Gestão de Sistemas Fluviais

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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
CAPÍTULO 4 – BASES ECOLÓGICAS PARA A GESTÂO DE SISTEMAS
♣
FLUVIAIS
1. INTRODUÇÃO
Os sistemas fluviais formam unidades indissociáveis e inter-dependentes com as
respectivas bacias hidrográficas (Hynes, 1975; Cummins, 1992; Petts, 1994). Os processos
ecológicos e alterações (de origem natural ou antrópica) que decorrem nas bacias
hidrográficas, reflectem-se nos ecossistemas fluviais, de tal forma que é possível avaliar o
estado ecológico da bacia hidrográfica e dos corredores fluviais (e respectivos
desajustamentos provocados por práticas incorrectas do seu uso), através da avaliação da
qualidade biológica da água (Hellawell, 1996), da integridade biótica das comunidades
aquáticas (Karr, 1991) ou da saúde do ecossistema (‘ecosystem health’: Karr & Dudley, 1981;
Calow, 1992; Norris & Thoms, 1999). As inter-acções entre os dois ecossistemas são tão
fortes que a gestão de ecossistemas dulçaquícolas é de facto uma gestão integrada de bacias
hidrográficas (Werritty, 1996).
O aumento do interesse na gestão da água prende-se com a crescente escassez da sua
quantidade e qualidade, face ao aumento e diversificação do seu uso, de tal forma que, num
horizonte de cerca de 25 anos, a quantidade disponível de água doce poderá constituir um
recurso limitante do desenvolvimento humano (Wetzel, 1993). A conservação de
ecossistemas aquáticos está, assim, intrinsecamente ligada à compatibilização presente e
futura dos seus usos (ou seja, às formas da sua gestão), de modo que sejam também
garantidos objectivos de uso não utilitário e não consumptivo, relacionados com a
conservação dos habitats, das espécies, das comunidades e do funcionamento dos
ecossistemas.
Os últimos vinte anos produziram uma base teórica bastante sólida no que respeita ao
conhecimento do funcionamento ecológico dos sistemas fluvais, pelo menos de zonas
temperadas (e.g. Calow & Petts, 1994; Cummins, 1994; Harper & Ferguson, 1996). Em
paralelo, ocorreu uma verdadeira explosão nos tipos, formas e perspectivas de avaliar a
qualidade biológica e ecológica da água e dos ecossistemas fluviais, resultante da progressiva
perda dessa mesma qualidade (e.g. Boon & Howell, 1996). Os dois conjuntos de
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Maria Teresa Ferreira, Departamento de Engenharia Florestal do Instituto Superior de Agronomia
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conhecimentos (do funcionamento dos ecossistemas e da avaliação do seu estado ecológico)
são os pilares sobre os quais assentarão as formas e planeamento da gestão ecológica de
sistemas fluviais nas próximas décadas.
2. FUNCIONAMENTO DE ECOSSISTEMAS FLUVIAIS
Podemos considerar que oito grandes teorias norteiam presentemente a ecologia e
gestão de sistemas fluviais. Estas teorias são conjuntos coesos de postulados, formulando
concepções de conjunto sobre os processos e funções que decorrem nos ecossistemas
aquáticos, ou seja, o seu funcionamento. A partir das concepções de funcionamento
formuladas, é possível prever a resposta do ecossistema face a alterações humanas e bem
assim, predizer a sua resposta a soluções de gestão e recuperação.
A maior parte destas teorias foram propostas nos anos oitenta, em grande parte a partir
de estudos ou conceitos embrionares surgidos nos anos setenta. Estas teorias não são
antagónicas, mas completam-se nas várias facetas de um poliedro de muitas faces cuja forma
representa a realidade ecológica, global e dinâmica. O quadro teórico final de funcionamento
dos ecossistemas fluviais passará pela aglutinação e integração destas várias facetas da
realidade ecológica.
2.1. A teoria do sistema fluvial a quatro dimensões (Ward, 1989)
Os sistema fluviais são interactivos ao longo de três dimensões espaciais: a
longitudinal (entre a cabeceiras e afluentes e o rio principal), a transversal (entre o corredor
fluvial e o seu vale de cheia), e a vertical (entre leito do rio e o aquífero). A quarta dimensão –
o tempo – configura a escala temporal. A escala temporal é crítica porque determina toda uma
multitude de diferentes processos em curso, desde os derivados das variações hidrológicas
intra-anuais e inter-anuais, até aos que se relacionam com o desenvolvimento das bacias
hidrográficas à escala planetária (Figura 4.1).
Os sistemas fluviais desenvolveram-se e funcionam em resposta a padrões e processos
dinâmicos que ocorem ao longo destas quatro dimensões. Para a compreensão dos
ecossistemas fluviais e sua gestão e recuperação, é necessária esta aproximação holística da
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realidade ecológica espacio-temporal, considerando as perturbações alóctones como forças
desruptivas destas quatro vias de interacções.
Figura 4.1. As quatro dimensões do sistema fluvial: longitudinal, transversal, vertical e lateral.
Extraído de Boon (1992)
2.2 A teoria do sistema fluvial multiescalonado (Frissell et al, 1986)
As bacias hidrográficas compreendem uma rede hierárquica de afluentes e respectivas
bacias de drenagem. Os afluentes são constituídos por segmentos fluviais; cada segmento é
constituído por troços fluviais em sequência, definidos como um conjunto de habitats (função
de variáveis como a profundidade, o tipo de fluxo, a velocidade de corrente e o substrato do
leito), cuja sequência e proporção lhe conferem individualidade. Cada unidade habitacional
por sua vez pode apresentar vários microhabitats, de carácter e duração efémeros. A multitude
de processos e funções ecológicas decorrentes no sistema fluvial existem enquadrados nesta
hierarquia de escalas (Frissell et al., 1986).
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O termo escala refere-se a um dado período de tempo ou a um dado espaço, e o
processo de escalonamento à mudança de escala espacial ou temporal. Geralmente, são
consideradas como as mais importantes as escalas adoptadas por Frissel et al. (1996), ou seja,
bacia hidrográfica, segmento fluvial, troço fluvial e habitat fluvial, mas frequentemente são
igualmente consideradas nos extremos deste série a região e o micro-habitat (e.g. Schiemer,
2000). Quando se muda de escala espacial igualmente mudam os processos morfodinâmicos e
factores de controle que regem o sistema fluvial e a escala temporal a que estes se processam
(Quadro 1).
Quadro 4.1. Desenvolvimento espacial e temporal das várias escalas consideradas para ecossistemas
fluviais (com base em Habersbeck, 2000, adaptado)
ESCALA
Regional-continental
Bacia ou sub-bacias
hidrográficas
Seccional (segmento)
Local (troço e habitat)
Pontual (micro-habitat)
ESPACIAL (km) TEMPORAL (alterações
morfológicas)
>1000
Unidades de tempo geológicas
100-10000
Unidades de tempo geológicas
1-100
0.01-1
0.001-0.01
10-1000 anos
0.1-10 anos
< 1 ano
A teoria do sistema fluvial multiescalonado considera os seguintes postulados: cada
componente do sistema fluvial é uma parte constituinte e um todo, expressos num dado
contexto, temporal; os padrões, processos e interacções que decorrem no sistema fluvial
podem ser expressos a diferentes escalas espaciais e temporais e estão interligados; as
relações entre os processos ecológicos e os padrões que estes criam mudam de acordo com a
escala espacial considerada; os níveis de organização do ecossistema localizados nas escalas
superiores influenciam as propriedades e processos ecológicos que decorrem nas escalas
inferiores enquanto os que decorrem nestas tem uma menor capacidade de influenciar as
escalas superiores (Allan et al., 1997).
Só é possível uma visão ecológica real do ecossistema quando se integram as várias
escalas embora a escolha da escala ou escalas de trabalho dependa dos objectivos deste. De
acordo com Verdonshoot (2000), os dados biológicos (espécies, comunidades) ou ecológicos
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(processos, padrões) devem ser recolhidos a uma escala imediatamente inferior àquela em que
a questão ou objectivo é formulado.
Diferentes comunidades e processos biológicos estão primariamente associados a
escalas diferentes, dependendo do tempo e do ciclo de vida das espécies. Por exemplo, as
comunidades de peixe reflectem sobretudo a escala do segmento fluvial, embora
evidentemente, escalas maiores e menores intervenham igualmente na sua estruturação e
frequentemente, pode ser observada uma interpenetração da influência das várias escalas, por
exemplo, os salmonídeos seleccionam pontos específicos da malha habitacional do rio (escala
habitat) com temperatura ou velocidade da corrente inferiores aos que caracterizam a
generalidade do troço ou segmento fluvial onde se encontram, de escala superior.
A resposta dos organismos a alterações é evidentemente também dependente da escala
e pode variar desde horas (e.g. variação diária do plâncton) a milhões de anos (especiação e
dispersão geográfica de espécies piscícolas), dependendo do tipo de comunidade e da resposta
em jogo- ecológica, comportamental, fisiológica ou genética. Frissell et al. (1986) constroem
a partir da sua divisão hierárquica um contínuo de sensibilidade de habitats à perturbação e
tempo de recuperação face à perturbação. Os microhabitats são estruturas efémeras e muito
susceptíveis à perturbação e as bacias hidrográficas o contrário. Contudo, eventos de pequena
escala que perturbam microhabitats não se reflectem sobre as escalas superiores mas eventos
que perturbem as escalas superiores reflectem-se nas escalas inferiores (por exemplo, um
corte raso de uma área florestada afecta todo um segmento enquanto uma árvore que caiu no
rio afecta apenas os habitats logo a jusante.
2.3. A teoria do mosaico dinâmico (Townsend, 1989)
Esta teoria, que apresenta várias facetas, das quais as mais conhecidas são o conceito do
“Habitat Template” de Southwood (1977) e o conceito de “Patch Dynamics” de Townsend
(1989), refere-se ao funcionamento ecológico das populações/espécies e as suas interacções
bióticas e abióticas, à escala espacial do habitat fluvial. Este conjunto teórico postula que,
com base nos processos e funções ecológicas que decorrem entre as populações das várias
espécies e entre estas e o habitat, é possível predizer padrões ecológicos deles resultantes, e
concretamente os seus parâmetros indicadores, como a riqueza, a diversidade, a presença de
estrategas K ou r, ou a presença de espécies raras.
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2.4. A teoria do contínuo lótico (Vannote et al., 1980)
Todos processos ecológicos ocorrentes num sistema fluvial se encontram estruturados
de acordo com a hierarquia da rede hidrográfica. O conceito do contínuo lótico (Vannote et
al., 1980) propõe um quadro teórico holístico para o funcionamento ecológico dos sistemas
fluviais entre as cabeceiras e a foz, considerando o rio e a sua bacia hidrográfica como uma
unidade funcional, com as suas comunidades variando e sendo susbtituidas gradual e
longitudinalmente de acordo com gradientes igualmente longitudinais de características
físicas e químicas do sistema (Figura 4.2).
As cabeceiras são frequentemente constituídas por rios de pequena dimensão rodeados
por áreas florestais, com corrente rápida e turbulenta, fundos rochosos, águas transparentes,
bem oxigenadas e com poucos nutrientes. A vegetação é muito pouca e uma camada de
perifiton cobre os substratos. O rio depende em termos alimentares dos materiais fornecidos
pelas zonas terrestres envolventes, pelo que as comunidades de invertebrados de fundo são
constituídas por trituradores (que trituram folhas e outros detritos grosseiros) e colectores (que
colectam detritos mais finos, arrastados pela corrente ou depositados entre as pedras), sendo
os raspadores menos abundantes (que raspam o perifiton e as superfícies das plantas) e
havendo poucas condições para os predadores (que predam outros invertebrados) se
estabelecerem. Em Portugal, os peixes típicos destas zonas são as trutas e os escalos.
Nos cursos médios, o vale alarga e aumenta a contribuição da bacia hidrográfica em
materiais mais finos e nutrientes (Figura 4.2). A corrente não é tão forte, o rio forma um curso
sinusóide na planície, o leito apresenta já muitas zonas de deposição de areias e de materiais
finos, pelo que a vegetação e o perifiton são abundantes nas margens e no leito. Assim, os
invertebrados são dominados por colectores e por raspadores, com trituradores e predadores
em menor proporção. Estes rios são habitados por ciprinídeos como a boga, o barbo e o
ruivaco.
Nos cursos de planície, já meandrizados e de grande desenvolvimento do corredor
fluvial, a massa de água é grande e pouco turbulenta, mas turva, com muitos materiais finos
em suspensão e nutrientes (Figura 4.2). Como a profundidade aumenta, as plantas estão
circunscritas às zonas marginais e na massa de água domina o plâncton. O fundo está coberto
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de depósitos finos e é dominado por colectores de depósito e seus predadores. Os peixes mais
frequentes desta zona são a carpa comum, o barbo, a enguia e a tainha.
CPOM
1
2
3
4
5
6
FPOM
CPOM
M
FPO
7
8
9
10
11
12
Largura relativa do canal
Figura 4.2. O conceito do contínuo lótico, RC, de Vannote at al. (1980). Relações teóricas gerais entre o
número de ordem (hierarquia) do sistema fluvial, as entradas de materiais alimentares (fontes energéticas)
e as comunidades fluviais no quadro conceptual delineado pelo RC.
Extraído de Ferreira (2000).
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A teoria do contínuo lótico (Vannote et al., 1990) postula: que os organismos e
características de cada troço lótico evoluiram em concerto com o arranjo mais provável das
condições físicas e químicas determinadas pela geologia e geomorfologia da bacia de
drenagem e do corredor fluvial; que os locais a jusante dependem em grande parte da
ineficiência alimentar dos locais a montante e dos excedentes nutritivos oriundos do meio
terrestre; e que a estrutura das comunidades (nomeadamente dos produtores primários e dos
macroinvertebrados) se modificam ao longo de um contínuo entre as cabeceiras e a foz, em
resposta a gradientes longitudinais igualmente contínuos das contribuições relativas das fontes
alimentares endógenas e exógenas.
2.5. A teoria da espiral de nutrientes (Elwood , Newbold, O’Neill & vanWinckle, 1983)
Os rios são um vector de transferência de materiais entre as cabeceiras e o vale. Este
movimento contínuo unidireccional de materiais orgânicos e inorgânicos (Elwood et al.,
1983; Pinay et al., 1990). Durante esta deslocação, os materiais em movimento são
absorvidos, utilizados, decompostos e reutilizados, numa contínua transformação entre
componentes orgânicas e inorgânicas.
Elwood et al. (1983) definiram o comprimento de cada espiral de reciclagem de
materiais como a distância média percorrida por um átomo de nutriente (P, N) durante o seu
ciclo de transformações mineral-orgânico-mineral, no seu movimento para jusante (Figura
4.3). Medições deste comprimento indicam desde 100 m para espirais curtas até mais de 10
km para espirais longas (Newbold et al., 1981).
O comprimento da espiral está associado ao número de vezes que o mesmo átomo é
utilizado em dada zona fluvial, e logo, à produtividade dessa zona. Um parte dos processos
pode ocorrer nos ecótonos laterais, sobretudo nos cursos médios e finais, em zonas de grande
interacção com o vale de cheia (Figura 4.3).
Alterações dos ecótonos laterais induzem alterações no comprimento das espirais de
nutrientes e na grandeza do material reciclado. A retenção, utilização e remineralização dos
nutrientes dependem também da distribuição, densidade, tamanho, justaposição e diversidade
do mosaico de habitats. A estabilidade do mosaico habitacional está também genericamente
relacionada com a retenção do material orgânico no rio e na planície aluvial.
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Figura 4.3. A espiral de nutrientes de Elwood et al. (1983). Extraído de Pinay et al. (1990).
2.6. A teoria da perturbação intermédia (Ward & Stanford, 1983b)
Esta teoria propõe que nos sistemas fluviais existe uma permanente situação de
instabilidade que maximiza a diversidade, uma ideia proposta originalmente por Connell
(1978). Esta instabilidade reflecte-se na elevada resiliência (ou capacidade de recuperação)
das comunidades aquáticas, num dado espaço e num dado instante. A elevada resiliência da
maior parte dos ecossistemas fluviais configura a sua meta-estabilidade.
Um desenvolvimento interessante desta teoria consiste na abordagem das
consequências da introdução de descontinuidades no sistema fluvial (e.g. barragens), em
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termos da estrutura das comunidades e processos ecológicos decorrentes. Assim, a posição da
descontinuidade ao longo do contínuo lótico é determinante do tipo e da grandeza das suas
consequências em termos das comunidades e processos ecológicos afectados (Ward &
Stanford, 1983a), expressos em parâmetros como a riqueza, a razão matéria orgânica
particulada grosseira/fina ou a biomassa de macrófitos. A alteração destes parâmetros pode
ser expressa em termos da grandeza da alteração e da distância ao número de ordem fluvial
recriado durante a perturbação (Pinay et al., 1990).
2.7. A teoria da pulsação de cheias (Junk , Bayley & Sparks, 1989)
Num rio de planície, podem ser distinguidas várias zonas aquáticas e semi-aquáticas,
incluindo o rio principal e os seus tributários, braços laterais conectados permanentemente ao
rio principal e antigos braços de rio separados e que só ocasionalmente durante as cheias
ficam ligados ao sistema, zonas aquáticas mais afastadas, mais ou menos incorporadas no
meio terrestre e que há muito tempo se separaram do rio e zonas de alagados freatófitos.
Existe uma conectividade hidrológica entre todos estes sub-sistemas, quer superficial
(permanente ou temporária) quer via subterrânea (Schiemer, 2000).
A conexão lateral hidrológica e a dinâmica do fluxo e refluxo hídricos, geram um
fluxo dinâmico de nutrientes e matéria orgânica viva ou morta, que determina a conexão e
características dos habitats existentes e respectivas condições tróficas. A disrupção destas
trocas laterais complexas de água e materiais (e.g. por incorporação de diques laterais), altera
profundamente os sub-componentes ecossistémicos envolvidos, com consequências a nível
das populações de muitas espécies.
As cheias são um aspecto crucial deste conceito. Representam um fluxo de novas fontes
alimentares e a conexão aos habitats incorporados há tempo no meio terrestre, mantendo-os e
renovando-os em termos geomórficos, físico-químicos e biológicos. Quanto mais
espacialmente gradual for o ecótono entre o rio e os habitats na planície de cheia, ou seja, a
zona de transição entre o meio aquático e o terrestre, maior a interacção e os processos de
troca de materiais e organismos e a necessidade de uma conexão dinâmica e meta-estável
(Schiemer, 2000).
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2.8. A teoria da descontinuidade serial expandida (Ward & Standford, 1983a; 1995)
Uma forma de classificação fluvial largamente expandida é a agregação da sequência
de segmentos fluviais em três grandes tipos/zonas: as cabeceiras (zonas de erosão e extracção
de materiais), o curso médio (zona de transição ou de transferência de materiais) e o curso
final de planície (zona de deposição). Esta divisão muito simples apresenta uma base sólida
em termos de processos geomorfológicos e explica grande parte das alterações do sistema
fluvial ao nível da bacia hidrográfica. Nesta teoria, as três zonas apresentam diferente
magnitude na importância das interfaces vertical, temporal e lateral (Figura 4.4). A zona
média, com os seus canais múltiplos e ilhas, é muito importante no aumento da
heterogeneidade habitacional, na influência da zona ripária e na diversidade dos estados de
sucessão. A ilhas criam zonas de retenção de nutrientes e de matéria orgânica que contribuem
para o aumento da resiliência do rio a perturbações naturais e antropogénicas (Petts, 2000).
Para dado sector, o mosaico de habitats (‘patches’) difere na escala a que se exprime, e
nas fronteiras e interacção com os meios envolventes - terrestre, hiporreico e fluvial -, a
montante e a jusante. A grande diferença entre as três zonas reside na diferente justaposição,
diversidade e densidade do mosaico de habitats (Pinay et al., 1990). Os processos produtivos
dominantes podem ser autotróficos ou heterotróficos conforme a zona fluvial em questão, e
em função da retenção ou exportação das várias fontes de matéria orgânica morta. Os
processos autotróficos tendem a dominar a zona média enquanto os processos heterotróficos
tendem a dominar genericamente o sistema fluvial.
3. ACTIVIDADES HUMANAS E ALTERAÇÕES DO FUNCIONAMENTO DOS
ECOSSISTEMAS FLUVIAIS
Durante toda a história humana, as interacções do homem com os rios visaram criar ou
manter confinamentos da água para uso ou protecção das sociedades humanas. Durante
centenas de anos, mas em particular nos últimos cem, os progressos da engenharia avaliaramse pela intensificação do controle humano sobre os recursos hídricos, nomeadamente a
garantia do fornecimento adequado de água em qualidade e quantidade, o controle das cheias
e da erosão e o controle da poluição.
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Figura 4.4. O conceito da descontinuidade serial de Ward & Stanford (1995). Adaptado de Petts
(2000)
Contudo, hoje mais do que nunca, as reservas de água são insuficientes para a crescente
procura humana, é reconhecido que nunca será possível o controle total das cheias e das secas,
todas as massas de água apresentam cada vez mais um grau qualquer de poluição. A nível
mundial, os bons pesqueiros e as espécies apreciadas declinam, um sinal da crise profunda
dos ecossistemas (Karr & Chu, 2000).
O biota das bacias hidrográficas é o produto de milhões de anos de alterações
geológicas e de evolução biológica. A sua existência representa o ‘integral’ das condições
que governam os recurso hídricos, uma matriz biológica complexa que evoluiu em conjunto
com os processos biogeoquímicos que deram forma aos recursos hídricos. De facto, as
comunidades biológicas reflectem a qualidade da gestão de recursos hídricos na bacia de
drenagem melhor do que qualquer medida físico-química, porque integram um espectro total
de factores biogeoquímicos. Gerir e conservar correctamente as comunidades aquáticas
implica/reflecte uma boa gestão de recursos hídricos e, em consequência, a garantia e
protecção dos usos humanos do sistema, incluindo potabilidade, pesca, actividades
recreativas, fluxos de água, navegabilidade, hidroenergia (Karr, 1998).
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
A Figura 4.5 representa os cinco grupos de factores ambientais que determinam a
integridade biótica de cada ecossistema fluvial, de acordo com Karr & Chu (2000): i) os
factores associados às características do canal; ii) as fontes de energia que penetram no
sistema a partir de montante, da bacia de drenagem e da atmosfera; iii) a qualidade e
características geoquímicas da água; iv) o regime de caudais, líquido e sólido, que ocorrem
em cada local fluvial; e v) as interacções bióticas tais como predação, competição ou efeitos
patogénicos.
Figura 4.5. Os cinco grupos de factores que influem na integridade biótica dos sistemas fluviais de
acordo com Karr & Chu (2000)
Estes grupos de factores não são estanques, antes formam uma teia multivariada de
influências. Por exemplo, o teor de matéria orgânica caracteriza a qualidade da água de dado
sistema fluvial, mas é também umas das suas fontes de energia.
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
A maior parte destes factores podem ser naturais ou ter origem em actividades humanas.
Por exemplo, a matéria orgânica que caracteriza dado local pode provir da folhada ripária ou
de um efluente urbano. Uma espécie nova para a comunidade pode ter migrado de uma bacia
hidrográfica adjacente ou ter sido introduzida pelo Homem. Assim, a influência das
actividades humanas pode processar-se em vários factores e grupos de factores e globalmente
afectar toda a teia de processos e funções decorrentes no ecossistema.
Diferentes factores intervêm de forma diferente em diferentes sectores do sistema
fluvial e a predicatibilidade da sua acção e consequências resulta do próprio funcionamento de
cada sistema fluvial, que se encontra estabelecido no quadro teórico descrito no capítulo
anterior. Por exemplo, uma barragem, que interrompe o contínuo fluvial, apresenta
consequências importantes na espiral de nutrientes, mas esta interrupção e respectivas
consequências serão diferentes em diferentes troços fluviais, tal como postula a teoria da
descontinuidade serial. A construção de diques laterais e a canalização de um segmento
fluvial interrompe a pulsação das cheias num rio de planície e afecta o segmento fluvial em
questão, mas não a respectiva bacia de drenagem, cujo processos e funções ecológicos se
processam num nível espacio temporal diferente.
O Quadro 4.2 sistematiza as principais actividades humanas que interferem com os
factores que determinam a integridade biótica, bem como os seus principais e comunidades
afectadas (Wright et al., 2000). A qualidade da água e as fontes energéticas são
tradicionalmente as agressões sobre as quais se concentra o esforço de controle, porque
geralmente estão associadas a fontes pontuais poluidoras e como tal mais fáceis de quantificar
(sobretudo em termos químicos) e de resolver tecnicamente, porque se trata de situações em
que mais directamente se pode responsabilizar o utilizador e porque afectam os usos futuros
da água pelo homem. É hoje óbvio que, apesar de todos os esforços desenvolvidos, não se
verifica uma melhoria significativa na qualidade dos sistemas fluviais, porque outras
alterações ocorrem em simultâneo e sob diferentes formas, não sendo quantificáveis por
elementos físico-químicos.
Quadro 4.2. Sumário de tipos de actividades humanas e seus principais impactes sobre o corredor
fluvial e o canal, incluindo os efeitos ecológicos primários destas actividades e as comunidades
biológicas primariamente afectadas. A vermelho indicam-se as actividades humanas tradicionalmente
consideradas como influindo na qualidade da água e para as quais é efectuada a avaliação físicoquímica de rotina. Adaptado de Wright et al. (2000).
PL- plantas aquáticas e galeria ribeirinha; BE-macroinvertebrados e diatomácias bênticas; PI- peixes
ACTIVIDADE
PRINCIPAL IMPACTO
EFEITO PRIMÁRIO
133
PRINCIPAIS
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PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
HUMANA
REGULARIZAÇÃO
Aumento do caudal
Redução do caudal
Constância do caudal
Variações do regime caudal
Variações da curva de
duração anual de caudais
INTERVENÇÕES
FLUVIAIS
Pontes e estruturas
transversais
Alteração de perfis
transversais e longitudinais
Dragagens
Barragens e açudes
Canais associados à rede
hidrográfica
USO DA ÁGUA
Extracção e desvio
Transferências de água
Poluição por efluentes
pontuais
USO DA BACIA DE
DRENAGEM
Actividades monoculturais e
escoamentos
Minas, estaleiros e
extracção de inertes
Urbanização e indúsria
Instabilidade do substrato do leito
Assoreamento
Homogeneização e estabilidade do
leito
Assincronia das variações naturais
Redução ou inexistência de cheias de
limpeza anual do leito e afluência de
nutrientes às zonas laterais
Perturbação do substrato e dos
habitats
Alterações da forma do canal,
homogeneização de habitats
Perturbação do substrato,
assoreamento
Alteração regime caudais
Alteração regime caudais
COMUNIDADES
AFECTADAS
PL; BE; PI
PL; BE, PI
PL; BE
PI
PI
BE
PL; BE; PI
PL, BE; PI
BE, PI
BE; PI
Variações perímetro molhado e do
regime caudal líquido
Alterações do regime de caudal
Aumento carga orgânica e inorgânica
suspensa e dissolvida
BE, PI
Nutrientes e pesticidas
PL; BE; PI
Assoreamento materiais finos
Poluição
Poluição
BE; PI
PL; BE; PI
PL; BE, PI
BE, PI
4. QUALIDADE DA ÁGUA
A qualidade da água é o conjunto de concentrações, especiações e partições físicas de
substâncias orgânicas e inorgânicas, bem como a composição e o ‘estado’ do biota aquático
que vive na massa de água (Chapman, 1998). Entende-se por poluição, a introdução directa
ou indirecta pelo Homem de subtâncias ou energia que resultam em efeitos prejudiciais para
os recursos vivos, para a saúde humana, para as actividades piscatórias e de recreio e para os
usos económicos da água. Embora as definições modernas de qualidade da água e de poluição
já contemplem a conservação do biota e do seu bom ‘estado’, ainda se baseiam
estruturalmente a) na ideia da entrada de substâncias ou energia no sistema aquático; b) na
garantia da saúde humana e c) na garantia dos usos futuros da água.
Por avaliação da qualidade da água entende-se assim o processo de avaliação das
características físicas, químicas e biológicas em relação à sua qualidade natural, efeitos nas
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
populações humanas e uso económico da água. Quando existe uma colecção de informações
numa malha de locais e recolhidas a intervalos regulares para avaliação da qualidade da água,
estamos na presença de uma monitorização. A qualidade da água no sentido desta definição
tradicional (embora moderna), é avaliada por três formas:
a) Determinação de parâmetros físicos, químicos, bioquímicos e microbiológicos da
água, material particulado e tecidos biológicos;
b) Bioensaios ou biotestes, uma aproximação geralmente laboratorial e ex situ,
destinada a determinar o tipo e grau de acumulação efectiva ou potencial de
substâncias ou energia poluentes nos organismos aquáticos;
c) Bioavaliação, uma aproximação geralmente observacional e in situ, na qual
indicadores ou índices biológicos, baseados em características específicas,
comunitárias, ecossistémicas ou metabólicas, são utilizados na determinação da
qualidade da água.
Durante muito tempo, a monitorização físico-química foi a forma mais apropriada de
detectar os efeitos de actividades humanas nas comunidades aquáticas. Geralmente, a
monitorização é efectuada nas áreas onde ocorrem problemas (mortalidade de peixes,
espumas orgânicas ou inorgânicas, turvação e cheiros da água, etc.) e a avaliação reflecte as
alterações físico-químicas provocadas por fontes poluidoras pontuais ou difusas (indicadas a
vermelho no Quadro 4.2).
A legislação em vigor é o Decreto-Lei nº236/98 de 1/8 estabelece valores máximos
admissíveis ou recomendáveis para os vários parâmetros físico-químicos ou microbiológicos,
de acordo com os tipos do futuro uso humano da água, por exemplo recreio, abastecimento,
industrial ou rega. Este método de avaliação da qualidade é descritivo, e refere-se apenas à
componente água e às substâncias nela dissolvidas e em suspensão.
Esta avalição tradicional da qualidade fluvial tornou-se completamente inadequada na
actualidade, quer devido à especificidade das condições ecológicas de cada massa de água e
suas variações sazonais, quer devido à sua aproximação muito restrita a um ou apenas alguns
aspectos das alterações em curso, apesar da multitude multivariada de agressões que se
exercem sobre os sistemas fluviais (Quadro 4.2). De facto, esta aproximação tradicional
revelou-se de baixa sensibilidade, inadequada na medição de diferentes situações de
perturbação intermédia e incapaz de distinguir variações naturais das antrópicas.
135
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Contudo, em Portugal, a qualidade da água é ainda hoje avaliada pelas Direcções
Regionais do Ambiente e Ordenamento do Território (DRAOT), apenas por meios físicoquímicos, e por isso verificam-se frequentes desajustamentos entre a legislação e a realidade
ecológica ibérica (nomeadamente piscícola), por exemplo, muitos pesqueiros de elevado valor
encontram-se presentemente classificados como não apresentando vida piscícola devido aos
valores de parâmetros como a temperatura e os cloretos.
Na generalidade dos países europeus é já realizada, em paralelo da avaliação físicoquímica, uma avaliação da qualidade da água por via biológica, com base em organismos ou
comunidades indicadoras. A bioavaliação tem a vantagem de integrar de forma cumulativa, o
conjunto de alterações e agressões que afectam dado local , não só na altura da colheita mas
também historicamente.
A Figura 4.6 ilustra a qualidade da água da bacia do Tejo através de indicadores físico
químicos utilizados pelas DRAOT e biológicos utilizados pelo Instituto Superior de
Agronomia. Este tipo de cartas de qualidade de sistemas fluviais é fundamental enquanto
peça de ordenamento piscícola, visto que locais com diferentes graus de degradação devem
ser objecto de diferentes medidas de intervenção, usos e fomento piscícola
A bioavaliação moderna da qualidade fluvial consiste na avaliação do desvio de um
ecossistema de qualidade desconhecida (‘local teste’) em relação ao ecossistema que ocorreria
no mesmo local em condições não alteradas por actividades humanas (‘situação de
referência’) e possuidor de integridade biótica (Karr & Dudley, 1981; Karr, 1991) ou de
qualidade ecológica (Pollard & Huxnham, 1999). Um sistema apresentando elevada
integridade biótica, suporta e mantém um conjunto de comunidades íntegras e equilibradas,
com composição, estrutura e organização funcional típicas do respectivo enquadramento
geomórfico regional. Nesta situação, o ecossistema é auto-sustentável, os seus processos e
funções estáveis, e capazes de reagir a níveis razoáveis de perturbações exógenas.
136
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Figura 4.6. Imagem global da qualidade dos sistemas fluviais da bacia do Tejo incluindo a
informação físico-química e a biológica
Podemos considerar existirem presentemente cinco tipos de avaliação da qualidade
da água e da qualidade de sistemas fluviais:
a) Avaliação por índices biológicos. Esta é a forma mais tradicional de bioavaliação,
refere-se em geral à qualidade da água per se e inclui três tipos de técnicas, que
dominaram até meados dos anos oitenta: i) os índices de sapróbios que usam a
tolerância de cada espécie à poluição aquática, traduzida num valor e peso
137
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
indicadores cujo somatório indica o nível de qualidade; ii) os índices de diversidade,
que utilizam a variação da proporção das espécies na comunidade para indicar o
grau de degradação; e iii) os índices bióticos que combinam os dois anteriores ao
utilizarem a riqueza dos taxa de dada comunidade e a sua tolerância à poluição,
ponderando ambas num valor final (é o caso da Figura 4.
b) Avaliação físico-ecológica. A qualidade física do corredor fluvial pode ser avaliada
por vários métodos, incluindo a análise de características como o tipo e diversidade
de substratos do leito, a cobertura arbórea e abrigos, a morfologia do canal e zona
ripária, os padrões de erosão e sedimentação, etc. Entre os índices mais conhecidos e
utilizados deste tipo, incluem-se o Habitat Suitability Index norte-americano
(USFWS, 1981), o River Habitat Survey inglês (Raven et al., 1997), o GSGK
alemão (Friedrich et al., 1993).
c) Avaliação de componentes do ecossistema. Este tipo de índices avalia o valor de
dado segmento fluvial, em função de espécies e comunidades de elevado valor
conservacionista, independentemente da integridade biótica do próprio sistema.
Assim, um rio pode apresentar baixa qualidade ecológica e no entanto elevado valor
conservacionista, como é o caso do rio Guadiana. Os índices mais conhecidos deste
tipo são o SERCON inglês (Boon et al., 1998) e o AMOEBA holandês (Brink et al.,
1991). O SERCON, por exemplo, utiliza 5 grupos de atributos ponderados
pericialmente, ao todo 35, divididos em blocos referentes à diversidade,
naturalidade, representatividade, riqueza e raridade, e corrigidos de 8 tipos possíveis
de intervenções negativas e de 11 tipos possíveis de valores conservacionistas.
d) Avaliação por análise multivariada comunitária. A partir do início dos anos
oitenta, foram desenvolvidos índices comunitários baseados no grau de significância
estatística do desvio da composição taxonómica dos locais teste em relação a locaistipo não afectados por actividades humanas, cuja agregação é determinada
originalmente pelos taxa aí encontrados. A aproximação multivariada é um modelo
de carácter preditivo e teve origem europeia, sendo o mais conhecido o modelo
RIVPACS no U.K. (já na sua quarta versão: Wright et al., 2000), mas outras
aplicações bem sucedidas são o BEAST canadiano canadiano (Rosenberg et al.,
2000), o AUSRIVAS australiano (Davies, 2000) EKOO holandês (Verdonshoot &
Nijboer, 1997).
138
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
e) Avaliação por índices multimétricos. Igualmente a partir do início dos anos oitenta,
desenvolveram-se nos EUA índices baseados em características ou atributos
(‘métricas’) de uma ou mais comunidades, que apresentam uma resposta preditível e
geralmente de tipo linear, às agressões humanas (Barbour et al., 1999). As
comunidades piscícolas são das mais utilizadas nesta avaliação da qualidade
ecológica.
Cada tipo de massa de água e formas de agressão apresentam métricas potencialmente
diferentes, pelo que para cada região ou massa de água deve ser adaptado o índice
multimétrico respectivo. São utilizadas em geral as seguintes métricas (Thorne & Williams,
1997; Verdonschot, 2000): i) medidas de riqueza e de abundância (e.g. número total de taxa,
abundância de Oligoquetas, percentagem do taxon dominante, etc.); ii) medidas de tolerância
ou intolerância (presença e abundância de dados taxa); iii) medidas funcionais (e.g.
percentagem de detritívoros, percentagem de animais com lesões e parasitas, percentagem de
animais de dada classes de idade, etc.); iv) índices bióticos; v) medidas de diversidade; vi)
medidas de semelhança comunitária ou perda desta. As três primeiras alíneas são as mais
utilizadas.
Em relação aos cinco tipos de métodos apresentados, verifica-se que todos assentam
nas comunidades biológicas à excepção da avaliação físico-ecológica do corredor fluvial. Esta
última
demonstrou já a sua utilidade, sobretudo em situações de alterações extensivas
estruturais dos corredores fluviais, contudo, a tendência actual é basear a avaliação da
qualidade ecológica nas componentes bióticas, consideradas o elemento integrador dos
factores de alteração ocorrentes no corredor fluvial e na bacia hidrográfica. O cenário
geomórfico fornece, contudo, dados complementares de inegável interesse.
A avaliação de componentes do ecossistema (vocacionada para quantificar o estatuto
de conservação) e as duas últimas alíneas (vocacionadas para quantificar a qualidade da água
e do ecossistema), representam linhagens paralelas de avaliação da qualidade, embora
complementares. A ideia de estatuto ecológico está associada a aproximações
conservacionistas clássicas, biocêntricas, baseadas em espécies ou comunidades chave, alvo
ou raras a preservar, bem como os seus habitats, em segmentos ou troços fluviais de interesse
especial, que devem ser estatutariamente protegidos, eventualmente através do seu isolamento
ou pelo menos controle dos usos humanos (Boon et al., 2000; Moulton, 2000).
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
O Quadro 4.3 indica as métricas utilizadas num índice multimétrico desenvolvido para
avaliação da qualidade piscícola de sistemas fluviais portugueses (Oliveira e Ferreira, em
publ.).
Quadro 4.3 - Critérios de pontuação para as métricas utilizadas no cálculo do IIB para a bacia do rio
Tejo.
Critério de pontuação
Métrica
5
3
1
≥ 67
33-67
< 33
> 90
70-90
< 70
≤ 25
25-60
> 60
> 15
5-15
<5
≥ 60
20-60
< 20
Ausente
Pouco
abundante
Muito
abundante
≥ 67
33-67
< 33
<2
2-5
>5
a
Número de espécies nativas (% LM)
Indivíduos pertencentes a espécies nativas (%)b
Indivíduos pertencentes a espécies muito tolerantes (%)b
Indivíduos pertencentes ao género Rutilus (%)
b
b
Indivíduos pertencentes a espécies invertívoras pelágicas (%)
Abundância de lagostim vermelho Procambarus clarkii c
Capturas por 100 m2 de área de amostragem (% LM)b, d
Indivíduos com anomalias (%)
b
a
A pontuação depende da largura do rio, LM.
Só se consideraram os exemplares com um comprimento total superior a 5 cm, excepto para espécies
de pequeno tamanho como Gambusia holbrooki, onde foram considerados todos os indivíduos
capturados.
c
A concretização desta métrica está ainda em fase de estudo, pelo que não foram lhe foram atribuídos
intervalos de valores. No entanto, verificou-se que em troços degradados as capturas de lagostim
vermelho tendiam a ser superiores a 10-20 exemplares.
d
A pontuação depende da largura do rio, LM.
b
A bioavaliação da qualidade da água por métodos multivariados e da integridade
biótica por métodos multimétricos apresentam ambas um carácter preditivo e baseiam-se
numa concepção ecocêntrica da saúde geral do ecossistema fluvial e das comunidades que
nele habitam. Nesta perspectiva, garantir a saúde ecossistémica e as condições ecológicas o
mais próximo possível das originais significa garantir os processsos e funções que
caracterizam cada ecossistema em particular (tal como teorizado antes) e a sua capacidade de
resiliência a alterações humanas. Um ecossistema saudável e íntegro implica per se a
manutenção das espécies raras. Por outras palavras, se garantirmos a saúde geral do maior
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
número possível de ecossistemas, sem os isolarmos, então a própria resiliência destes garante
a sobrevivência das espécies raras, chave ou de elevado estatuto conservacionista. Trata-se de
uma aproximação convergente com o conceito actual de gestão integrada de bacias
hidrográficas (Werrity, 1996).
5. REGULARIZAÇÃO
5.1. Introdução
Em limnologia, utiliza-se a expressão rios regulados para designar os sistemas fluviais
afectados pela existência de estruturas hidráulicas transversais, provocando alterações maiores
ou menores, e de vários tipos, nos regimes de caudais, nos fluxos de materiais e organismos,
que caracterizavam e estruturavam o ecossistema fluvial original. Contudo, para avaliar estes
efeitos, é necessário primeiro conhecer o funcionamento ecológico dos sistemas fluviais.
A teoria do contínuo lótico criou uma estrutura teórica holística para o funcionamento
ecológico dos sistemas fluviais entre as cabeceiras e a foz, considerando o rio e a sua bacia
hidrográfica como uma unidade funcional, com as suas comunidades a variarem e a serem
substituídas gradual e longitudinalmente de acordo com gradientes, igualmente longitudinais,
de características físicas e químicas do sistema – Fig. 4.2.
Nas cabeceiras, com cursos de água, em geral, de pequena dimensão, rodeados por áreas
florestais, a vegetação rípícola reduzida e uma camada de perifiton cobre os substratos. O rio
depende em termos alimentares dos materiais fornecidos pelas zonas florestais envolventes,
pelo que as comunidades de invertebrados de fundo são constituídas por trituradores (que
trituram folhas e outros detritos grosseiros) e colectores (que colectam detritos mais finos,
arrastados pela corrente ou depositados no fundo), sendo os raspadores menos abundantes
(que raspam o perifiton e as superfícies das plantas e pedras). Os predadores (que predam
outros invertebrados) encontram-se também aí, mas em menor número. Os peixes típicos
destas zonas são as trutas e os escalos.
Nos cursos médios, o vale alarga e aumenta a contribuição da bacia hidrográfica em
materiais mais finos e nutrientes – Fig. 4.2. A corrente não é tão forte, o rio tem um curso
sinusoidal na planície, o leito apresenta muitas zonas de deposição de areias e de materiais
finos, pelo que a vegetação e o perifiton são abundantes nas margens e no leito. Assim, os
invertebrados são dominados por colectores e por raspadores, com trituradores e predadores
141
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
em menor proporção. Estes rios são habitados por ciprinídeos como a boga, o barbo e o
ruivaco.
Nos cursos de planície, já meandrizados e de grande desenvolvimento do corredor
fluvial, a massa de água é grande e pouco turbulenta, mas turva, com muitos materiais finos
em suspensão e nutrientes – Fig. 4.2. Como a profundidade aumenta, as plantas estão
circunscritas às zonas marginais e na massa de água domina o plâncton. O fundo está coberto
de depósitos finos e é dominado por colectores de depósito (que colectam os restos orgânicos
depositados nos fundos) e seus predadores. Os peixes típicos desta zona são a carpa comum, o
barbo, a enguia e a taínha.
O RC é um quadro teórico de trabalho, verificando-se variações regionais nos padrões
descritos. Por exemplo, muitas cabeceiras dos rios alentejanos estão inseridas em zonas não
florestadas, de fraco declive e pouca altitude, com substratos arenosos, apresentando
características mais próximas das da zona média de um rio. No entanto, as investigações dos
últimos vinte anos tem vindo a demonstrar a validade do RC em termos gerais.
5.2. Efeitos ecológicos da regularização
PETTS (1988) sistematizou as alterações ecológicas provocadas por uma barragem em
impactes de três ordens, sendo que os de ordem 1 determinam os de ordem 2 e, por sua vez,
estes determinam os impactes de ordem 3 – Fig. 4.7:
1. Impactes de ordem 1: efeito de barreira às deslocações biológicas de espécies
migradoras e residentes, quer para montante quer para jusante; alterações geralmente
profundas introduzidas no regime de caudais naturais; alterações do tipo
granulométrico, quantidade e locais de deposição da matéria sólida transportada pelo
rio; alterações na qualidade da água a jusante, sobretudo quando as descargas são
hipolimnéticas; variações qualitativas e quantitativas no plâncton, por arrastamento de
espécies a partir da albufeira e devido às alterações na composição química da água.
2. Impactes de ordem 2: alterações frequentes na morfologia do canal fluvial e na
granulometria e mosaico espacial de substratos e habitats do leito fluvial; alterações na
disposição, tipo e quantidade de perifiton, macrófitos e cobertura ripária.
142
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
3. Impactes de ordem 3: alterações na composição e biomassa de macroinvertebrados;
alterações na composição e biomassa piscícolas.
IMPACTES DE ORDEM 3
IMPACTES DE ORDEM 2
IMPACTES DE ORDEM 1
Figura 4.7 – Alterações ecológicas provocadas pela existência de uma albufeira, de acordo
com PETTS (1988).
A movimentação da ictiofauna migradora fica em geral impossibilitada porque as
passagens para peixes não existem, não funcionam ou são genericamente pouco eficazes para
espécies migradoras como a lampreia e a enguia. No Inverno não se verificam os caudais de
chamariz no estuário que despoletam o início das migrações, em conjunto com o adequado
estímulo térmico e hormonal. As alterações químicas da água são perturbadoras para muitas
espécies como os salmonídeos e os sáveis. Não tem sido usual serem tidas em conta nas
passagens para peixe as espécies residentes no rio durante todo o ano, as quais realizam
também importantes migrações reprodutoras (sobretudo barbo e boga). Algumas eclusas e
ascensores apresentam boas eficácias de passagem para algumas das espécies residentes, por
exemplo bogas, mas as passagens por bacias sucessivas instaladas em pequenas centrais
hidroeléctricas são vocacionadas essencialmente para salmonídeos e provavelmente
desadequadas para estas espécies.
As perturbações do regime de caudais incluem frequentemente grandes e bruscas
flutuações diárias que arrastam peixes e macroinvertebrados, colocam as posturas a seco e
143
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
diminuem a área molhada utilizável do leito (rio Tejo: FERREIRA e OLIVEIRA, 1996). A
probabilidade de ocorrência de grandes caudais é reduzida, acumulando-se materiais finos nos
leitos a jusante, daí resultando a invasão dos leitos por mata ripária e plantas (rio Sorraia:
FERREIRA e MOREIRA, 1990; rio Sado: MORAIS, 1996). Em albufeiras para fins
agrícolas, as derivações de caudal são frequentemente diminutas de Inverno e máximas de
Verão (rio Raia: VIEIRA et al., 1996). Todas estas perturbações resultam na diminuição geral
da riqueza e biodiversidade, no predomínio de espécies ubíquas e tolerantes, cuja densidade e
biomassa aumentam, tendendo a aumentar a proporção de colectores e de raspadores. As
alterações na qualidade da água levam frequentemente a importantes focos de eutrofização a
jusante, com crescimentos intensos de algas e de macrófitos, bem como ao desaparecimento e
substituição de muitas das espécies originalmente associadas ao sistema fluvial.Os postulados
mais importantes do RC são os seguintes: a cada troço de um rio afluem continuamente os
materiais proveniente dos troços a montante e do meio terrestre envolvente e as fontes
alimentares de cada troço são determinadas por este contínuo de transporte de materiais e de
movimentos de montante para jusante. As barragens alteram profundamente este fluxo
contínuo de água e materiais, quer na quantidade, quer na sua proporção.
O tipo, quantidade e proporção relativa das fontes alimentares determinam os grupos
tróficos de macroinvertebrados instalados no leito do rio (os quatro grupos alimentares
anteriormente descritos e na – Fig. 4.2 – e suas divisões) e por isso estes são rotineiramente
utilizados na avaliação da poluição e de alterações ecológicas do sistema. Por exemplo, se
uma pequena albufeira for interposta num sistema de montanha, o fornecimento a jusante de
folhas e restos vegetais pode ser diminuído, mas o perifiton encontrar condições para se
desenvolver e em consequência diminuiriam os trituradores e aumentariam os raspadores
(albufeiras de Poio e Balsemão: CORTES et al., 1997). Se a albufeira não libertar os caudais
ambientais e diminuir drasticamente o fluxo a jusante, podem diminuir os colectores
filtradores (que colectam os restos orgânicos arrastados pela corrente) e aumentam os
colectores de depósito (albufeiras de Furadouro e Gameiro: VIEIRA et al., 1996). Regimes
irregulares de caudais a jusante resultam em geral em diminuição do número de espécies,
aumento da biomassa e dominância de espécies generalistas e ubíquas (albufeira de Belver:
FERREIRA e OLIVEIRA, 1996).
Do que foi exposto resultam duas observações importantes:
144
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
1. O tamanho, local de descarga e regime de descarga da albufeira são determinantes nos
efeitos a jusante. Um pequeno açude com uma capacidade de retenção muito baixa,
apresenta alterações potencialmente menores no sistema fluvial e pode até ser utilizado
localmente para promover os habitats mais remansados. Uma grande albufeira, com
descargas irregulares, altera profundamente o ecossistema fluvial a jusante. Se a água
descarregada for hipolimnética, serão introduzidas no rio a jusante, de repente, durante o
Verão, águas 10 a 15 ºC mais frias, mais condutivas, mais ácidas e com muito menos
oxigénio dissolvido do que as aí existentes.
2. A posição da albufeira na hierarquia do sistema fluvial é igualmente determinante nos
efeitos sobre os ecossistemas – Fig. 4.8. Uma albufeira instalada nas cabeceiras causará a
jusante uma diminuição acentuada do transporte de materiais orgânicos grosseiros
enquanto uma albufeira instalada na planície quase não altera o tipo de materiais
orgânicos transportados e favorece o estabelecimento de plantas ao desenvolver a linha de
margem, que será pouco declivosa. Uma albufeira situada no curso médio aumenta a
biomassa planctónica, mas diminui a diversidade biótica e a heterogeneidade ambiental do
sistema fluvial.
A mitigação dos efeitos da regularização é assim um tema complexo e de respostas
múltiplas, porque estes efeitos processam-se a médio e longo prazo e são frequentemente
imbricados com outras perturbações com origem em actividades humanas (poluição orgânica,
extracção de inertes, sobrepesca de migradores, entre outras). Assim, entre as acções
mitigadoras de âmbito geral a desenvolver, incluir-se-iam:
1. a implementação de regimes de caudais de manutenção ecológica (de variação mensal e
diária) que mimetizem os regimes naturais originais o mais aproximadamente possível;
2. a instalação de passagens para peixes funcionais e bem adaptadas às nossas espécies,
de acordo com cada sistema fluvial;
3. a implementação de descargas epilimnéticas, cuja qualidade da água se aproxima mais
da do rio receptor;
4. a monitorização biológica dos rios regulados e o desenvolvimento de programas de
medidas adaptadas a cada grupo biológico e a cada sistema fluvial.
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Figura 4.8 – Mudanças relativas no sistema fluvial entre as cabeceiras e a foz de acordo com o RC
(linha a cheio) e alterações produzidas pela barragem nas cabeceiras, no curso médio e no curso
final (linhas a tracejado), postuladas por WARD e STANFORD (1983) para os seguintes
parâmetros: variação térmica annual, relação CPOM/FPOM, biomassa de plâncton, plantas
aquáticas, diversidade biológica e heterogeneidade ambiental (adaptada de WARD e
STANFORD, 1983).
146
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
5.3. Passagens para peixes
Ao representarem uma barreira à livre movimentação das espécies e materiais que
naturalmente se deslocam ou são deslocados ao longo do sistema fluvial, entre as cabeceiras e
a foz, as barragens constituem importantes factores de alteração, e frequentemente de
degradação, dos ecossistemas e espécies. Foi o desaparecimento em muitos casos, de espécies
piscícolas de grande interesse económico (por exemplo a lampreia, o esturjão, o salmão e o
sável), que suscitou o interesse pela construção de dispositivos de transposição para peixes,
em barragens. Contudo, a construção de passagens para peixes é um fenómeno bastante
recente em Portugal, sendo a mais antiga uma passagem tipo Denil instalada na barragem de
Belver aquando da sua construção em 1947, mais tarde destruída aquando da instalação da
eclusa agora existente.
Existem presentemente 10 passagens para peixes (PPP) instaladas nos cursos de água
principais do país, e pertencentes a três tipos: um ascensor em Touvedo (Lima), passagens por
bacias sucessivas em Penide (Cávado), Coimbra (Mondego) e Grela (Vouga) e eclusas de
Borland em Crestuma-Lever, Carrapatelo, Régua, Valeira, Pocinho (Douro) e Belver (Tejo).
Contudo, em Portugal, o conhecimento incipiente em relação à ecologia e movimentos de
muitas espécies e sobretudo à sua relação eco-hidráulica com o sistema de passagem
escolhido, deu origem à instalação de dispositivos de eficácia desconhecida ou
comprovadamente ineficazes.
Embora existam algumas referências pontuais relativas à ineficácia das eclusas para
peixes, o número de trabalhos em que se procura determinar as causas eco-hidráulicas dessa
mesma ineficácia é muito pequeno. Já nos anos 90, as eclusas de Crestuma-Lever e Belver,
respectivamente nos rios Douro e Tejo, foram objecto de estudo, tendo-se concluído pela sua
baixa eficácia, sobretudo da primeira. Durante 1998-99, foi avaliada a utilização do ascensor
de Touvedo, tendo-se verificado que o número de efectivos que passaram o ascensor
(maioritariamente ciprinídeos), é muito baixo. Entre as razões possíveis para este facto,
contam-se as reduzidas velocidades encontradas no canal colector do ascensor, as variações
bruscas diárias impressas pelo regime de descargas do Touvedo (desvirtuando a sincronia dos
ciclos biológicos naturais) e a existência de leitos de desova activos a montante de Ponte da
Barca, que as espécies podem também utilizar.
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ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
É fundamental a implementação de dispositivos de transposição para peixes no maior
número possível de barragens, obrigando-se a entidade gestora a assegurar a sua eficácia ecohidráulica e a sua manutenção adequada em termos hidráulicos e biológicos, garantindo
condições de limpeza e os caudais de chamariz certos, nos períodos certos (estes aspectos não
se encontram presentemente regulamentados).
Em relação aos efeitos ecológicos dos pequenos aproveitamentos hidroeléctricos (PAH),
e bem assim de outras obras transversais fluviais, tem sido igualmente citado o efeito barreira
e suas consequências, como sejam a compartimentação de diferentes classes de idade da
mesma espécie a montante e a jusante, desequilíbrios na taxa de recrutamento e na estrutura
etária, e o desaparecimento de certas espécies a montante.
Ao todo, foram realizados estudos em 47 sistemas fluviais afectados por PAH ou outras
pequenas estruturas hidráulicas transversais. No total foram capturadas 10 espécies, sendo
geralmente dominantes o escalo, barbo, boga, ruivaco e truta, ou seja, trata-se de segmentos
fluviais em geral de carácter ciprinícola ou de transição, raramente salmonícolas. Verificou-se
a existência de diferenças estatisticamente significativas nas populações de trutas a montante
e a jusante, quando considerados os PAH sem PPP; e nas populações de enguia pertencentes
aos PAH na sua totalidade, para aqueles que possuíam e aos que não possuíam PPP e para
aqueles que possuíam PPP não eficientes. Nos PAH com PPP consideradas eficientes não se
verificou a existência de diferenças significativas montante-jusante para nenhuma das
espécies. A presença de PAH sem PPP eficientes parece estar relacionada com a existência de
variações intra-específicas nas classes de idade e com uma tendência para a diminuição geral
da diversidade comunitária e penetração do sistema fluvial por espécies exóticas, pelo que é
importante um esforço acrrescido de regulamentação e fiscalização do estabelecimento de
PPP e garantia da sua manutenção e bom funcionamento.
Existem presentemente 24 PAH equipados com passagens para peixes (PPP), todos com
bacias sucessivas. O Quadro 4.4. indica as características eco-hidráulicas recomendadas
aquando da elaboração do projecto de uma PPP e para avaliação da adeuqabilidade de PPP já
em funcionamento. Repare-se que a literatura da especialidade aponta para valores
recomendados de espécies de salmonídeos e de clupeídeos (sáveis) mas são desconhecidos
parâmetros hidráulicos adequados às espécies mais frequentes nestes sistemas fluviais, e que
igualmente necessitam de migrar para realizar as suas desovas.
148
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Quadro 4.4. Características hidráulicas recomendadas para passagens para peixes por bacias
sucessivas de acordo com Larinier (1992). (1) salmão e truta marisca (2) truta comum (3) sável (4)
salmonídeos de rio em geral
CARACTERÍSTICAS HIDRÁULICAS
Declive do canal
Desnível entre bacias
UNIDADES
m/m
m
Comprimento das bacias
m
Profundidade das bacias
m
Altura média da água
Energia dissipada/unidade de volume
m
W/m3
Caudal
m3/s
Velocidade média
Área dos orifícios
m/s
m2
Altura dos orifícios
Largura dos orifícios
Caudal dos orifícios
m
m
m3/s
Carga sobre o descarregador
Largura do descarregador
m
m
VALORES RECOMENDADOS
0,07-0,2
0,30-0,40 (1)
± 0,30 (2)
0,15-0,30 (3,4)
2,0-3,0 (1)
1,2-5,0 (2)
1,5-4,5 (3,4)
Mínimo 1 (1)
Mínimo 0,60 (2)
1,0-1,6
± 200 (1)
± 150 (2)
1 a 5% do caudal do curso
de água
Não inferior a 0,1
0,10-0,15 (1)
0,05-0,10 (2,4)
0,15-0,30
0,15-0,30
± 25% do caudal escoado
na passagem
0,42-0,75
Não inferior a 0,15
0,30-0,40 (1)
0,20 (2,4)
0,40-0,50 (3)
Com base nas características hidráulicas e de actractividade das PPP, na presença de
obstruções a jusante e no estado de conservação, assoreamento e colmatação das suas bacias,
20% das PPP actuais foram classificadas como apresentando boas condições de passagem,
25% condições aceitáveis, enquanto as restantes são inoperacionais ou apresentam condições
de funcionamento inaceitáveis (Figura 4.9).
5.4. Implementação de regimes de caudais ecológicos
Os métodos de determinação do caudal ecológico estão divididos em três grandes
categorias: métodos baseados em registos históricos de caudais, na relação entre parâmetros
hidráulicos e o caudal e nas relações entre o habitat e o caudal (Jowett, 1997).
149
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Figura 4.9. Localização dos PAH avaliados quanto às condições de funcionamento e ecohidráulicas
(Ferreira et al., 2000)
150
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
i) Métodos baseados em registos de caudais
Estes métodos, como o nome indica, baseiam-se em registos históricos de caudais para
definir o regime de caudais ecológicos a manter no curso de água (Gordon et al., 1992). São
específicos
para
as
espécies
e
locais
para
os
quais
foram
desenvolvidos
(Orth & Leonard, 1990). Como exemplos temos os métodos de Tennant ou de Montana, Nova
Inglaterra ou do Caudal Aquático Básico (Aquatic Base Flow, ABF), Northern Great Plains
Resource Program (NGPRP), Hope e 7Q10 (Alves, 1993). Recentemente, surgiram alguns
métodos designados por eco-hidrológicos, nos quais se assume que as comunidades
biológicas estão estruturadas em função do regime de caudais do seu passado histórico
próximo pelo que o regime de caudais ecológicos é calculado como o caudal mínimo histórico
de dada secção fluvial.
ii) Métodos baseados na relação entre parâmetros hidráulicos e o caudal
Os métodos desta categoria relacionam os parâmetros hidráulicos associados à
geometria do canal com o caudal. A relação entre o habitat e o caudal obtém-se com base no
estabelecimento de secções transversais onde se determina a largura do canal, profundidades,
velocidades e perímetro molhado. A relação obtida geralmente não tem em conta as
preferências de habitat das espécies ao longo do seu ciclo de vida (Alves, 1993; Jowett,
1997). Entre os métodos pertencentes a esta categoria contam-se o Método do Colorado ou
da Região 2 do U.S.F.W.S., o Método de Idaho, o Método da Região 4 do U.S.F.W.S. e o
Método de Perímetro Molhado (Alves, 1993).
iii) Métodos baseados na relação entre o habitat e o caudal
Os métodos baseados na relação entre o habitat e o caudal utilizam curvas de preferência de
habitat de uma espécie, numa determinada fase do seu ciclo de vida, para estimar a variação
de habitat disponível em função do caudal. De acordo com alguns autores, a base biológica
destes métodos faz deles os mais defensáveis e indicados para a determinação de caudais
ecológicos apesar de outros autores contestarem algumas das premissas biológicas mais
utilizadas pelo método (Jowett, 1997). Como exemplos temos os métodos WRRI Cover,
Washington e Califórnia (também conhecidos por Métodos da Área Preferida), Oregon
(também chamado de Método da Largura Utilizável) e a Metodologia Incremental (Alves,
1993). De entre estes métodos, a Metodologia Incremental é o mais conhecido e nos Estados
151
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Unidos é a metodologia mais comum, sendo reconhecida em 38 Estados e a mais usada em 24
destes (Jowett, 1997).
A determinação de caudais ecológicosem Portugal Continental tem-se baseado no
método dos registos de caudais, assumindo-se que uma dada percentagem do módulo anual
garante o pretendido grau de integridade ecológica. A partir de legislação em vigor desde
1989, os caudais são estabelecidos do seguinte modo:
a) Pequenos aproveitamentos mini-hídricos e outros a norte do Tejo: valor não
inferior a 2,5 a 5% do caudal modular do curso de água, a amnter todo o ano,
sempre que o caudal instantâneo que ocorra em regime natural o permita;
b) Pequenos aproveitamentos hidroagrícolas e outros a sul do Tejo: valor igual ou
superior a 5% do módulo, em ano médio, sempre e só se esse valor for inferior ou
igual ao caudal médio mensal, caso contrário deverá manter-se o caudal médio
desse mês, podendo eventualmente ser um caudal naturalmente nulo.
Para grandes aproveitamento hidráulicos entretanto efectuados ou a efectuar – Enxoé,
Alqueva, Alto Lindoso e Touvedo, têm sido ensaiados e definidos outros métodos
alternativos, caso a caso.
Como se pode constatar, o caudal ecológico praticado é constante, ou seja, não
representa um regime mensal, e não assenta em métodos eco-hidráulicos ou eco-hidrológicos,
pelo que se desconhece se é adequado para a sobrevivência e integridade das espécies
piscícolas. Finalmente, não existe a obrigatoriedade do usufrutuário da obra hidráulica de
demonstrar a sua manutenção, por exemplo, através de um registo constante do caudal
praticado.
6. OBRAS DE ENGENHARIA FLUVIAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS ECOLÓGICAS
As obras de engenharia fluvial de maior expressão, e que envolvem mais modificações
directas, incluem alargamento do leito do rio, linearização, construção de aterros e de diques,
protecção de margens, construção de canais, dragagens do leito fluvial, limpeza de vegetação
aquática e da galeria ribeirinha e remoção de obstáculos. Os rios são assim progressivamente
realinhados, estreitados, comprimidos e alterados, com consequências degradadoras para as
suas comunidades piscícolas.
As obras de engenharia fluvial provocam alterações em geral drásticas da morfologia
fluvial, procedendo-se muitas vezes à utilização de maquinaria pesada para movimentações
152
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
do solo e alterações da secção fluvial e do perfil do leito. Quando se verificam estas
alterações, o curso de água tende a reagir, procedendo a ajustamentos de maior ou menor
amplitude, até atingir de novo um equilíbrio estável do seu perfil, ou eventualmente entrar em
ruptura.
Por exemplo, a linearização leva em geral a um aumento do declive do fundo devido
ao encurtamento do segmento fluvial, tendo como consequência o incremento da capacidade
de transporte local e do caudal sólido do sistema, podendo desenvolver-se uma frente de
erosão que se desloca para montante. Se ocorrer um aumento de caudal sólido, as zonas de
jusante são alimentadas por um excesso de sedimentos, podendo não ter capacidade de
transporte suficiente, verificando-se fenómenos de deposição generalizada, aumento das cotas
de fundo e dos níveis de cheia. Por sua vez, a erosão a a montante provoca o o rebaixamento
dos níveis de base dos afluentes.
Quanto ao alargamento e aprofundamento de um curso de água, o aumento da secção
de vazão provoca uma redução significativa da velocidade de escoamento e a perda de
capacidade de transporte do sistema, ocorendo deposições de sedimentos com a formação de
estruituras geomórficas associadas, como ilhas ou mouchões, ou padrões geomorfológicos do
tipo entrelaçado, em período de estiagem.
As dragagens e extracções de ineertes podem provocar erosões no leito e nas margens,
se a capacidade de transporte do curso de água não excede a quantidade dos sedimentos
retirados. Quando o material extraído é grosseiro, o equilíbrio da camada superficial do leito
do rio é geralmente rompido, igualmente levando à erosão do leito e à escavação das
fundações de estruturas como pontes e viadutos.
A galeria ripícola e a vegetação aquática são um elemento estrutural determinante da
paisagem e uma componente essencial dos ecossistemas fluviais. Muito mais do que uma
simples componente florística, a mata ripária representa a interface activa entre os
ecossistemas terrestres e aquáticos e desempenha funções fundamentais: fornece habitats
únicos para o biota, fomenta a diversidade e a produtividade biológicas, contribui com matéria
alimentar para o sistema aquático, retem e inactiva os poluentes e nutrientes oriundos de
fontes envolventes, influencia o movimento e migrações de aves e mamíferos, actua como
bioindicador de alterações climáticas e cria zonas de mais valia paisagística (Petts, 1990;
Cortes & Ferreira, 1998).
153
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
Entre as características mais importantes da galeria ripícola, incluem-se: a sua
contribuição alimentar para o metabolismo do sistema aquático através da queda da folhada
(Cortes et al., 1995); as suas funções estruturantes de habitats aquáticos através das raízes e
troncos dentro de água e do ensombramento do copado (Gregory, 1992); o seu papel de
filtração de poluentes e nutrientes oriundos do meio terrestre (Pinay et al., 1990); e o seu
papel de regulação das ligações químicas entre a água superficial e o nível freático (Pinay &
Decamps, 1988).
Presentemente, as principais interferências antropogénicas nas galerias ripícolas
portuguesas são as alterações dos perfis transversais e longitudinais dos sistemas fluviais que
decorrem de actividades de reabilitação e uso de margens, incluindo corte e queima de
vegetação e dragagens do leito fluvial. Estas actividades são desenvolvidas tendo por
objectivos a extracção de inertes, a protecção contra cheias, a obtenção de áreas de uso
urbano, agrícola ou animal e ainda de uma forma geral a promoção de locais de lazer e pesca.
De uma forma geral, estas actividades afectam profundamente a conectividade entre os
corredores fluviais e os ecossistemas terrestres envolventes (Piégay & Maridet, 1994)
Para além disso, a regularização fluvial não favorece a existência de ‘caudais de
limpeza’ e consequente arrastamento dos propágulos vegetais, comprometendo o pioneirismo
e a meta-estabilidade da galeria ripícola e favorecendo comportamentos vegetais invasores,
nomeadamente de espécies exóticas (Johnson, 1994), enquanto a abstracção de água para rega
e outros usos humanos diminuem a conexão do sistema fluvial superficial com os níveis
freáticos, com consequente quebra da conectividade vertical (Kondolff, 1995).
Dado que os cursos de água constituem um contínuo fluvial entre as cabeceiras e afoz
em constante ligação com os sistemas laterais e freáticos, os efeitos das obras de engenharia
fluvial podem repercurtir-se em cadeia, através da redução, eliminação ou promoção de
espécies ou grupos de espécies. Pode ainda acontecer que dadas espécies vejam certas partes
do seu ciclo de vida impedido, por exemplo, pela falta de leitos de desova ou por
desaparecimento de abrigos para os juvenis.
As obras de engenharia fluvial podem afectar as comunidades biológicas de forma
directa (corte, destruição, fuga) ou indirecta (por deposição ou erosão excessivas ou
inadequadas de materiais no leito do rio e outras variações associadas ao desajustamento
geomorfológico do sistema). As dragagens, aprofundamento do leito e criação de diques são
as obras qua mais afectam a vegetação aquática e mata ribeirinha, com importantes
154
ESTUDO ESTRATÉGICO PARA A GESTÃO DAS PESCAS CONTINENTAIS
PAMAF MEDIDA 4 – IED, ACÇÃO 4.4: ESTUDOS ESTRATÉGICOS
consequências para as comunidades faunísticas que lhes estão associadas, nomeadamente de
aves, mamíferos e peixes. As alterações e intervenções no leito reduzem drasticamente a
fauna de invertebrados que o habita e que constitui a fonte alimentar de muitas espécies de
peixes.
Também as alterações a nível do transporte sólido, deposição de sedimentos, e
aumento de temperatura devido a um aumento da exposição da superfícies aquáticas,
modificam profundamente os habitats aquáticos existentes e alteram as comunidades
piscícolas que sobrevivem, e que sofrem um lento ajustamento paralelo ao da geomorfologia
do canal, em função da capacidade de recolonização dos habitats e troço fluvial afectados.
A re-estabilidade do sistema fluvial, depois da intervenção, depende de vários
factores, incluindo (i) características do próprio sistema, como o caudal, a área drenada e a
sinuosidade, (ii) factores da intervenção, como o comprimento do troço alterado, o declive e o
secção resultantes e medidas mitigadoras efectuadas, e (iii) factores de reacção, como a
capacidade de recuperação da vegetação ribeirinha.
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