente, pequena, cerca de 30.000 Km, igual a da Argentina um país que tem 1/3 da extensão do nosso. A frota marítima e os estaleiros brasileiros estão reduzidos a sua expressão mínima. O transporte marítimo que já foi de 40% com bandeira nacional, hoje não chega a 5%. Nos EUA, a navegação de cabotagem se faz, por lei, em navios americanos e com equipagem americana. Comunicações O Sistema de Comunicação está praticamente privatizado. O que se pode dizer é que os desafios são enormes, basta mencionar que o número de telefones por habitantes do país é de 1 para 15. Na Argentina, para comparar, é de 1 para 10. O futuro das comunicações contempla o estabelecimento de infovias, mas a este respeito nada está definido no País. 5. A Questão Tributária A questão tributária no País é de uma gravidade tal que é espantoso que nada seja feito a respeito. Das quinhentas maiores empresas do País, 50%, simplesmente, não pagam impostos. Os maiores bancos do País, em 40% dos casos, não pagam impostos. A sonegação de imposto no País é estimada em 50%. De outro lado, o cidadão é tributado em níveis incrivelmente altos, especialmente os assalariados. Para exemplificar, um cidadão brasileiro, casado com 2 filhos que receba R$ 3.000,00 por mês, paga o dobro de imposto de renda que pagaria um cidadão americano (EUA) que recebesse um salário correspondente. Entretanto, se o salário for de R$ 20.000,00 por mês, o cidadão brasileiro pagará menos que o americano, em situação semelhante. A evasão de recursos para o exterior de forma irregular atingem, como apurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a bilhões de dólares. Parte desses recursos voltam ao País como investimento estrangeiro, sem pagamento de imposto. 6. O Deficit Social Além da concentração de renda, pode-se apontar alguns itens que espelham o gigantesco déficit social com o povo brasileiro. Previdência Social A Previdência Social criada com vistas à aposentadoria foi estendida à seguridade social, incluindo saúde e outros benefícios. Inicialmente se previa a participação paritária do empregado, empregador e governo, sendo que este desde logo se eximiu de contribuir. Posteriormente, os recursos da Previdência foram desviados para a construção de Brasília, Transamazônica etc. A Previdência, de outro lado, sofreu toda sorte de desvios ilegais e fraudes de toda ordem. Foram criadas aposentadorias milionárias de R$ 30.000,00 e mais (no E.U. o teto é de apenas US$ 1.600,00). Some-se a isso, a inclusão do empregado agrícola na Previdência, sendo que o mesmo nunca tenha contribuído para a mesma. Uma série de empregadores foram generosamente perdoados de suas dívidas com o INSS, em milhões e milhões de reais. Em função de todos estes descalabros a Previdência quebrou, vindo a onerar as contas do governo. Temos, portanto, um desafio enorme, que seja regularizar a questão previdenciária, que de tão grande parece insolúvel. Saúde A baixa renda, a desnutrição, as condições sanitárias, a alta natalidade, os custos crescentes da medicina, tudo concorre para o colapso da saúde no País. O número de internações é crescente e chega a 16 milhões por ano. O Brasil é um dos países de maior mortalidade infantil do mundo, só ficando a frente dos países pobres africanos. Cerca de 25% das crianças na escola, no Norte-Nordeste, sofrem de desnutrição. As doenças infecto-contagiosas, chamadas de doenças da pobreza, estão aumentando no País, tais como a malária, a hepatite, a dengue, a esquistossomose, a doença de Chagas e até a tuberculose, que está recrudescendo no País. Estima-se em torno de 40 milhões o número de pessoas atingidas por doenças infecciosas no país. A situação da saúde no Brasil é preocupante e tende a se agravar em função do aumento da pobreza, do desemprego e da estagnação econômica. Pode-se concluir, portanto, que temos um desafio imenso a vencer também neste setor da realidade brasileira. Habitação A questão habitacional se agrava a cada ano e a favelização, agora não só nas grandes cidades, é crescente. Estima-se um déficit habitacional de cerca de 12 milhões de habitações. Nos países que por razões diversas, inclusive guerras, tiveram um grave déficit habitacional esta questão foi enfrentada inclusive pela ação de ministérios criados com essa responsabilidade. No Brasil um programa neste sentido que contava com um Banco Nacional de Habitação foi simplesmente extinto. A dimensão deste desafio e os custos que ele envolve, são preocupações a acrescentar quando se pensa no futuro do país. Desemprego O crescimento demográfico, sem o desenvolvimento correspondente do país, e os avanços da tecnologia, eliminando postos de trabalhos, está conduzindo o país a taxas crescentes de desemprego. Esta é, hoje, a maior preocupação do povo brasileiro, aliada às questões de segurança. A taxa de desemprego já excede a 8% da força de trabalho, sendo que em São Paulo aproximase dos 20%. A situação é explosiva e concorre para a pobreza, a falta de saúde e a criminalidade. O problema é mais grave por não contarmos, como ocorre em outros países, com um seguro desemprego adequado. Este é mais um desafio a vencer e cuja solução depende, diretamente, do desenvolvimento do País, sendo qualquer outra medida mero paliativo. 7. O Setor Agropecuário Existe um conceito unânime, de que o Brasil com a área agricultável que possui, o clima e a disponibilidade de água que desfruta poderia ser um dos maiores produtores de produtos agropecuários, com capacidade de alimentar o seu povo e exportar o excedente. A realidade entretanto é bem outra. Em 1998, importamos trigo, milho, arroz, o feijão e os níveis de desnutrição da população se acentuaram. Enquanto a Argentina, por exemplo, aumentou a sua produção em grãos em 60% nos últimos 5 anos, nós mantemos, há mais de 10 anos, uma produção em torno de 75 milhões de toneladas. Por incrível que pareça esta é a produção argentina com a metade das terras agricultáveis. De outro lado, os índices de produtividade e de qualidade de nossos produtos são insatisfatórios, o que é mais uma dificuldade para que sejamos um grande exportador de produtos agropecuários, o que poderia ser de grande ajuda para a nossa balança comercial, elemento essencial no desenvolvimento do País. 8. O Setor Industrial O País depois de ter desenvolvido uma engenharia qualificada, com capacidade de competição no exterior, e uma indústria diversificada e muito ativa no setor produtivo, se depara hoje, com grandes dificuldades nestas duas áreas de atividades. Com efeito, a engenharia após ter sido reduzida sensivelmente, sobretudo em face da diminuição drástica na execução de obras de infra-estrutura, se encontra presentemente em grandes dificuldades econômicas e tecnológicas. A indústria, por sua vez, a par da redução das encomendas, em virtude da redução do crescimento, enfrenta uma competição externa agressiva decorrente da abertura não planejada do mercado. As conseqüências de uma abertura indiscriminada, aliada a uma sobrevalorização do dolar e a juros estratosféricos foram extremamente penosas para a indústria e a recuperação do setor será uma tarefa difícil de empreender. A nacionalização dos automóveis caiu ao nível de 30/40%, quando já chegou a 70%. Como conseqüência, a indústria de autopeças está em crise, com o desemprego conseqüente. De outro lado, observa-se um processo de desnacionalização da indústria, sendo que cerca de 500 empresas de porte já foram desnacionalizadas nos últimos 10 anos. 9. A Corrupção A corrupção no País atinge a níveis insuportáveis. Não há um setor de atividade que, investigado a fundo, não apresente toda sorte de irregularidades. Quais as razões de termos chegado a esta situação constrangedora? Será a pobreza, a impunidade, a educação, as precárias condições sociais, as desigualdades, o desemprego, a herança colonial, a questão cultural? Possivelmente uma conjunção de todos estes fatores, o que dá a medida do desafio a enfrentar. O que espanta é a tolerância com a corrupção. Os corruptos convivem tranqüilamente com as pessoas de bem, sem se intimidar e até com arrogância. Não há um repúdio a essas pessoas e ninguém denuncia ninguém. É temerário fazê-lo, seriam considerados dedos-duros. E o que é mais preocupante e vergonhoso mesmo, é que as pessoas de bem, que são maioria, estão intimidadas por uma minoria ousada. A maioria das pessoas perdeu capacidade de se indignar e aceita, passivamente, as situações mais constrangedoras, em seus locais de trabalho, no seu dia-a-dia. De outro lado, ninguém fiscaliza ninguém. A fiscalização mesmo por aqueles que têm obrigação de fazê-lo é considerado algo indigno, coisa de autoritarismo, de perseguição. Seria impensável destituir, punir alguém por que um subordinado seu repetida e claramente agiu delituosamente. Desta forma, é perfeitamente possível a alguém agir com desonestidade, por longo tempo, quase que abertamente, sem ser incomodado por ninguém. É a certeza da impunidade. É evidente que a corrupção existe em todos os países. Mas o que espanta e revolta é a extensão e profundidade com que ela ocorre no Brasil. E mais, o clima de impunidade e a ousadia com que agem os corruptos, quase que abertamente e intimidando as pessoas de bem. Como conseqüência, temos um País praticamente de cabeça para baixo. Os juizes de quem se espera equilíbrio, isenção e justiça, estão sendo acusados de roubo, seqüestro de crianças, conivência com o narcotráfico. Nos hospitais, de onde se espera a cura e a salvação dos doentes estamos assistindo o descaso, a irresponsabilidade e mesmo o assassinato dos pacientes. Os medicamentos, que poderiam representar a esperança de cura das inúmeras doenças, estão sendo falsificados em larga escala. A polícia, que deveria representar a segurança dos cidadãos, está extorquindo, roubando e matando. A escola, que deveria instruir e ensinar, está em larga escala, se transformando em negócio muito lucrativo, sem qualquer compromisso com a educação. A política, que deveria ser instrumento do bem comum, se transformou em um balcão de barganha e de interesse pessoal, com grandes rendimentos para os políticos. A televisão, que deveria instruir e educar, apresenta em escala crescente programas de baixo nível, disseminando valores e procedimentos reprováveis. O sistema financeiro se transformou num grande cassino, onde se constroem grandes fortunas, imediatamente enviadas ao exterior, sem fiscalização e sem risco, pois o governo cobre eventuais possíveis prejuízos. Um segmento expressivo das instituições religiosas, que conduziriam à salvação da alma, se transformou apenas num negócio lucrativo. As conseqüências danosas para o País, decorrentes da corrupção generalizada, vão muito além do que se possa imaginar Marvin Zonis, da Universidade de Chicago, afirma que a corrupção é o principal fator que contribuí isoladamente para a instabilidade política e o retrocesso econômico nos países emergentes. A corrupção produz, inevitavelmente, a crise política. A corrupção é, ao mesmo tempo, importante causa e efeito de todas as disfunções que foram mencionados anteriormente. Decorre daí o desafio imenso que representa a redução dramática da corrupção e a valorização do procedimento correto, como condição primeira para que o país escape de um futuro melancólico. Conclusão Qualquer analista que avalie, com isenção, a conjuntura brasileira, não poderá deixar de concluir que vivemos um momento delicado de nossa história. Estamos em face de uma encruzilhada, ou nos sensibilizamos para mudar, drasticamente, a situação atual e nos orientamos no sentido de vencer os graves desafios que se nos oferecem ou o país mergulhará no caminho de sua própria desagregação sócio-econômica. O primeiro passo a ser dado é a conscientização de todos, sobretudo das elites dirigentes, para a gravidade do momento. Os pobres e excluídos já têm esta consciência, pois sofrem duramente os efeitos de uma realidade perversa. Em seguida, é preciso que todos estejam conscientes de que as nossas dificuldades decorrem, fundamentalmente, da nossa acomodação, improbidade, incompetência e, sobretudo, falta do espírito de vencer as nossas vicissitudes e de construir uma sociedade mais justa e próspera. É preciso deixar de lado, definitivamente, o erro de atribuir a nossa cultura, a nosso passado ou a terceiros, a origem de nossas dificuldades, insucessos e descaminhos. É necessário sensibilizar a sociedade no sentido de pressionar as lideranças e as elites no sentido de empreender ações na direção da solução de nossos graves problemas e para a retomada do desenvolvimento. Estas ações são parte de um processo e devem ser compreendidas ou coordenadas pelo governo, segundo um projeto nacional, concebido em consonância com a sociedade e levado adiante com determinação e persistência, por muitos e muitos anos. Rio,10/06 1999. (*) Chefe da Divisão de Assuntos de Ciência e Tecnologia (DACTEC) GEOINTERVENÇÃO Elton Fernandes(*) e Darc Costa(**) No passado não se falava em ciência nem em geopolítica. Mas em um momento do passado se começou a falar de ciência. Um dos primeiros a abordar a questão da ciência foi Emannuel Kant, um dos maiores filósofos do iluminismo alemão. Este filósofo foi autor de obras importantes, como as Críticas à Razão Pura e à Razão Prática e buscou suplantar numa única posição tanto o materialismo de Descartes quanto o idealismo integral de Berkeley na explicação do conhecimento humano e concluiu que as ciências só atingiam a superfície das coisas: os fenômenos, a realidade, ou seja, a própria essência das coisas escapava-lhes. Para ele, o pensamento humano era impotente para conhecer a coisa em si. Todavia, o maior filósofo dos tempos modernos, Hegel, recusou-se a ficar por aí. Estabeleceu que, para ultrapassar a visão “kantiana” da impotência, é necessário entender e aceitar que o pensamento humano é capaz de ultrapassar as contradições que lhe são apresentadas pelas ciências exatas e pelo simples bom senso. Para tanto, fazia-se mister não considerar o principio da contradição como princípio supremo da lógica. Precisava-se ir além e para ultrapassá-lo devia-se ter a certeza da idéia de que o mundo é na realidade e em essência uma unidade entre contrários. Acompanhando a idéia desta unidade entre contrários, Hegel trazia outra, que é a da permanente existência, em todos os processos, inclusive naqueles em que está o homem, de um contraditório, que se expressa através de uma tese e de uma antítese, posições estas que se digladiam em um equilíbrio instável, até que se processa uma ruptura, dando origem a uma síntese, que será uma nova tese e que buscará sua antítese. .O mundo é para Hegel, em essência e na realidade uma unidade entre contrários. A colocação que Hegel faz de uma permanente dinâmica e evolução em todos os processos conduz à certeza de que cada dia traz em si um período novo. Paralelamente ao avanço da filosofia, o nosso planeta tem sido, cada vez mais, o centro de tudo, ao ser progressivamente ocupado pela civilização. Por isso, a Terra tem-se transformado, crescentemente, em um campo de luta. Diferentemente do que tem sido propagado, a prevalência das mesmas teses no mesmo espaço e a sua luta têm explicitado, crescentemente, as dualidades primitivas das sociedades humanas: a do centro com a periferia, e a da barbárie com a cultura. Esta é a verdadeira explicação porque a disputa desse espaço, que é finito, que é limitado, tem sido feita, nos últimos quatrocentos anos, com muito maior vigor e rapidez, pelas partes que compõem o todo. A geopolítica é um instrumento criado para este embate. Outras criações sustentam este embate. Uma, no entanto, é unânime, em todos os pensadores que discutem o progresso humano: a vida social e a sua acompanhante permanente, a vida política. E estas têm, como sua última criatura, o Estado Nacional. A idéia de Estado Nacional é um pensamento muito elaborado. Seu entendimento pressupõe o caminhar por uma linha ininterrupta de idéias, através do espaço e do tempo, que ligam as hordas às grandes potências. O Estado Nacional constitui o resultado das soluções silenciosas e progressivas das questões que surgiram da convivência humana. Querer estabelecer o preciso momento e a melhor via em que se deram essas soluções, é muito difícil. Entretanto, a forma dessas soluções sempre foi a mesma: o pacto. Seja aquele resultante da imposição do mais poderoso e que, portanto, decorre da racionalização de desvantagens; seja aquele que advém da composição de vontades, e que, portanto, resulta da racionalização de vantagens. O pacto é, antes de tudo, um produto da razão. A linha que liga as hordas à sociedade atual - à civilização - é um contínuo de pactos, sendo, talvez, a mais visível expressão da razão. O Estado Nacional é a última estação dessa linha ininterrupta de acordos. Não a última, mas a última conhecida. Não definitiva, mas a última praticada. Conhecer o Estado Nacional é conhecer a história da razão e de seus pactos. E a geopolítica é um tema importante na formulação dos Estados Nacionais. A idéia de Estado resulta, portanto, da posição ordenadora do homem. Entretanto, esta posição ordenadora se processa por ondas sucessivas. Há ações que desencadeiam a desordem e há ações que restabelecem uma nova ordem, em um novo patamar. Ruptura e equilíbrio transitório, se alternam. Nada pode explicar melhor a marcha do processo civilizatório que a ação ordenadora do homem, fruto de seu inconformismo. Ruptura processada segue-se uma nova ordem. Esta nova ordem é início de uma nova desordem. Há um predomínio de várias civilizações ao longo do tempo, como mostra a história, no processo civilizatório. A História Universal, mostra, de forma inequívoca, a ruptura e o estabelecimento de uma nova ordem, sucessivas vezes, no decorrer deste processo. A simplificação estabelecida permite ainda concluir que a dinâmica do processo civilizatório, que aqui nomeamos como teoria do retardo, pode ser assim resumida: toda periferia busca o centro e toda a barbárie busca a cultura. De certa forma, essas colocações recuperam a visão de Hegel em sua inteireza. Como o filósofo apresentou, a evolução histórica resulta da solução da tensão entre opostos, que se dá de forma repentina. Desaparecendo os opostos, desaparecia, na visão do filósofo, a tensão. Isto é óbvio se só existem duas partes. Poderia, então, ser a conclusão, de quem esteja trabalhando sob a ótica hegeliana, ao tratar da dualidade centro e periferia, ou da dualidade barbárie e cultura, que existiriam soluções na tensão entre esses opostos. Ao se tratar dessas dualidades as duas partes são múltiplas, o que garante a permanente tensão e conseqüentemente a imortalidade da história. Síntese feita, antítese colocada. Novo centro, nova periferia. Nova cultura, nova barbárie. Cumpre, portanto, recuperar Hegel por inteiro. O sonho, fruto do espírito, é o impulsionador da história. E este sonho é muito mais claro e muito mais forte na periferia e na barbárie. O que Hegel colocava em sua filosofia era a permanente dinâmica. Existe uma dinâmica social. E a origem desta dinâmica é o sonho coletivo. Sonho que resulta e se processa no âmbito de uma sociedade. Diferentemente do que Marx havia colocado, o maior choque é o que se processa entre sociedades e não aquele que se dá dentro de uma sociedade. O maior dos choques é o que se dá entre o sonho coletivo de uma sociedade emergente e tudo aquilo que se opõe à dinâmica social. Sintetizando, a periferia sonha e, ao sonhar, conduz o processo civilizatório e a evolução histórica resulta da solução da tensão entre opostos. Para melhor entender o tema geopolítica teremos de recuar novamente ao final do século XVIII. Nessa época, o centro do processo civilizatório estava dividido pelo Canal da Mancha. Estava dividido e estava rompido. Duas rupturas haviam se processado. A primeira na maneira de agir, na Inglaterra, pelo nascente processo de industrialização. A segunda, na França, na maneira de pensar, em decorrência do bafejar da abertura proporcionada pela prevalência das idéias sobre os dogmas. A primeira dessas rupturas é conhecida como revolução industrial e gerou o que veio, mais tarde, a se denominar sociedade industrial. A outra ruptura deu origem à revolução francesa e a derrubada do absolutismo, o que levou ao moderno Estado Nacional. A periferia do processo civilizatório, naquele instante, englobava toda a Europa Continental, excluída a França e os demais continentes. Como se comportaram as nações que buscavam o centro? Como se comportaram os antigos retardatários, aqueles que tinham, além dos meados do século XIX, um amplo mercado interno e que buscavam viabilizar antigos Estados Nacionais estruturados? Em primeiro lugar, estabeleceram como seus principais objetivos ter um Estado Nacional moderno e criar uma sociedade industrial. O entendimento do que vem a ser um Estado Nacional moderno e uma sociedade industrial é de extrema importância para essa exposição. Entendemos como Estado Nacional moderno aquele em que a sua vontade é coincidente com a dos seus cidadãos e que tem como contraponto o antigo estado nacional, em que a vontade resultava exclusivamente da sua casa reinante, ou de sua elite dirigente. Entendemos como sociedade industrial não exclusivamente criar um sistema industrial dentro das fronteiras de um território nacional, mas ir muito além disso, dando condições à população, que habita aquele território, de participar dessa criação, usufruindo dos bens que vierem a ser gerados por esse sistema. Mas se os antigos Estados Nacionais estruturados buscavam como política criar um Estado Nacional moderno e uma sociedade industrial, as histórias dos antigos retardatários que chegaram ao centro: Alemanha, Japão e Estados Unidos demonstram que se necessita se dotar, para atingir esses objetivos, de uma concepção estratégica e de uma vontade nacional. Todos os três também alem disso foram e continuam sendo adeptos da doutrina do intervencionismo e do nacionalismo econômico. A economia, para eles, sempre foi vista como uma ferramenta a ser utilizada pelo Estado na busca de uma concepção estratégica, ou como um elemento primordial para a formulação de sua política. Nunca foram liberais. O liberalismo econômico que agora praticam coaduna-se perfeitamente com os postulados desta doutrina. A doutrina do nacionalismo econômico prega que, uma vez atingido o centro, deve-se ser liberal. O cerne do caminhar para o centro nos dois últimos séculos foi a concepção estratégica já que também era sobre ela que se estruturava a vontade nacional. A antiga visão de geopolítica, a que prevaleceu no final do século passado e ao longo de todo este século foi a que caracterizava a componente geográfica como determinante na montagem da concepção estratégica. A geografia traçava por uma nova formulação científica, a geopolítica, parâmetros para a concepção estratégica. Concepção estratégica não faz história se não provocar ação. A história é portadora da evolução. As nações não estão caminhando para o centro se não são portadores da evolução, ou seja, se não fazem história. A história se faz com intervenção. A intervenção sempre se processa submetida aos determinantes últimos de todos os processos humanos: ao espaço e ao tempo. Toda intervenção se estrutura em um determinado espaço e a um dado tempo. Toda intervenção é uma ação em busca de um fim a ser atingido. E para o atingir temos de dispor de meios. Meios e fins são os instrumentos que estão presentes em toda intervenção. A intervenção se processa de duas formas: a que justapõe o homem com a natureza e a que nos interessa mais diretamente, a que relaciona o homem com o homem, que foi mediada pelo quer veio a se denominar modernamente como estratégia. Estratégia pode ser, inicialmente, portanto, definida como a mediação que se processa entre os homens, ou sociedades humanas, numa intervenção. Algo que se explicita dessa análise é que a estratégia é o pressuposto racional de uma intervenção que envolve uma ação individual ou coletiva. A intervenção sempre que envolveu uma ação coletiva sempre se processou seguindo uma das três modalidades de contato: cooperação, competição e conflito. Todavia, no passado, a estratégia só adquiria foro próprio no conflito. Na antiga Grécia, era conceituada como a arte dos generais. Do Renascimento até o século passado, a estratégia era tida como a arte da guerra. Modernamente, a estratégia tem uma definição muito mais elaborada e abrange as três modalidades de contato. A evolução do conceito de estratégia, se de um lado a estendeu através de diversos campos da ação humana, de outro a colocou, definitivamente, ligada a dois outros conceitos: o de política e o de poder. A estratégia é um dos vértices de um triângulo indissolúvel, que tem na política e no poder seus outros dois vértices. Estratégia, política e poder são formas novas de se analisar uma intervenção, são formas novas de se organizar os meios e os fins, que, como vimos, são os instrumentos e objetivos últimos de toda a intervenção. A política, no triângulo indissolúvel, estabelece o que fazer, qual o fim procurado, o poder, com o que fazer., com que meios se dispõe para se buscar o fim, e a estratégia, o como fazer, como se dispor dos meios para se atingir o fim. Com estes três ingredientes unidos e ajustados, isto é, com o triângulo indissolúvel processa-se a intervenção. Voltando-se à idéia da intervenção, pode-se afirmar que sempre ela tem o seu melhor momento. Pode-se, muitas das vezes, se determinar este momento. Quando isto é possível, também é possível modificar-se o triângulo indissolúvel, particularmente, o seu vértice poder. Esta alteração pode ser conseguida pela transformação, ao longo do tempo, de algo fora do triângulo, mas acessível, tido e chamado como potencial, em poder, ou seja, utilizando-se do tempo para apropriar-se de novos meios. O triângulo indissolúvel sempre se posiciona, também, no plano nacional articulando a política nacional, a estratégia nacional e o poder nacional. Neste plano, a política prende-se, sobretudo, nos fins a alcançar para o Estado Nacional; cuidando de interpretar aspirações e transformá-las em objetivos nacionais. Ela sempre tem de ir além, organizando o poder nacional, criando meios e os desenvolvendo, sempre, em benefício da comunidade nacional. A política nacional, ao interpretar as aspirações e interesses e ao transformá-los em objetivos nacionais, para a consecução ou manutenção, em determinado prazo, o faz mediante uma concepção política, que dita os rumos de uma concepção estratégica. Já a estratégia, como vimos, preocupa-se, principalmente, com os meios que disporá para atingir os objetivos fixados pela política. Na dimensão nacional a estratégia preocupa-se, primordialmente, com os meios que disporá, para a consecução dos objetivos nacionais traçados pela política nacional. Na verdade, a estratégia nacional cria a forma de traduzir a vontade política ao mesmo tempo que a busca impor. A estratégia nacional prepara o poder nacional, define opções, propõe a linha de ação mais favorável a ser seguida, considerando, para tanto, os recursos disponíveis, os esforços a serem realizados, as prioridades a serem adotadas e os riscos a correr, pelo Estado, na implementação da decisão tomada. A estratégia nacional vincula-se à política nacional pelos objetivos que esta estabelece e pelos riscos para atingi-los ou mantê-los. Todo estudo de estratégia nacional passa, obrigatoriamente, pelo estabelecimento de objetivos nacionais e por uma avaliação do potencial nacional e de sua possibilidade temporal de transformar-se em poder nacional. Houve, portanto, a partir das rupturas do final do século XVIII, uma colocação no plano nacional do fenômeno estratégico, uma extensão de seu conceito até a categoria, como colocado, de mediação, já que a estratégia, de uma postura exclusivamente militar, passou a envolver outras variáveis e começaram a se esboçar os limites entre a política e a estratégia e as relações entre elas e o poder. Esta transformação conduz a configuração hodierna da política, cujos estudos abrangem os níveis teórico (filosófico e científico) e prático (técnica e arte) - ela, como “práxis” é entendida como arte de organizar e governar um Estado e de dirigir suas ações, interna e externamente. A arte do estadista, o político realizado, é a mais complexa de todas as artes, definindo objetivos e orientando os destinos de um Estado Nacional, interna e externamente. A política, como posta na visão “bismarckiana” da arte do possível, preocupa-se com os fins (objetivos), define os meios para buscá-los, promovendo a consecução ou a manutenção dos objeti- vos. A política nacional deve preocupar-se decisivamente com o bem comum da sociedade nacional e a sobrevivência do Estado Nacional, cuidando do poder e do seu fortalecimento. A política nacional se incumbe, portanto, de interpretar a cidadania, seus interesses e suas aspirações, traduzindo-os em objetivos a serem conquistados ou mantidos por determinado prazo. Envolve, pois, um complexo de atividades que se traduz por uma concepção política, que se coloca pelos objetivos a serem perseguidos. Para o Estado Nacional, a política nacional cuida dos seus negócios, interpreta e formula os seus objetivos e organiza o poder nacional, criando meios e os desenvolvendo em benefício da comunidade nacional. Poder nacional é, na maioria das vezes, sempre, ligado À capacidade militar, o que é até explicável pelo fato da guerra ser sempre a última e definitiva aplicação do poder. Apesar de vivermos em um mundo ameaçado pelo suicídio coletivo, decorrente da existência de artefatos nucleares, esta visão é cada vez mais desfocada. Poder nacional é o resultado de uma integração multidimensional de poderes. Um Estado Nacional pode parecer poderoso porque possui muitos ativos militares. Entretanto, esses ativos podem ser inadequados contra os inimigos potenciais ou podem não ser apropriados para a natureza do conflito. Repetindo, a questão ainda é a mesma: Poder em relação a quem? E com respeito a quê? O poder nacional decorre mais, hoje, de outros fatores, que já se faziam presentes, do que o poder militar. Nenhum poder nacional foi fruto exclusivo, no passado, de sua componente militar. E muito menos o será no futuro. Nenhum elemento sozinho é definidor de poder. Para exemplificar podemos citar que o tamanho do Brasil, a população da Índia, a indústria da Suécia, o exército da Suíça não dão a estes Estados Nacionais uma posição de primeiro plano na pirâmide mundial do poder. A idéia do poder nacional baseado em um único fator é sempre uma idéia errada. Só para fins didáticos é que se consegue separar os elementos determinantes do poder nacional. Conjugados, eles constituem os meios que se dispõem para se atingir os objetivos nacionais pretendidos. Poder nacional é algo relativo, não é absoluto. Nenhuma nação teve, tem ou terá poder absoluto. O poder é algo relativo e sempre correlacionado aos outros atores presentes na arena internacional. Dizer que os Estados Unidos são a nação mais poderosa da Terra é algo só possível de ser dito, porque está precedido de uma comparação de seu poder, com os demais poderes existentes. Assim, como não se pode confundir potencial com poder, não se deve confundir potencial nacional com poder nacional. A capacidade de uma nação converter seu potencial nacional em poder nacional é algo, muitas das vezes, próximo do intangível e deve ser imaginado, em várias considerações, pelo menos nas relativas a capacidade de condução do governo e as de unidade de propósitos da sociedade nacional. Na verdade, também, o poder nacional só pode ser avaliado no meio que lhe cerca. Posto este preâmbulo, cabe agora falar em geopolítica; não na geopolítica da primeira metade do século XX, mas sim numa nova geopolítica: a geopolítica do século XXI. E essa nova geopolítica entende-se pertencente a um triângulo, tambem indissolúvel, o triângulo da geointervenção, que conjuga a intervenção ao espaço, onde o fator geográfico não só determina mas delimita a intervenção. Neste triângulo a geopolítica está sempre acompanhada da geoestratégia e do geopoder. Todo triângulo que conjugue poder, política e estratégia deve se explicitar, sob a ordem racional, em um planejamento. E mais, neste triângulo a geopolítica é algo associado a antropologia, a história, a economia, portanto ao povo não mais só ao território. Para se fazer geopolítica no final do século XX não basta a geografia, tem de se ver o povo que habita o território, seu passado, sua cultura e suas aspirações. A geointervenção conjuga o povo e o espaço observado o tempo. E aqui ao iniciar uma nova visão de geopolítica para o Brasil, dentro do conceito da geointervenção, novamente recuperemos a idéia posta em Hegel do sonho como o demiurgo de todos os processos As sociedades sonham. O sonho é muito mais forte da barbárie e a barbárie está sempre inatingida e salva. Temos de nos manter bárbaros. Se mantivermos nosso sonho, o sonho de Brasil, poder-se-á articular um movimento social que utilizando-se da geopolítica renovada saberá formular e sustentar um novo projeto nacional para o desenvolvimento do Brasil, algo que poderá situar-se no eixo de uma articulação voltada para o progresso futuro do nosso povo. Para nos situarmos temos que ver a questão da alteridade. Quem somos nós? Quem são eles? A questão primeira que se coloca à identidade nacional é a questão da alteridade. Está acima da soberania, está acima da estima. Estabelecer quem somos nós, brasileiros, em contraponto a eles é criar o espaço da nação e formatar a geointervenção. Este texto não tem a pretensão de responder de forma definitiva quem somos nós. Pretende, simplesmente, mostrar que não somos eles, pois somos especiais, como brasileiros, pois só nós temos as mágicas que construirão uma geointervenção capaz de criar um mundo novo. Estas mágicas caracterizam o “eu” brasileiro e merecem, a seguir, um breve resumo. · A mágica da antropofagia é a propriedade que possuímos no Brasil de apropriarmos, transformando, toda manifestação cultural exógena. Poder-se-ia iniciar a explicação desta capacidade que detemos, como o resultado da arte que desenvolvemos de adaptar valores e técnicas européias aos trópicos, em geral. Contudo, esta seria uma explicação muito pobre. A nossa antropofagia, que é uma característica ímpar, já que nenhum outro povo a detém, pelo menos em tal grau, tem sua origem na gênese da nossa cultura dominante: a cultura portuguesa. Esta se constituiu na paciente e progressiva assimilação dos iberos, dos ligúrios, dos celtas, dos fenícios, dos gregos, dos cartagineses, dos romanos, dos suevos, dos godos, dos judeus, dos mouros e dos cruzados franceses e ingleses. Este progressivo amálgama dotou os portugueses dos elementos necessários a processar o diferente e tornálo o igual, quando não o comum. Foi assim na constituição da cultura brasileira. A assimilação de outras culturas mais puras, como as diversas culturas africanas e ameríndias, foi algo fácil para a experiente cultura portuguesa que se transfigurava em brasileira. A capacidade de deglutir, de adaptar, de transformar de forma criativa e criadora o que lhe é apresentado, ou lhe é imposto, constitui-se no maior patrimônio do povo brasileiro. Tudo se faz sem perder o espirito empreendedor e mercantilista do fenício, do cartaginês e do judeu, da cultura dos gregos, das instituições e da linguagem dos romanos, da cultura material dos mouros, da aptidão manual do africano, do contato com a natureza do ameríndio. No Brasil, nada se perde, tudo se transforma em algo que se utiliza. No futuro, ser mundializado é ser antropofágico. · A mágica do passado comum é a característica que detemos, no Brasil, de ver o estrangeiro presente como se fosse eu entre nós e não um tu entre nós. O estrangeiro que reside no Brasil não sofre o distanciamento nem a discriminação do estrangeiro. Este é um fenômeno do século XX. Nem sempre foi assim. Logo após a independência o estrangeiro era discriminado. Se português, o antigo dominador, era espezinhado. Aos demais, o choque cultural era total. Contudo, os fluxos migratórios do final do século XIX e deste século retiraram do português seu ranço de dominador e dos demais suas características exóticas. Ao estrangeiro hoje é dado o passado comum. Ao natural de outro país que se estabelece no Brasil lhe é incentivado, mais que permitido, participar na cultura e nos eventos nacionais. Aliás sua cultura se incorpora como nossa. Ao compararmos o tratamento obtido no Brasil, pelas imigrações européias do início do século XX, com o tratamento encontrado, exemplificando, nos EUA, marcaremos bem esta diferença. Não existe no Brasil a figura do teuto-brasileiro, mas existe nos EUA a figura do teuto-americano. Não existe no Brasil a figura do ítalo-brasileiro, mas existe nos EUA a figura do ítalo-americano e assim por diante. A mágica do passado comum dilui as nacionalidades pretéritas e as colocam submetidas a nacionalidade brasileira. Só existe aqui no espaço Brasil uma nacionalidade única: a brasileira. a mágica do passado comum transforma a sociedade brasileira em uma sociedade absorvente capaz de, no futuro, ser a própria sociedade mundial. · A mágica da mestiçagem é a propriedade que nós temos de deter diferentes graus de morenidade. Esta é um valiosa qualidade do Brasil. Sobre este tema, sobrepujando o pessimismo das gerações anteriores, que se julgavam condenadas ao malogro, pela sua condição de partícipes de um país sem futuro, em decorrência do caráter mestiço de sua população, vem, ao longo de todo este século XX, se sucedendo, desde a descoberta antropológica de nosso país feita, principalmente, com Gilberto Freyre, um orgulho, uma confiança e um arrebatamento expresso pela certeza das vantagens que a completa mestiçagem proporciona, na arena mundial, ao povo brasileiro. Fez-se com Gilberto Freyre a descoberta, nesta parte do mundo, que não há raças capazes ou incapazes de civilização. Mais do que isto, fez-se a constatação que toda a trama da história resulta de um processo de fusão e que o Brasil é em si o próprio espirito divino da fusão criadora. O Brasil se constituiu em seus primórdios de europeus principalmente portugueses e holandeses, ameríndios e negros. Mais recentemente, de portugueses, italianos, espanhóis, alemães e outros europeus e de japoneses, formando em seu território, de início, vários grupos étnicos. Dos europeus, os de maior influência e número foram os portugueses, que não traziam a mistica da pureza da raça. Todos estes grupos, desde seu estabelecimento, vem se interpenetrando, como resultado de um fenômeno novo, em escala mundial, que é o elevado grau de mobilidade social da sociedade brasileira, quer mobilidade vertical quer mobilidade horizontal. Tudo isto favorece um aparecimento, nesta parte da América, de uma democracia plena, no sentido real da palavra, onde não se estabelecem preconceitos, onde o mérito pessoal supera não só possíveis colocações de natureza étnica, como as de classe, e, onde, se maximiza a afirmação dos talentos e se potencializa a utilização das diversas possibilidades. Esta forma de ver o mundo é o simétrico do que se coloca no centro, já que para nós a miscegenação é regra e a discriminação é exceção. Para o centro, sejam norte-americanos ou europeus, nestes excluídos os ibéricos, em especial, os portugueses, se dá o contrário, a discriminação é regra e a miscegenação é exceção. A sociedade brasileira é cada vez mais miscigenada caminhando para ser homogênea. Isto por que seus vários grupos raciais tendem a pertencer a mesma civilização e a ter o mesmo imaginário e a mesmas idéias fundadoras e fundamentais, independente de sua pigmentação ou da forma de seu rosto ou de seu nariz. Esta mágica da mestiçagem é como foi afirmado um valioso atributo pois nos permite inserir a todos, em nosso contexto e todos podem se sentir partícipes na elaboração do novo contexto da mundialização. A mágica da mestiçagem transforma hoje o Brasil e amanhã transformará o mundo no espaço de todas as raças. · A mágica do sincretismo é a completa permissividade religiosa, algo que no mundo não tem a dimensão que adquire no Brasil. Este é ainda o maior país católico do mundo, mas não é um país dominado pela mística católica, nem pela santidade. Não tem santo. O catolicismo se expressa no Brasil muito mais pelas sua manifestações externas, do correr de um calendário permanente de procissões e de festas populares, do atuar da Igreja na vida política, apoiando os governos, ou, conspirando contra eles, quando não os faz de forma concomitante. A este catolicismo caminham juntos o espiritismo, o candomblé, a quimbanda e mais recentemente os ritos evangélicos protestantes. Tudo isto se mistura num caudal de fé e de credos por onde trafega a mais plena tolerância religiosa e o mais claro sincretismo religioso. A maioria dos brasileiros esposa no decorrer de sua vida mais de uma fé. Este sincretismo aceita, se não incentiva, outras formas de haver místicos, ou de entender a origem e o destino dos homens, que se conceituam como esoterismos, formas pretensamente premonitórias de futuro, tais como a astrologia, o tarô e os búzios. Tudo isto convive. Tudo isto se aceita e se incentiva. Como prova recente deste sincretismo podemos colocar a forte e não combatida penetração de um neo-evangelismo, que nada mais é do que um aspecto sempre presente da religião no Brasil e decorrente de uma influência ameríndia, a religiosidade terapêutica, capaz de curar bicho e gente, transfigurada por um rigor moral radical. Ainda, aqui, existem outras formas de religiosidade, porém, mais enclausuradas nos seus círculos etnológicos e incapazes de trafegar tão desenvoltas, como o judaísmo, o islamismo e o budismo. Contudo, estas outras formas muitas das vezes compõem fontes que alimentam o já extenso caudal da religiosidade. Nós detemos no Brasil a fé universal, esta é a mágica. A mágica de ter aquilo em que todos em todas as partes sempre acreditaram e sempre acreditarão. · A mágica dos trópicos reside na construção de uma civilização pela cooptação daquilo que a natureza tem de mais pujante e agressivo: os trópicos. Nisto, papel importante tem as três raças constitutivas do povo brasileiro. Em primeiro lugar, os portugueses que, diferentemente dos demais europeus, ao se defrontarem com os trópicos, não o fizeram com espirito de superioridade. Sempre buscaram adaptar seus valores e técnicas ao novo espaço de cooptação. Nunca buscaram impor sua cultura. Ela se impôs pelo seu valor não por coação. Os portugueses, diferentemente dos demais europeus nos trópicos, bem como seus descendentes no Brasil, muitas vezes repudiaram as soluções européias, adotando outras tropicais. Em segundo lugar, o ameríndio, que nos trópicos americanos é um ser agreste, formulou uma cultura primitiva, porém, apropriada à sua terra de origem, seu “habitat”, seja ela cultura de floresta ou cultura de agreste. Em terceiro lugar, mas, talvez, até mais importante do que as anteriores, o negro africano e seus descendentes, muito mais habilitados, por séculos de adaptação aos rigores climáticos dos trópicos e pela permanente contestação que exerceram à natureza nas selvas, nas savanas e nos desertos africanos. Quem dominar o trópico dominará o mundo, mundializará. · A mágica da tolerância pode ser colocada como cordialidade, como subserviência, como humildade, e até mesmo como impotência, mas é exclusivamente tolerância com o diferente, com o estranho, com o incomum, com o inusitado. Tolerância que se coloca no dia-a-dia de nossa existência e de que tanto se beneficiam os que disso sabem. Tolerância compatível com a existente na Arca de Noé. Sim, pois sendo o leito de diferentes berços, o Brasil tem como sua maior mágica a tolerância. · A mágica da transcendência que é a de pairar sobre todas as outras mágicas, unificando-as em uma só e sendo um aceite a tudo e a todos. A civilização que está se constituindo no Brasil se caracteriza pela sua transcendência. Há uma transcendência na unidade que se organiza dentro da dualidade posta pelos europeus de ver a civilização brasileira ora como inferno, ora como paraíso. Há uma transcendência por ser uma civilização mais direta e mais participativa. Há uma transcendência,. por incorporar novos valores, por ser além do que européia , por ser ameríndia e por ser africana. Há uma transcendência por sabermos sermos periféricos, mas não vermos isto como problema, mas, sim, sempre como sonho, como aventura de caminhar para o centro. Devemos nos orgulhar e glorificar nossos valores, nossa tolerância, a brandura de nossos costumes, nosso eclético venerar, o acolhimento afável que concedemos ao que é estrangeiro, a nossa tropicalidade, a alegria simples que nosso povo tem mesmo na miséria, e um certo “saber viver” que jamais perdemos nas piores circunstâncias e cuja visão e conhecimento deixam perplexos e atônitos qualquer estrangeiro. Somos diferentes e somos especiais,. Temos de levar ao fim a missão que nossos pais portugueses começaram. Nós fomos, somos e seremos a mundialização. Este é o nosso destino manifesto! O Brasil é a mundialização em seu último estágio. Nós somos a mundialização processada. Só nós temos a missão de construir a verdadeira pátria humana. Todos nos sabemos ser periféricos, mas isto não é problema. Portugal foi periferia no século XIV e o Brasil, a América Portuguesa, é periferia no século XX Isto é sonho, é aventura. O nosso sonho é o sonho de nosso povo: o sonho do Brasil como o “locus” da mundialização Nós queremos ser a mundialização processada. Só nós temos o destino manifesto e a missão de construir a verdadeira pátria humana. Esta será nossa geointervenção. A geopolítica é o que fazer? E a resposta para o Brasil a esta questão é uma: só: terminar o processo de mundialização que nossos ancestrais portugueses começaram. Como fazê-la é geoestratégia. e com que meios fazê-la é geopoder. Cabe-nos falar um pouco sobre isto: O Brasil é o principal Estado Nacional do hemisfério sul. A busca à mundialização, que é o objetivo maior da estratégia nacional do Brasil, resultante desta nova geopolítica, tem de ter sua gênese no hemisfério sul. O Brasil, geograficamente, detem duas propriedades: a continentalidade e a maritimidade. Destas colocações resulta o primeiro principio da estratégia nacional do Brasil: a estruturação de um espaço de prevalência da mundialização no hemisfério sul, que observe as características de continentalidade e de maritimidade do Brasil. O segundo princípio é a extensão deste espaço estruturado a todo hemisfério norte. O detalhamento sugerido do primeiro princípio é: i) o aproveitamento da continentalidade mediante a formatação de um processo de cooperação sul-americana, em torno de um pólo de poder, um Megaestado, aproveitando as componentes estruturais de na América do Sul sermos todos de matrizes ibéricas e portanto próximos, como instrumento de organização do processo de mundialização; ii) o aproveitamento da maritimidade como instrumento de dominação do espaço marítimo do Atlântico Sul e condução do processo de mundialização ao golfo da Guiné e costa ocidental da Africa. iii) a criação de uma nova maritimidade a vinculada ao Oceano Pacífico que conduza a mundialização à Nova Zelândia a Austrália e a costa oriental da África. O detalhamento do segundo princípio pressupõe a montagem de parcerias estratégicas e alianças com potências do hemisfério norte para a penetração da mundialização neste espaço e será fruto das circunstâncias conjunturais do balanço de poder neste hemisfério. A nossa geopolítica não é uma geopolítica de projeção de poder. É uma nova geopolítica de conjunção de poder. Em especial conjunção de poder com os demais países sulamericanos. Aqui deverá repousar nossa geointervenção no século XXI. (*)Professor e Coordenador dos Programas de Pós-graduação em Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ (**)Chefe da Divisão de Extensão da Escola Superior de Guerra A ECONOMIA BRASILEIRA: DA CRISE CAMBIAL À RECUPERAÇÃO JulioDolce(*) George Dolce (**) “Like recessions, financial shocks are as old as capitalism itself” – Lester C. Thurow Introdução O Brasil ganhou a reputação de “economia do milagre” no início dos anos 70 quando o governo daquela época, seguindo o I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), estabeleceu metas por setores de atividade econômica e o País crescia a uma taxa anual de dois dígitos num clima de apreciável estabilidade. Essa estabilidade econômica permitiu uma expansão industrial admirável durante dez anos seguidos, colocando o Brasil entre as nações líderes na industrialização e elevando nosso Produto Nacional Bruto (PNB) para o décimo lugar entre todas as nações do Mundo. Ainda assim, apesar do progresso, muitos problemas permaneciam subjacentes. A população migrava do campo com mais intensidade atraída pela maior oferta de emprego nas cidades. Crescia a demanda pelos serviços públicos, por novas habitações, saúde, educação e saneamento. Surgiram grandes bolsões de pobreza ao redor das principais capitais. A inflação de dois dígitos dos anos 70 passaria a três dígitos nos anos 80 e a economia atingida pelos dois choques do petróleo dava sinais de estar perdendo fôlego. A política monetária de aumento progressivo dos juros diminuía os investimentos e reduzia a expansão econômica dos anos anteriores. Como outras nações da América Latina depois da crise do petróleo, também o Brasil viu sua dívida externa crescer exponencialmente na medida que os investimentos internacionais eram substituídos pelos empréstimos dos petro-dólares. Como resultado, o Produto Nacional Bruto cresceu em média apenas 1,5% anualmente de 1980 até 1990 produzindo o que se convencionou chamar de a “década perdida”. A partir do início dos anos 90, o Brasil começou a introduzir reformas em sua. economia. Esgotada a capacidade de investimento estatal, começava-se através de um grande esforço de privatização a transformar a era do monopólio estatal numa economia de livre de mercado. Em 1994, com a eleição do atual presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil implementou um ambicioso programa de estabilização monetária iniciado ainda no governo do presidente Itamar Franco. O Plano Real, assim denominado pela introdução de uma nova moeda, o Real, previa uma política monetária ancorada numa política cambial de controle muito restrito. O Plano Real conseguiu ainda estabelecer uma nova onda de investimentos estrangeiros de curto e longo prazos, mas seu maior valor foi o de conseguir aumentar o poder de compra da população propiciando num primeiro momento uma apreciável distribuição de renda. Entretanto, a nova ordem econômica mundial antevia outras turbulências. A desvalorização cambial da Tailândia em julho de 1997, feita para melhorar a competitividade das exportações daquele país, logo se espalhou por “efeito dominó” pela Coréia, Indonésia, Malásia e outros países do Sudeste Asiático, afetando também as exportações brasileiras. Depois veio a vez da Rússia e aí todos esperavam que o Brasil quebrasse em seguida. Ainda mais que as reformas prometidas pelo Presidente Fernando Henrique, tais como o plano de austeridade fiscal e o corte nas despesas públicas não se concretizaram a curto prazo, frustrando a expectativas. Apesar de tudo, o capital estrangeiro continuou a entrar de maneira contínua na busca de melhor remuneração mesmo após a reeleição do Presidente Fernando Henrique em outubro de 1998. Em novembro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou um plano de ajuda ao Real através de um empréstimo de US$41,5 bilhões procurando conter a crise cambial que se anunciava. Essa ajuda se baseava na carta de intenções onde o Brasil prometia, finalmente, colocar em prática uma série de medidas procurando conter o déficit fiscal com um programa de austeridade que temporariamente conseguiu conter a fuga de capitais. Em janeiro de 1999, os investidores internacionais que tiveram grandes perdas nos mercados emergentes da Ásia e da Europa Oriental, principalmente na Rússia, acabaram perdendo a confiança na economia brasileira e passaram a vender suas posições no mercado interno e a realizar lucros no sentido de minimizar suas perdas naqueles países. Não havia como o Brasill defender o Real e manter sua política cambial de mini desvalorizações frente ao Dólar usando suas reservas cambiais. O Real submergiu numa onda de fuga de capitais. No início de março o Real estava sendo cotado a R$ 2,20 frente ao Dólar, o equivalente a uma desvalorização de 80%, e muitos especialistas brasileiros e internacionais previam que isso conduziria inevitavelmente a uma explosão inflacionária. Quando tudo parecia indicar uma lenta e dolorosa recuperação econômica, o Brasil, em mais um dos seus “milagres econômicos”, surpreende a comunidade internacional com uma rápida e franca recuperação após uma incerta e descontrolada flutuação das taxas no mercado de câmbio Um mês depois, o Real já estava sendo cotado a R$ 1,70 levando alguns economistas a sugerirem uma ligeira depreciação do câmbio para estimular ainda mais o crescimento das exportações. O admirável nisso tudo é imaginar o quanto o Brasil esteve próximo do colapso financeiro. Por muitas semanas, de janeiro até março, a economia esteve no fio da navalha. Qualquer medida menos correta e estaríamos todos mergulhados num caminho sem retorno. O Presidente Fernando Henrique chegou mesmo a admitir ter pensado que o Plano Real houvesse terminado naquele fatídico dia 29 de janeiro, quando o noticiário internacional, de maneira irresponsável, chegou a noticiar uma suposta corrida aos bancos. Desde então, com a nomeação do novo presidente do Banco Central, Dr. Armínio Fraga, começou a se restabelecer a confiança mundial na nossa moeda. As ações de curto prazo, complementadas por medidas de austeridade, rapidamente aprovadas pelo Congresso Nacional, afetaram positivamente nossa posição e permitiram, a longo prazo, antever com otimismo nosso futuro. O Plano Real e suas Conseqüências O Plano Real tem sido, até agora, o mais bem sucedido programa de estabilização monetária de todos os programas que nos últimos anos tentaram resolver o problema da inflação crônica que destruía a economia do Brasil há mais de três décadas. [Giabiagi, 1997]. Desde o início, a inflação foi mantida sob controle sem congelamento de preços e salários, sem confisco de depósitos bancários ou qualquer outra medida econômica artificial. Uma conseqüência do fim da inflação foi o rápido crescimento da demanda, tão rápido que o Ministro da Fazenda desde o início teve que optar por uma política de redução da expansão monetária e de restrição ao crédito pelo aumento das taxas de juros. Essa estratégia procurou garantir o futuro do plano com os objetivos de atingir um o crescimento auto sustentado, realizar uma distribuição de renda sem explosão da demanda e aumentar a oferta através da abertura do mercado brasileiro aos produtos internacionais. Durante a segunda metade de 1994, a taxa mensal de inflação caiu de mais de 50% em junho para 1% em dezembro daquele mesmo ano e permaneceu nesses níveis baixos até a desvalorização de janeiro de 1999. O lado ruim do programa de estabilização foi a conseqüente queda da arrecadação fiscal. Fato que pôde ser bem assimilado durante o lançamento do Plano Real devido as condições relativamente favoráveis que permitiram ao setor público gerar um superávit primário ainda em 1994. Em contraste, houve uma queda da arrecadação nos anos seguintes gerando sucessivos déficits primários. Reverter essa tendência tem sido o principal desafio do esforço de estabilização, [Bevilaqua, 1998]. Também, desde o início do Plano Real, as contas externas tem gradualmente apresentado déficits que somam hoje mais de US$ 70 bilhões com tendência de alta, tornando-se um sério problema para o plano de estabilização. Já em 1998, o déficit representava mais de 8% do PNB, o que claramente constituía uma grande vulnerabilidade e um risco estratégico num mundo de capitais voláteis, como a atual crise monetária tem mostrado de modo bastante claro. Entrada de Capitais Nos primeiros anos do Plano Real a retornada dos capitais estrangeiros ao País conduziu a uma acumulação de um grande volume de reservas em moeda forte. Essas reservas serviram para formar um lastro importante de proteção à moeda no curto prazo e para a manutenção da política monetária que tinha na política cambial sua âncora para manter a inflação sob controle. Entretanto, o Governo não conseguiu controlar nem o tamanho nem a qualidade dos capitais que compunham essas reservas. Esses capitais representavam na verdade uma benção e uma ameaça. Eram uma benção porque sem eles o Plano Real não conseguiria ir muito longe. Eram uma ameaça porque, como é sabido da literatura especializada [Calvo, 1992], esses fluxos de capitais reduzem na classe política a urgência da reformas estruturais, camuflando a natureza das verdadeiras causas da crise e em última analise ameaçando seriamente o sucesso de qualquer plano de estabilização que necessitam dessas reformas para se sustentarem no longo prazo. Além disso, para conseguir manter contínuo o fluxo de capital estrangeiro, necessário para o desenvolvimento, era necessário oferecer um grande diferencial nas taxas de juros em comparação com as do mercado internacional. Por outro lado, essa grande diferença entre as taxas de juros internas e externas acabou atraindo também capitais especulativos de curto prazo que entravam para realizar lucros num processo de arbitragem. Numa economia mundial totalmente integrada e de livre trânsito de capitais, o processo de arbitragem tende a anular o diferencial nas taxas de juros. Porém, se algum país mantém sua política cambial rígida sem possibilidades de flutuação das taxas e oferece restrições ao livre fluxo capitais, o equilíbrio não pode se estabelecer. Nestes casos, o processo de arbitragem coloca o Governo, fatalmente, sob a pressão de um ataque especulativo sobre a moeda que se vê obrigado a abandonar o controle cambial sob pena de perder totalmente as reservas cambiais e acabar sem condições de honrar os compromissos externos. Saída de Capitais Três crises externas, de igual importância para nossa economia, tiveram que ser enfrentadas durante os anos 90: A crise mexicana de dezembro de 1994, a crise asiática que começou em julho de 1997 e a crise russa que se estabeleceu em agosto de 1998. As duas primeiras provocaram uma fuga de capitais no Brasil que pôde ser controlada e logo depois revertida com mais inversões de capital. Já a terceira provocou uma maciça fuga de capitais até ser estancada com a desvalorização de janeiro de 1999. A recuperação da crise asiática se fez durante a primeira metade de 1998 com uma maciça capitação de recursos de curto prazo mas que também pouco durou. Nesse período mais de US$ 31 bilhões entraram no País contra US$ 15 bilhões no mesmo período do ano anterior. Nos meses seguin tes de 1998, os dados mostram que o capital especulativo que havia entrado saiu na mesma proporção ocasionando uma brutal queda nas nossas reservas internacionais. No intuito de assegurar a capacidade de pagamento das contas externas do Brasil, o aumento na acumulação de reservas estrangeiras era necessária enquanto a reforma fiscal não fosse aprovada pelo Congresso Nacional. Mas, o preço a pagar para manter essa estratégia era muito alto. As mais importantes falhas em tal estratégia macroeconômica foram: 1) a apreciação do câmbio e seus efeitos sobre a balanço de pagamentos; 2) a manutenção de uma alta taxa de juros que impedia o crescimento da economia e 3) o enorme recolhimento compulsório dos depósitos nos bancos procurando reduzir a liquidez da economia. Todas essas medidas faziam parte de uma política macroeconômica correta no curto prazo mas que se mostrariam inconsistente no longo termo. Pode-se entretanto sugerir que a política macroeconômica adotada só fazia sentido na medida que procurava manter a estabilidade da moeda enquanto se negociava junto ao Congresso para se obter as profundas e necessárias reformas. Mudanças que somente acabaram ocorrendo, parcialmente, de modo açodado no decorrer da crise. O Governo dizia que a combinação de uma política de altas taxas de juros juntamente com o programa de privatização daria ao plano de estabilização fôlego suficiente, sustentado na âncora cambial, até que a reforma fiscal, a reforma do sistema da previdência social e a reforma do Estado entre muitas outras encaminhadas ao Congresso pudessem ser implementadas. Como ficou claramente demonstrado na crise mexicana de dezembro de 1994, os investidores estrangeiros mudam de comportamento com extrema rapidez diante da possibilidade de falha no plano de estabilização na medida que as reformas estruturais prometidas não sejam realizadas [Frankel e Schmukler, 1996]. E o Brasil acabou pagando o preço por não ter realizado tais reformas quando da crise asiática. A Crise Monetária nos Mercados Emergentes A crise russa foi o fator decisivo que contribuiu para o rápido e profundo agravamento da situação econômica dos mercados emergentes, no final de 1998. O rápido e vigoroso ataque especulativo sobre a moeda russa e a fraca resposta do seu governo na tentativa de defender o Rublo rapidamente conduziu ao seu colapso e levou a flutuação desordenada da sua cotação frente às moedas fortes. Para complicar ainda mais a situação brasileira, alguns estados brasileiros propuzeram uma moratória no pagamento de suas dívidas e alguns investidores estrangeiros liquidaram suas posições no Brasil para realizar lucros e cobrir prejuízos em outros lugares, criando um fluxo de saída de capitais do País. Na verdade estava criado um círculo vicioso já que a saída de capitais despertou a atenção de alguns agentes financeiros e instituições classificadoras de risco de investimento que concluíram que esses capitais em retirada representavam uma perda de credibilidade no País o que aumentou a vulnerabilidade da economia incentivando novas retiradas. Essa situação levou a um considerável declínio nas reservas internacionais em relação ao início do mês de agosto de 1998 quando se situou em torno de US$ 75 bilhões. A partir de então as reservas caíram, continuamente, até chegarem a US$ 40 bilhões em janeiro de 1999. As negociações com o FMI para a um novo empréstimo na tentativa de sustentar as taxas de câmbio mostraram que mesmo um alto grau de reservas não seria suficiente para conter a sangria de capitais apesar de que as reservas existentes possibilitassem algum tempo de negociação na tentativa de superar a crise cambial que se instalava. O recém reeleito governo do Presidente Fernando Henrique desperdiçou uma grande chance que tinha de poder anunciar o ajuste fiscal logo depois da crise russa do mesmo modo que fizera após a crise asiática. O pacote do FMI já não seria mais suficiente para prevenir a desvalorização da moeda no início de 1999. A Desvalorização Cambial O processo de desvalorização do Real começou em 13 de janeiro quando o Governo decidiu alterar a política cambial. O presidente do Banco Central, Gustavo Franco solicitou sua demissão e foi substituído por Francisco Lopes que imediatamente anunciou novas medidas ampliando os limites de flutuação do câmbio depois de uma desvalorização de apenas 8% em meio a uma devastadora fuga de capitais. Durante dois dias o Real foi negociado no teto da banda proposta e o Banco Central foi obrigado a vender US$ 3 bilhões de dólares das reservas para defender a nova banda. Finalmente no dia 15 de janeiro o Banco Central decidiu não mais intervir no mercado de câmbio e deixou o Real flutuar ao sabor do mercado. Ao mesmo tempo a bolsa de valores de São Paulo viveu seus melhores dias e subiu 33% recuperando-se da maior parte de suas perdas naquele ano. Apesar do otimismo inicial o Real continuou a cair vertiginosamente chegando a atingir desvalorização de 37% frente ao Dólar em apenas um mês. Quando da substituição de Francisco Lopes por Armínio Fraga como presidente do Banco Central o Real já tinha atingido seu ponto mais baixo sendo negociado a R$ 2,165 em relação ao Dólar. O Descontrole Cambial O descontrole cambial com a subida das taxas de câmbio acima de valores razoáveis (“overshooting”) que aconteceu no Brasil foi semelhante ao que ocorreu em outros países onde mudanças abruptas no regime cambial geraram uma crise de confiança na moeda durante o período de transição. Embora o “overshooting” seja um fenômeno bastante previsível [Pereira,1998], a questão principal permanecia ainda quanto a implementação do ajuste fiscal e o problema de financiamento da economia brasileira, suas importações e sobretudo as exportações. A percepção dessa fragilidade mais o trauma sofrido com as mudanças na política cambial deixaram o Brasil numa posição de extrema vulnerabilidade para manter funcionando sua economia no curto prazo. Para agravar a situação ainda mais, dois incidentes alimentaram especulações quanto à capacidade do Brasil implementar o ajuste fiscal. O primeiro foi a inabilidade do Governo em mobilizar apoio político no Congresso para votar, em dezembro, a nova lei de contribuições previdenciárias do setor público e dos aposentados. Logo em seguida o governador de Minas Gerais, Itamar Franco, anunciou a moratória da dívida daquele estado. Esses dois acontecimentos colocaram a descoberto as recentes dificuldades que o Presidente Fernando Henrique tinha para coordenar as forças políticas, em especial o apoio necessário dos governadores estaduais. Todas essas dificuldades políticas aliadas à frustração causada pela pífia performance das contas fiscais ao longo do ano de 1998 foram responsáveis pelo clima de extremo pessimismo quanto à continuidade do ajuste fiscal em 1999. Sem a confiança no ajuste fiscal sabia-se que insistir na âncora monetária produziria ainda mais tensões na política econômica, por causa dos efeitos negativos que as altas taxas de juros geram na economia, como aconteceu na crise russa. Dentro desse cenário, a nova armadilha conduziria ao governo novamente à dependência de entrada de capitais externos de alto risco, acumulando reservas com investimentos de curto prazo na busca de juros mais altos enquanto a economia mergulhava em recessão, reduzindo os investimentos diretos na produção e diminuindo as perspectivas de outras privatizações que trariam novos capitais de investimento produtivo. Também, uma demora em reverter favoravelmente a balança comercial contribuía para um cenário pessimista em relação à capacidade do Brasil honrar seus pagamentos que venciam nos meses seguintes. Sob o ponto de vista estritamente econômico a manutenção da política de estabilização monetária não dependia mais da adequada utilização dos instrumentos disponíveis como parte da nova política de taxas de câmbio flutuantes, mas sim na oportunidade do governo federal e dos estados cumprirem o programa de reestruturação fiscal e realizarem o ajuste das finanças públicas, incluindo a garantia da continuidade do programa de privatização, o estabelecimento de orçamentos equilibrados, a diminuição na folha de pagamentos, etc. A desvalorização exagerada (“overshooting’) que se observou após algumas semanas de câmbio livre foi perfeitamente natural e estava de acordo com o que ocorreu durante a crise cambial em outros mercados emergentes. As taxas de paridade entre as moedas de livre troca, como era de ser esperar, acabaram se auto regulando sem necessidade de maiores intervenções por parte do Banco Central. A duração no tempo e a extensão da instabilidade cambial dependia apenas da capacidade do Governo brasileiro em manter o ritmo do ajuste fiscal e conseguir reverter favoravelmente a balança comercial. Porém, somente a solvência nas contas públicas e a recuperação no nível de reservas internacionais seriam capazes de diminuir a ansiedade dos investidores e dos credores externos quanto à recuperação da economia brasileira. Os Cenários Prospectivos Existiam dois possíveis cenários: o mais otimista previa um rápido fim dos indesejáveis efeitos das altas taxas de câmbio acima do esperado ponto de equilíbrio (“overshooting”) e outro mais pessimista previa o retorno do financiamento inflacionário do déficit público e a provável reindexação da economia sem a interrupção dos pagamentos dos débitos internos e externos. A ameaça de transformação do processo de “overshooting” em reindexação da economia era o maior desafio enfrentado pelas autoridades econômicas naquele momento, o que justificava a manutenção das altas taxas de juros durante o período de transição. Entretanto, é importante notar que a despeito dos esforços das autoridades para minimizar os efeitos inflacionários da desvaloriza-ção cambial, na prática de certo modo, a inflação poderia servir para uma melhoria nas contas públicas pelo efeito do chamado imposto inflacionário. O perigo era que ela ficasse fora de controle e acabasse conduzindo a uma reindexação de contratos e salários. Esse ajuste inflacionário da economia significou uma redução real do poder de compra da população, diminuindo a demanda, principalmente de produtos importados, o que resultaria também num ajuste da balança comercial e uma recuperação, ainda que tímida, das reservas cambiais seguida de uma redução nas taxas de juros nominais, o que contribuiria para a redução do déficit público. O contingenciamento do orçamento foi outro instrumento de ajuste macroeconômico, tradicionalmente usado pelo governo brasileiro [Bevilaqua e Wernerck, 1997]. Desse modo, o montante dos impostos arrecadados acabava indexado mas a previsão de despesas no orçamento não. Dentro dessa ótica, uma inflação de um dígito anual seria de certo modo útil, embora de modo secundário, para o ajuste das contas públicas. Fase de Transição Não podendo mais contar com a âncora cambial que sustentava o plano de estabilização monetária, a economia brasileira se encontrava numa fase de transição. Quanto duraria esse novo período dependeria não apenas dos fatores macroeconômicos mas também e crucialmente da habilidade dos agentes econômicos brasileiros se adaptarem as novas condições [FMI – Perspectivas Mundiais, 1999]. A maior parte dos analistas se preocupam com as questões macroeconômicas da crise e quase sempre acabam optando pelas conclusões dos cenários mais pessimista. Na verdade existem vários fatores que tendem a produzir previsões macroeconômicas bastante adversas, alguns dos quais serão analisados a seguir. Existe uma tendências a se procurar semelhanças entre a crise brasileira e particularmente as crises mexicana, asiática e russa, que foram as mais recentes. Em todos os casos as situações foram de enorme gravidade, houve profunda recessão econômica, o sistema financeiro, mais ou menos bem organizado, acabou sendo afetado e também as instituições acabaram sofrendo as consequên-cias políticas da crise. No caso brasileiro, as analises econômicas sempre enfatiza-ram o processo de “overshooting” apesar de que esse é um fenômeno considerado de ajuste automático. Essas análises não levaram em conta as dimensões microeconômicas e institucionais do problema que acabaram, na crise brasileira, tendo um impacto positivo sobre a dinâmica e duração do processo. Por último, imediatamente após a âncora cambial ter sido abandonada, a lógica de toda a política econômica indicava a manutenção das altas taxas de juros e outras medidas de contenção da demanda agregada, o que fazia com que os cenários macroeconômicos sobrevalorizassem a intensidade e a duração da recessão esperada. As Diferenças da Crise Brasileira O mercado monetário brasileiro é completamente diferente dos mercados de alguns dos países que passaram por recentes crises monetárias. Enquanto naqueles países existia uma estreita relação entre a crise cambial e um excessivo déficit público, simplesmente no Brasil o déficit público não está atrelado ao Dólar nem é financiado por investidores estrangeiros. Pelo contrário, uma das características institucionais mais marcantes que diferenciam a economia brasileira daqueles outros países é a existência de um vigoroso banco de desenvolvimento em apoio à indústria controlado por investidores locais institucionais e um grande número de fundos de pensão de empresas estatais. Desse modo pode-se afirmar que no caso brasileiro não existe uma relação de causa e efeito entre a crise cambial brasileira e a rolagem da dívida interna [Silveira, 1999]. No que diz respeito à divida externa, obviamente existe uma ligação mais direta desta com a crise cambial quando ocorre um ajustamento no balanço de pagamentos, uma vez que isso redunda numa rápida diminuição do déficit comercial e de contas correntes. A ocorrência dessa relação positiva é altamente provável e juntamente com a rede financeira de proteção internacional deixava de lado a possibilidade da ocorrência de um cenário que contemplasse a suspensão dos pagamentos externos. Desse modo, o Brasil pôde superar a crise e conseguiu a estabilização monetária muito mais rapidamente do que o Sudeste Asiático, o México e em especial a Rússia. Naturalmente, uma desvalorização de 35% a 40% é um problema para a economia que necessita de um trabalho intenso de readaptação dos negócios principalmente naqueles setores que cresceram junto com a liberação do mercado internacional nos recentes anos. Mas deve ser lembrado que ao contrário das outras recentes crises de desvalorização da moeda de outros países, o Brasil possui reservas internacionais acrescidas dos empréstimos obtidos junto ao FMI. Além disso, favorece ainda mais a perspectiva de um cenário promissor o fato de que o Brasil se encontra hoje numa situação muito mais confortável do que o México em 1994, uma vez que os capitais externos já voltaram a entrar no País, principalmente através da bolsa de valores. Neste cenário, não será surpresa se o Brasil conseguir, impelido pelas novas taxas de câmbio, repetir nos próximos anos os mega superávits da balança comercial dos anos 80 sem os efeitos maléficos do retorno da inflação. Entretanto, em conseqüência da rápida recuperação da crise pode-se estar diante de um falso otimismo. Neste caso, a aposta feita em um choque de credibilidade pode causar ainda maiores danos pela frustração que pode vir a causar quando as medidas de ajuste na economia forem implementadas, pois apesar de razoavelmente efetivas podem não produzir os efeitos desejados. A Rápida Recuperação O mercado financeiro saudou com entusiasmo as boas novas, tais como o término da votação no Congresso Nacional do ajuste fiscal, a conclusão das negociações com o FMI, os sinais de que a inflação permanecia sob controle, a reabertura do mercado financeiro internacional para os papéis brasileiros e principalmente a decisão do Banco Central de diminuir as taxas de juros. O balanço de pagamentos e as contas fiscais mostraram sensíveis melhoras e a recessão se mostrou menos grave do que havia sido previsto. O próprio Ministro da Fazendo, Pedro Malan, em nota oficial disse que a recessão econômica brasileira não seria tão profunda e a inflação tão alta quanto estimadas anteriormente para este ano. O Governo obteve o suporte de quase 70% dos congressistas para concluir a aprovação da emenda constitucional que recriava a contribuição provisória sobre movimentações financeiras (CPMF). Aquela foi a mais significativa demonstração de sensibilidade do Congresso sobre a crise e estava de acordo com os objetivos acertados junto ao FMI e completava o ajuste fiscal. O novo acordo de estabilização negociado com o FMI previa um superávit primário de 2,6% a 3,1% do PNB nas contas públicas em 1999. A política monetária estabelecia um objetivo de uma inflação anual de um digito ao final do ano. O câmbio seria monitorado pelo Banco Central que interviria sempre que necessário empregando o sistema de “dirty float” podendo gastar até US$ 8 bilhões nos meses de março e junho para evitar flutuações desordenadas das taxas. Por outro lado as reservas internacionais do Brasil poderiam ser reforçadas com um empréstimo de US$ 41,5 bilhões que seriam sacados em parcelas se necessário. A taxa de inflação de 1.41% nos preços ao consumidor do mês de fevereir foi menor do que a esperada e o mesmo aconteceu com os preços no atacado cujo índice de 4,2%, ainda que alto, foi 1,6 pontos percentuais menor do que o dos trinta dias anteriores, sugerindo que o impacto da desvalorização sobre a inflação estava diminuindo. Mais rápido do que o esperado, os principais bancos reabriram o mercado internacional para a emissão de bônus brasileiros de 1 ano e novas emissões já estão sendo esperadas. As linhas de crédito para financiamento das exportações e importações também foram restabelecidas. Como resultado as reservas brasileiras que tinham um previsão de queda no acordo com o FMI de US$ 3 bilhões caíram em US$ 1 bilhão situando-se em torno de US$ 34,5 bilhões em abril. Outro sinal de que a recuperação estava vindo mais rápida do que se esperava foi o fato do Banco Central diminuir as taxas de juros interbancário inicialmente de 45% para 42% chegando ultimamente a 35% com previsão de novas quedas não fosse a possibilidade de aumento dos juros nos EUA que inviabilizaria outras baixas. A balança comercial em março estava próxima do equilíbrio com as exportações caindo de 10,4% em relação ao mesmo mês no ano anterior e as importações caindo 24,3% no mesmo período. Já o balanço de pagamentos, em fevereiro, estava negativa em US$924 milhões valor bem menor do que os US$ 2,6 bilhões em janeiro. O Brasil está ainda passando por uma recessão porém o lançamento do bônus do Governo sugere que muitos investidores acreditam que a crise não será tão profunda como antes se esperava e até agora os investidores que acreditaram no Brasil estão sendo recompensados. Os investimentos estão voltando rapidamente e criando novas oportunidades de negócios. Tudo isso cria um círculo virtuoso uma vez que mais dinheiro aumenta a liquidez do mercado oferecendo oportunidades de mais negócios que geram mais dinheiro e assim por diante. Conclusão Pelo menos em tese a desvalorização cambial realizada recentemente no Brasil criou a oportunidade de corrigir os exageros promovidos pela sobrevalorização do Real que tomou corpo durante o plano de estabilização monetária . Mostrou, sobretudo, que não havia tanto risco de a liberação do câmbio fazer retornar o regime de inflação que impedia o desenvolvimento e foi causa de uma brutal concentração de renda no País. Entretanto, a maximização dos aspectos positivos dessa nova situação ainda vai depender da implementação de políticas de apoio ao desenvolvi-mento econômico que realcem a importância das privatizações dos setores de infra-estrutura, a necessidade de um processo de financiamento para todos os setores da cadeia produtiva em especial privilegiando o crédito à exportação e até mesmo preocupando-se em conceder incentivos anti-recessivos localiza-dos. Em outras palavras, ao contrário do que uma análise estritamente macroeconômica pudesse sugerir, o risco da desvalorização cambial havia sido superestimado e rapidamente passou-se pela fase de transição sem maiores problemas para se entrar num novo regime de política econômica. A análise microeconômica da situação e da sua dimensão institucional mostra que a economia brasileira possui uma formidável capacidade de resistência e de adaptação as mudanças politico-econômicas em curso. Ou seja, o Brasil, apesar de todos os prognósticos contrários, foi capaz de realizar as mudanças necessárias com o mínimo de rupturas no setor financeiro e de desorganização no setor produtivo. Principalmente no setor industrial que vinha do impacto da liberação do comércio internacional, desde o início do Plano Real, para se adaptar agora ao novo impacto da liberação do câmbio. Esses dois choques no setor industrial revelaram que em geral os impactos são positivos pois que potencializam o crescimento, aumentam a produtividade e elevam o nível geral da economia. Apesar de que haja um consenso generalizado que em 1999 o Brasil terá um decréscimo na atividade econômica, o que se discute hoje é de quanto será essa diminuição no PNB. Provavelmente essa retração ocorrerá no primeiro semestre mas já para o segundo semestre está se prevendo uma retomada do crescimento. Parte dessa diminuição do PNB será devida ao ajuste fiscal já aprovado com redução das despesas públicas e conseqüente diminuição do investimento estatal. Além disso, as altas taxas de juros ainda inibem o desenvolvimento. Porém, os juros vêm caindo sistematicamente sinalizando para o setor privado a tendência da nova política econômica implementada pelo Governo que procura aproveitar o momento favorável criado pelas novas medidas proporcionadas pelo ajuste fiscal, embora o serviço da dívida interna represente ainda uma parcela significativa do orçamento federal para 1999. O principal objetivo nos três anos de ajuste no programa de reestruturação das contas públicas será o de substituir a política monetária em favor dos instrumentos fiscais como principais instrumentos de controle macroeconômico. Entretanto, isso não poderá ser atingido instantaneamente, desse modo por um certo período de tempo, enquanto o ajuste fiscal não for completamente consolidado, persistirão os dois sistemas de controle para manter a estabilidade econômica. Observe-se, entretanto, que a maior parte das medidas adotadas no ajuste fiscal foram medidas temporárias ou de curto prazo incapazes de proteger o Brasil contra futuros ataques especulativos [Rosenberg, 1999]. Tão logo o presidente Fernando Henrique comece a proceder as necessárias reformas de longo prazo no sistema fiscal e previdenciário as tensões políticas e sociais poderão aumentar mas, somente com essas reformas o Brasil poderá assegurar uma economia estável e proporcionar um desenvolvimento sustentável a longo prazo. Na opinião do mega investidor, George Soros : “A crise financeira está oficialmente debelada... vamos esperar pela próxima!” Entretanto devemos ser cautelosos antes de começar a comemorar um novo “milagre brasileiro”. (*) Professor do CEFET-RJ e Membro do Corpo de Conferencistas Especiais da ESG. (**)Consultor da EUROPRAXIS. AUTORES REFERECIADOS NO TEXTO Bevilaqua, A. and Werneck, R. (1997). “Fiscal-Policy Sustainability in Brazil”, Calvo, G. and Leiderman L., (1992) “Capital Inflows and Real Exchange Appreciation in Latin America: The Role of External Factors”, IMF Working Paper WP/92/62 Frankel, J. and Schmukler, J. (1996), “Country Fund Discounts and the Mexican Crisis of December 1994: Did Local Residents Turn Pessimistic Before International Investors?”, Paper presented at the NBER Summer Meetings, Cambridge Giambiagi, F. (1997). “Necessidades de Financiamento do Setor Público 1991/1996 –Bases para a Discussão do Ajuste Fiscal no Brasil”, BNDES International Monetary Fund (1999) - World Economic Outlook (Part I - chapter 1 and 2 ), May 1999 Rosenberg, M. (1998), “Currency Crisis in Emerging Markets - A guide to Speculative-Attacks Models and Early Warning Systems”, Merrill Lynch Pereira, R. M. (1998). “O Ajustamento Cíclico da Taxa de Câmbio em Mercados Emergentes”, PUC-Rio Silveira, S.(1999). “Panorama Macro Financeiro: Comentários”, Macrométrica Homenagem HOMENAGEM PÓSTUMA Celso Pires(*) Nesse nosso tempo esvaziado de espiritualidade, com o trespasse, a 22 de fevereiro deste ano, do Doutor HÉLIO DE ALMEIDA BRUM, uma grande tristeza domi nou o coração dos seus amigos. Há os que partem e não deixam a expressão esquecer. Atendem a um chamamento. Dei xam o exemplo que não se perde na hora da despedida definitiva nem emudece a transcendência da personalidade. Foi, por muitos anos, membro do Corpo Permanente e Consel heiro desta Escola. Nosso vetusto auditório ouviu, muitas vezes, a palavra do Dr. BRUM, sempre ilumi nada pelo saber e pela cultura. Quem teve a ventura de sua companhia testemunhou momentos significativos da nobreza de caráter e senti mentos magnânimos, onde se conciliavam a generosidade do aconselhamento e a revelação da ajuda. Simples e bom, não sublimava arrogância ou vaidade. Afável no trato e lhaneza no fazer, neste esboço de perfil, mostrou e prodigalizou aos que tiveram o calor da estima a for mação sobretudo humana, cativante pelo condão de cultivar a ção sobretudo humana, cativante pelo condão de cultivar a fidalguia dos gestos e atitudes, amáveis, sem impor opinião jactante, no relevo dos argumentos vastos de uma estrutura cultural. Talento privilegiado, enobrecia-se ao longo e ao cabo de suas páginas publicadas, transitando o caminho da qualidade, nas abordagens dos assuntos, atento ao inestimável registro pessoal de inteligência. Joubert nos dizia:“o melhor é morrer jovem, o mais tarde possível”. Assim manteve a vida, HÉLIO BRUM: pensamento e idéias jovens, qual a luz votiva da esperança. Nesses dias dominantes de utilitarismo imediato, em que se intensifica, a cada momento, a realidade fria do egoísmo, ainda existe lugar entre os homens de bem para o preito e o direito do reconhecimento. Uma compreensão mais justa da solidariedade. Resulta-se de tudo isso a nossa homenagem-memória. (*) Chefe Divisão de Biblioteca, Intercâmbio e Difusão (DBID) Memórias CRIAÇÃO DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA Lei No 785 – de 20 de agosto de 1949 Cria a Escola Superior de Guerra e dá outras providências O Presidente da República: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o – É criada a Escola Superior de Guerra, instituto de altos estudos, subordinado diretamente ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e destinado a desenvolver e consolidar os conhecimentos necessários para o exercício das funções de direção e para planejamento da segurança nacional. Art. 2o – A Escola Superior de Guerra funcionará como centro permanente de estudos e pesquisas e ministrará os cursos que, nos termos do art. 4o, forem instituídos pelo Poder Executivo. Art. 3o – A Escola Superior de Guerra terá os seguintes órgãos: I. II. III. IV. Direção; Junta Consultiva; Departamento de Estudos; Departamento de Administração. I. Art. 4o – O Poder Executivo baixará o regulamento da Escola Superior de Guerra, que estabelecerá as normas para o seu perfeito funcionamento, dispondo especialmente sobre a composição dos órgãos enumerados no artigo anterior e estrutura dos quadros de administração e de instrutores, os cursos que o mesmo Poder julgar necessários, as condições de matrícula em cada um deles e os contratos com os consultores e conferencistas, respeitados os limites dos créditos legais. Art. 5o – Terão ingresso na Escola oficiais de comprovada experiência e aptidão, pertencentes às Forças Armadas, e civis de notável competência e atuação relevante na orientação e execução da política nacional. Art. 6o – A Junta Consultiva será constituída de eminentes personalidades, civis ou militares, do ensino superior, ou de notável projeção na vida pública do País. Parágrafo Único. A colaboração dos membros da Junta Consultiva com a direção da Escola será considerada serviço relevante prestado à Nação. Art. 7o – A Escola Superior de Guerra contará, para a auxiliarem nos serviços administrativos, com servidores civis ou militares, requisitados aos Ministérios, e com pessoal extranumerário, admitido na forma da legislação em vigor. Art. 8o – Os oficiais das Forças Armadas, quando em serviço na Escola Superior de Guerra, em funções administrativas ou de ensino ou quando alunos, serão considerados em comissão militar, sem aumento dos quadros a que pertencerem. Art. 9o – Serão considerados para todos os efeitos, em efetivo exercício nos respectivos cargos os servidores públicos civis postos à disposição da Escola em qualquer das situações a que alude o artigo anterior. Art. 10 – É o Poder Executivo autorizado a abrir, pelo Estado-Maior das Forças Armadas, um crédito especial de Cr$ 3.000.000,00 (três milhões de cruzeiros), para ocorrer às despesas de instalação, obras equipamentos da Escola Superior de Guerra. Art. 11 – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1949; 128o da Independência e 61o da República. EURICO G. DUTRA Adroaldo Mesquita da Costa Sylvio de Noronha Canrobert Pereira da Costa Raul Fernandes Guilherme da Silveira Clóvis Pestana Carlos de Souza Duarte Clemente Mariani Honório Monteiro Armando Trompowsky ("Diário Oficial" de 30-VIII-949) P R IN C Í P IO S FU N D AM E N T A IS Q U E O R IE N T AR AM A C R IAÇ Ã O D A E SG I. A S e g ura nça N a cio na l é função m ais do po tencial geral d a N ação do q ue de seu p o te ncial militar. II. O B rasil po ssui o s re quisito s bá s icos (área, po pulação , recursos) ind isp ensáv eis p ara se tornar uma g ra nde po tê ncia . III. O D esenv olvi me nto do B rasil tem sid o retard ad o po r m otivo s suscetíveis de remo ção. IV. C o mo tod o trabalho, a orientação dessa ace le ra çã o exige a u tilizaç ão d e u ma e ne rgia m o t riz e de um p roce sso de ap licação d essa ener gia. V. O i mped i men to até a go ra existe nte co ntra o surgi me n to d e so luçõ e s nacio na is pa ra os pro ble ma s b rasile iro s é devid o ao p ro cesso d e aplicação d e energia ad otad o e à falta de hábito d e t ra balho de co njunto. VI. Ur ge s u bstit uir o m étod o do s pareceres po r outro mé to do q ue per mita se che gar a so luçõ e s ha rmô nicas e e q uilib ra da s. VII. O instr ume n to a utilizar para a e laboraçã o d o no vo m étod o a ad otar e p ara a sua d ifusão , co nsiste na criação d e u m Instit uto N acio na l de A ltos E stud os fu nciona ndo co mo C e ntro P e rm a ne nte de Pe squisas. I. O instrumento a utilizar para a elaboração do novo método a adotar e para a sua difusão, consiste na criação de um Instituto Nacional de Altos Estudos funcionando como Centro Permanente de Pesquisas. (*) Documento redigido pela Comissão designada pela EMFA, em janeiro de 1949, para elaborar o anteprojeto de Regulamento da Escola. Presidia a Comissão o então General-de-Divisão Olavo Cordeiro de Farias. O relator da mesma foi o então Ten.-Cel. Idálio Sardenberg CINQUEN TENÁRIO D A ESG Therezinha de Castro(*) Missão honrosa mas sobremodo difícil a que me atrib uiu nosso Comandante, o General Carlos Patrício Freitas Pereira a ser porta-voz desta solenidade comemorativa dos 50 anos da Escola Superior de Guerra. Numa breve locução devo trazer-lhes um pouco do passado... sintetizar o presente para vislumbrar o futuro. No seu meio século de existência os anos se sucederam com matemática precisão, onde os dias foram sempre novos. Antes mes mo de existir, já era a ESG ideal a ser posto em prática no Curso de Alto Comando para Oficiais Generais e Coronéis do Exército, criado em 1942 pela Lei do Ensi no Militar. Potencializava-se o ideal com o referido curso tornando-se extensivo aos Oficiais das Forças Singulares. Ainda nos idos de 1942, o General César Obino, Chefe do Estado-Maior Geral (depois EMFA) ia aos Estados Unidos. Visitando o National War College comunicava que se estava implantando no Brasil uma Escola, em moldes semelhantes. É que o General Oswaldo Cordeiro de Farias elaborava o anteprojeto do Regulamento da Escola Superior de Guerra, enquanto o Ten. Coronel Idálio Sardenberg traçava seus princípios enquanto o Ten. Coronel Idálio Sardenberg traçava seus princípios fundamentais. No entanto, mais do que a preparação para a guerra a que se dedicava preferentemente o colégio estadunidense, a tarefa prioritária da ESG seria a de formar elites para a solução de nossos problemas, em todas as dimensões. Em sua feição definitiva a ESG nascia segundo a Lei 785 de 20 de agosto de 1949. Nascia pouco depois de terminada a 2ª Guerra Mundial apoiando-se no binômio segurança e desenvolvimento, congregando civis e militares. No transcorrer desse seu meio século de vida, vem a ESG se mantendo num método dentro de duas premissas – a do trabalho em equipe do que foi a pioneira no Brasil, e no planejamento, também a precursora. Estudando o destino do Brasil não se deve perguntar o que vai acontecer e sim o que devemos fazer. Assim, dentro da sua dinâmica funcional, a ESG se manteve sempre no cenário de forças em movimento, destacando a necessidade da manutenção dessas forças para o afloramento das soluções. Era bem mais tímido o Brasil do tempo em que a ESG nasceu. O mesmo espaço... mas um cenário bem diferente. A Escola Superior de Guerra nos seus 50 anos tem um Brasil dotado de presença e posicionamento. É nação emergente de poder real ainda pequeno face seu espaço e massa demográfica, mas de potencial imenso, donde o prestígio que nos atribuem outros países que integram conosco o condomínio do Planeta Terra. Vivemos, pois a dinâmica geopolítica de horas batendo indiferentemente para todas as nações, embora soando diferente para cada uma delas. O Brasil de 20 de agosto de 1999 é múltiplo vetor tanto no continente sul americano como no Atlântico Sul. É pois, um país bem mais complexo que aquele existente em 20 de agosto de 1949. Projetando-se hoje o futuro do Brasil apresenta-se no cenário dinâmico o jogo de sua maritimidade e continentalidade. Ainda bem mais voltado para o oceano tal como nasceu no espaço de Tordezilhas... mas procurando na geopolítica integralizada conviver com os demais condôminos americanos. Em seus 50 anos a ESG estuda o destino de um Brasil no estágio geopolítico da adolescência e se prepara para enfrentar com visão estratégica o Mundo Globalizado do Século XXI. Senhoras e Senhores! Testemunha do passado a História da cinqüentenária ESG se espelha no futuro. Por isso todos nós que hoje vivenciamos esta Escola somos a sua História que se faz. Uma História que irá continuar a se fazer a cada dia, com a colaboração de cada um, até que outras gerações, nossas sucessoras, aqui se congreguem como nós para comemorar-lhe o centenário. Muito obrigada pela atenção. (*) A locução proferida por ocasião da data comemorativa do cinquentenário da Escola Superior de Guerra e Adjunta da Divisão de Assuntos Internacionais CURSOS DAESCOLA SUPERIOR DE GUERRA Os principais são: Cursode Altos Estudos de Política e Estratégia - CAEPE O Curso tem por objetivo preparar civis e militares para o exercício de funções de direção e assessoramento de alto nível especialmente nos órgãos responsáveis pela formulação das políticas de segurança e desenvolvimento nacionais e dos planejamentos estratégicos correspondentes. Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia Militar – CAEPEM O Curso destina-se a habilitar oficiais das Forças Armadas para o exercício de funções de direção e assessoria de alto nível, nos órgãos responsáveis pela formulação da política nacional, particularmente, no campo da segurança e do desenvolvimento e dos planejamentos estratégicos militares decorrentes. Curso Especial de Altos Estudos de Política e Estratégia – CEAEPE O Curso Especial de Altos Estudos de Política e Estratégia destina-se a divulgar, no campo externo, a Doutrina e o Método para o Planejamento da Ação Política preconizado pela Escola Superior de Guerra, também propiciar o intercâmbio entre Nações Amigas. Curso Superior de Inteligência Estratégica – CSIE O Curso Superior de Inteligência Estratégica destina-se a formar analistas em Informações Estratégicas. Principais Atividades O ano letivo vai de março a dezembro, dividindo os currículos, do CAEPE, CAEPEM e CSIE, em dois períodos: Período Básico, durante o qual os Estagiários estudam a Doutrina, seu embasamento teórico, e o Método para o Planejamento de Ação Política, preconizados pela ESG. Período de Aplicação, onde são avaliadas as conjunturas nacional e internacional. Os trabalhos acadêmicos consistem principalmente, de conferências, trabalhos individuais (monografia) e de grupos, e são complementados por viagens de estudos, em Território Nacional e no exterior. Os palestrantes do período Básico são selecionados, principalmente, entre membros do Corpo Permanente da Escola. Para o outro período, são convidados conferencistas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, de entidades de economia mista e das empresas privada, direta ou indiretamente ligados ao planejamento e a execução de Programas de Desenvolvimento Nacional. Outras Atividades Em paralelo com os Cursos Regulares, a ESG realiza o Curso de Extensão e Encontros com a ESG, atividades destinadas em princípio, ao público externo, e pesquisa, intercâmbio e difusão. Curso Intensivo de Mobilização Nacional – CIMN O Curso destina-se a proporcionar a civis e militares conhecimento básicos sobre Mobilização e sua importância para a Segurança Nacional. Curso de Atualização da ESG– CAESG O Curso de Atualização destina-se a manter atualizados os conhecimentos dos diplomados da ESG, a cada cinco anos, sobre a Doutrina e o Método para o Planejamento da Ação Política. Histórico A Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 20 de agosto de 1949, é um Instituto de Altos Estudos, diretamente subordinado ao Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA), órgão de assessoramento da Presidência da República. A esse nível são elaboradas as diretrizes de ensino e o currículo escolar, que estão constantemente sob a revisão à luz das necessidades básicas decorrentes da evolução das políticas do Governo do Brasil. O currículo reflete uma preocupação pelos Objetivos Nacionais Brasileiros, de natureza Política, Econômica, Militar, Psicossocial e de Ciência e Tecnologia. Estagiários Os Estagiários são selecionados pelo Estado-Maior das Forças Armadas dentre oficiais das três Forças e civis indicados pelos respectivos ministérios, órgãos governamen-tais, associações , entidades de classe, empresas privadas, universidades e Polícias Militares. Anualmente, são matriculados no CAEPE cerca de 100 Estagiários, entre homens e mulheres dos quais 70% são civis. Cursam o CAEPEM, aproximadamente, vinte Oficiais superiores das três Forças Singulares. Escola Superior de Guerra - ESG Avenida João Luiz Alves – Urca Fortaleza de São João 22.291-090 – Rio de Janeiro-RJ – Brasil Embora seja subordinada ao Poder Executivo, a Escola Superior de Guerra não desempenha nenhuma função na formulação ou na execução da Política Nacional, nem participa de atividades oficiais ligadas a Política do País, de que são responsáveis os Poderes Executivo e Legislativo. O trabalho da Escola é de natureza exclusivamente acadêmica. desse modo, ela tem prestado uma inestimável contribuição na tarefa de integrar civis e militares no exame de problemas nacionais e internacionais, relacionados com a Segurança e com o desenvolvimento nacionais. Em síntese, a ESG é um foro democrático e uma Escola de idéias abertas ao debate livre e responsável e, tem desempenhado um papel importante na formação de elites democratas ao longo de quatro décadas de atividades. “A ESG é a matriz do pensamento político e estratégico nacional”. Associação dos Diplomados da ESG Todos os diplomados da Escola Superior de Guerra fazem parte de uma associação, conhecida como Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), sob a presidência honorária do Comandante da Escola. Seu principal objetivo é o de manter um vínculo entre os diplomados e a Escola, por meio de atividades intelectuais ou encontros de natureza social. A ADESG é também responsável pela organização e execução de cursos de conferências sobre os aspectos principais da Doutrina da Escola. Essas conferências são realizadas em diferentes cidades do Brasil, freqüentadas por autoridades locais, professores, empresários, representantes de órgãos federais, estaduais e de entidades particulares. Rede Bibliodata A ESG integra o Sistema Rede Bibliodata – empréstimos entre bibliotecas – sob a coordenação da Fundação Getúlio Vargas. E-Mail (Correio Eletrônico) esg @esg.br Home Page (Página na Internet) http://www.esg.br Telefones: (021) 545-1727 e 545-1737 Telex: (021) 30107 Fax: (021) 295-7645