Economia do entretenimento, da cultura e do livro

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ECONOMIA DO ENTRETENIMENTO, DA CULTURA E DO LIVRO:
UMA CADEIA COGNITIVA EM DESENVOLVIMENTO NO BRASIL#
Fabio Sá-Earp*
George E. M. Kornis**
No
Brasil
o
desenvolvimento
do
conhecimento
nas
áreas
do
entretenimento, da cultura e do livro é tardio e limitado. Tardio, pois já datam de
cerca de meio século os estudos pioneiros especificamente voltados para esses
campos do conhecimento produzidos na Europa e nos EUA. Limitado, pois são
ainda muito poucos os centros universitários que abrigam atividades de ensino e
pesquisa orientados para esses campos do conhecimento. Estamos, portanto,
diante de um longo caminho a ser percorrido por instituições e por indivíduos.O
presente texto pretende, dados os seus limites, ser uma contribuição para tornar
mais claro esse caminho rumo ao desenvolvimento de uma cadeia cognitiva
centrada nas economias do entretenimento, da cultura e do livro no Brasil.
A economia do entretenimento contempla estudos do uso do tempo livre
focados nos processos de geração de emprego e renda bem como nos seus
impactos sobre as firmas e os mercados. Esses estudos se debruçam sobre três
domínios específicos, a saber: a economia da cultura, do esporte e do turismo. No
presente texto vamos nos ocupar de economia da cultura e, mais especificamente,
de economia do livro.E mais: considerando que a baixa densidade da produção
intelectual sobre o livro no Brasil deve ser superada, elegemos como eixo
condutor de nosso trabalho uma análise da crise atual da cadeia produtiva do livro
no país.
A economia do livro é tal como a economia do áudio-visual, da música, das
artes performáticas, das artes plásticas e do design parte integrante de um vasto e
complexo domínio do conhecimento: a economia da cultura. 1 No Brasil, a
deficiência das estatísticas setoriais específicas e a desarticulação de espaço de
ensino e pesquisa tem dificultado o desenvolvimento desse campo de
#
Trabalho publicado em José A. Kamel (org.), II Congresso de Engenharia do Entretenimento, Rio o ano
todo. Rio de Janeiro: e-papers.
*
Professor do IE/UFRJ, coordenador do LIV (Laboratório da Economia do Livro).
**
Professor do IMS/UERJ, pesquisador associado ao LIV.
1
Para uma ampla exposição desses conceitos ver Sá-Earp (2002).
1
conhecimento. No entanto, alguns desenvolvimentos já se fazem presentes nessa
área. A economia do livro já começa a analisar em bases substantivas a cadeia
produtiva do livro, ou seja, o conjunto das relações estabelecidas entre produção,
distribuição, emprego, renda, mercado, concorrência e governo.
A cadeia produtiva do livro no Brasil é, em termos internacionais, recente e
diminuta. Nossa participação no mercado mundial do livro é de cerca de um 1%
(R$ 2477 milhões2) e esse fato pode ser bem dimensionado quando verificamos
que o faturamento da empresa líder do mundo, a alemã Bertelsman, é quase três
vezes superior ao conjunto do faturamento de nosso país. Nosso restrito mercado
é um oligopólio - mercado no qual a maior parte das vendas é realizada por
algumas grandes empresas editoriais - com grau crescente de concentração e de
desnacionalização.
Além disso, a nossa economia do livro vive, a quase uma década, uma
expressiva crise, que pode ser medida por diversos indicadores. O mais evidente
destes é o do número de exemplares vendidos, que revela uma queda de 34%
entre os anos de 1998 e 2005.
Gráfico 1
milhões
EXEMPLARES VENDIDOS: TOTAL
450
400
350
300
250
200
150
100
50
0
410
334
320
289
256
1998
2
300
290
1999
2000
2001
2002
2003
2005
271
2005
Em valores de 2002, último ano em que foi possível fazer comparações internacionais.
2
Como se divide esta queda nas vendas entre o mercado e o governo? Em
primeiro lugar salta aos olhos a forte queda nas vendas ao mercado, com uma
redução de 51% entre 1998 e 2003 e um pouco menor, de 38% entre 1998 e
2005, como pode ser visto no gráfico 2.
Gráfico 2
EXEMPLARES VENDIDOS AO MERCADO
350
300
296
250
milhões
226
201
200
183
183
158
150
145
154
100
50
0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Esta queda nas vendas a particulares é parcialmente compensada pelas
compras
que
o
governo
realiza,
que
se
revelam
erráticas,
variando
substancialmente de um ano para o outro, como mostra o gráfico 3. Deve-se ainda
destacar que a maioria destas compras é feita junto às grandes editoras de livros
didáticos, que são uma meia dúzia, pouco sobrando para as demais centenas de
editoras brasileiras.
3
Gráfico 3
EXEMPLARES VENDIDOS AO GOVERNO
180
162
160
140
milhões
135
133
120
117
114
111
100
88
80
64
60
40
20
0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Mas a crise da economia do livro no Brasil pode ser medida não apenas
pela sensível redução no número de exemplares vendidos, mas também pelo
notável declínio do faturamento. O gráfico 4 mostra que o valor das vendas (em
valores de 2005) caiu ainda mais do que o número de exemplares, atingindo 45%
entre 1998 e 2005.
Gráfico 4
4
VALOR DAS VENDAS: TOTAL
5000
4500
4671
4000
3500
3518
3400
3512
3000
2647
2500
2681
2512
2573
2000
1500
1000
500
0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
As vendas realizadas ao mercado, uma vez descontada a inflação e os
valores sendo trazidos para sua equivalência em 2005, apresentaram uma queda
de 50%, como mostra o gráfico 5.
Gráfico 5
VALOR DAS VENDAS AO MERCADO
5000
4500
4000
4290
3500
3000
2942
2831
2812
2500
2183
2000
2165
1976
2124
1500
1000
500
0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Novamente por este indicador, como mostra o gráfico 6, as compras do
governos foram incapazes de reverter a tendência à queda, na medida em que
5
tiveram o mesmo caráter errático e favoreceram sobretudo às grandes editoras de
livros didáticos.
A esta conjuntura crítica soma-se mais um elemento desencorajador. Tratase da recusa das entidades editoriais em reconhecer a existência da mesma e, ao
contrário, anunciarem sistematicamente que o mercado do livro vai muito bem
obrigado, seja apresentando as vendas em valores correntes (o que nenhum
estudante do primeiro ano de economia faria), seja simplesmente apresentando
como sintoma de sucesso da economia do setor... o aumento da frequência de
público nas diversas bienais!
Os dados
abaixo tornam demasiado evidente o perfil declinante das
vendas mesmo em considerando o bom desempenho setorial no triênio entre 2002
e 2004:
Gráfico 6
VALOR DAS VENDAS: TOTAL
800
700
687
700
600
516
500
400
536
464
458
449
381
300
200
100
0
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
Mas a crise é por demais evidente – pelos próprios dados apresentados
pelas entidades oficiais dos editores - para poder ser negada. E sequer existe a
6
desculpa de que se trataria de uma conseqüência do baixo crescimento da
economia brasileira como um todo. Se o baixo crescimento é um fato, o
desempenho das vendas de livros é muitíssimo pior, como se vê no gráfico 7. De
fato, se o Produto Interno Bruto brasileiro teve um crescimento de apenas 20%
entre 1998 e 2005, baixo sob qualquer ponto de vista, pelo menos teve um
crescimento positivo. O setor editoria, por sua vez, apresentou a conhecida queda
de 45% nas vendas – e nada foi pensado para atenuar o problema.
Gráfico 7
VENDAS DE LIVROS X PIB
140
120
100
100
80
100
105
106
73
75
75
60
109
110
57
57
116
120
54
55
40
20
0
1998
1999
2000
2001
Livros
2002
2003
2004
2005
PIB
Um outro sintoma da crise da cadeia produtiva do livro no Brasil é a
redução do nível de emprego nas editoras e o aumento relativo do peso dos
trabalhadores temporários no quadro geral do emprego nessas empresas, como
7
pode ser visto no gráfico 8. O número total de empregados reduziu-se em 24%,
sendo que a queda no número de trabalhadores permanentes foi de 44%
(aproximadamente o mesmo valor da queda do faturamento das editoras no
mesmo período). O aumento da precarização do trabalho pode ser avaliado
considerando-se que em 1998 apenas 17% eram empregados temporários,
enquanto em 2005 este percentual passou a 35%.
Gráfico 8
ENPREGO EM EDITORAS
25000
20000
3906
4157
7400
5849
7800
5200
15000
10000
6430
6816
11174
10636
2004
2005
19151
15431
15055
13900
14600
12970
5000
0
1998
1999
2000
2001
Permanente
2002
2003
Temporário
8
Uma descrição da crise da crise da cadeia produtiva do livro no Brasil
estaria certamente incompleta se não mencionasse a longa lista de aquisições e
fusões de empresas atuantes no interior dessa cadeia. O destaque aqui são as
editoras seguidas das redes de livrarias que mudaram de controlador(es) nos
últimos anos. Nesse processo aumentou significativamente a presença de editoras
estrangeiras no mercado brasileiro tornando evidente alguns fatos: inexistem no
Brasil barreiras à entrada na competição oligopólica; que as empresas editoriais
do país são, em geral, pouco capitalizadas e que o mercado brasileiro é frágil e
instável dada a baixa capacidade de resistência ao assédio de empresas
estrangeiras sobre as nacionais .
A desnacionalização já é uma evidencia no segmento das editoras de livros
didáticos e que essa desnacionalização é um processo em curso nos demais
segmentos editoriais do Brasil. Finalmente, deve ser mencionado que as intensas
conglomerações que, em geral, antecedem as aquisições por empresas
estrangeiras são um claro sinal que esse processo de aquisições e fusões ainda
está longe de seu esgotamento no país.
O quadro acima pode ser ainda mais desenvolvido. A crise da cadeia
produtiva do livro no Brasil tem no preço do livro um fundamento importante pois
os preços praticados no mercado brasileiro são excessivamente caros para o
poder aquisitivo do consumidor brasileiro.
Este fato é facilmente constatável
quando cruzamos os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar com aqueles da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE e verificamos que, em
média, mesmo os 20% mais ricos têm um gasto mensal muito reduzido com
produtos editoriais (livros, revistas e jornais).
Tabela 1
Gasto médio com livros dos 20% mais ricos, segundo a renda
em salários mínimos em 2002 (reais de 2004)
Livros didáticos
e técnicos
Outros livros, revistas e
periódicos
Total de produtos
editoriais
10 a 15 SM
15 a 20 SM
20 a 30 SM
Mais de 30 SM
4
7
10
16
10
17
26
45
14
24
36
61
9
Fonte: dados do IBGE, nossa elaboração.
Para piorar esta situação estes brasileiros que mais compram livros tiveram
sua renda reduzida em aproximadamente 20% entre 1998 e 2003. No mesmo
período os 20% mais pobres da população tiveram um aumento equivalente em
sua renda, sem que isto se refletisse no aumento de suas compras de livros, visto
que suas prioridades de consumo são outras.
Tabela 2
Renda bruta real dos consumidores de livros (reais de 2004)
Ano
10% mais ricos 5% mais ricos 1% mais ricos
1998
1999
2000
2001
2002
2003
Fonte: dados
4262
6110
12338
3939
5620
10964
3905
5591
11118
3872
5562
11271
3765
5404
10758
3383
4853
9656
IBGE (2004a), nossa elaboração.
Os grandes compradores de livros – a classe média – além de sofrerem a
referida queda em sua renda, ainda alteraram seu padrão de consumo nos últimos
anos, o que não se refletiu inteiramente na pesquisa do IBGE de 2002. Isto porque
apareceram novas prioridades, como telefonia celular, internet banda larga e
planos de saúde, que passaram a ter maior peso nos orçamentos domésticos.
(Sá-Earp e Kornis, 2006)
Por todas estas razões pode-se afirmar que, no presente, a maioria da
população brasileira só poderá ter acesso a livros se houver um sólido programa
de doação e, sobretudo, de reestruturação de bibliotecas - um evidente problema
do país. O mais importante programa de doação de livros do país se dá através do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) que é construído a partir de compras
do governo junto ao segmento mais oligopolizado e desnacionalizado da atividade
editorial do país. Trata-se de um programa de grande envergadura mesmo em
escala internacional posto que, nesse aspecto, o Brasil só é superado pelos
E.U.A. e pela China. No entanto, a política de compras de milhões de exemplares
10
a custos reduzidos tem aportado problemas consideráveis no tocante à qualidade
material e intelectual desses livros. A importância conferida pelo governo brasileiro
no tocante às compras e a distribuição de livros didáticos não se apresenta
quando se trata de bibliotecas públicas.3
O breve exame da crise da cadeia produtiva do livro acima exposto mostra
que não poucas as dificuldades que se interpõem no rumo ao desenvolvimento de
uma cadeia cognitiva centrada nas economias do entretenimento, da cultura e do
livro no Brasil. No entanto, essas dificuldades podem e devem ser superadas
desde que enfrentadas com lucidez, coragem e capacidade de reorientação de
práticas pouco aptas para construção um futuro que seja, de fato, portador de um
sentido do novo.
REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS
. IBGE (2003). Pesquisa de Orçamento Familiar 2002. Disponível em
http://www.ibge.gov.br.
. IBGE (2004). Pesquisa nacional por amostra de domicílios. Disponível em
http://www.ibge.gov.br.
. Sá-Earp, F. [org.] (2002). Pão e circo. Limites e perspectivas da economia do
entretenimento. Rio de Janeiro, Ed. Palavra e Imagem.
. Sá-Earp, F. e Kornis, G. (2005). A economia da cadeia produtiva do livro. Rio de
Janeiro: BNDES. Disponível para download em
http://www.ie.ufrj.br/publicacoes/ebook/index.html.
. Sá-Earp, F. e Kornis, G. (2005a). A economia do livro: a crise atual e uma
proposta de política. IE/UFRJ, Texto para Discussão nº 004/2005.
disponível em http://www.ie.ufrj.br/publicacoes/discussao/discussao.html.
, Sá-Earp, F. e Kornis, G. (2006). “Proteger o livro: quem tem medo do lobo mau?”,
in Gerlach, M., Proteger o livro. Rio de Janeiro, LIBRE.
3
Para um desenvolvimento do argumento ver Sá-Earp e Kornis, 2005a.
11
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