DIREITO E DISCRIMINAÇÃO GENÉTICA Denise Hammerschmidt* RESUMO A informação genética é parte do acervo geral dos dados médicos, compreendidos os dados genéticos e proteômicos, bem como se encontra presente nas mostras biológicas. A grande quantidade de dados nela compreendidos leva a idéia de homem transparente. A informação genética é única, estrutural, preditiva, probalística e geracional. Os dados genéticos identificam e caracterizam o indivíduo através de uma dotação genética própria e distinta dos demais seres, sendo reflexo de sua individualidade e de seu caráter personalíssimo. È oportuno mencionar que a seqüenciação do DNA tem aberto a porta à investigação científica e dado lugar ao conhecimento de características de nosso organismo até agora ignoradas e ao descobrimento de terapias capazes de solucionar problemas que se acredita de difícil ou impossível solução. Por outro lado, evidenciam-se perigos, decorrentes de sua implicação para os demais membros da família, suas conseqüências sobre as tomadas de decisão por parte de terceiros, e o perigo de discriminações genéticas, em diversos setores. Palavras-chave: Genoma humano. Informação genética. Dados genéticos. Discriminação genética. ABSTRACT Genetic information is part of general medical data archive including genetic and proteomic data and it is found in biological samples. The majority amount of data included in genetic information leads to a conception of the revealed man. The genetic information is unique, structural, predictive, stochastic and creational. The genetic data recognizes and distinguishes a person through a unique genetic portion which is different in every living being and reflects one´s individuality and one´s personal characteristic. It is valid to mention DNA sequencing has opened a path leading to scientific investigation and has helped to reveal characteristics from human bodies that until now were ignored and to discover therapies which can solve problems believed unsolved. On the other hand, there are risks resulting from it, such as implications for family members, consequences regarding decision taking for non-family members and the danger of genetic discrimination in different sectors of society. Keywords: Human genome. Genetic information. Genetic data. Genetic discrimintation. * Juíza de Direito no Estado do Paraná. Mestra em Direito Supra-Individual pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Mestra em Direitos da Personalidade pelo Centro Universitário de Maringá – Cesumar. Pósgraduada pela Cátedra de Bioética e Biojurídica da Unesco. Professora de Direito Penal e Biodireito da PUCPR – Campus Londrina. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 2 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos da Unesco1 (DIDGH), em seu preâmbulo, reconhece que a informação genética é parte do acervo geral dos dados médicos e que o conteúdo de qualquer dado médico, aí compreendidos os dados genéticos e os proteômicos, está intimamente ligado ao contexto e depende das circunstâncias de cada caso, bem como a informação genética também se encontra presente nas mostras biológicas (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. 104). Ademais, reconhece a Declaração que os dados genéticos são singulares, por sua condição de dados sensíveis, e define que os dados genéticos humanos consistem na informação sobre as características hereditárias das pessoas obtida por análises dos ácidos nucléicos2 e outras análises científicas (Art.2, i) Reconhece também que os dados proteômicos humanos referem-se à informação relativa às proteínas3 de uma pessoa, as quais incluem sua expressão, modificação e interação (Art.2, ii); e define mostra biológica como qualquer mostra de substância biológica (por exemplo sangue, pele, células ósseas ou plasma sanguíneo) que albergue ácidos nucléicos e contenha a dotação genética característica de uma pessoa (Art.2, iv). A Recomendação n.º R(97)5, do Conselho da Europa, relativa à proteção dos dados médicos, afirma que a expressão “dados médicos” refere-se a todos os dados de caráter pessoal relativos à saúde de uma pessoa, abrangendo igualmente os dados estreitamente relacionados com a saúde, assim como as informações genéticas. (DE MIGUEL SANCHES, 2004, p. 180) Não obstante, também qualifica os dados genéticos como dados de qualquer tipo relacionados com as características que compõem o patrimônio de um grupo de indivíduos aparentados, os quais parecem outorgar-lhes uma certa especificidade (PERALTA LOSILLA, 1995, p. 219; RIPOL CARULLA, 1996, p. 117; RIPOL CARULLA, 1997, p. 111). Portanto, nem todos os dados pessoais são dados de caráter pessoal: estes são espécies 1 Aprovada, por unanimidade e por aclamação, na 32º sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 16 de outubro de 2003. 2 Os ácidos nucléicos são polímeros lineares de nucleotídeos. O DNA (ácido desoxirribonucléico) e o RNA (ácido ribonucléico) são ácidos nucléicos que desempenham um papel essencial no crescimento e multiplicação das células. 3 A essência da vida na Terra embasa-se na diversidade de funções das células. Pode-se dizer que o DNA e o RNA servem somente de veículos para armazenar e expressar a informação genética. As proteínas são as macromoléculas mais abundantes presentes nas células. Como produto final dos genes, desempenham múltiplas funções. Por exemplo, os pigmentos respiratórios hemoglobina e mioglobina transportam oxigênio, que é essencial para o metabolismo celular. O colágeno e a queratina são duas proteínas estruturais associadas à pele, ao tecido conjuntivo e ao cabelo dos organismos. O grupo maior de proteínas são as enzimas. (KLUG; CUMMINGS, 1999, p. 400). Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 3 daqueles, caracterizando-se os dados de caráter pessoal por referirem-se a uma pessoa identificada ou identificável (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 137). O princípio da sensibilidade refere-se aos dados pessoais concernentes à saúde que se consideram qualificados por informações “sensíveis” ou seja, as que devem ser objeto de uma tutela jurídica reforçada, por afetarem o núcleo do direito das pessoas à intimidade (PÉREZ LUÑO apud MARTÍNEZ MORÁN, 2003, p. 181); por isso são chamados dados “especialmente protegidos”, ou “dados sensíveis”4. Heredero Higueras (1996, p. 98) observa que, com relação aos dados sensíveis, existem na normativa duas tendências. Para a primeira os dados são sensíveis per se, por sua natureza; ou seja, pela informação que expressam e pelas conseqüências de seu possível uso incontrolado, devem ser objeto de proteção especial. Para a segunda, os dados são especialmente protegidos em função do contexto, isto é, não existem dados que requeiram tal proteção por sua natureza, porém qualquer dado pode requerê-la, segundo o contexto em que se use. A Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos preferiu a segunda opção, estabelecendo que os dados são especialmente protegidos em função do contexto, ao dispor no seu preâmbulo que a informação genética constitui parte do acervo geral dos dados médicos e que o conteúdo de qualquer dado médico, aí compreendidos os dados médicos e os proteômicos, está “intimamente ligado ao contexto e depende das circunstâncias de cada caso”. Observa-se, além disso, que, segundo o artigo 4º da DIDGH, os dados genéticos são singulares, porque [...] podem indicar predisposições genéticas dos indivíduos; podem ter para a família, compreendida a descendência, e às vezes para todo o grupo a que pertence a pessoa em questão, conseqüências importantes que se perpetuam durante gerações; podem conter informação cuja relevância não se conheça necessariamente no momento de extrair as mostras biológicas, podem ser importantes do ponto de vista cultural, para as pessoas ou os grupos. Em resumo: os dados genéticos podem identificar uma pessoa, oferecer informação desconhecida pela pessoa objeto da prova, revelar uma enfermidade genética de importância 4 Ademais, com efeito, o artigo 4º b) da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da Unesco adverte que “se deveria prestar a devida atenção ao caráter sensível dos dados genéticos humanos e instituir um nível de proteção adequado desses dados e as mostras biológicas”. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 4 futura e incerta, proporcionar informação sobre a progênie e outros parentes e permitir uma classificação permanente das pessoas que se tenham submetido à prova e de seus familiares (NIELSEN, 1996, p. 66). Conforme explanado, os dados genéticos são dados de caráter pessoal, médicos, sensíveis e singulares. 2 INFORMAÇÃO GENÉTICA A seqüenciação do DNA tem permitido decifrar o “livro da vida” (ROMANILLHOS apud BENÍTEZ ORTÚRAR, 2002, p. 166) ou o “livro do homem” (NIELSEN, 1996, p. 66), abrindo uma nova porta à investigação científica e dando lugar ao conhecimento de características de nosso organismo até agora ignoradas e ao descobrimento de novas terapias capazes de solucionar problemas que se acreditavam de difícil ou impossível solução. Por outro lado, no caso da informação genética, evidenciam-se alguns perigos, decorrentes de sua implicação para os demais membros da família, suas conseqüências sobre as tomadas de decisão por parte de terceiros o perigo de discriminações genéticas (DE MIGUEL SÁNCHEZ, 2004, p. 179). Destarte, é preciso admitir a existência, na informação genética, de peculiaridades que imprimem certa individualidade em relação ao resto da informação de caráter sanitário (DE MIGUEL SÁNCHEZ, 2004, p. 181). A grande quantidade dos dados nela compreendidos fornece um considerável volume de informações, levando à idéia de homem “transparente” ou “de cristal” a que reiteradamente tem aludido a doutrina (DE MENDIZÁBAL ALLENDE, 1995, p. 25; ROMEO CASABONA, 1996, p. 81; MARTIN SANJUAN apud MARTÍNEZ MORÁN, 2003, p. 321). Com efeito, a informação genética pode apresentar dois níveis distintos (RODRÍGUEZ-DRINCOURT ÁLVAREZ, 2002, p. 37): primeiro, pode ser uma informação genética primária, relativa à espécie humana, e como tal, pertence ao domínio público e não permite uma identificação do indivíduo; em segundo lugar, pode ser uma informação genética secundária, que identifica plenamente a pessoa e as patologias que afetam ou que podem afetá-la. Afirma-se que sem dúvida é esse segundo nível de informação o que requer maior proteção jurídica e onde o aconselhamento genético encontra o seu máximo expoente dentro da medicina genômica. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 5 Por esse raciocínio, a informação genética apresenta diversas características básicas que a diferenciam, a saber: a) é única; b) é estrutural; c) é preditiva; d) é probabilística; e) é geracional (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 143; SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004). Em primeiro lugar, todo indivíduo é um ser geneticamente irrepetível e único. Os dados genéticos identificam e caracterizam o indivíduo através de uma dotação genética própria e distinta dos demais seres, sendo reflexo de sua individualidade e de seu caráter personalíssimo (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 143). No entanto discute-se, dentro dessa perspectiva, a relação entre identidade genética e identidade pessoal5. Compreende-se identidade como a qualidade de idêntico, a persistência do ser em sua unidade através de suas múltiplas mudanças e determinações (VILA-CORO, 1995, p. 207). A identidade pessoal vem assegurada na idéia de integridade, que corresponde ao que é intangível, isto é, ao que não pode ser tocado (BARACHO, 2000, p. 90). O conceito de identidade genética corresponde ao genoma de cada ser humano e às bases biológicas de sua identidade (BARACHO, 2000, p. 90). A individualização de um novo ser requer que se lhe dêem duas propriedades: a unicidade – qualidade de ser único – e a unidade – realidade positiva, que se distingue de toda outra, isto é, a de ser um só (LACADEMA apud MAYOR ZARAGOZA; ALONSO BEDATE, 2003, p. 116). Em relação à unicidade, deve-se fazer referência aos gêmeos monozigóticos produzidos pela divisão de um embrião original, que é o único caso possível da identidade genética entre os indivíduos humanos, além da clonagem por transferência dos núcleos (clonagem reprodutiva) (LACADEMA apud MAYOR ZARAGOZA; ALONSO BEDATE, 2003, p. 116). Nesse sentido a identidade é sinônimo da individualidade genética (BARACHO, 2000, p. 90). A identidade genética aparece consagrada nos seguintes documentos internacionais6: artigo 3º da 5 A identidade pessoal tem duas dimensões: i) uma dimensão absoluta ou individual, em que cada pessoa tem uma identidade definida por si mesma, expressão de caráter único, indivisível e irrepetível de cada ser humano; ii) uma dimensão relativa ou relacional – cada pessoa tem sua identidade igualmente definida em função de uma memória familiar conferida por seus antepassados, assumindo aqui especial relevância os respectivos progenitores, podendo falar-se de um “direito à historicidade pessoal” (OTERO, 1999, p. 64). Convém distinguir o direito à intimidade pessoal do direito à persnoalidade. A identidade refere-se ao ser em si, ontologicamente considerado. A personalidade é o desdobramento e a atualização das potencialidades e faculdades que realiza o ser humano ao longo de sua vida. Ambas devem distinguir-se do direito a personalidade jurídica que proclama o artigo 6o da Declaração Universal de Direitos Humanos, segundo o qual todo ser humano tem o direito a ser reconhecido como sujeito de direitos e obrigações (VILA-CORO, 1995, p. 208-209). 6 A Constituição portuguesa foi um dos primeiros textos constitucionais em nível europeu, inclusive em termos mundiais, que reconheceu expressamente a identidade genética do ser humano, relacionando-a com a dignidade da pessoa e com a limitação da tecnologia e da experimentação científica. O artigo 263 da Constituição Portuguesa, após a reforma de 1997, consagra “a salvaguarda da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano”. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 6 Declaração Internacional dos Dados Genéticos Humanos da Unesco7, e artigo 2º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da Unesco8. Em outro sentido, o direito à identidade genética do ser humano encontra-se dotado de uma inequívoca universalidade, como expressão do surgimento de uma nova regra de ius cogens, afirmando-se o genoma humano, simbolicamente9, como patrimônio da humanidade10. Percebe-se uma dupla articulação da identidade genética do ser humano. A primeira corresponde à identidade personalíssima do indivíduo, com suas características genéticas singulares; e a segunda refere-se à identidade genética do ser humano enquanto espécie e ao genoma como patrimônio da humanidade (XAVIER apud LEITE, 2004, p. 58). A preservação da integridade do genoma humano depende essencialmente da proteção à identidade genética personalíssima dos indivíduos; ambas articulam uma relação de dependência na qual a manutenção das características de uma depende da outra, exceto as mutações11 impelidas pelos influxos naturais e sociais (XAVIER apud LEITE, 2004, p. 58). Em segundo lugar, a informação genética é estrutural; acompanha o indivíduo desde o nascimento até a morte (SEOANE RODRIGUES, 2002, p. 144), e por isso possui características especiais que a diferenciam das outras: é involuntária, indestrutível, permanente e singular. Ante o fato de ser involuntária, existe a ausência do sentimento de responsabilidade individual culturalmente assentado, porquanto, ao menos no caso das enfermidades monogênicas, nada tem a ver com o comportamento do sujeito quanto à produção de um mal (DE MIGUEL SÁNCHEZ, 2004, p. 180-181), pois sendo a informação genética involuntária (ROMEO CASABONA, 1996, p. 80, 2002, p. 63; SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 144), sua origem e características genéticas não dependem da vontade 7 “Artículo 3: Identidad de la persona. Cada individuo posee una configuración genética característica. Sin embargo, la identidad de una persona no debería reducirse a sus rasgos genéticos, pues en ella influyen complejos factores educativos, ambientales y personales, así como los lazos afectivos, sociales, espirituales y culturales de esa persona con otros seres humanos, y conlleva además una dimensión de libertad”. 8 “Artículo 2 a) Cada individuo tiene derecho al respecto de su dignidad y derechos, cualesquiera que sean sus características genéticas; b) Esta dignidad impone que no se reduzca a los individuos a sus características genéticas y que se respete el carácter único de cada uno y su diversidad”. 9 A Declaração de Manzanillo, de 1996 declara em seu considerando n.2b que o genoma humano constitui patrimônio comum da humanidade como uma realidade e não como uma expressão meramente simbólica (SANTOS, 2001, 24). 10 O genoma humano tanto diz respeito ao homem considerado individualmente, como à humanidade. Sobre o assunto vide: ESPIELL, 1995, p. 91-104; DIEDRICH apud SANTOS, 2001, p. 223-224. 11 Uma mutação é um câmbio permanente herdável da seqüência de DNA. As mutações são câmbios que se herdam de forma aleatória, em quantidade ou estrutura, do material genético. Podem herdar-se ou produzir-se de modo esporádico. No âmbito monogênico, podem ser resultado de uma: substituição (mutação pontual); deleção, inserção, expansão de tripletes e inversão (MANSON; JONES; MORRIS, 2003). Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 7 do indivíduo, transmitidas que foram por seus pais, inclusive sem a intervenção destes. Ademais, seu suporte é indestrutível, e por esse motivo está presente em todas as células do organismo enquanto está vivo e, normalmente, também depois de morto (ROMEO CASABONA, 1996, p. 80, 2002, p. 63; SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 144). É permanente e inalterável (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 144), salvo nas mutações genéticas espontâneas ou provocadas pela engenharia genética ou pela ação de outros agentes exógenos, por exemplo, os radioativos. Por fim, sua singularidade não se comparte com ninguém, à exceção dos gêmeos monozigóticos e sua vinculação com a família biológica (ROMEO CASABONA, 2002a, p. 166). Em terceiro lugar, a informação genética é preditiva, pois constitui um indicador da possível saúde do indivíduo (ROMEO CASABONA, 1996, p. 80, 2002, p. 63; SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 145). Da informação genética deriva um conhecimento de probabilidade e aproximativo: a predição do futuro do indivíduo não é inteiramente certa, porém aproximada e limitada (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 145). A chamada medicina preditiva é um novo ramo da biomedicina “para os seres humanos já nascidos e sua prática consiste em fazer predições quanto à possibilidade, no plano fenótipo, do desenvolvimento de alguma enfermidade, com base em testes diagnósticos realizados no plano genótipo.” (SILVA, 2002, p. 296). Portanto, como lembra Reinaldo Pereira e Silva, duas são as áreas de atuação da medicina preditiva (FALCAO DE OLIVEIRA, 1997, p. 89): “o diagnóstico présintomático das enfermidades monogênicas, situação em que existe grande previsibilidade, porém baixa possibilidade de modificação do risco de surgimento da enfermidade; e diagnóstico de enfermidades multifatoriais poligênicas, situação em que um único teste tem baixa previsibilidade, porém as opções de ser manipulado o ambiente para evitar o surgimento da enfermidade são grandes.” Como já visto, de acordo com o estado atual da ciência médica, parece que todos somos portadores de alguma anomalia genética, embora os meios técnicos e científicos existentes não permitam que todos sejamos investigados acerca de tudo (FALCAO DE OLIVEIRA, 1997, p. 89). A terapia genética rompe com o binômio paciente/enfermo; de fato, no futuro é possível que todos os seres humanos sejam pacientes desde o nascimento (MARTIN SANJUAN apud MARTÍNEZ MORAN, 2003, p. 316). Por fim, a informação genética revela nossa herança e a conexão com nossos parentes e familiares. Nesse sentido é uma informação geracional, isso é, quase não está Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 8 ligada ao sujeito portador, porém se transmite entre gerações (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 145). Estamos diante de uma “família genética”, dentro da qual não há vínculos nem elementos contingentes, exceto os estruturais. A diferença da “família social” é que, quando se solicita ou conhece informação sobre os membros da família genética, na realidade se está buscando o conhecimento ou informação sobre si mesmo (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 146). 3 DISCRIMINAÇÃO GENÉTICA O uso inadequado da informação genética pode gerar perigos e preconceitos diversos, tais como: o reducionismo e determinismo genético; estigmatização e discriminação por condições genéticas (SEOANE RODRÍGUEZ, 2002, p. 152-154), bem como a perda ou a diminuição da capacidade de autodeterminação, ante a intromissão e o acesso não autorizados nas esferas e conhecimentos reservados. O reducionismo é a interpretação da realidade humana unicamente com base na informação genética (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. 126), e o determinismo consiste em aceitar que o comportamento humano está determinado pelos genes, “convertendo em certeza científica o que não é senão um conhecimento parcial ou probabilístico” (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. 126). O artigo 3º da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da Unesco dispõe: [...] Cada indivíduo possui uma configuração genética característica, e a identidade de uma pessoa não deveria reduzir-se às suas características genéticas, pois nelas influem complexos fatores educativos, ambientais e pessoais, assim como os laços afetivos, sociais, espirituais e culturais dessa pessoa com outros seres humanos, e delas resulta, ademais, uma dimensão de liberdade. Refuta-se assim a tese dos que defendem a mistificação do determinismo biológico, determinismo que sustenta, em última instância, uma teoria reducionista da natureza humana (BLÁZQUEZ RUIZ, 2001). A postura reducionista simplifica erroneamente a complexidade da vida humana ao “aportar unicamente por entendê-la a partir de uma de suas muitas dimensões como é a informação genética, porém descartando outras tão importantes o mais como são os fatores ambiental, cultural e social.” (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 9 126). Nessa linha, fala-se que algumas discriminações atentam não somente contra o princípio da igualdade12, mas também contra o da dignidade. São discriminações fundadas no patrimônio genético, que tendem a considerar a existência de graus no reconhecimento dos direitos ligados à pertença à raça humana (MATHIEU, 2000, p. 84). A Declaração Universal da Unesco sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos proíbe a discriminação genética em seu artigo 6º: Ninguém poderá ser objeto de discriminações fundadas em suas características genéticas, cujo objeto ou efeito seria atentar contra seus direitos humanos e liberdades fundamentais e o reconhecimento de sua dignidade. Nesse sentido, em seu artigo 7º, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da Unesco13, observa que [...]Dever-se-ia fazer todo o possível para garantir que os dados genéticos humanos e os dados proteômicos humanos não se utilizem com fins que discriminem – tendo como conseqüência a violação dos direitos humanos, das liberdades fundamentais ou da dignidade humana de uma pessoa – ou que provoquem a estigmatização de uma pessoa, uma família, um grupo ou comunidade. A Carta dos Diretos Fundamentais da União Européia14 também contém a seguinte disposição, em seu artigo 21: Proíbe-se toda discriminação, e em particular a exercida por motivo de sexo, raça, cor, origens étnicas ou sociais, ou características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou de qualquer outro tipo, pertença a uma minoria nacional, patrimônio, nascimento, incapacidade, idade ou orientação sexual15. 12 O princípio da igualdade e sua possível negação, a discriminação, se têm apoiado historicamente em vários aspectos, que se poderiam sintetizar em três. Em primeiro lugar se poderiam mencionar as características naturais, tais como: cor da pele ou sexo, principalmente; depois os fatores de caráter cultural e social, como religião, nacionalidade ou classe social; e por fim, aspectos jurídicos, por exemplo, o status jurídico ou civil emanado da pertença a um o outro tipo de Estado (BOBBIO, 1991). 13 Ricardo Cruz-Coke afirma que: “os temas que contém a Declaração sobre dados genéticos são complementarios à anterior de 1997, pois agregam aspectos específicos sobre colheita, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos e mostras biológicas humana. O texto explica em detalhe os princípios bioéticos que permitem prevenir os riscos de aplicações técnicas que podem afetar a observância dos direitos humanos, as liberdades fundamentais e o respeito a dignidade humana” (CRUZ-COKE, 2003, p. 35). 14 A Recomendação 11 da Comunidade Européia sobre as repercussões éticas, jurídicas e sociais dos testes genéticos assim dispõe: “a) Os dados procedentes de fontes genéticas não se devem utilizar para prejudicar ou discriminar injustamente aos indivíduos, famílias ou grupos, nem no contexto clínico, nem em outros como os de emprego, de seguros, de acesso a integração social e as oportunidades de bem-estar geral”. 15 Ademais, o princípio da não-discriminação vem reconhecido de forma geral no artigo 1º do Convênio do Conselho da Europa sobre Direitos Humanos e Biomedicina (CDHB), ao garantir os direitos e liberdades das Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 10 Nas linhas acima escritas, adverte-se quanto à possibilidade de discriminação derivada do uso da informação genética sobre o genótipo de uma pessoa, já que a correspondente constituição genética, diversa por natureza, pode ser objeto não somente de diferenciação, mas também de injustiça (BLÁZQUEZ RUIZ, 2001, p. 164), e por outra parte não será propriamente genética, mas de outra natureza, seja qual for a injustiça social (BLÁZQUEZ RUIZ, 2001, p. 164; APARISI MIRALLES, 1997, p. 145). Como alerta Jervis, a partir do momento em que se é marcado ou etiquetado como desviado, “esta etiqueta passa a ocultar e negar o fato de que é uma vítima, e absolve de qualquer responsabilidade o sistema social” (apud NEMÉSIO RUIZ; SERRA, 1991, p. 94). Cumpre notar que Billings (apud FUNDACIÓN BBV DOCUMENTA, 1994, p. 243) constata haver uma discriminação genética, definida de forma rigorosa como uma situação derivada exclusivamente das diferenças genotípicas. A utilização dos diagnósticos genéticos preditivos pode dar lugar também a um novo grupo de indivíduos. Tal grupo seria novo e irreal, porque nos referimos “a indivíduos que não são propriamente enfermos, porém começam a ser discriminados antes mesmo que se manifeste seu genótipo” (BLÁZQUEZ RUIZ, 2001, p. 169). Os indivíduos poderiam ser classificados em função de sua predisposição genética, estabelecendo-se hierarquias sociais, o que “suporia uma redução da cidadania e a negação do direito fundamental à saúde.” (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. 113). De toda sorte, o uso da informação genética fora da estrita finalidade assistencial pode apresentar no futuro imediato problemas éticos e jurídicos de extraordinária complexidade, quando incorporado massivamente a suporte informático. Observa-se que “o armazenamento e manejo institucional –seja ou não no sistema público de saúde – de milhões de dados genéticos de um grande número de cidadãos constitui hoje em dia uma ameaça que pessoas em relação às atividades biomédicas, sem nenhum tipo de discriminação. Os direitos que o CDHB reconhece especificamente em relação ao genoma humano são: a proibição de qualquer forma de discriminação de uma pessoa por motivo de seu patrimônio genético (Art.11); a proibição da realização das análises genéticas preditivas das enfermidades genéticas ou das que permitem identificar o sujeito como portador de um gene responsável por uma enfermidade ou detectar uma predisposição ou susceptibilidade genética a uma enfermidade, as quais somente poderão realizar-se com fins médicos ou de investigação médica e em um contexto de um conselho genético apropriado (Art.12). As intervenções que tenham por objetivo a modificação do genoma humano somente poderão ser realizadas por razões preventivas, diagnósticas ou terapêuticas, e desde que não tenham como fim a introdução de qualquer modificação no genoma da descendência (Art.13). Além disso, não se permitirá a utilização das técnicas de assistência médica à reprodução para seleção do sexo da futura criança, salvo com o propósito de evitar uma enfermidade hereditária grave ligada ao sexo (Art.14). Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 11 se vê incrementada pela facilidade de sua transmissão através dos sistemas eletrônicos (ÁLVAREZ-CIENFUEGOS SUÁREZ, 2001, p. 4-5)”. Segundo o artigo 12 do CDHB: [...] somente poderão fazer-se provas preditivas de enfermidades genéticas ou que permitam identificar o sujeito como portador de um gene responsável de uma enfermidade, ou detectar uma predisposição ou uma susceptibilidade genética a uma enfermidade, com fins médicos ou de pesquisa médica e com um assessoramento genético apropriado. Os avanços da investigação genética permitem antecipar em menor ou maior medida a probabilidade de que uma pessoa desenvolva determinada enfermidade. O uso que a sociedade pode fazer da referida informação abre muitas portas, as quais em sua maioria são positivas, como o é a possibilidade de identificação, prevenção e cura de enfermidades hereditárias, porém outras são de caráter negativo, com a possível discriminação pelo seu uso, a chamada discriminação genética. Não obstante, a informação genética pode ser recolhida, classificada, armazenada e recuperada a partir de três tipos de provas pré-sintomáticas básicas (testes genéticos) (FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 62-85; JORQUI AZOFRA apud MORAN, 2003, p. 338/341): a) as análises forenses ou periciais do DNA (DNA analysis); b) provas do seguimento genético (genetic monitoring – com suas variantes citogenética e nãocitogenética, segundo se destinem a observar danos ocorridos na estrutura do cromossomo ou na estrutura molecular do DNA contida nos cromossomos); c) provas de controle genético (genetic screening). Ressalve-se que o objetivo da primeira se radica em encontrar e determinar uma coincidência entre duas ou mais mostras de DNA, sem pretender efetuar diagnóstico algum sobre o submetido à prova, nem revelar, portanto, informação de nenhum tipo a partir da qual se possa identificar a constituição genética da pessoa (FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 62). 3.1 A Discriminação Genética no Âmbito Trabalhista Diante de eventuais usos e abusos da informação genética nos meios laborais, a União Européia elaborou a resolução Problemas éticos e jurídicos da manipulação genética16, 16 De 16 de março de 1989. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 12 a qual menciona, em seus preceitos 13 a 18: a proibição da seleção dos trabalhadores segundo os critérios genéticos; a proibição dos reconhecimentos médicos sistemáticos; e, por último, a proibição das investigações genéticas prévias à contratação dos trabalhadores. Ademais, o Conselho da Europa, na Recomendação 3 (1992), sobre provas genéticas e seleção com fins sanitários, em seu Princípio 6, dispõe que a prestação de atenção sanitária e de subsídios familiares, exigências para contrair matrimônio e outras formalidades similares, assim como a admissão a determinadas atividades, especialmente atividades laborais, ou o continuado exercício delas, não deverão ser submetidas às provas genéticas ou de crivado genético (ROMEO CASABONA, 2002b). No mesmo sentido, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da Unesco dispõe em seu artigo 14 b): Os dados genéticos humanos, os dados proteômicos humanos e as mostras biológicas associadas a uma pessoa identificável não deveriam ser dados a conhecer, nem postos à disposição de terceiros, em particular de empregados, companhias de seguros, estabelecimentos de ensino e familiares da pessoa em questão, salvo por um razão importante de interesse público nos restritos casos previstos no direito interno e compatíveis com o direito internacional relativo aos direitos humanos, ou quando se tenha obtido o consentimento prévio, livre, informado e expresso dessa pessoa, sempre que este seja conforme o direito interno e o direito internacional relativo aos direitos humanos. No âmbito das relações laborais são relevantes as provas de seguimento genético e controle genético. As provas de seguimento genético (genetic monitoring) referem-se aos exames periódicos com o fim de identificar, no material de uma pessoa, mutações induzidas pelo entorno, permitindo estabelecer e prevenir os danos que por esse motivo possam ocasionar ao trabalhador – mesmo que se identifiquem os riscos de um entorno laboral determinado – com o fim de eliminá-los ou reduzi-los (ROMEO CASABONA, 2002b, p.188). As provas de controle genético (genetic screening) consistem em uma única prova, destinada a identificar os indivíduos que apresentem uma susceptibilidade superior ou inferior, em relação à normal, a determinados riscos laborais ou à exposição a toxinas (FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 66-67; JORQUI AZOFRA apud MARTÍNEZ MORÁN, 2003, p. 339). Diante desse quadro, o conhecimento dos riscos no âmbito do trabalho apresenta diversos pontos de interesse em função da ótica que se mire (SALA FRANCO, 1995, p. 148; SOLA LLERA, 1995, p. 158; ROMEO CASABONA, 2002b, p. 188-189): a) do próprio Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 13 trabalhador, por possibilitar a prevenção, o tratamento, mudança de trabalho ou renúncia às expectativas de obter um novo; b) do empregador ou empresário, por reduzir os custos derivados de enfermidades potenciais futuras de seus trabalhadores, tanto no que se refere à atividade produtiva em si mesma quanto às responsabilidades por acidentes originários de seus trabalhadores, além da repercussão contributiva por baixas trabalhistas e aposentadorias antecipadas por enfermidade; c) de outros trabalhadores, garantindo sua seguridade, ao prevenir acidentes que os possam lesionar, originados de companheiros com predisposição; d) de terceiros relacionados com a empresa – por exemplo, os clientes – por possibilitar que se evitem acidentes derivados de manifestação da enfermidade em um trabalhador que apresente predisposição (condutores de meios de transporte de passageiros, e em especial os pilotos de aeronaves); e) e, por último, do Estado, por possibilitar-lhe cumprir de modo mais eficaz suas funções de prevenção de acidentes e de proteção da saúde dos trabalhadores, mediante o estabelecimento e imposição de medidas de prevenção de riscos e de higiene laboral. Ademais, é indiscutível que essa enumeração de protagonistas relacionados com a informação genética no âmbito laboral revela uma pluralidade de interesses concorrentes, porém, em certas ocasiões, antagônicos e por isso contrapostos (ROMEO CASABONA, 2002b, p. 189). Frise-se que há um conflito potencial entre os interesses individuais e a sociedade (GARRIDO FALLA, 1994, p. 334). A partir do estudo da estrutura genética da pessoa, o cientista poderá assessorar o empresário em sua decisão de contratar ou não um determinado trabalhador (SUZUKI; KNUDTSON, 1991, p. 149; FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 68; JORQUI AZOFRA in MARTÍNEZ MORÁN, 2003, p. 339), e com seu juízo de valor sobre as características genéticas e dos fenótipos, abrirá a caixa de Pandora, em forma de discriminação e abuso de poder, que, longe de constituir tão-somente uma forma de controle empresarial da ocupação de um concreto posto de trabalho, pode acabar afetando os direitos fundamentais da pessoa, e isto sob uma “certa aparência de legitimidade científica” (FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 68). Cumpre notar que, à medida que aumente o número de empresas que valorizem a informação genética como meio de identificar os trabalhadores dotados de uma boa saúde e de uma constituição saudável, essas condições poderão constituir-se em incentivos atrativos, sejam estes econômicos ou de outra natureza, na seleção dos candidatos (BLÁZQUEZ RUIZ, 2001, p. 171; ROMEO CASABONA, 2002, p. 77). A seleção poderá ter fim duplo, Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 14 acumulado ou alternativo. No sentido negativo, a empresa não contratará o candidato na hipótese de o diagnóstico evidenciar qualquer anomalia de seguro surgimento no futuro ou uma simples predisposição de caráter multifatorial; ou, com critérios de seleção positiva, selecionará os trabalhadores mais aptos ao entorno laboral, determinado de acordo com as características genéticas (ROMEO CASABONA, 2002a). É importante registrar que a utilização abusiva da informação obtida contra o candidato ao emprego poderia dar lugar a grupos de população excluídos do acesso ao mercado de trabalho (SOLA LLERA, 1995, p. 161; ROMEO CASABONA, 2002b, p. 189), separados em grupos “rentáveis” ou pouco propensos a desenvolver patologias, e “não rentáveis” (APARISI MIRALLES, 1997, p. 149), que formariam uma categoria de trabalhadores “assintomaticamente enfermos” (MARX; SHERIZEN, 1986, p. 63-72; FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 68). Em um grau inferior ficariam situados aqueles cujas provas genéticas os marcassem como hipersensíveis, estigmatizando-os como intocáveis e destinados a ser perpetuamente desempregados; e em um grau superior estariam os trabalhadores modelares em seus genótipos (SUZUKI; KNUDTSON, 1991, p. 152; FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, 1999, p. 69). Não há dúvida de que a política de saúde tem que velar pelo bem-estar dos pacientes partindo do princípio da eqüidade, para evitar o uso indiscriminado do genetic screening, com fins distintos dos previstos e especificados (BLÁZQUEZ RUIZ, 2001, p. 65). Por outro lado, é preciso ter em conta o conceito de enfermidade no âmbito laboral, o qual é diferente de outros setores do ordenamento jurídico, que partem de qualquer modalidade de diminuição da saúde (por exemplo, portador de Aids), pois como enfermidade deve ser entendida aquela situação que invalida ou reduz de forma concreta a capacidade de ocupar um determinado posto de trabalho (ROMEO CASABONA, 2002b, 191). Portanto, a simples predisposição – comum quando o sujeito é heterozigoto ou portador de um gene autossômico recessivo e revela-se assintomático (por exemplo, anemia falciforme, que somente se revela quando o sujeito é homozigoto) – pode se manifestar em pessoas sãs, que muito possivelmente nunca sofrerão essa enfermidade, porém, pelo fato de serem portadoras de um gene “anormal”, poderão sofrer uma situação de segregação (BILLINGS et al apud APARISI MIRALLES, 1997, 150). Na realidade, o acesso a um emprego nunca deve estar subordinado à realização de nenhuma prova ou análise genética, salvo em caráter excepcional (APARISI MIRALLES, Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 15 1997. p. 151; BLÁZQUEZ RUIZ, 2001. p. 171; ROMEO CASABONA, 2002b, p. 191). Isso em consonância com o direito à intimidade, entendido como a faculdade de gestão da própria informação genética (autodeterminação informativa), com a conseqüente proibição de discriminação baseada nessa causa (APARISI MIRALLES, 1997, p. 150). Admitem-se provas genéticas obrigatórias sobre predisposição às enfermidades somente em razão de riscos concretos para a saúde e em certas profissões de risco (por exemplo, condutores de passageiros e pilotos de avião) (CATALANO, 1994, p. 337). Para que tal exceção seja aceita, Catalano propõe algumas condições: a) que o posto de trabalho concreto resulte em perigo considerável para terceiros; b) que exista o diagnóstico de uma alta probabilidade de contrair uma enfermidade profissional muito grave ao entrar em contato com o entorno laboral; c) que não exista a alternativa de que o empregador melhore as condições de segurança do entorno laboral; d) que se ofereça um posto de trabalho alternativo ao empregado, com a mesma categoria e salário e na mesma empresa17; e) que o descumprimento de qualquer dessas condições seja considerado uma infração penal18. A respeito do tema, observa-se ainda que o estabelecimento de provas genéticas nas relações laborais, em casos excepcionais, não é incompatível com o prévio conhecimento informado do interessado, nem com seu direito a conhecê-las ou não. 3.2 A Discriminação Genética no Setor de Seguros As companhias de seguro têm notado que as análises genéticas de seus futuros clientes podem ser de capital importância para os chamados seguros de pessoa, de vida, de enfermidade e de acidentes, e com isso estabelecê-los de acordo com as condições mais ou menos rigorosas e inclusive rejeitar a celebração do contrato (YANES YANES, 1994, p.195; ROMEO CASABONA, 2002a, p. 83, 2002, p. 191). O acesso a essa informação poderá gerar 17 Nesse sentido, Carlos Maria Romeo Casabona aduz “[...]as análises genéticas (e o acesso à informação que aportam) somente estariam justificadas em benefício do trabalhador, para a adoção de medidas de proteção de sua saúde, se têm a ver fundamentalmente com as condições do trabalho, tanto por parte do empresário como do próprio trabalhador; assim como – porém em caráter excepcional – se justificariam para prevenir riscos de acidentes de terceiras pessoas em atividades especialmente perigosas, o que não implica necessariamente a exclusão do trabalhador de seu posto de trabalho desde o primeiro momento” (ROMEO CASABONA, 2002, P. 193). 18 Há um Projeto de Lei n.149/97 do Senador Lúcio Alcântara que criminaliza condutas de discriminação genética, imputando ao agente pena privativa de liberdade. O artigo 6º do PJ n. 149/97 assim dispõe: “Recusar, negar ou impedir inscrição em concurso público ou em quaisquer outras formas de recrutamento e seleção de pessoal com base em informação genética do postulante, bem como, com base em informações dessa natureza, obstar, impedir o acesso ou a permanência em trabalho, emprego, cargo ou função, na Administração Pública ou na iniciativa privada. Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa”. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 16 uma nova forma de discriminação, que segregaria toda uma categoria de pessoas como “não asseguráveis” (BILLINGS apud APARISI MIRALLES, 1997, p. 156). Se conhecessem os dados completos de seus assegurados, as companhias poderiam praticamente eliminar, com um mínimo de incerteza do risco, e desfazer-se dos clientes “não convenientes” (WATSON apud APARISI MIRALLES, 1997, p. 159). Diante disso, a Recomendação 3, aprovada em 10 de fevereiro de 1992 pelo Conselho da Europa sobre provas genéticas e de seleção com fins de saúde, em seu Princípio 7 estabelece: As companhias seguradoras não deverão ter direito de exigir a realização de provas genéticas ou pedir informação sobre os resultados de provas realizadas anteriormente como condição prévia para a celebração ou modificação de um contrato de seguro (ROMEO CASABONA, 1996). De igual sentido, a Proposta de Resolução do Parlamento Europeu sobre as repercussões sociais, jurídicas, éticas e econômicas da genética humana em seu parágrafo 17 assim estabelece: (...) as companhias de seguro não devem ter direito a pedir, antes ou depois da negociação de um contrato de seguro, que se faça uma análise genética, nem a que se comuniquem os resultados das análises genéticas já efetuadas; (...) as análises genéticas não devem se converter em uma condição prévia a negociação de um contrato de seguro e (...) as companhias de seguros não podem pretender que lhes informem acerca dos dados genéticos que conheça o segurado (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. 141). Além disso, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da Unesco, em seu artigo 7, já mencionado neste trabalho, proíbe que os dados genéticos de uma pessoa identificável sejam dados a conhecer ou postos à disposição de terceiros, em particular das companhias de seguro, salvo por interesse público ou com consentimento prévio, livre, informado e expresso dessa pessoa19. Não obstante, as previsões legais em relação a essa matéria, no âmbito europeu, são diferentes. Ocorrem três modelos principais (McGLEENAN; WIESING apud CASABONA, 2002, p. 1999): 19 O Projeto de Lei n.149/97 do Senador Lúcio Alcântara que criminaliza condutas de discriminação genética, imputando ao agente pena privativa de liberdade, dispõe em seu artigo 3º o seguinte: “Negar, limitar ou descontinuar cobertura por seguro de qualquer natureza com base em informação genética do estipulante ou de segurado, bem como estabelecer prêmios diferenciados, com base em tal informação. Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa”. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 17 [...] a) autorização sem restrições aos seguradores para solicitar todo tipo de provas, inclusive das análises genéticas; b) utilização limitada dos dados genéticos, com independência de qual seja sua origem; c) proibição absoluta das análises genéticas para contratos de seguro 20. No Reino Unido elaborou-se um Código de conduta a que todas as entidades podem aderir voluntariamente e que se baseia fundamentalmente em dois princípios (BERENGUER, 2001, p. 104): “a) a pessoa que solicita um seguro de vida sempre deve ter a opção de realizar ou não um teste genético. Nenhum assegurador poderá obrigar a um solicitante de um seguro a que realize um teste genético como condição para poder ser assegurado; b) não obstante, quando o solicitante do seguro já tenha realizado um teste genético, os resultados do teste deverão ser facilitados ao assegurador, a menos que este indique que tal informação não é requerida”21. Em linhas gerais, a proibição da utilização das análises genéticas antes da celebração de um contrato de seguro obedece a uma vontade dos legisladores e políticos de impor um período de reserva e de reflexão, até que a ciência genética esteja mais avançada, e não à vontade de proibir sua utilização (BERENGUER, 2001, p. 104). De toda sorte, na modalidade de contrato de seguro de vida, cabe destacar que a maior repercussão dos dados genéticos obtidos estaria na hipótese de haver sido pactuado que o prêmio somente se prestaria na hipótese de falecer a pessoa em um prazo ou período de tempo determinado. Nas demais hipóteses não haveria discussões, em razão de que o prêmio seria pago pelo assegurador, qualquer que fosse a data do falecimento, ou se o sujeito tivesse superado uma determinada idade (APARISI MIRALLES, 1997, p. 158), inclusive na hipótese de sobrevida (BERENGUER, 2001, p. 236). Por outro lado, questão distinta seria o caso dos seguros de enfermidade, quando se apresente especial relevância em conhecer os dados genéticos relativos à saúde do segurador. O mesmo ocorre com os seguros de acidentes, quando o evento pode estar causalmente vinculado a uma enfermidade que se incline a isso (APARISI MIRALLES, 1997, p. 159). Não obstante, entende-se que, com amparo do direito 20 Em alguns países europeus (Áustria, Bélgica, Dinamarca ou Noruega) há uma legislação específica que impede às seguradoras aceder a informação genética. Por sua vez, na França e Holanda, não há uma legislação formal, porém uma moratória voluntária. Além disso, em outros países, como a Espanha, a Finlândia ou a Islândia, para mencionar apenas alguns, não existe a suficiente concreção legislativa (BERENGUER, 2001, p. 104). 21 “O caso britânico é em certo modo uma mostra da madurez e da tradição do setor de seguros naquele país. A sociedade britânica entende que a informação genética, à medida que sua análise adquira maiores resultados e fiabilidade, e até certo ponto um elemento adicional para melhorar a tarifação dos riscos, e para evitar a antiseleção e o incremento geral de prêmios que disso possa derivar-se” (BERENGUER, 2001, p. 105). Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 18 à intimidade genética, de modo similar ao que se apresenta em relação ao contrato de trabalho, não se deve condicionar a aceitação do contrato por parte do segurador à submissão do segurado às análises genéticas (APARISI MIRALLES, 1997, p. 159). Nesse contexto, tratar-se-ia, por um lado, de evitar que as companhias de seguro alegassem que a potencial concorrência de assegurados com problemas genéticos traria como conseqüência “um desequilíbrio técnico nas seguradoras – sempre que as referidas entidades não tivessem conhecimento da agravação do risco e conseqüentemente não pudessem aplicar um sobreprêmio correspondente”22. Por outro lado, o segurado se veria pressionado ao pagamento de prêmios exorbitantes (APARISI MIRALLES, 1997, p. 159). Ademais, poderse-ia sustentar que, caso o futuro assegurador conhecesse seu genoma, seus dados genéticos, ficaria eliminado um requisito fundamental do contrato de seguro: o risco determinado pela incerteza da produção ou não do evento (APARISI MIRALLES, 1997, p. 159). De igual modo, as seguradores poderiam aduzir que os aspectos atualmente por elas examinados (histórico médico familiar ou certas provas médicas) são indiretamente características genéticas, isto é, informação que forma parte da informação médica (BERENGUER, 2001, p. 103). Por sua vez, os solicitantes do seguro, sabendo que terão um risco grande de contrair uma determinada enfermidade, tentariam adquirir a cobertura sanitária a um prêmio que cobrisse suas reclamações e necessidades (APARISI MIRALLES, 1997, p. 159). Segundo consta, não se pode perder de vista o princípio da incerteza do risco, ou seja, não há seguro sem risco. Esse elemento de risco é entendido, para toda classe de seguros, como a possibilidade de que se produza um evento danoso; e para que haja risco, sempre será necessário que se dê a possibilidade. Isso é algo que, para Yara Henges, supõe dois quesitos: o caráter futuro desse acontecimento e sua incerteza 23. Deriva daí que quanto maior seja a possibilidade de o risco se transformar em sinistro e quando mais graves sejam suas conseqüências, maior será o pagamento do prêmio. Segundo consta, na avaliação do risco para fixar um prêmio, a companhia seguradora utiliza dois tipos de informações: informações estatísticas, que dão uma idéia do risco em termos médios; e informações 22 “E de assim, levaria à imediata revisão das taxas de seguro [...] o prêmio sofreria um incremento muito importante, a ponto de retrair a possível entrada de “segurados sãos”,o que atentaria contra a instituição do seguro, comprometendo sua viabilidade futura e dessa maneira sua função social” (APARISI MIRALLES, 1997, p. 104). 23 Yara Hendges esclarece que “a incerteza não deve ser absoluta, pois, como é notório, nos seguros de vida para a hipótese de morte, somente se produz uma incerteza relativa, isto é, uma incerteza que se dá ao se saber que o acontecimento necessariamente sobrevirá, embora se ignore quando”. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 19 específicas, que concernem a riscos individuais24. Diante disso, ao lado da grande maioria das pessoas com esperança de longa vida, ajustadas às tabelas estatísticas, encontram-se também presentes as pessoas com riscos agravados (pessoas enfermas ou pessoas com profissão perigosa). Afirma-se que se estas pessoas têm uma esperança de vida mais reduzida é de se esperar que se interessem de maneira especial em contratar um seguro de vida (BERENGUER, 2001, p. 102). Dessa maneira, as companhias seguradoras argumentam que não “se podem rejeitar sistematicamente os riscos agravados, pois por um lado se estariam privando dos benefícios do seguro as pessoas que muito necessitam e, por outro lado, as asseguradoras podem perfeitamente assumir esse risco sempre que a tarifa esteja adequada” (BERENGUER, 2001, p. 102). Outro aspecto digno de nota é que o equilíbrio que deve resultar da boa-fé em que se baseia o contrato de seguro (Art.765 do Código Civil brasileiro (Cciv)) pode se romper sempre que o tomador do seguro já saiba que existe, ou existirá, um sinistro, e ocultando-o, acede a uma cobertura que normalmente seria aceita pelo segurador com um prêmio superior, ou seria recusada. Ora, o Código Civil brasileiro determina que o tomador do seguro comunique ao assegurador “logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé” (Art.769). As companhias de seguro somente podem decidir sobre a possibilidade de assumir o risco e a tarifa do prêmio quando da análise ou verificação da informação que se faz no momento da subscrição do risco, através da declaração do “estado de saúde”25. E quando tal informação é inverídica ou lacunosa, por dolo ou má-fé por parte do segurado, ocultando informação, o contrato deverá ser nulo (Art.762 do CCiv). Dessa observação segue que a lei que estabelece esses critérios não o faz para proteger as companhias de seguro, como pode parecer prima facie, mas para “proteger a solvência da instituição de seguro, para evitar que a atuação fraudulenta de uns prejudique o resto dos assegurados” (BERENGUER, 2001, p. 101). 24 “No caso de seguro de vida, as informações estatísticas se plasmam nas taxas de mortalidade ou de supervivência, que servem para calcular a probabilidade de falecimento e a probabilidade de supervivência” (BERENGUER, 2001, p. 102). 25 “Declaração do estado de saúde: é um questionário que se incorpora a solicitude de seguro, e que o assegurado deve completar e firmar, e que inclui perguntas relativas ao peso e à altura do solicitante (a massa corporal), a sua história pessoal (se há sofrido no passado algum acidente ou enfermidade), se fuma, etc.” (BERENGUER, 2001, p. 102). Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 20 De toda sorte, há algumas propostas para resolver a questão: a) oferecer uma cobertura mínima a todos e evitar os problemas de discriminação, emitindo apólices de seguro de vida ou seguro de invalidez, sem exame (KNOPPERS, 1991, p.55); b) distinguir os seguros ligados à proteção social, submetidos ao princípio da solidariedade, e os seguros privados, submetidos às leis do mercado (MATHIEU, 2000, p. 89); e c) como destaca o Informe do National Center for Human Genome Research, o caminho mais efetivo para a não-discriminação genética nos cuidados sanitários é aumentar a cobertura pública de serviços básicos de saúde (APARISI MIRALLES, 1997, p. 160). À luz dessas argumentações, é necessário que se tenha em mente que em matéria de seguros há incidência do princípio da boa-fé contratual (Art.765, CCiv)26, que deve presidir sempre a relação entre a companhia e o assegurado; e do princípio da incerteza do risco, – princípios que deveriam ser preservados quer na hora da celebração, quer na hora da revisão da apólice de seguro (SÁNCHEZ-CARO; ABELLÁN, 2004, p. 141). A esse respeito, registre-se que hoje em dia está perfeitamente acolhido pela sociedade que uma pessoa pague um prêmio maior em função de sua idade ou quando padece de uma enfermidade grave. Por esse raciocínio, questiona-se por que com relação à informação genética a situação deveria ser diferente. É necessário não confundir o direito à informação, necessário para o desenvolvimento de uma atividade seguradora, com o possível mau uso dessa informação, que deve ser evitado por todas as maneiras (BERENGUER, 2001, p. 106). Nessa perspectiva, preconiza-se que não se deve permitir que as companhias tenham acesso aos resultados de uma análise genética, a fim de assegurar o necessário equilíbrio dos interesses em jogo e evitar a violação do direito personalíssimo da intimidade genética do assegurado. Por outro lado, o assegurado tem o dever de informar o segurador, ao tempo da formalização do seguro, de todas as circunstâncias relevantes do risco que conheça, nos termos dos artigos 766 e 769 do Código Civil brasileiro27. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 26 Art. 765, do CCiv: “O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”. 27 Art.766 CCiv: “Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido”. Art. 769 do CCiv: “O segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé”. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 21 A informação genética oriunda dos dados genéticos, dados proteômicos e mostras biológicas humanas constitui uma informação que, indo além do conhecimento, desnuda a pessoa humana, porque revela o mais íntimo de sua essência: a constituição genética ou genoma individual sua e de sua família. Daí resulta que o uso inadequado da informação genética pode gerar perigos e preconceitos diversos, tais como o determinismo genético, discriminação por características genéticas e perda ou diminuição da capacidade de autodeterminação, ante o acesso às esferas de conhecimentos reservados. A informação genética fornece um enorme potencial discriminador àqueles que defendem o determinismo genético, os quais sustentam, em última instância, uma teoria reducionista da natureza humana. Ocorre que essa posição é totalmente equivocada, porque a desigualdade não está nos genes. Cada indivíduo é dotado de uma configuração genética característica, e nela influem diversos fatores educativos, ambientais e pessoais, bem como relacionamentos afetivos, sociais, espirituais e culturais dele com outros seres humanos. Nessa trilha, não parece justificável em um primeiro momento a realização de provas genéticas preditivas no contexto de um contrato de trabalho ou de seguro, salvo se orientadas à proteção contra riscos concretos à saúde das pessoas envolvidas. São vários os fundamentos para essa conclusão, alguns das quais merecem destaque. O primeiro é a necessidade do consentimento informado do sujeito em submeter-se às análises genéticas para o conhecimento de sua informação genética, bem como o dever de segredo. Outro é o uso do princípio da proporcionalidade, a fim de que se estabeleça uma ponderação entre a finalidade econômica e laboral de acesso aos dados genéticos e a eventual lesão aos direitos fundamentais, em especial à intimidade e privacidade pessoal, como meio de se assegurar a igualdade de posições entre interesses contrapostos, a fim de aproveitar os aspectos benéficos do uso e acesso à informação genética em diversos setores, inclusive os trabalhistas e de seguros, eliminando-se ao mesmo tempo os negativos. De modo a concluir, propõe-se de lege ferenda um projeto de lei para criação de uma legislação específica, como já ocorre em diversos países, sobre proteção de dados de saúde, incluídos os genéticos, com a finalidade de regulamentar o acesso, coleta, tratamento e controle dos dados genéticos humanos, por órgãos públicos e privados. Inclusive, devido ao alto potencial discriminador que pode gerar o uso da informação genética, como foi visto Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 22 neste estudo, propõe-se a criminalização de condutas de discriminação genética, em especial nos setores laboral e de seguros, com penas privativas de liberdade. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 1 – Número 2 – www.uel.br/revistas/direitoprivado 23 REFERÊNCIAS ÁLVAREZ-CIENFUEGOS SUÁREZ, José María. La aplicación de la firma electrônica y la protección de datos relativos a la salud. Revista Actualidad Informática Aranzadi, Pamplona, n. 39, abril, 2001. APARISI MIRALLES, Angela. El Proyecto Genoma Humano: Algunas reflexiones sobre sus relaciones con el derecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. A identidade genética do ser humano: Bioconstituição: Bioética e Direito. 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