Por trás do véu

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CONTRASTE
RELIGIÃO
Por trás
do véu
São escandalosas, embora o Livro Sagrado recomende
discrição, porque usam o véu num país católico. Submissas à doutrina,
cobrem-se por escolha própria e têm muito orgulho em ser
as novas mulheres do Islão. TEXTO DE CHRISTIANA MARTINS FOTOGRAFIAS DE ANA BAIÃO
zul. Profundamente azul.
Daquele que voa. Rosa. Femininamente rosa. Daquele que choca. Negro. Lusitanamente negro. Daquele que oculta. Creme. Serenamente creme. Daquele
que ora. São as cores dos
véus das portuguesas que se tapam pelo Islão.
Convertidas ou já nascidas no seio desta
religião, elas decidiram a certa altura que só
mostrariam os seus corpos a quem quisessem. Acusadas pela sociedade ocidental de se
terem convertido em símbolos da submissão,
batalham diariamente para professar a sua fé.
A
GRÁVIDA KARIMAH
RECEBEU O ISLÃO
DE FORMA GENEROSA,
COMO O SEU NOME
ÁRABE. E JÁ NÃO SE
MAGOA COM AS CRÍTICAS
POR USAR O VÉU
Escondem-se nos quartos, enfiam os lenços
para o fundo das malas. Ousam-se nos transportes públicos. Sem um fio de cabelo à mostra. Mas dando a cara pela fé que abraçaram.
Karimah, a generosa. Se olhar pela janela, vejo o cemitério do Alto de São João. Mas se
olhar para dentro daquela casa em Lisboa, descubro o sol de Marrocos. As paredes estão pintadas com cores quentes, o chão coberto com
pequenos tapetes também coloridos. Lá reina
a suave Karimah, que atende por Vera Soares
quando quem chama são não-islâmicos.
O véu de Karimah é azul, fino e transparente. Por baixo, tem uma fita que disciplina
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RELIGIÃO
qualquer fio de cabelo mais impertinente. No
quarto, ao lado da cama e em baixo do espelho, tem um cesto de vime, cheio de véus e
lenços, de várias cores. Compra-os em lojas
de pronto-a-vestir, são feitos por uma amiga
da mãe, são comprados às “irmãs” ou oferecidos e, neste caso, vieram de Marrocos, do Dubai e da Tunísia.
Varia tons e texturas. Só não prescinde
daquilo que já não é um adereço, é parte dela. “O lenço é a minha roupa. Sem ele, sinto-me despida! Em relação à minha personalidade, fico mais confiante e, em relação ao
meu comportamento, com maior responsabilidade. Porque, ao sair de lenço, não estou a
dar a cara só por mim, mas por uma comunidade. Sei que tudo o que faço é controlado e,
à pequena falha, as pessoas aproveitam logo.
Não vão apontar o dedo e dizer ‘aquela mulher, isso ou aquilo’, mas sim ‘aquela gente,
assim ou assado’...”, afirma.
Artista plástica, é ela que decora os cantinhos daquele ninho. Aos 30 anos, as mãos
redondinhas afagam repetidamente a barriga de cinco meses de gravidez. Quando o bebé nascer, Karimah descobrirá o sexo da
criança. Não tem pressa nem curiosidade.
Deus já sabe, e é quanto basta. Mais importante será soprar-lhe a oração corânica, ainda na sala de partos. Assim manda a tradição
de uma religião que permite o aborto até que
a gravidez complete 120 dias. Depois não,
que a alma já foi soprada para aquele novo
corpo. Mas esta questão não se coloca para
Karimah. O bebé é desejado por ela e pelo
marido, um músico marroquino.
Naquele dia, em que conta baixinho a sua
história, temperada pela timidez de quem se
abre, Karimah explica que nasceu numa família católica não praticante. Foi baptizada e
fez a primeira comunhão. Mas foi perdendo
o gosto pelas idas à igreja, porque se cansou
Estas mulheres
defendem que
o uso do véu lhes
garante poder
e mais liberdade
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de ouvir “as conversas maledicentes” dos
crentes da Foz do Arelho, onde vivia na altura. A sua ligação à transcendência passava
por outros caminhos. “Tinha muito preconceito em usar a palavra Deus”, explica. Gostava de olhar o céu, ouvir os pássaros. Não precisava de um templo.
Passou por uma adolescência difícil, desintegrada. Preferia ficar em casa. “Sempre
achei muito bonito o papel da mulher como
alicerce da família”, sussurra, enquanto lembra um tempo em que era “completamente
ignorante do Islão”. Veio para Lisboa com a
ideia de abrir uma loja de artesanato. Não
era fácil e, para juntar dinheiro, começou a
trabalhar numa cooperativa cultural. Lavava
a loiça, apanhava os copos sobre a mesa.
O lugar era frequentado por alguns muçulmanos que tocavam num grupo musical
marroquino. Fez um amigo que lhe foi explicando os nós que compõem o tecido da fé
islâmica. Dali foi um passo até começar a ter
aulas de árabe na mesquita central de Lisboa. Deram-lhe um Alcorão em português.
Foi-se deixando fascinar e começou a estudar: “Percebi que aquela religião ia ao encontro do que eu sou. Lia o Livro Sagrado e chorava, sem saber porquê.”
Este amigo disse-lhe, e ela nunca esqueceu: “Segue o Islão, não os muçulmanos.” Assim tem sido e há-de ser. Tanto que, depois
de convertida, se casou com um dos músicos
marroquinos. Não aquele que a apresentou
ao Islão. “Sempre tive muita vontade de ir a
Marrocos. Nunca fui até lá, mas Marrocos
veio até mim, mas de maneira nenhuma me
converti por causa dele!”, garante.
A conversão de Karimah aconteceu em Julho de 2008. O casamento veio mais tarde.
“Pedi ao xeque: quero ser muçulmana! Arrepia-me ver a fé daquelas pessoas. Que força
as move a rezar?”, pergunta, como quem ainda constrói a sua própria identidade religiosa. “Dias antes da conversão, já saía de véu e
ia toda feliz pela rua”, diz Karimah, ainda a
sorrir. Mas não foi fácil. Como no dia em que
um homem entra no metro e, ao vê-la toda
coberta, beija ostensivamente uma medalha
de Fátima, a mãe do Deus cristão, que tem o
mesmo nome da filha do Profeta. Ou como
no dia em que, também no metro, uma mulher, já com alguma idade, lhe pergunta: “É
católica?” Perante a resposta afirmativa de
Karimah, explode em resposta: “Então,
há-de morrer católica!”
“As mulheres não-muçulmanas são piores para as convertidas que se cobrem com o
véu. Nós fazemos-lhes muita comichão.
Acham que somos submissas, não conse-
CONSCIENTE MARYAM
ASSUME QUE A UTILIZAÇÃO PERMANENTE
DO VÉU EM PÚBLICO É
A SUA JIHAD PESSOAL
(LUTA INTERNA): “ESTÁ
SEMPRE PRESENTE”
guem compreender que optámos”, ri-se Karimah, com o à-vontade de quem já não se deixa magoar.
Hanifa, a monoteísta mais jovem. Não pode
usar o seu nome cristão porque ainda não se
assumiu perante a família. Aqui será apenas
Hanifa Ruqayya, a monoteísta, filha do Profeta. Uma talibã para o xeque Munir, imã da
mesquita central de Lisboa, que assim a trata num encontro de corredor. Perante o frisson que causa a palavra maldita entre os presentes, o xeque explica e tranquiliza: “Talibã
é apenas estudante.” E ela é uma estudiosa.
Converteu-se em Dezembro de 2009.
Cresceu Testemunha de Jeová, mas aos 18
anos começou a ser assaltada por dúvidas.
“Sentia que havia incoerência entre as normas e os comportamentos dos crentes”, explica. A insatisfação cresceu: “Sentia que não
podia pensar pela minha cabeça.” Foi o início de um processo solitário. Hanifa deixou
de acreditar em religiões, embora “sempre
tenha acreditado em Deus”. Começou a estudar todas as crenças. Foram três anos de duro questionamento. E então chegou ao Islão.
A certa altura, saiu de Portugal para se
aperfeiçoar profissionalmente e, num país
europeu que pede para não identificar, para
que não a possam reconhecer, encontra uma
vasta comunidade muçulmana. “Fui bem acolhida e fiquei muito impressionada com a modéstia das mulheres e com a religiosidade
dos homens. Senti paz, nunca submissão, e
aquela era uma imagem desejável para
mim”, explica.
O YouTube abriu-lhe a porta do Islão. Entrou para um fórum da comunidade islâmica na Internet, contou a sua história e recebeu um convite para assistir às aulas do xeque Zabir. Um fórum de discussão do Islão,
aberto a quem quiser participar, aos sábados
RELIGIÃO
à tarde, na mesquita central da capital.
Hanifa não se assume porque diz que, se o
fizesse, “sofreria represálias”. Mas nada a impede de orar, à porta fechada, no quarto da
casa dos pais, onde ainda vive aos 22 anos. O
véu traz-lhe “segurança”. Sem ele, sente “falta de poder, vergonha”. “Sou eu que quero
decidir que exposição dou à minha imagem”,
explica. Afinal, a falta do véu é “um incómodo”, conclui. Na mesquita, sente-se em casa.
Usa o véu. E questiona: “Uma freira usa o
véu por opção religiosa, porque é que com as
muçulmanas não pode ser o mesmo?”
“Ao usar o véu tenho descoberto que sou
muito mais forte do que pensava ser. O conceito de hijab é mais do que um lenço na cabeça, é uma atitude. É um lembrete físico e
uma grande ajuda para cultivar a modéstia e
a paciência”, afirma. Os seus véus são escolhidos “de acordo com necessidades práticas de
cada estação, de tecidos respiráveis, confortáveis”. Prefere as cores neutras, “como creme, preto ou branco, conjugados com toucas
e fitas de cores diferentes”.
E Hanifa levanta a ponta da tradição que
abraçou: “O hijab esconde a awrah feminina, sendo este termo o conceito islâmico de
áreas privadas a serem protegidas dos olhares dos homens que não são da família e que
compreendem todo o corpo, excepto mãos,
cara e porventura pés.” Esta regra deve ser
seguida — “sem imposição, porque na fé islâmica não há compulsão” — a partir da puberdade. “Ao não mostrar os seus atributos físicos em público e deixar à mostra apenas o
necessário para actividades práticas, a mulher evidencia a sua recusa em obter reconhecimento através do seu sex-appeal, deixa
mais explicitamente à vista os seus tributos
pessoais, ideias e capacidades, porque o véu
tapa o cabelo, mas não o cérebro”, defende.
Quando pensa no futuro, explica que gos-
O “hijab” visa
afastar o assédio
masculino. É
obrigatório, mas
deveria ser opção
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tava de ir viver para Inglaterra, país onde,
afirma, não se sentem os olhares “de pena,
gozo, curiosidade, raiva, medo ou crítica”,
que, diz, ainda se sentem em Portugal. “O
meu maior desejo é ter liberdade para praticar a minha religião”, afirma, convicta.
Maryam, apenas Maria. Nasceu em Vila Real,
mas foi em Lisboa que se fez muçulmana.
Aos 26 anos, a Maria ex-cristã, ex-surfista,
licenciada em Engenharia do Ambiente, com
os pés tatuados com algo que não me revela,
escolheu seguir o Alcorão e tapar-se por ele.
Abandonou o mar, adoptou o jejum de alimentos sólidos e líquidos durante o Ramadão. Estudou e vai partir em Agosto, por sete
ou oito meses, para a Indonésia, onde pretende estudar a religião que abraçou e o idioma
do país. Uma mulher de fé.
Foi há quatro anos que contactou com o
Islão, através de um amigo que a apresentou
à religião “de forma inspiradora”. Cozinhou
aquela fé durante dois anos. Depois foi para
Inglaterra e lá os horizontes abriram-se de
forma irreversível. “Conheci uma comunidade com práticas estabelecidas, e o Islão surgiu-me como uma resposta”, explica. Não desembarcou em Lisboa usando o hijab, mas,
antes do Ramadão de 2007, já o usava.
“Quando se aceita uma religião, aceita-se as
suas práticas”, prostra-se. Mas a adaptação
vai sendo gradual. Todos os dias, são mais
uns minutos que se vai cobrindo: “É um processo contínuo, que não acaba.”
A mãe era catequista. Custou-lhe ver a filha partir para outra doutrina. Mas soube
aceitar. “Tenho a sorte de ter bons pais, nunca tive de esconder a minha fé da família”,
afirma Maria, tranquila, como só ela parece
conseguir ser. Já saiu de véu, acompanhada
pelos pais. Diz que não se sente nem discriminada nem objecto de atenção especial. No início, os olhares incomodavam-na mais. O certo é que “cada vez faz mais sentido usar o
véu”. Diz ainda que “as pessoas têm de ser
educadas. Esta nunca será uma situação normal, porque não somos tantas, mas há que
banalizar o uso do hijab”.
Para Maryam, o véu é sinónimo de modéstia e da necessidade de dizer: “Sou muçulmana e este é o sinal.” Diz que sempre lhe fez
confusão “como alguém se sente na liberdade de invadir a liberdade dos outros com o
olhar.” Rejeita qualquer sugestão de que o
uso do lenço implique alguma submissão da
sua parte: “Vejo a religião de forma libertadora e, se a mulher é obrigada e não se sente
bem, mais vale não usar.” Sabe que essa é
uma “jihad pessoal”, a sua luta interna: “Es-
CORAGEM HANIFA
ASSUME QUE NÃO TEM
ESTOFO PARA USAR O
VÉU A TEMPO INTEIRO,
MAS DIZ QUE É COM
A CABEÇA E O COLO
COBERTOS QUE FICA
MAIS CONFORTÁVEL
tá sempre presente.”
Não se maquilha, não usa verniz — cria
uma capa sobre as unhas, o que impediria a
sua limpeza total, obrigatória para as orações diárias e para poder tocar no Livro Sagrado —, procura a modéstia e a discrição. Só
tem três ou quatro véus. Não os muda todos
os dias, trouxe-os todos de Inglaterra. “Para
quem crê, o véu é a nossa casa. Somos o Islão”, resume. E não aceita proibições: “Estamos a falar de liberdade religiosa, algo tão
básico como os direitos humanos.”
Aminah, a confiável e segura. Magra e muito
alta, inquieta, será apenas Aminah, mais
uma das que não se sente ainda confortável
para assumir a sua conversão perante a família. Foi sozinha à mesquita pela primeira vez
há três anos. Ninguém a levou. Nenhum marido impositor, nenhum familiar opressor.
Foi em busca da libertação de uma fé protestante que não a preenchia.
“Queria algo que realmente me levasse à
salvação”, afirma, com as mãos inquietas no
colo. Toda coberta de negro, com o véu muito
bem atado sob o queixo. Diz que sempre foi
recatada, não se revia nos comportamentos
dos jovens com a sua idade, 23 anos. Começou por fazer amizade com muçulmanos na
Internet, através das redes sociais: “Sempre
achei que havia algo de especial no Islão.”
Os conceitos de decência e modéstia
atraíam-na, porque, acredita, “para adorar
Deus, a pessoa deve estar despojada de vaidade”. E o véu foi a “parte fácil” da conversão.
Mais difícil foi separar-se dos amigos da sua
crença anterior: “Éramos como uma família.”
Aminah só usa o hijab na mesquita. “Não
estou preparada para ter mais conflitos”,
afirma. Afectuosa, abraça e beija as “irmãs”
carinhosamente quando as encontra. E diz
que, quando se cobre, sente-se “protegida,
RELIGIÃO
em paz”. Porque, garante, “ama o Islão de
todo o coração”.
Gostava de casar com um convertido e sonha ir viver para Inglaterra. É que, embora
saiba que “não é por usar o véu que uma pessoa deixa de ser ocidental”, gostaria de viver
num país que não se assustasse tanto com a
comunidade muçulmana. “A Europa é tão democrática que devia aceitar o Islão como
uma religião — e não como uma cultura invasora”, defende. Talvez por isso seja contra o
uso da burqua ou do niqab nos países ocidentais: “Tem de haver equilíbrio, e o isolamento
excessivo dá má imagem da religião. Não posso falar à sociedade de dentro de uma caixa.”
Hanifa, a monoteísta mais velha. Não acredita no acaso. Para tudo haverá uma razão de
ser, mesmo que incompreensível à partida.
Tem 43 anos e sente que descobriu o seu caminho. Esta Hanifa é Cristina Almeida de
baptismo. Solteira, mãe de uma rapariga de
21 anos que, uma vez por outra, já a acompanha à mesquita. Nasceu católica e foi Testemunha de Jeová. Hoje abraçou a fé islâmica
e diz que já não muda.
As viagens a Marrocos e ao Egipto fazem
parte deste percurso de revelação. A chamada para a oração marcou-a. “Mudou algo
quando ouvi aquele som”, afirma. Sente o
véu como uma escolha íntima da mulher.
Explica que “ser muçulmano significa submeter-se à vontade de Deus, aceitar o Bem
e o Mal que Ele determina e saber que Ele
quer o Bem, mesmo que na altura pareça
ser o Mal”. Começou a estudar o Islão durante o Ramadão de 2009. Achou o Alcorão
“complicado” e começou a estudar a língua
árabe. A 30 de Outubro do ano passado tinha-se convertido. “Fiz a minha escolha”,
afirma.
Só usa o véu para ir à mesquita: “Na nossa
São portuguesas,
usam véu
e não querem
ser incomodadas
por cumprir
a sua devoção
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cultura, é complicado.” Está desempregada.
É técnica de cartografia e sabe que “usar o
hijab era meio caminho para um despedimento”. Por isso, aguarda. Mas diz que tem “muita vontade de usar o lenço na rua”. A família
sabe da sua conversão, mas tem a “certeza de
que, se usasse o véu com eles, eles se ririam”.
E conclui de forma simples: “Não tenho estofo para usar o véu a tempo inteiro.”
Reconhece que a sua vontade acaba por
resultar numa contradição. Quer usar o véu
para ser discreta, mas ao fazê-lo num país
ocidental sabe que chama ainda mais atenção sobre si. Nunca se sentiu feia com o hijab, mas diz que os homens ocidentais não
olham para uma mulher coberta. Isso, garante, não a incomoda. Dividida entre a sua vontade e a sua circunstância, Hanifa chora
quando confrontada com a possibilidade de
um dia ver o uso do véu proibido. “Se tal
acontecesse, sairia de Portugal. Estariam a
privar-me da minha liberdade.” Isto porque
diz ter chegado ao seu “porto de abrigo”. “E
daqui já não saio”, conclui.
Bibi Fátima, a que se abstém do mal. Serena
e determinada, não fala à toa. Tem os seus
limites. Evita os excessos de linguagem e de
revelações. É especial: foi a única muçulmana de nascença que aceitou falar sobre o uso
do hijab. Especial será também, em breve, a
primeira licenciada portuguesa que usa o
véu em permanência. Não abre mão do que a
identifica, mas recusa a exposição excessiva.
É Bibi, nome que sinaliza a sua origem indiana, mas é, sobretudo, Fátima, a que leva o
nome da filha de Maomé.
Nasceu em Moçambique há 27 anos e foi
há dez que decidiu cobrir os cabelos. A mãe,
também muçulmana, não o faz como ela.
Cumpre apenas a tradição nas cerimónias,
nos locais sagrados e durante as orações.
Mas não usa o véu diariamente. Este é o caminho de Bibi Fátima.
“Comecei a sentir que fazia sentido. Comecei a usá-lo no Ramadão e, depois, já não
o consegui tirar”, recorda. Diz que esta decisão faz parte da liberdade individual. E afirma, olhar certeiro no interlocutor: “Sou a
prova de que não somos oprimidas.” Quer
ser conhecida pelas suas “capacidades intelectuais, pela moralidade e não pelo aspecto
físico”. Ela que provavelmente não teria qualquer problema em ser aceite pela parte estética de uma mulher. Tem olhos tão especiais
quanto a sua história, que vai contando de
forma parcimoniosa. Há pormenores que
prefere deixar para trás.
Gosta de cores escuras, véus opacos. Pre-
ALTIVA BIBI FÁTIMA
SERÁ A PRIMEIRA LICENCIADA EM PORTUGAL
A USAR O VÉU A TEMPO
INTEIRO. COBRE
O CABELO ÀS SETE
DA MANHÃ E SÓ O SOLTA
À NOITE, EM CASA
fere os negros, azuis-escuros, castanhos ou
grenás. Com uma fita grossa por baixo. Esconde os cabelos longos. Quem já viu diz
que são bonitos os cabelos de Bibi Fátima.
Estuda no Instituto Superior de Educação e
Ciências, onde diz que nunca foi discriminada. Nem por colegas nem por professores.
Nem pelas crianças do primeiro ano no estágio, que frequenta actualmente no Colégio
Paula Frassinetti. Também já estagiou, com
crianças dos 6 aos 10 anos, no ensino público e, garante, nunca foi molestada. E, avisa,
não irá trabalhar para um local onde não
possa usar o seu lenço: “Vai contra os meus
princípios.”
“Sou muçulmana e sou portuguesa e estou apenas a exteriorizar a minha devoção”,
afirma. Bibi Fátima não acredita na separação entre vida pessoal e profissional. É por
isso que se realiza a dar aulas, mas não abre
mão de querer constituir a sua família, seguindo os preceitos do Islão. Às sete da manhã, quando esta futura professora do Ensino Básico sai de casa, cobre os cabelos e só
voltará a soltá-los à noite, quando voltar.
São as mulheres do Islão que falam português e vivem em Portugal. São jovens, estudam, trabalham. São devotas e fizeram a sua
opção. Tapam-se e é assim que gostam de
viver, garantem. Antes de se deitarem, rezam: “Deus! Não há mais divindade além
d’Ele, Vivente, Subsistente, a Quem jamais
alcança a inactividade ou o sono; d’Ele é
quanto existe nos céus e na terra. Quem poderá interceder junto d’Ele, sem a Sua
anuência? Ele conhece tanto o passado como o futuro. E eles (humanos) nada conhecem da Sua ciência senão o que Ele permite.
O seu trono abrange os céus e a terra, cuja
preservação não O abate, porque é o Ingente, o Altíssimo” (Alcorão, 2:255). n
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RELIGIÃO
OCULTAS HANIFA E
AMINAH COBREM O
ROSTO NUMA POSIÇÃO
DE ORAÇÃO E TAMBÉM
PORQUE TÊM DE PERMANECER ANÓNIMAS
Mais se cobrem
mais se vêem
Existirão actualmente mais de 17 milhões
de muçulmanos a viver na Europa, separados
de muitos europeus por um véu. O tecido
liberta? Reprime? Incomoda? É uma forma
de orar? Submete? Protege? Depende de
quem responde. Raras vezes uma peça de
roupa terá sido alvo de tantas interpretações
e manipulações. E, cada vez mais mulheres,
cada vez mais jovens, convertidas ou não,
usam o véu como afirmação de uma identidade. É como se dissessem: “Eu tenho orgulho
em ser muçulmana e quero ser respeitada.”
A tradição islâmica afirma que o uso do véu é
obrigatório, mas como esta religião não aceita
a imposição, explica o xeque Zabir Ebriss, as
mulheres que se cobrem devem fazê-lo por
opção própria. Responsável pelo encontro
semanal sobre o Islão na mesquita central de
Lisboa, Ebriss explica que se realizam em
média duas conversões semanais em Portugal. Destas, 80 por cento são mulheres que
decidem mudar de fé. Estima-se que existam
cerca de 40 mil muçulmanos em território
nacional, a maioria deles oriundos da Guiné.
Provavelmente uma das questões mais polé-
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micas da religião islâmica, o uso do véu está
ligado ao princípio da separação da vida
pública da vida privada. Os muçulmanos
acreditam que, ao ser mais modesta fora de
casa, a mulher criará uma barreira contra o
assédio e situações tentadoras. Por outro
lado, defendem que é em casa que a mulher
deve procurar embelezar-se e ser sensual,
para agradar ao marido, evitando assim que,
por causa do desleixo pessoal com a imagem, ele inicie relacionamentos extraconjugais. Internacionalmente, este é um assunto
que joga muitas achas na fogueira que quei-
A revolução
islâmica
de 1979 no Irão
transformou o
véu num símbolo
religioso e político
ma a imagem do Islão junto da opinião pública ocidental. O Conselho da Europa é contra
a proibição do uso do véu integral e o tema
será debatido em plenário. A situação mais
tensa parece ser vivida em França, onde o
Governo e a Assembleia aprovaram uma
proposta de lei contra o uso do véu integral
em espaços públicos. O texto será debatido
por deputados e senadores nos próximos
meses. Em 2004, o véu foi proibido nas
escolas públicas francesas. Os alemães proibiram-no entre os funcionários do Estado.
Calcula-se que em Inglaterra vivam de 10 mil
a 40 mil muçulmanas usando véu. Foi, contudo, com a revolução islâmica de 1979 no Irão
que o véu se converteu num símbolo religioso e político. A origem do uso do véu está
associada a um período histórico anterior
ainda ao Islão e à norma do Profeta. Tudo
começou porque o véu servia para distinguir
as mulheres de classes sociais superiores.
Depois, Maomé transmitiu a mensagem
divina: “Ó Profeta! Dize às tuas esposas e
filhas e às mulheres dos crentes que se
envolvam e fechem nos seus mantos (quando saírem); isso é mais conveniente para que
se distingam das demais e para que não
sejam molestadas” (Alcorão, 33:59). A palavra hijab, sinónimo de véu, significa cobrir,
toldar. Mas, ao contrário do que se pretendia
no início da sua utilização, o véu nos países
ocidentais, dá maior visibilidade à mulher.
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