A estratégica Mongólia Interior O desenvolvimento chinês e as transformações nesta Região Autônoma. De Xi´an, José Medeiros da Silva “No Ano da Ovelha (1211), Gengis Khan lançou sua campanha contra a China”(…). O tempo da queda da dinastia (Jin) chegou. Assim ordena o Céu e a Terra”. A História Secreta dos Mongóis – (1228?) – Capítulo XI, onde se fala sobre a conquista da China. Na China, esse clássico da literatura mongol também é conhecido como História secreta da dinastia Yuan - 元朝秘史 Um dos caminhos para se conhecer a força da China (ou suas limitações) é observar suas particularidades regionais e analisar como elas são articuladas pelo Estado. Nesse artigo adentraremos pela Região Autônoma da Mongólia Interior, uma área estratégica para os propósitos de desenvolvimento estabelecidos pelo Estado chinês. O nosso percurso se centralizará em dois aspectos. Primeiro, „dialogaremos‟ com alguns fatos históricos, determinantes na definição do atual desenho geopolítico. Em seguida, ponderaremos sobre o curso do desenvolvimento mais recente, motivado pela diversidade e abundância de recursos energéticos. Mundialmente conhecida pela fama do seu filho mais ilustre, o conquistador Gengis Khan (1162 – 1227), a etnia mongol e os demais chineses mantêm desde tempos remotos uma relação quase que visceral. Longas guerras de conquistas e dominação, às vezes intercaladas por alguns períodos de convivência pacífica, entrelaçaram seus destinos de tal maneira que na atualidade o discurso oficial utiliza frenquentemente as expressões “chineses mongóis” ou “mongóis chineses”. Uma boa ilustração da longevidade desse relacionamento se encontra em um dos principais símbolos da longevidade cultural chinesa, a Grande Muralha. Ela começou a ser construída como um instrumento de defesa contra as constantes invasões dos „bárbaros do norte‟, isto é, mongóis e manchus. A Dinastia Yuan (1280-1368), instaurada por Kublai Khan (1215-1294), neto de Gengis Khan, aprofundou ainda mais essa ligação. E mesmo com o fim do domínio mongol, o entrelaçamento dessas relações prosseguiu o seu curso. Em um período histórico mais recente, esse entrelaçamento prosseguiu mediado por um terceiro ator. No caso a dinastia Qing (1644-1912), de origem manchu. Antes de derrotarem os Ming (1368 - 1644) e imporem uma nova linhagem dinástica, os manchus aliaram-se com os mongóis. Esse acordo político e militar ocorreu em 1638, ou seja, uns seis anos antes da queda Ming. Estabelecida a nova dinastia, essa também se volta contra os próprios aliados mongóis. O desdobramento dos enfrentamentos teve seu ponto alto em 1756, quando as últimas resistências mongóis foram vencidas. Incorporado e controlado pelos Qing (a última dinastia a controlar a China), o território mongol „desapareceu‟1. Desde então, a parte territorial que constitui o Estado mongol (Mongólia Exterior) e a Mongólia chinesa (Interior) passou a fazer parte de um conjunto territorial mais amplo, sob o controle de um mesmo poder político. Somente no arvorecer do século XX, com o esfacelamento da dinastia Qing, ganham força novas (e velhas) demandas para controle do referido território. No vácuo desse esfacelamento, o caos interno e a nova configuração de forças no tabuleiro do poder mundial foram determinantes para os „reajustes‟. Em um primeiro movimento, uma parte da região foi „atraída‟ para área de influência russa (soviética). A outra, para a órbita japonesa, que em 1935 chegou inclusive a proclamar a criação do „Estado‟ mongol de Mengjian. Depois de 1945, o fortalecimento russo e a derrota japonesa mudaram novamente o panorama. Diga-se de passagem, a questão sobre o destino político do referido território foi um dos importantes tópicos abordados na histórica Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945. Os interesses geoestratégicos ali expostos prenunciavam um novo desenho político e territorial para a região. Das resoluções deliberadas, no tópico sobre a questão japonesa, enfatizava-se, por exemplo, que “se mantivesse o status quo em relação à Mongólia Exterior (República Popular da Mongólia)”2 . Mesmo que a Conferência de Yalta tenha também deliberado que a China conservaria uma “soberania plena” sobre a Manchuria, na prática, „oficializouse‟ ali uma partilha do espólio Qing, conforme os interesses russos. Mesmo que o curso da historia tenha se encarregado de alguns ajustes, o certo é que a região entrou na segunda metade do século XX dividida em duas partes: o Estado Mongol, sob influência (controle?) da então União Soviética e a Mongólia Interior, que continuou sobre o controle chinês. De forma breve, são essas as principais particularidades históricas que forjaram desenho das fronteiras na região, conforme conhecemos hoje. Dito de outro modo, o atual desenho dos Estados chinês e mongol surge de uma conjunção de fatores que incluem mais recentemente o desmoronamento da dinastia Qing, a guerra civil, a vitória chinesa contra a ocupação japonesa e o quadro político mundial que emergiu depois da II Guerra. Com as mudanças em curso, com uma Rússia menos poderosa e uma China mais forte, as possibilidades de novos „reajustes‟ na geopolítica da região não devem ser descartadas. Mas deixemos essas conjecturas para um outro momento. Um breve panorama Para uma melhor ambientação com o cenário que estamos trilhando, relembremos alguns dados. A Mongólia Interior tem uma população relativamente pequena, considerando-se o padrão da China. Cerca de 24 milhões. Desses, apenas uns 4 milhões são mongóis. A grande maioria é formada por Han, a etnia majoritária. Sua superfície territorial é de 1.183.000 km². Isso representa mais de 12% de todo o território chinês. Faz fronteira com a Mongólia e a Rússia. Internamente é vizinha de outra região autônoma (Ningxia) e de mais sete províncias. Essa particularidade geográfica é um fator relevante para o projeto de desenvolvimento chinês, principalmente se olharmos para as reservas energéticas da região. Uma rede integrada de exploração e distribuição de seus recursos energéticos tende a garantir o abastecimento de um volume considerável de energia para diversos pontos da China. Em termos de divisão política, a Mongólia Interior é classificada pelo Estado chinês como uma região autônoma3. Esse é um detalhe relevante. Autonomia aqui não significa independência do poder político central. Pelo contrário. Realça, talvez para o próprio Estado, que o mesmo possui particularidades sensíveis que exigem políticas e formas de controle diferenciadas para que a integridade territorial seja assegurada. A Mongólia Interior passou à condição de região autônoma em maio de 1947. Ou seja, um pouco mais dois anos antes da instituição da República Popular (1949). O feito foi fruto de uma aliança entre parte dos mongóis e o Partido Comunista da China - PCCh, na luta contra a ocupação japonesa. Como foi a primeira região autônoma, há quem a veja como um primeiro modelo das políticas do PCCh em relação as questões étnicas e territoriais. Mas isso é relativo, pois cada uma das definições subsequentes necessitou de ajustes específicos, de acordo com as peculiaridades políticas dos territórios e dos interesses envolvidos. Além do mais, no processo de consolidação do novo Estado, em termos territoriais, o primeiro objetivo da “Nova China” foi assegurar o que lhe sobrou do império Qing. Dito de outro modo, em grande medida, a definição dessas regiões autônomas está associada a uma política para assegurar, controlar e manter integrada a nova base territorial do Estado chinês. Mongólia Interior, uma base de energia estratégica ao desenvolvimento chinês. Em outubro de 2009, por ocasião das comemorações do 60.º aniversário da proclamação da República Popular, tivemos a oportunidade de visitar a Mongólia Interior. A combinação de lagos, pradarias e desertos formam um conjunto com cenários muito atrativos. Não é casual que em muitos pontos da região o turismo seja uma das principais fontes de divisas. Todavia, entre uma paisagem natural e outra, salta à vista uma gigantesca rede de infra-estrutura. Longas ferrovias e rodovias (muitas são recentes) cortam as pradarias, atravessam desertos, interligam cidades e províncias. Grandes aeroportos sinalizam para um crescente grau de urbanização e mobilidade interna e externa. Imensos complexos tecnológicos, especialmente nas áreas de mineração e geração de energia, integram o novo quadro. A estatística oficial indica que nos últimos sete anos a taxa de crescimento econômico nessa região foi superior a 17%. Ou seja, foi a região que mais cresceu em toda a China (nos últimos anos, a média de crescimento chinês tem girado em torno dos 9%). Esse indicador é per si suficiente para auxiliar na percepção da mudança paisagística. Mas também pode sinalizar que a lógica de desenvolvimento econômico aplicada pelo Estado chinês se intensifica em diversas partes, mesmo nas áreas mais sensíveis e oficialmente diferenciadas devido suas características étnicas, como é o caso das regiões autônomas. No caso da Mongólia Interior, a razão principal para esse robusto crescimento está diretamente relacionada com a questão energética. A região possui uma matriz diversificada, com possantes reservas de petróleo, gás e carvão. E no caso de energias renováveis, como a eólica, ela já contribui com mais de 26% da produção nacional. Considerando-se a matriz energética nacional, a produção de energias renováveis ainda é muito baixa. Mas como parte significativa dessa energia limpa tende a ser direcionada para um mesmo ponto – Beijing – , a sua visibilidade política tende a ser expressiva. Ao melhorar significativamente a qualidade ambiental de uma cidade como a capital, que também já se abastece do gás natural da região, o governo terá nas mãos um importante trunfo ambiental. E como se sabe, a pressão sobre as responsabilidades ambientais é hoje uma constante na agenda política internacional. Os investimentos na área de energias limpas e renováveis são cada vez mais robustos. Por isso relevantes conquistas pontuais devem ser apresentadas. Mas não se devem criar ilusões. Na China cerca de 70% do consumo de energia é alimentado pelas termelétricas movidas a carvão e 20% pelo petróleo. É interessante observar esse índice, pois mesmo com a forte presença da China no mercado internacional de petróleo, o que alterou completamente o mercado mundial do produto, esse combustível representa, como foi dito, apenas 20% do consumo energético do país4. Em relação ao carvão, ele continuará como o principal combustível chinês, pelo menos por mais algumas décadas. E os motores do desenvolvimento chinês continuarão na sua dependência. Também nesse aspecto, a Mongólia Interior joga um papel central. Ela possui as maiores reservas de carvão de toda a China e já é uma das suas principais produtoras. Em 2009 ela assumiu o primeiro lugar da produção chinesa e ultrapassou a província de Shanxi, que por mais de 30 anos liderou a produção. Concluindo, diríamos ainda que, no mundo de hoje, por mais diferentes que possam ser os modelos de desenvolvimento econômico, uma coisa eles têm em comum: a necessidade de energia. Ela é a força vital do próprio funcionamento social, o que inclui a governabilidade. Na China, mais ainda, pois o desenvolvimento econômico é essencial para o equilíbrio político e social. Não é casual que a segurança energética seja uma das prioridades do governo. Também não é casual o fato do governo redobrar os investimentos na área de defesa para assegurar o controle sobre seu território. Pois não só a Mongólia Interior, mas outras regiões autônomas como Xinjiang e o Tibet guardam no seu subsolo verdadeiros tesouros energéticos. Por isso, por mais que a China corra para assegurar energia fora de suas fronteiras, sua segurança energética passa necessariamente pelo estabelecimento de bases internas confiáveis. Por isso a Região Autônoma da Mongólia Interior se tornou tão relevante e estratégica para o projeto de desenvolvimento chinês. Por outro lado, sua famosa paisagem onírica com nômades pastores tangendo vacas e ovelhas pelas pradarias ainda resiste. Mas para o governo vai deixando de ser o símbolo predominante da região. Coisas do desenvolvimento, dirão alguns. 1 Uma análise histórica excelente se pode encontrar na tese de doutorado “Development of Foreign Relations of th Mongolia in the First Half of the 20 Century: Mongolia’s Struggle for Independence”. Tumurjav, Buyanlham. Japão, Niigata University, 2007. http://dspace.lib.niigata-u.ac.jp:8080/dspace/handle/10191/6251 (acessado em 20 de março de 2010). 2 A Conferência de Yalta, realizada em fevereiro 1945, foi uma série de reuniões entre líderes da Grã-Bretanha (Churchill), EUA (Roosevelt) e União Soviética (Stalin). Nela, as referidas potências delinearam relevantes acordos para uma nova ordem política que emergiria depois que a II Guerra. Os documentos da Conferência podem ser encontrados em diversas fontes, como por exemplo: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=918 (acessado em 29 de março de 2010). 3 As cinco regiões autônomas da China são: Mongólia Interior, Xinjiang, Guangxi, Ningxia e Tibete. Em termos demográficos, chegam a representar em torno de 10% de toda a população chinesa. Porém, em termos territoriais ocupam 46% da superfície da China. Do ponto de vista político, são muito sensíveis. Pois, com exceção de Ningxia, elas percorrem uma extensa zona fronteiriça. E em torno da questão étnica (ou camuflado em torno dessa questão) se desenrola conflitos políticos com fortes implicações nas relações internacionais da China, especialmente na região de Xinjiang e no Tibete. Na Mongólia interior a projeção desses conflitos é menos visível, mas também existe. 4 Em 2008 a China assumiu o posto de segundo maior consumidor de petróleo do mundo, atrás apenas dos EUA. E o de terceiro maior importador, depois dos EUA e Japão. Esses dados e um quadro do consumo energético do país podem visto em: http://www.eia.doe.gov/emeu/cabs/China/pdf.pdf (acessado e 20 de março de 2010)