A história do wahhabismo

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2014
A história do
wahhabismo
do deserto de Néjede ao Reino da
Arábia Saudita
Por: Pedro Ravazzano
A história do wahhabismo | M Honarjoo
O wahhabismo é um movimento religioso sunita
associado com os ensinamentos de Muhammad ibn Abd
al-Wahhab (1703 – 1792). Os seus adeptos, contudo, se
autoproclamam salafis, isto é, aqueles que seguem o
caminho da primeira geração de muçulmanos (salaf). A
estruturação desta reforma está intimamente associada
com a história da Arábia Saudita e com o seu
expansionismo. Ademais, também é possível remeter
grande parte do fundamentalismo islâmico atual à
cosmovisão wahhabita. A nova leitura dado ao Corão e
aos Ahadith (ditos do Profeta Muhammad) permitiu uma
radical transformação em pontos fundamentais do
islamismo e possibilitou, pela primeira vez, a
desagregação da comunidade sunita.
A “mística” wahhabita está completamente associada ao
combate à idolatria (shirk). No islamismo de então era
comum encontrar veneração aos santos e outras
manifestações de piedade, como a visitação de mausoléus,
peregrinações a lugares sagrados etc. Hoje estes costumes
sobrevivem apenas entre os adeptos do sufismo e no islã
xiita. Em grande medida o fim destes atos de devoção é
reflexo do fortalecimento do discurso reformista em todo
o mundo islâmico. Para Abd al-Wahhab a identidade
muçulmana do fiel não estava pautada na profissão de fé
(shahada), mas sim na correta manifestação da sua
adoração, como a expressão da crença no Deus Único.
Para o reformador árabe, a verdadeira crença subsistia
apenas entre aqueles que combatiam a idolatria.
Consequentemente, grande parte da comunidade islâmica
era vista pelo wahhabismo como apóstata necessitada de
purificação.
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As origens espirituais do wahhabismo se encontram nos
ensinamentos de Ibn Taymiyyah (1263 – 1328), pensador
de origem turca e que se tornou um célebre pregador na
Síria. Ulemá da Escola Hanbali1, atingiu a estatura
religiosa de “Mujtahid”, ou seja, clérigo capaz de gerar
um veredito independente a respeito de aspectos da
jurisprudência islâmica. Na busca pela renovação do
islamismo, Ibn Taymiyyah se levantou contra a visita de
túmulos e a veneração dos santos. Ainda considerando
estas práticas idolátricas, dizia-se incapaz de conhecer a
validade das intenções dos muçulmanos, portanto
impossibilitado de julgar a credulidade individual.
Contudo, o mesmo equilíbrio não foi utilizado no trato
dado aos xiitas e aos sufis, que se tornaram desde então
inimigos clássicos do que considerava a ortodoxia
islâmica. Na busca por determinar o que era o islamismo
“puro”, Ibn Taymiyyah passou a referir aos seus
seguidores como “salafis”, em referência aos
companheiros do Profeta Muhammad. Com o sistemático
distanciamento do pensamento ordinário Hanbali, o
salafismo se tornou numa subcorrente dentro desta escola
de jurisprudência.
Ainda que Muhammad ibn Abd al-Wahhab, séculos
depois, tenha se tornado no aclamado ulemá do
wahhabismo, ele vinha de uma remota localidade onde a
tradição intelectual era profundamente rasa. O Néjede,
região central da península arábica, durante séculos viveu
isolado politicamente, desde o fim do Califado Abássida.
Os Otomanos, que controlavam o Oriente Médio, não
tinham razões para invadi-lo e subjugá-lo. Não tinha
importância econômica e não possuía uma posição
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estratégica. Religiosamente o Néjede era diverso, com
diversas escolas sunitas de jurisprudência e tendo alguma
influência xiita, devido aos peregrinos vindos do Iraque,
do Irã e do Bahrein que inevitavelmente passavam pela
região.
As idéias do Sheikh Muhammad, ao que tudo indica,
surgiram quando de sua viagem para Bassora, em 1730. A
cidade no sul do atual Iraque vivia sob constante tensão
devido ao atrito entre Otomanos e Persas, com o risco
iminente de invasão. Como uma região de maioria xiita,
provavelmente Abd al-Wahhab se impactou com a
veneração dos seus fiéis aos imames. Em Bassora iniciou
a sua pregação contra as inovações (bid’a) e contra os
cultos corrompidos ao Deus Único. Também foi neste
período que Sheikh Muhammad teria recebido a
iluminação divina que possibilitou o conhecimento mais
profundo da unicidade, condensado no seu livro “Kitab
Al-Tawhid”. Ainda sendo perceptível um discurso
próximo ao ensinado por Ibn Taymiyyah, o reformador
árabe realiza uma mudança radical de perspectiva.
O modo obscuro com o qual Sheikh Muhammad
interpretava alguns ahadith e passagens corânicas
endossou as bases da sua reforma. O Profeta Muhammad,
numa tradição transmitida oralmente, disse: “Quem quer
que afirme que não há deus além de Deus e renega todos
os outros objetos de culto, salvaguarda o seu sangue, a sua
propriedade e a sua fé em Deus”. Para al-Wahhab este
dito era um aclaramento a respeito da imperfeição da
profissão de fé nominal. Apenas a renegação daquilo que
considerava idolatria poderia conceder ao fiel muçulmano
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a sua pertença à comunidade e, portanto, a sua proteção
legal. O problema oriundo desta leitura era que os crentes,
em sua maioria, buscavam a intercessão de homens santos
e construíam santuários sobre os seus túmulos. Com isto
toda a península arábica estava enquadrada como
apóstata. Este contexto fortaleceu ainda mais a imagem de
Sheikh Muhammad como o novo opositor à ignorância
religiosa (jahiliyya) na região, depois do Profeta do Islã.
Os paralelos criados entre a história de al-Wahhab e
Maomé, pelos adeptos do wahhabismo, foram inúmeros.
Sheikh Muhammad necessitava de suporte político para
difundir as suas novas idéias, contudo, sequer encontrava
apoio na própria família. Seu pai não endossava os seus
ensinamentos e o seu irmão se tornou no seu maior crítico.
Após um breve período de aliança com um chefe tribal,
onde pode colocar em prática os métodos wahhabitas –
destruiu a tumba de Zayd ibn al Khattab, companheiro do
Profeta, e permitiu o apedrejamento de uma mulher – alWahhab partiu depois de ser derrotado pelos ulemás que
o combatiam duramente. Em 1744 ele conhece alDir’iyya (atualmente na periferia de Ryad), um oásis
governado pelo clã conhecido como Al-Muqrin, mas que
depois se tornou famoso como Al-Saud. O ardor
missionário de Sheikh Muhammad contagiou os
governantes, mas especialmente o seu ensinamento que
tornava lícita a guerra santa contra muçulmanos.
Muhammad ibn Saud se apresentou como a força para
combater a descrença e a idolatria. A aliança SaudWahhab possibilitou que pela primeira vez desde o
surgimento do Profeta Muhammad grande parte da
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península arábica se unificasse sob uma mesma
interpretação do islã.
Para o Sheikh Muhammad a comunidade islâmica viveu
seis séculos na ignorância da unicidade de Deus e na
degeneração da revelação transmitida pelo Profeta do Islã.
De certa forma o wahhabismo adotava o mesmo discurso
do protestantismo quando do seu surgimento no séc. XVI.
Muitos foram os ulemás que se levantaram contra alWahhab, contudo, a forte oposição do seu irmão foi o
mais eloquente ataque ao wahhabismo. Sulayman ibn Abd
al-Wahhab o acusava de realizar juízos legais de modo
independente (ijtihad), o que não mais era permitido no
sunismo desde o séc. X. Ademais, transformava
infidelidades consideradas pelo consenso islâmico como
“idolatria menor” em apostasia. Sheikh Sulayman ainda
destacou que por mais que alguém seja acusado de
“idolatria maior”, crime passível de morte, deve ser
advertido pelos clérigos para que tome conhecimento da
própria condição, evitando juízos precipitados sobre
aqueles que estão na ignorância. Com a banalização do
“takfir” (prática da excomunhão) entre os wahhabitas, e
baseado em nenhuma justificativa a não ser as acusações
infundadas de idolatria, Sheikh Muhammad divide a
comunidade islâmica. Seu irmão, numa afirmação
contundente, afirma que o wahhabismo trilha o mesmo
caminho extraviado do kharijismo, o primeiro cisma da
história muçulmana.
O debate entre os dois irmãos foi silenciado pela conquista
saudita do oásis de Huraymila, em 1755, obrigando
Sulayman a partir em fuga depois que foi julgado pelo
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seu irmão como “inimigo de religião”. Mais tarde seria
capturado e enviado para Ryad, onde morreria na prisão.
O êxito da expansão saudita despertou a preocupação dos
Otomanos, que até então escutavam com pouco interesse
as pregações de al-Wahhab. Como parte dos seus
ensinamentos, a “jihad” contra os apóstatas da península
arábica era uma obrigação religiosa. Desde que os
muçulmanos começaram a cultuar os mortos e os objetos
sagrados perderam a salvaguarda e se tornaram em
incrédulos. Antes de organizar um ataque era enviado um
convite à conversão ao islã, o que obviamente era
recebido de modo presunçoso pelos habitantes das
cidades, que já eram crentes. Com a tomada dos
povoados, os prisioneiros deveriam abraçar o islamismo
wahhabita. Aqueles que aderiam ao pensamento
reformado ficavam livres mediante o pagamento da taxa
de proteção (aplicada aos cristãos e aos judeus). Caso
recusassem, todos eram mortos e as mulheres
escravizadas.
Com o estado saudita atingindo as fronteiras do Império
Otomano, Istambul iniciou uma dura batalha contra o
wahhabismo, primeiramente no plano religioso, através
de ulemás, e posteriormente com as intervenções
militares. Depois da tomada das Cidades Sagradas, em
1803, seguida do combate aos maus hábitos estabelecidos
pelos turcos, os sauditas conseguiram construir uma boa
imagem na comunidade islâmica, ainda que fora da
península arábica apenas a corte do Sultão do Marrocos
tenha mostrado interesse em suas pregações. Contudo, a
destruição de tumbas e mesquitas despertou a revolta em
diversos pontos. Nesta mesma época os ensinamentos
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wahhabitas foram ainda mais radicalizados, com a
proibição de viagens aos países incrédulos, ou seja, todos
os existentes, e com a afirmação de que aqueles que
conviviam com infiéis se tornavam também
infiéis. Buscando retomar o controle do Hijaz, uma
incursão foi liderada por Muhammad Ali, modernizador
da província do Egito e com aspirações dinásticas. Na
visão de Sulayman ibn Abdallah, neto de al-Wahhab2, o
embate com os Otomanos era a luta dos crentes contra os
descrentes, do monoteísmo contra a idolatria. Num ataque
encabeçado por Ibrahim Pasha, filho de Muhammad Ali,
o líder saudita, Amir Abdallah ibn Saud, rendeu-se no dia
11 de setembro de 1818. Os antigos líderes tribais foram
recolocados no poder. A capital, al-Dir’iyya, foi
completamente destruída. Os sobreviventes da família AlSaud e Al ash-Sheikh foram deportados para o Egito.
Aos olhos dos otomanos, dos europeus e dos próprios
beduínos árabes, parecia o fim do estado saudita e do
movimento wahhabita. Contudo, incapaz de consolidar o
poder na região, os egípcios partiram, abrindo o caminho
para a restauração. O Segundo Estado Saudita, o Emirado
do Néjede, durou apenas três gerações e implodiu depois
da divisão interna na Casa Saud e com tomada de Ryad,
em 1891, pelo Emirado de Al-Rasheed, uma antiga
província. Contudo, a relevância dos Ibn Saud na região
era incontestável e algumas décadas mais tarde, em 1902,
Abdul Aziz ibn Saud retomaria o controle de Ryad. Em
1921 ele cria o Sultanato do Néjede, em 1925, com a
invasão do Hijaz, surge o Reino do Néjede e do Hijaz e
em 1932 nasce a Arábia Saudita. O wahhabismo já estava
consolidado há mais de um século como a corrente
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religiosa oficial do deserto e com o advento do reino
saudita se estabeleceu no poder, estreitando a relação
entre a Casa Saud e a Casa do Sheikh através do
casamento de Abdul Aziz com Tarfah bint Abdullah Al
Ash-Sheikh, filha de Abd Allah ibn Abd al-Latif Al ashSheikh, líder da missão wahhabita em seu tempo. Desta
união nasceu Faisal bin Abdulaziz Al Saud, futuro rei
saudita. A partir de então os ulemás wahhabitas iniciam o
processo de internacionalização dos seus ensinamentos,
patrocinados pelos príncipes, e começam a devastação
cultural e religiosa na península, destruindo igrejas,
sinagogas, mesquitas, tumbas etc. Ademais, neste cenário
entra um terceiro e novo fator que se tornará fundamental
para o entendimento do wahhabismo moderno: o
Ocidente.
Isso será análise de um próximo artigo.
1 – Madhahib são correntes sunitas de interpretação da
jurisprudência (fiqh). Todas surgiram no período de
consolidação do pensamento islâmico, fundadas entre o
séc. VIII e IX. As quatro grandes escolas são: Hanafi,
fundada por Abu Hanifa, Maliki, fundada por Malik ibn
Anas, Shafi’i, fundada por Abu Abdullah ash-Shafi’i, e
Hambali, fundada por Ahmad ibn Hanbal. Não podem ser
consideradas seitas e nem divisões internas. Todos os
sunitas partilham da mesma doutrina, com diferenças
apenas de caráter legislativo ou ritualístico a depender da
escola.
2 – Os descendentes de Sheikh Muhammad, que adotaram
o sobrenome de Al ash-Sheikh (Casa do Sheikh),
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exerceram um papel central na propagação do
wahhabismo e no expansionismo saudita. Na Arábia
Saudita moderna ainda figuram, depois da Casa Saud,
como uma importante família no governo do reino. Entre
os seus membros atuais estão Abdul-Aziz ibn Abdullah
Al ash-Sheikh, Grande Mufti da Arábia Saudita, Saleh bin
Abdul-Aziz Al ash-Sheikh, Ministro de Assuntos
Islâmicos, e Abdullah ibn Muhammad Al ash-Sheikh,
presidente da Assembleia Consultativa.
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