MAOMÉ, POR UM FIEL DO OCIDENTE

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O ESTADO DE S. PAULO
SÁBADO, 11 DE DEZEMBRO DE 2010
sabático S7
Resenhas
MUHAMMAD – A VIDA DO
PROFETA DO ISLÃM
Autor: Martin Lings
Tradução: Cléris Nogueira,
Luiz Pontual, Sergio Rizek
Editora: Attar Editorial
(502 págs., R$ 88)
MOHAMED MESSARA/EFE
MAOMÉ,
POR UM
FIEL DO
OCIDENTE
Com texto fluente, biografia
de Martins Lings usa fontes
tradicionais sem modismos
MAMEDE JAROUCHE
onta a tradição muçulmana que o próprio
Muhammad (m. 632
d.C.), fundador da religião muçulmana, teria recomendado aos
discípulos que se abstivessem de relatos
sistemáticos sobre as
suas ações. Seu argumento, deveras razoável e ponderado, era o
de que, sendo ele um simples ser humano –
embora investido de missão profética, segundo a crença da religião que fundou – cometera tanto acertos como, eventualmente, erros,
de modo que lhe registrar as ações, conferindo-lhes caráter sagrado, poderia consistir,
aos olhos do vulgo, em legitimação de atos
nos quais ele porventura houvesse cometido
algum equívoco e depois se arrependido.
A recomendação foi quebrada menos de
um século após a sua morte, com registros
basicamente divididos em dois gêneros: de
um lado, a sira, biografia propriamente dita,
que obedece ao formato tradicional das biografias, relatando sistematicamente toda a
sua vida, desde a origem e apresentando o claro propósito de fortalecer o moral dos muçulmanos com uma narrativa exemplar que enfatiza justeza e verdade da missão do profeta,
bem como as suas façanhas, divinamente inspiradas, em defesa da nova fé; de outro, o hadith, conjunto de relatos sobre ações, ditos e
C
mesmo silêncios do profeta que foram utilizados como uma das fontes da legislação e da
jurisprudência islâmicas, ao lado do Alcorão
e da sunna, a prática ortodoxa dos primeiros
conversos ao islamismo. Nessa linha, o hadith é menos laudatório que a sira, pois obedece a determinações diversas e mais eminentemente pragmáticas, ao passo que a primeira, conquanto pudesse fazer parte dos
rituais de adoração, também servia, ocasionalmente, a propósitos mais ornamentais;
embora seja natural o interesse pela figura
do fundador de sua religião entre os muçulmanos, as inovações no gênero são relativamente escassas, com eventuais compiladores e historiadores retomando o que dissera Ibn Hisham e utilizando as fontes usuais
do hadith. Mais modernamente, em especial a partir do século passado, é que come-
çaram, de modo tímido, a espocar novidades aqui e acolá no âmbito do islã.
O pioneiro na vertente da sira (biografia)
foi Ibn Ishaq (m. 768 d.C.), cuja obra, pelo
visto controversa, se perdeu, tendo sido resgatada e reescrita mais tarde por Ibn Hisham
(m. 828 d.C.), que deu à narrativa sobre a vida de Muhamad o formato tradicional geralmente aceito até hoje, caracterizado por uma
aura sagrada e honorável. Já na segunda vertente, o hadith, a palma cabe com todos os
méritos a Muslim (m. 875 d.C.) e Al-Bukhári
(m. 870 d.C.), compiladores e sistematizadores de grandeza ímpar. Aliás, esse segundo gênero, o hadith, teve enorme fortuna, com a
produção de inúmeros tratados ao longo dos
séculos, fato esse assaz compreensível caso
se leve em conta a sua importância para a
própria legislação muçulmana, a shari’a.
Ao contrário do programático convencionalismo das biografias escritas em terras do islã,
no Ocidente, conforme seria de se esperar, os
diferentes interesses em torno da personalidade do profeta bem como do próprio islã tornam a oferta mais variada, e isso desde os primórdios, na Idade Média, com textos que vão
da diatribe mais aberta à proposta de conciliação, passando, também, pelo desejo honesto
de compreender essa alteridade.
Moderna, a biografia do inglês Martins Lings (1909-2005), Muhammad, é mais uma tentativa, decerto a mais bem lograda no Ocidente,
de tornar legível a biografia e os feitos do homem que lançou um dos maiores desafios que
a cristandade teve de enfrentar. Convertido ao
islã, Lings, cujo nome árabe era Abu Bakr Siraj
Ad-Din, escreve um texto cuja raridade está
justamente num hábil cruzamento a que poucos se arriscam: seu relato, por uma parte, utiliza com abundância, generosidade e respeito
as fontes tradicionais, sem se deixar envolver
por modismos críticos aplicáveis ao caso; de
outro, não abre mão do rigor de explanação,
com notas, remissões e citações constantes,
que conferem um cunho de legitimidade acadêmica ao seu trabalho. O resultado é um texto escorreito, cuja fluência se lê com agrado, e
aderente ao ponto de vista das fontes, plenamente justificada pela conversão do autor, muçulmano devoto. Essa adesão se faz de maneira bastante sutil, com recursos poéticos na medida certa, sendo possível citar como exemplo
todos os relatos sobre eventos por assim dizer
sobrenaturais, os quais, recolhidos nas fontes
primitivas onde se encontram descritos, são
reproduzidos com tal habilidade pelo autor
que o leitor passa ao largo de sua “cumplicidade”, diga-se assim, com o biografado.
Enfim, um arabista não poderia ainda deixar de ressaltar, ao lado da qualidade material da edição, os cuidados com a transcrição dos nomes árabes, o que é inusual em
muitas obras similares. Sem temer o risco
de causar estranhamento no leitor, a edição não hesita em lançar mão de diacríticos
nas letras latinas a fim de ficar mais próxima dos sons do original. Assim, o leitor não
deve surpreender-se ao encontrar, logo na
capa, a palavra Muhammad do título com
um pingo sob o “h” para transcrever um fonema fricativo laringal surdo que existe em
poucas línguas além do árabe.
Meca. Peregrinos
na cidade sagrada
dos muçulmanos,
onde nasceu o
profeta: explanação
com a legitimidade
do rigor acadêmico
✽
MAMEDE JAROUCHE É PROFESSOR DE
LITERATURA ÁRABE NA USP
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