Akropolis 28

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I
O MITO
A história dos atenienses nasce do mito. Ainda levaria muitos
séculos antes que aparecesse um Tucídides para fixar as regras
com que escrever a história. Então, o povo de Atenas, assim
como qualquer outro em qualquer parte do mundo, contava
suas próprias origens com histórias que mais pareciam fábulas; mas não se tratava de histórias inventadas ex novo: eram
o reflexo de verdades parciais, deturpadas e remotas, de fatos
que já era impossível rastrear, repassados oralmente de uma
geração para outra, quase certamente sob a forma de bailados
e cantigas. E nessas histórias a origem de tudo era uma deusa,
que afinal era uma coisa só com a cidade, uma vez que tinha
praticamente o mesmo nome: Atená. E um nome muito antigo,
como indica a sílaba final -na, um sufixo que, por exemplo,
encontramos nos nomes etruscos (Vipina, Rasena, Fufluna)
e nos mais arcaicos dos nomes dos centros pré-gregos como
Mykenai, Micenas, a mítica capital de Perseu, Atreu e Agamêmnon.
A deusa nascera sem a intervenção de um útero materno,
fruto de uma raríssima paternidade virginal: surgira, na verdade, da cabeça de Zeus, como podemos ver em muitos vasos
antigos: uma figurinha um tanto rígida e de armas em punho
que afligira o deus-pai com uma longa e insuportável enxaqueca afinal resolvida por Hefesto, o deus serralheiro, que rachara
a cabeça de Zeus com um poderoso golpe. Hefesto, entretanto,
não demorara a cobrar o seu preço pela operação de “cirurgia
craniana”, pedindo Atená em casamento.
Zeus concordou mas, uma vez que Hefesto era muito
feio, coxo e desajeitado, permitiu que a filha se defendesse
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e, se ele insistisse, repelisse os seus ataques. Trata-se de um
detalhe muito interessante, pois representa uma espécie de reconhecimento de livre escolha para uma mulher no que diz
respeito ao casamento. Hefesto pulou então em cima da nova
deusa, mas o que devia ser um amplexo amoroso tornou-se na
verdade um feroz corpo-a-corpo. O coxo estava tão excitado
que, só de tocar na jovem, ejaculou e o seu sêmen se espalhou
no chão. Mas uma vez que o sêmen de um deus, como nos
conta Homero, nunca fica desperdiçado, a terra incubou uma
criatura e gerou-a no devido tempo.
Atená tomou conta do menino, escondeu-o numa caixa
que entregou às filhas de Cécropes, o primeiro rei de Atenas,
avisando que de forma alguma deveriam abri-la; as jovens, no
entanto, não conseguiram resistir e, logo que a deusa se afastou, abriram a caixa e se viram diante de uma figura fantástica:
um menino com cauda de serpente. Segundo outra versão do
mito, por sua vez, na caixa havia uma enorme cobra que tomava conta do menino e que logo atacou as imprudentes mocinhas. Seja como for, as jovens ficaram tão pasmas e assustadas
que se jogaram do topo da acrópole e morreram.
O menino foi chamado Erictônio e, mais tarde, tornou-se
rei de Atenas. O nome Erictônio guarda em si os conceitos de
“desavença” e “terra”, e pode ser que daí tenha nascido a lenda do deus Hefesto que espalha o seu sêmen no chão durante a
luta com Atená. A própria serpente, por sua vez, também é um
animal subterrâneo, pois acreditava-se que passasse o inverno
escondida na terra. No templo do Erectéion, que surgia na acrópole e guardava as relíquias das mais remotas origens da cidade,
havia uma cobra que era objeto de culto e de oferendas votivas.
Os povos antigos, particularmente os gregos, não tinham
uma teologia rígida e dogmas de fé: as histórias a respeito da
sua religião estavam em constante evolução e transformação,
adaptando-se às mudanças da sociedade e às exigências políticas e econômicas.
De qualquer maneira, a história de Erictônio é uma das
fábulas mais típicas, cujo significado mais profundo – presente até na Bíblia, na Epopéia de Gilgamesh, assim como em mil
outros contos de todos os tempos e culturas – é que o homem
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não pode tentar desvendar os mistérios dos deuses, pois do
contrário será duramente punido com castigos terríveis como
a cegueira ou medonhas metamorfoses.
Mesmo nessas aterradoras proibições, no entanto, podia haver algumas exceções, como no caso dos iniciados nos
cultos secretos, justamente chamados de “mistérios”; e não é
por acaso que em muitas cenas desses antigos mistérios que
chegaram até nós encontramos amiúde cestas encobertas ou
caixas fechadas que os iniciados desvendam no tempo certo.
Atená, portanto, com a presença de um menino que, embora não gerado por ela, era seu pelo menos sob o aspecto moral, ficava intimamente ligada à cidade; e este liame tornou-se
ainda mais profundo durante o reinado de Erictônio (segundo
outros, de Erecteu, pois estes dois reis costumam ser confundidos), quando a deusa enfrentou Poseidon, irmão de Zeus e
senhor do mar, para conseguir o padronato da Ática. Venceria
quem presenteasse os habitantes com a dádiva mais preciosa.
Poseidon rasgou então o chão com o seu tridente e dele fez
surgir o cavalo, animal maravilhoso, invencível na corrida,
poderoso na batalha. Atená, no entanto, saiu-se ainda melhor:
bateu no chão com a sua lança e dele fez brotar uma plantinha
de folhas prateadas que logo ficou carregada de pequenas e
aparentemente insignificantes bagas escuras.
Era a oliveira: a mais nobre entre todas as plantas que
crescem às margens do Mediterrâneo. Frugal e paciente, capaz
de resistir à seca e de germinar depois de ser mil vezes destruída pelo fogo, e sobretudo generosa. A sua madeira é tão forte e
dura quanto o ferro, tanto assim que no começo era usada para
esculpir as imagens dos deuses (os misteriosos xoana), e dos
seus frutos se obtinha um dos produtos certamente mais preciosos da terra: o azeite, que os antigos usavam como alimento
muito nutritivo, como fortificante dos músculos dos atletas e
dos guerreiros, como combustível para iluminar as casas dos
homens e os templos dos deuses.
Por decisão unânime dos habitantes, Atená foi a vencedora e desde então o seu santuário ergueu-se em cima do
penhasco mais alto da cidade, aquele que os antigos Micênicos chamavam de ásty e os gregos das épocas posteriores de
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akropolis. Ela mesma cuidou de torná-lo inexpugnável, amontoando uma em cima das outras rochas enormes (uma caiu no
caminho, aliás, e formou a colina do Licabeto). Ninguém poderia mais tirá-la de lá. Graças àquele presente, quando o homem ateniense temperava com azeite a sua comida, ou ungia
o corpo antes de enfrentar uma dura prova, tinha a impressão
de entrar de alguma forma em contato com a deusa, de compartilhar a sua força e sabedoria.
O que será que se esconde atrás de lendas tão elaboradas e
complexas? A chave do enigma encontra-se provavelmente no
período um tanto obscuro que vai do fim da Idade Micênica até
o começo do período clássico. Continuamos sem saber ao certo
o que provocou, por volta do século XII a.C., a queda das poderosas fortalezas de Micenas, Tirinta, Argos, Tiro, Pilos, Gla,
Orcômeno. Os gregos guardavam a vaga lembrança de uma mítica invasão que chamavam de “volta dos Heráclidas” e até uns
poucos anos atrás atribuía-se a derrocada à invasão dos dórios,
povo de língua grega que mais tarde acabaria dominando o Peloponeso, mas atualmente já não temos certeza disso. Muitos
acham que não houve invasão alguma, pois não se encontra
qualquer prova dela, embora palácios e cidadelas tenham sido
queimados e uma civilização inteira tenha desaparecido.
Apesar disso, nem em toda parte os acontecimentos parecem ter seguido o mesmo caminho: Atenas, em particular,
não demonstra ter enfrentado qualquer abalo traumático capaz
de alterar a normal continuidade com o passado. Podemos dizer o mesmo a respeito de determinadas localidades da ilha de
Eubéia e de locais mais afastados, como Chipre. Mesmo assim
houve de fato mudanças radicais e as acrópoles, as cidadelas
fortificadas, tornaram-se o símbolo dessa transformação: enquanto na idade Micênica elas eram a sede do palácio real, em
épocas posteriores tornaram-se o local da morada dos deuses,
dos templos e dos santuários. Cécrops, Erictônio, Erecteu, e
mais tarde Egeu e Teseu, protagonista da saga cretense do Minotauro, foram provavelmente os reis micênicos que reinaram
num palácio da Idade do Bronze cujos resquícios foram encontrados na acrópole de Atenas. É possível que a deusa mais
tarde conhecida pelo nome de Atená fosse a protetora deles e
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provavelmente a sua imagem era adorada em algum santuário dentro do palácio. Após o desaparecimento dos reis e do
paço micênico, a divindade protetora ficou, identificando-se
primeiro com a fortaleza e depois com a cidade.
Lembramos agora há pouco Egeu e Teseu, que são (principalmente Teseu) os mais famosos entre os reis atenienses
do período arcaico. Teseu, com efeito, foi o herói nacional do
povo de Atenas e da Ática, e o protagonista de um rico ciclo
épico cuja fama e prestígio só foram superados pela epopéia
dos doze trabalhos de Hércules. A versão mais conhecida da
lenda conta que seu pai Egeu, voltando de Delfos, decidiu passar por Trezena, uma cidadezinha do golfo Sarônico não muito
longe de Atenas, para consultar Piteu, que reinava na cidade;
este embebedou-o e em seguida colocou em sua cama a filha
Etra. No dia seguinte Egeu seguiu viagem, mas deixou com
Etra a sua espada e as sandálias, escondendo-as sob uma grande pedra. Se daquela união nascesse um filho, algum dia ele
poderia reconhecê-lo pela espada e pelas sandálias.
O filho nasceu, foi chamado Teseu e, desde pequeno,
demonstrou o seu valor. Com efeito, quando Hércules foi visitar Piteu e despiu a pele de leão deixando-a em cima de
um banquinho, o menino pegou um machado e atirou-se para
cortar a cabeça da fera. lnstruído pela mãe, tinha apenas dezesseis anos quando encontrou a grande pedra, levantou-a e
partiu para Atenas com as sandálias e a espada do pai. Durante a viagem enfrentou toda espécie de perigos, tendo de
matar animais selvagens como a Porca de Crômion, assassinos e ladrões sanguinários como Procrusto e Pitocamptes e,
finalmente, capturar vivo o formidável touro de Creta, que
estava arrasando a região de Maratona, para depois sacrificálo ao deus Apolo. No fim, quando chegou a Atenas, foi recebido pelo povo com as maiores honrarias; a rainha Medéia,
no entanto, enciumada ao ser informada da sua verdadeira
identidade, convenceu Egeu a convidá-lo ao palácio para em
seguida envenená-lo. Mas justamente quando estava levando
aos lábios a taça com o veneno, Egeu reconheceu a espada e
as sandálias, e com um golpe derrubou a taça, gritando: “Não
beba, meu filho!”.
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