I O MITO A história dos atenienses nasce do mito. Ainda levaria muitos séculos antes que aparecesse um Tucídides para fixar as regras com que escrever a história. Então, o povo de Atenas, assim como qualquer outro em qualquer parte do mundo, contava suas próprias origens com histórias que mais pareciam fábulas; mas não se tratava de histórias inventadas ex novo: eram o reflexo de verdades parciais, deturpadas e remotas, de fatos que já era impossível rastrear, repassados oralmente de uma geração para outra, quase certamente sob a forma de bailados e cantigas. E nessas histórias a origem de tudo era uma deusa, que afinal era uma coisa só com a cidade, uma vez que tinha praticamente o mesmo nome: Atená. E um nome muito antigo, como indica a sílaba final -na, um sufixo que, por exemplo, encontramos nos nomes etruscos (Vipina, Rasena, Fufluna) e nos mais arcaicos dos nomes dos centros pré-gregos como Mykenai, Micenas, a mítica capital de Perseu, Atreu e Agamêmnon. A deusa nascera sem a intervenção de um útero materno, fruto de uma raríssima paternidade virginal: surgira, na verdade, da cabeça de Zeus, como podemos ver em muitos vasos antigos: uma figurinha um tanto rígida e de armas em punho que afligira o deus-pai com uma longa e insuportável enxaqueca afinal resolvida por Hefesto, o deus serralheiro, que rachara a cabeça de Zeus com um poderoso golpe. Hefesto, entretanto, não demorara a cobrar o seu preço pela operação de “cirurgia craniana”, pedindo Atená em casamento. Zeus concordou mas, uma vez que Hefesto era muito feio, coxo e desajeitado, permitiu que a filha se defendesse 25 e, se ele insistisse, repelisse os seus ataques. Trata-se de um detalhe muito interessante, pois representa uma espécie de reconhecimento de livre escolha para uma mulher no que diz respeito ao casamento. Hefesto pulou então em cima da nova deusa, mas o que devia ser um amplexo amoroso tornou-se na verdade um feroz corpo-a-corpo. O coxo estava tão excitado que, só de tocar na jovem, ejaculou e o seu sêmen se espalhou no chão. Mas uma vez que o sêmen de um deus, como nos conta Homero, nunca fica desperdiçado, a terra incubou uma criatura e gerou-a no devido tempo. Atená tomou conta do menino, escondeu-o numa caixa que entregou às filhas de Cécropes, o primeiro rei de Atenas, avisando que de forma alguma deveriam abri-la; as jovens, no entanto, não conseguiram resistir e, logo que a deusa se afastou, abriram a caixa e se viram diante de uma figura fantástica: um menino com cauda de serpente. Segundo outra versão do mito, por sua vez, na caixa havia uma enorme cobra que tomava conta do menino e que logo atacou as imprudentes mocinhas. Seja como for, as jovens ficaram tão pasmas e assustadas que se jogaram do topo da acrópole e morreram. O menino foi chamado Erictônio e, mais tarde, tornou-se rei de Atenas. O nome Erictônio guarda em si os conceitos de “desavença” e “terra”, e pode ser que daí tenha nascido a lenda do deus Hefesto que espalha o seu sêmen no chão durante a luta com Atená. A própria serpente, por sua vez, também é um animal subterrâneo, pois acreditava-se que passasse o inverno escondida na terra. No templo do Erectéion, que surgia na acrópole e guardava as relíquias das mais remotas origens da cidade, havia uma cobra que era objeto de culto e de oferendas votivas. Os povos antigos, particularmente os gregos, não tinham uma teologia rígida e dogmas de fé: as histórias a respeito da sua religião estavam em constante evolução e transformação, adaptando-se às mudanças da sociedade e às exigências políticas e econômicas. De qualquer maneira, a história de Erictônio é uma das fábulas mais típicas, cujo significado mais profundo – presente até na Bíblia, na Epopéia de Gilgamesh, assim como em mil outros contos de todos os tempos e culturas – é que o homem 26 não pode tentar desvendar os mistérios dos deuses, pois do contrário será duramente punido com castigos terríveis como a cegueira ou medonhas metamorfoses. Mesmo nessas aterradoras proibições, no entanto, podia haver algumas exceções, como no caso dos iniciados nos cultos secretos, justamente chamados de “mistérios”; e não é por acaso que em muitas cenas desses antigos mistérios que chegaram até nós encontramos amiúde cestas encobertas ou caixas fechadas que os iniciados desvendam no tempo certo. Atená, portanto, com a presença de um menino que, embora não gerado por ela, era seu pelo menos sob o aspecto moral, ficava intimamente ligada à cidade; e este liame tornou-se ainda mais profundo durante o reinado de Erictônio (segundo outros, de Erecteu, pois estes dois reis costumam ser confundidos), quando a deusa enfrentou Poseidon, irmão de Zeus e senhor do mar, para conseguir o padronato da Ática. Venceria quem presenteasse os habitantes com a dádiva mais preciosa. Poseidon rasgou então o chão com o seu tridente e dele fez surgir o cavalo, animal maravilhoso, invencível na corrida, poderoso na batalha. Atená, no entanto, saiu-se ainda melhor: bateu no chão com a sua lança e dele fez brotar uma plantinha de folhas prateadas que logo ficou carregada de pequenas e aparentemente insignificantes bagas escuras. Era a oliveira: a mais nobre entre todas as plantas que crescem às margens do Mediterrâneo. Frugal e paciente, capaz de resistir à seca e de germinar depois de ser mil vezes destruída pelo fogo, e sobretudo generosa. A sua madeira é tão forte e dura quanto o ferro, tanto assim que no começo era usada para esculpir as imagens dos deuses (os misteriosos xoana), e dos seus frutos se obtinha um dos produtos certamente mais preciosos da terra: o azeite, que os antigos usavam como alimento muito nutritivo, como fortificante dos músculos dos atletas e dos guerreiros, como combustível para iluminar as casas dos homens e os templos dos deuses. Por decisão unânime dos habitantes, Atená foi a vencedora e desde então o seu santuário ergueu-se em cima do penhasco mais alto da cidade, aquele que os antigos Micênicos chamavam de ásty e os gregos das épocas posteriores de 27 akropolis. Ela mesma cuidou de torná-lo inexpugnável, amontoando uma em cima das outras rochas enormes (uma caiu no caminho, aliás, e formou a colina do Licabeto). Ninguém poderia mais tirá-la de lá. Graças àquele presente, quando o homem ateniense temperava com azeite a sua comida, ou ungia o corpo antes de enfrentar uma dura prova, tinha a impressão de entrar de alguma forma em contato com a deusa, de compartilhar a sua força e sabedoria. O que será que se esconde atrás de lendas tão elaboradas e complexas? A chave do enigma encontra-se provavelmente no período um tanto obscuro que vai do fim da Idade Micênica até o começo do período clássico. Continuamos sem saber ao certo o que provocou, por volta do século XII a.C., a queda das poderosas fortalezas de Micenas, Tirinta, Argos, Tiro, Pilos, Gla, Orcômeno. Os gregos guardavam a vaga lembrança de uma mítica invasão que chamavam de “volta dos Heráclidas” e até uns poucos anos atrás atribuía-se a derrocada à invasão dos dórios, povo de língua grega que mais tarde acabaria dominando o Peloponeso, mas atualmente já não temos certeza disso. Muitos acham que não houve invasão alguma, pois não se encontra qualquer prova dela, embora palácios e cidadelas tenham sido queimados e uma civilização inteira tenha desaparecido. Apesar disso, nem em toda parte os acontecimentos parecem ter seguido o mesmo caminho: Atenas, em particular, não demonstra ter enfrentado qualquer abalo traumático capaz de alterar a normal continuidade com o passado. Podemos dizer o mesmo a respeito de determinadas localidades da ilha de Eubéia e de locais mais afastados, como Chipre. Mesmo assim houve de fato mudanças radicais e as acrópoles, as cidadelas fortificadas, tornaram-se o símbolo dessa transformação: enquanto na idade Micênica elas eram a sede do palácio real, em épocas posteriores tornaram-se o local da morada dos deuses, dos templos e dos santuários. Cécrops, Erictônio, Erecteu, e mais tarde Egeu e Teseu, protagonista da saga cretense do Minotauro, foram provavelmente os reis micênicos que reinaram num palácio da Idade do Bronze cujos resquícios foram encontrados na acrópole de Atenas. É possível que a deusa mais tarde conhecida pelo nome de Atená fosse a protetora deles e 28 provavelmente a sua imagem era adorada em algum santuário dentro do palácio. Após o desaparecimento dos reis e do paço micênico, a divindade protetora ficou, identificando-se primeiro com a fortaleza e depois com a cidade. Lembramos agora há pouco Egeu e Teseu, que são (principalmente Teseu) os mais famosos entre os reis atenienses do período arcaico. Teseu, com efeito, foi o herói nacional do povo de Atenas e da Ática, e o protagonista de um rico ciclo épico cuja fama e prestígio só foram superados pela epopéia dos doze trabalhos de Hércules. A versão mais conhecida da lenda conta que seu pai Egeu, voltando de Delfos, decidiu passar por Trezena, uma cidadezinha do golfo Sarônico não muito longe de Atenas, para consultar Piteu, que reinava na cidade; este embebedou-o e em seguida colocou em sua cama a filha Etra. No dia seguinte Egeu seguiu viagem, mas deixou com Etra a sua espada e as sandálias, escondendo-as sob uma grande pedra. Se daquela união nascesse um filho, algum dia ele poderia reconhecê-lo pela espada e pelas sandálias. O filho nasceu, foi chamado Teseu e, desde pequeno, demonstrou o seu valor. Com efeito, quando Hércules foi visitar Piteu e despiu a pele de leão deixando-a em cima de um banquinho, o menino pegou um machado e atirou-se para cortar a cabeça da fera. lnstruído pela mãe, tinha apenas dezesseis anos quando encontrou a grande pedra, levantou-a e partiu para Atenas com as sandálias e a espada do pai. Durante a viagem enfrentou toda espécie de perigos, tendo de matar animais selvagens como a Porca de Crômion, assassinos e ladrões sanguinários como Procrusto e Pitocamptes e, finalmente, capturar vivo o formidável touro de Creta, que estava arrasando a região de Maratona, para depois sacrificálo ao deus Apolo. No fim, quando chegou a Atenas, foi recebido pelo povo com as maiores honrarias; a rainha Medéia, no entanto, enciumada ao ser informada da sua verdadeira identidade, convenceu Egeu a convidá-lo ao palácio para em seguida envenená-lo. Mas justamente quando estava levando aos lábios a taça com o veneno, Egeu reconheceu a espada e as sandálias, e com um golpe derrubou a taça, gritando: “Não beba, meu filho!”. 29