“Num opúsculo, ‘Gramática da Liberdade’, um filósofo contemporâneo convida-nos a meditar sobre factos como o seguinte: Um homem foi esmagado pela composição 131, na linha 3 da estação do metropolitano da Saint-Lazare... Esse homem tinha vinte e nove anos. Ontem, Bernardo andava numa das extremidades da plataforma, de um lado para outro; afastou-se dos passageiros, inclinou-se para olhar as luzes da máquina e lançou-se como um mergulhador sobre os carris, de pés juntos e os braços ao longo do corpo. Com as pernas cortadas e o rosto queimado, morreu imediatamente. Não mais dobrará a esquina da rua Ordener onde, ainda criança, aprendeu a brincar; não mais subirá a estreita escada onde sentia o mau cheiro dos fritos e da latrina; não mais lerá, apoiado no fogão a gás (...), os anúncios de emprego do ‘Parisien Liberé’. Tinha aprendido a profissão paterna: alfaiate (...); há cinco meses que estava desempregado: pequenos anúncios, escadas, recusas duras... e, depois, as roupas ficaram-lhe tão andrajosas que deixou de sair. Já algum de nós ficou dias inteiros, deitados na cama, com a impressão de ter perdido o aspecto de homem, a viver num mundo que nos recusa trabalho? Bernardo ouvia do outro lado do tabique a mãe, à custa de quem vivia, a mexer nas panelas. Saiu ainda uma vez. Na fábrica, recusaram-no para servente por ser muito fraco; no escritório, o chefe de serviço disse não haver vaga, olhando hostilmente os seus sapatos furados. Às sete horas da manhã do dia seguinte, hora de ir para o trabalho, entrou sub-repticiamente na gare de Saint-Lazare. Todos são escravos do relógio, preocupados com o trabalho. Só ele é livre. É livre, pode ir ao museu ou ver os parques em flor, é livre para pensar na física de Einstein ou na Imaculada Conceição. Neste momento ele sente-se livre, sobretudo livre para escolher entre o bico de gás ou as carruagens do metropolitano. 1 São sete horas da manhã. Começa o dia de um homem livre: de um homem que foi esmagado pela composição 131. Bernardo, um homem livre entre homens livres, foi esmagado por essa liberdade. Isto revela, com trágico brilho, a ambiguidade da palavra liberdade. O desempregado é livre, dado que não está sujeito aos horários da fábrica, ou do escritório, nem ao fardo das tarefas quotidianas. É livre para procurar trabalho, e os empregadores são livres para lho recusar. E, no entanto, ele é escravo, está sujeito à opressão da miséria. Em consequência, já não é livre para viver. Se, antes de iniciarmos um debate sobre o problema da liberdade, quisermos propor uma definição de liberdade, suficientemente ampla para que se aplique a todas as formas de liberdade, só poderemos adoptar uma definição negativa: a liberdade é ausência de opressão. Falaremos, desde então, em liberdades; a palavra liberdade colocar-se-á no plural, pois há tantas liberdades quantas as opressões de que nos libertamos. Assim, em física, falase de um corpo que cai em queda livre (isto é, independente de todas as forças que não a da gravidade); em política, invoca-se a liberdade de reunião, de associação, de opinião, que supõe certa margem de independência em relação à autoridade governamental. O livre-câmbio, no domínio económico, é o comércio livre de restrições aduaneiras, de tarifas, impostos, etc. A partir daí, os metafísicos forjaram o conceito de uma liberdade absoluta. Como diz muito bem Lalande: “A ideia de liberdade absoluta, que poderíamos denominar liberdade metafísica, nomeadamente no que ela se opõe à natureza, consiste numa espécie de passagem do limite; representase a acção como sucessivamente liberta desta ou daquela ordem de causas, até que ela se torne estranha, ao mesmo tempo, a todas as ordens de causas, quaisquer que sejam”. Compreendemos bem que a liberdade, assim entendida, é o poder de agir independentemente não só das coacções exteriores, mas ainda de toda a determinação interior. Teríamos o misterioso poder de estabelecer actos que não seriam previamente determinados, nem pelas nossas ideias, nem pelos nossos instintos, nem pelos nossos hábitos. Tal é o livre arbítrio 2 dos metafísicos que, segundo Renouvier, é o poder que o homem se atribui (...) de agir como se os movimentos da sua consciência e os actos que dela dependem pudessem variar (...) até ao último momento que precede a acção. Podemos aceitar esta definição de liberdade? Dennis Huisman e André Vergez, A Acção 3